Os Espaços Públicos na Reconfiguração Física e Social da Cidade
Descrição do Produto
Os Espaços Públicos na Reconfiguração Física e Social da Cidade por Jorge Manuel Gonçalves
Dissertação submetida à Universidade de Nova de Lisboa para obtenção do grau de Doutor em Geografia na especialidade de Gestão do Território.
Departamento de Geografia e Planeamento Regional Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade de Nova de Lisboa Julho de 2004
[1]
Universidade de Nova de Lisboa Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Departamento de Geografia e Planeamento Regional
Os Espaços Públicos na Reconfiguração Física e Social da Cidade
Jorge Manuel Gonçalves Tese de Doutoramento Orientadora: Prof. Drª Margarida Pereira
Lisboa Julho de 2004
[2]
No bairro do amor a vida é um carossel Onde há sempre lugar para mais alguém O bairro do amor foi feito a lápis de cor Por gente que sofreu por não ter ninguém No bairro do amor o tempo morre devagar Num cachimbo a rodar de mão em mão No bairro do amor há quem pergunte a sorrir: Será que ainda cá estamos no fim do verão? Eh, pá, deixa-me abrir contigo Desabafar contigo Falar-te da minha solidão Ah, é bom sorrir um pouco Descontrair um pouco Eu sei que tu compreendes bem No bairro do amor a vida corre sempre igual De café em café, de bar em bar No bairro do amor o sol parece maior E há ondas de ternura em cada olhar O bairro do amor é uma zona marginal Onde não há prisões nem hospitais No bairro do amor cada um tem que tratar Das suas nódoas negras sentimentais Eh, pá, seixa-me abrir contigo Desabafar contigo Falar-te da minha solidão Ah, é bom sorrir um pouco Descontrair um pouco Eu sei que tu compreendes bem
Jorge Palma
Aos meus pais
[3]
Agradecimentos É impossível elaborar um trabalho destes isoladamente. Assim como
é
impossível
expressar
apenas
por
palavras
o
reconhecimento que devo a um conjunto restrito de pessoas pois o
termo
que
me
merecem
pelo
seu
contributo,
directo
ou
indirecto, para este esforço não pode ser apenas gratidão. Concretamente estas pessoas são: - No plano pessoal, distingo a dedicação infinita da minha mãe que, antes de falecer, ainda teve oportunidade de contribuir objectivamente para a elaboração deste trabalho e o esforço da minha
mulher,
Ana
Paula,
na
gestão
familiar
e
doméstica,
apesar desta tese ter atravessado períodos muito complicados na sua vida; - No plano académico, destaco a minha orientadora científica, a
Professora Doutora Margarida Pereira, pois só com muitas
dificuldades conseguiria descrever a forma como conduziu todo este
longo
processo,
naturais
situações
elegante
no
sem
que
trato,
pressões,
surgem
célere
no
compreensiva
durante
quase
tratamento
face
cinco
dos
às
anos,
materiais
e
rigorosa na avaliação da qualidade do trabalho que ia sendo produzido. Merecem-me ainda palavras de agradecimento o Dr. Oliveira das Neves pela compreensão que revelou das minhas involuntárias mas,
por
vezes,
incontornáveis
variações
na
produtividade.
Acresce ainda a sua permanente disponibilidade e até agrado com que discutiu o tema, possibilitando-me ainda o acesso a materiais fundamentais. Agradeço
a
processo
de
Professor
todas
as
pessoas
inquirição
Doutor
João
e
anónimas
de
Ferrão,
que
colaboraram
entrevista, o
em
Professor
especial,
Doutor
no o
Manuel
Teixeira, o Professor Doutor Horácio Bonifácio, o Professor Doutor
Bragança
de
Miranda,
o
Arquitecto
Paisagista
Paulo
Monteiro e o Arquitecto Manuel Salgado. Expresso aqui também
[4]
publicamente
à
colega
Filipa
Lourenço
os
esclarecimentos
prontos que me prestou no sempre difícil campo da análise de conteúdo
das
entrevistas
e
do
tratamento
estatístico
dos
inquéritos. Finalmente, devo uma palavra a todos aqueles que em diversos momentos de elaboração deste trabalho me questionavam sobre o andamento dos trabalhos e revelavam interesse convicto sobre o tema.
[5]
Resumo
[6]
Abstract
[7]
ÍNDICE
INTRODUÇÃO ................................................. 18 1. DISCUSSÃO EM TORNO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS URBANOS (EPU): HIPÓTESES DE PARTIDA E ÁREAS CINZENTAS ..................... 23 1.1. OS EPU COMO METÁFORA DAS TRANSFORMAÇÕES URBANAS ............. 23 1.2. QUESTIONAR OS EPU OU OS MÚLTIPLOS CAMPOS DA URBANIDADE ....... 26 1.3. QUADRO CONCEPTUAL E METODOLÓGICO .......................... 31 1.3.1.
Objectivos ...................................... 31
1.3.2. Defender uma tese ou teses? ...................... 34 1.3.3. Sequência metodológica ........................... 44 2. ELEMENTOS DE UMA CRISE ANUNCIADA ........................ 47 2.1. INTRODUÇÃO ............................................ 47 2.2. AS DINÂMICAS URBANAS RECENTES: EMERGÊNCIA DO HÍBRIDO E DA DESTERRITORIALIZAÇÃO
......................................... 56
2.2.1. A fluidez espacio-temporal da noção de cidade .... 56 2.2.2. Transformações da cidade física ................................................ 57 2.2.3. O estilhaçar da imaterialidade urbana ............ 62 2.3. CONTRIBUTOS PARA UMA TEORIA DOS ESPAÇOS PÚBLICOS URBANOS ...... 63 2.3.1. Espaço Público: crise ou novas lógicas? .......... 63 2.3.2. Estratégias de Substituição e Sedução ............ 70 2.3.3. Dos Espaços Públicos aos Espaços Colectivo: que consequências para as sociedades urbanas? ............... 75 2.4. PROPOSTAS DE TIPOLOGIA .................................. 81 2.4.1. Segmentando a análise ............................ 81 2.4.2. Espaços de recreio e lazer ....................... 82 2.4.3. O espaço público nas cidades portuguesas ......... 84 2.4.4. Ensaio tipológico para os EPU .................... 85 3. NO CAMPO DO ACTOR E DO SEU CENÁRIO ...................... 92 3.1. NOTAS PRELIMINARES ..................................... 92
[8]
3.2. O CRESCENTE INVESTIMENTO NO SELF .......................... 94 3.3. A CIDADE COMO TERRENO NARCÍSSICO ......................... 100 3.4. TRANSFORMAÇÕES E MUTAÇÕES SOCIAIS E URBANAS ................ 104 3.4.1. O paradoxo
urbano-metropolitano ................ 104
3.4.2. Territórios da Alegria .......................... 106 3.4.3. Cidades da Angústia ............................. 109 3.4.4. Cidade dos Extremos ............................. 111 4. OS ESPAÇOS PÚBLICOS URBANOS NA MULTIPLICIDADE DOS OLHARES 112 4.1. CIÊNCIAS SOCIAIS E DA COMUNICAÇÃO ........................ 112 4.2. URBANISMO, ARQUITECTURA E PAISAGISMO ..................... 119 4.3. HISTÓRIA ............................................ 123 4.4. SÍNTESE ............................................. 127 5. O PERCURSO HISTÓRICO DO EPU ............................ 139 5.1. INTRODUÇÃO ........................................... 139 5.2. ATÉ AO PERÍODO ROMANO .................................. 140 5.2.1. Ambiente económico .............................. 141 5.2.1.1. A Cidade Ancestral .......................... 141 5.2.1.2.
Polis grega e cidade romana ................ 146
5.2.2. Política, cultura, e religião ................... 148 5.2.2.1. A cidade ancestral .......................... 148 5.2.2.2. Polis Grega e Roma Imperial ................. 152 5.2.3. Das formas urbanas dos Espaços Públicos ......... 154 5.3.PERÍODO MEDIEVAL ....................................... 160 5.3.1.
Ambiente económico ............................. 160
5.3.2.
Política, cultura, e religião .................. 162
5.3.3.
Das formas urbanas dos Espaços Públicos ........ 164
5.4. PERÍODO RENASCENTISTA – CIDADE CLÁSSICA E BARROCA ........... 168 5.4.1. Ambiente económico .............................. 169 5.4.2. Política, cultura e religião .................... 172 5.4.3. Das formas urbanas dos espaços públicos ......... 177 5.5. CIDADE MODERNA ........................................ 184 5.5.1. Ambiente Económico .............................. 184 5.5.2. Política, cultura e religião .................... 189
[9]
5.5.3. Das Formas Urbanas dos Espaços Públicos ......... 198 5.6. A “HISTÓRIA” QUE SE ESTÁ A ESCREVER ...................... 204 5.6.1. Recomendação do Comité de Ministros dos Estados Membros da Comunidade Económica Europeia ............... 205 5.6.2. A Nova Carta de Atenas .......................... 208 5.6.3. Regulamentos e manuais municipais de utilização dos EPU .................................................... 210 6. AVERIGUAR A PRÁTICA: A OCUPAÇÃO DO TEMPO E A UTILIZAÇÃO DOS EPU ................................................... 220 6.1. O USO DO TEMPO EM PORTUGAL .............................. 222 6.2. UTILIZAR OU NÃO OS ESPAÇOS PÚBLICOS? EIS A QUESTÃO .......... 238 6.2.1. Processo de Inquirição aos Cidadãos de Lisboa ... 238 6.2.1.1. Introdução .................................. 238 6.2.1.2. Processos de inquirição ..................... 253 6.2.1.3. Dimensões e grau de pertinência da amostra .. 254 6.2.1.4. Modelo e estrutura de inquérito ............. 255 6.2.1.5. Caracterização dos inquiridos ............... 258 6.2.2. Das teses à realidade ........................... 269 6.2.3.1. Em busca de um significado para os EPU ...... 269 6.2.3.2. A distância entre a representação e a realidade ..................................................... 315 6.2.3.3. O apagamento dos EPU no Urbanismo Contemporâneo ..................................................... 348 7. CONCLUSÃO .............................................. 365 8. BIBLIOGRAFIA ........................................... 371
[10]
Índice de Quadros
Quadro 1 - Classificação de áreas recreativas .............. 83 Quadro 2 - Especialização funcional dos EPU ................ 85 Quadro 3 - Ensaio de tipificação dos EPU ................... 87 Quadro 4 - Domínios e conceitos fixados para a análise quantitativa das entrevistas ........................... 130 Quadro 5 - Matriz relativa ao domínio Cidadania (‰) ....... 133 Quadro 6 - Matriz relativa ao domínio Comunicação (‰) ..... 134 Quadro 7 - Matriz relativa ao domínio Elementos de Composição ....................................................... 136 Quadro 8 - Matriz relativa ao domínio Complementaridades .. 137 Quadro 9 – Distribuição geográfica da Amostr .............. 225 Quadro 10 - População com mais de 15 anos que efectuou passeios a pé, um dia médio ............................ 228 Quadro 11 - População que efectuou passeios a pé, por grupo etário, num dia médio .................................. 229 Quadro 12 - População que efectuou passeios a pé, por tipologia de família, num dia médio .................... 230 Quadro 13 - População que efectuou passeios a pé, por escalões de rendimento líquido mensal, num dia médio ............ 231 Quadro 14 - Variação na estrutura etária da cidade de Lisboa ....................................................... 242 Quadro 15 - Agrupamentos de Freguesia adoptados ........... 250 Quadro 16 - O género na Amostra ........................... 258 Quadro 17 - Indivíduos com filhos até 10 anos na Amostra .. 260 Quadro 18 - Indivíduos com cão na Amostra ................. 260 Quadro 19 - Nível de Instrução dos Indivíduos na Amostra .. 262
[11]
Quadro 20 - Naturalidade dos inquiridos ................... 263 Quadro 21 - Distribuição das Freguesias do local de trabalho ou Estudo .............................................. 267 Quadro 22 - Principais utilizadores dos EPU (%) ........... 270 Quadro 23 - Modo de deslocação (%) ........................ 292 Quadro 24 - EPU mais importantes para o inquirido ......... 313 Quadro 25 - Importância concedida aos EPU ................. 316 Quadro 26 - Intensidade de uso dos EPU .................... 319 Quadro 27 - EPU mais frequentados ......................... 320 Quadro 28 - Termos de caracterização dos Espaços Públicos de Lisboa(%) .............................................. 326 Quadro 29
- Síntese do posicionamento face à Rua (%) ..... 330
Quadro 30 - Síntese de posicionamento face ao Jardim ...... 331 Quadro 31 - Síntese de posicionamento face ao Parque Verde Urbano ................................................. 332 Quadro 32 - Qualidade da iluminação nos jardins ........... 339 Quadro 33 - Espaço mais utilizado fora do tempo das obrigações ....................................................... 345 Quadro 34 - Aspectos mais negativo nos EPU (%) ............ 350 Quadro 35 - Ver televisão ................................. 352 Quadro 36 - Leitura de jornais, revistas ou livros ........ 353 Quadro 37 - Conversar em família ou com os amigos ......... 353 Quadro 38 - Navegar na Internet ........................... 354 Quadro 39 - Comunicar on-line (chats, e-mail) ............. 355 Quadro 40 - Jogos electrónicos ............................ 355 Quadro 41 - Programas culturais e recreativos ............. 356 Quadro 42 - Praticar desporto ou cultura física ........... 356 Quadro 43 - Ver montras comerciais ........................ 357
[12]
Quadro 44 - Jardins e parques urbanos ..................... 358 Quadro 45 - Cafés / Esplanadas ............................ 359 Quadro 46 - Namorar ....................................... 359 Quadro 47 - Passear ....................................... 360 Quadro 48 - Não tem tempos livres ......................... 360
[13]
Índice de Figuras
Figura 1 - Elemento gráfico de lisboa – Capital do Nada .... 19 Figura 2 - Síntese da estrutura metodológica e conceptual .. 44 Figura 3 - Descodificação do padrão de utilização dos espaços públicos ................................................ 54 Figura 4 - A transição urbana .............................. 58 Figura 5 - O humor nos olhares sobre os EPU ............... 122 Figura 6 – Oposição nas representações dos EPU ........... 123 Figura 7 - Cidade de Nippur: A primeira planta urbana ..... 144 Figura 8 - O Berço da Civilização Urbana .................. 151 Figura 9 - Níveis de conhecimento dos EPU ................. 156 Figura 10 - Planta da Babilónia ........................... 157 Figura 11 - Mileto e a Àgora como charneira urbana ........ 159 Figura 12 - Praça central de Siena ........................ 168 Figura 13 - Monsaraz ...................................... 179 Figura 14 - Exemplo da intervenção de Haussman em Paris ... 194 Figura 15 - Extensão e tipos de intervenção de Haussman e . 194 Figura 16 - Recomendações e princípios constantes na Recomendação NºR(86)11-CEE ............................. 207 Figura 17 - Manual de Utilizador dos Parques de Lisboa .... 214 Figura 18 - Perfil de ocupação da população com mais de 15 anos, num dia médio .................................... 227 Figura 19 - População com 15 ou mais anos que realizou actividades de lazer, dia médio ........................ 232 Figura 20 - População com mais de 15 anosque anda apressada 232 Figura 21 - População empregada que anda apressada, por grupo etário, por percepção do tempo na vida particular ...... 235
[14]
Figura 22 - A Área Metropolitana de Lisboa ................ 240 Figura 23 - Variação da população por concelhos, 91-01 .... 241 Figura 24 - Estrutura etária do Parque Habitacional de Lisboa ....................................................... 244 Figura 25 - As 53 freguesias de Lisboa .................... 248 Figura 26 - Agrupamentos de freguesias de Lisboa .......... 251 Figura 27 - Agrupamentos de Freguesias por população, 2001 252 Figura 28
- Os espaços público/colectivos mais referidos em
Lisboa ................................................. 253 Figura 29 - Distribuição da amostra por grupos de idades .. 259 Figura 30
- Número de Passeios com o cão ................. 261
Figura 31 - Local dos passeios com o cão .................. 261 Figura 32 - Habilitações dos inquiridos ................... 263 Figura 33 - Naturalidade dos inquiridos ................... 264 Figura 34 - Distribuição relativa pelas principais freguesias de residência .......................................... 265 Figura 35 - Freguesias de residência dos inquiridos ....... 266 Figura 36 - Principais freguesias dos locais de trabalho .. 268 Figura 37 - Local de trabalho ou estudo por agrupamentos de freguesia na distribuição da amostra ................... 268 Figura 38 - Utilizadores habituais como perturbadores do uso mais alargado dos EPU .................................. 284 Figura 39 - Limitações a um uso mais frequente dos EPU .... 288 Figura 40 - Deslocações para compras ...................... 298 Figura 41
- Deslocações para obrigações diversas ......... 301
Figura 42 - EPU como modalidade de Ocupação dos Tempos Livres ....................................................... 302 Figura 43 - Utilização dos EPU após as 23h ................ 305
[15]
Figura 44 - Locais mais inseguros de Lisboa ............... 307 Figura 45 - Locais identificados como mais importantes
de
Lisboa ................................................. 311 Figura 46 - Opinião sobre o volume de EPU ................. 318 Figura 47 - Frequência de deslocação aos locais que mais gosta ....................................................... 325 Figura 48 a) b) c) d) - Opinião sobre a iluminação nos EPU 337
[16]
Índice de Fotografias
Fotografia 1 - A altura dos Passeios: baixo num lado e alto no outro (Cruzamento da Av. da República com a Av. de Berna) ........................................................ 35 Fotografia 2 - Campo Pequeno. As novas muralhas da cidade(1) 35 Fotografia 3 - Calçada do Combro.As novas muralhas da cidade(2) ............................................... 36 Fotografia 4 - A Expo’98 .................................. 107 Fotografia 5 - Os Estádios do Euro 2004 ................... 108 Fotografia 6 - Porto - Capital Europeia da Cultura. Casa da Música. ................................................ 108 Fotografia 7 - Chelas ..................................... 108 Fotografia 8 - O Passeio Público: Rua Central e Passeios Laterais ............................................... 246
[17]
Introdução Escrever
uma
tese
significa
defender
e
explicitar
convicções recorrendo a uma metodologia e linguagem aceites pela
comunidade
científica.
Representa
também
caminhar
no
sentido da obtenção de um conhecimento mais aprofundado sobre determinado objecto, recorrendo à reapreciação de reflexões efectuadas em domínios conexos aos Espaços Públicos Urbanos por
outros
autores
e
ainda
a
um
investimento
renovado
na
recolha de novos elementos capazes de trazer um contributo significativo para a compreensão do tema. Este objectivo geral não ajuda a entender as causas mais profundas
que
conduziram
à
adopção
dos
Espaços
Públicos
Urbanos como fundamento de uma tese de doutoramento. Esta é uma das principais preocupações da presente Introdução: Como se seleccionou um tema de natureza geográfica e urbana ao qual um candidato ao grau de doutorado passa a dedicar mais de quatro anos a investigar, a recolher, a apreciar documentação, a entrevistar, a inquirir e, finalmente, a tratar e discutir toda
a
informação
que
lhe
vai
chegando.
A
paixão
sobre
cidades, pessoas e quotidiano foram a matriz inicial dessa motivação
aliás,
já
reflectida,
num
primeiro
trabalho
académico1, onde o problema da participação pública em matéria de questões territoriais havia sido debatida. Neste caso, o interesse pelo Espaços Públicos para além de se inscreverem na dimensão urbana e social permitiam também uma (re)leitura das formas de utilização quotidiana da Cidade medindo as causas e consequências das suas transformações. A interacção entre estes elementos tinha, desde os finais dos anos 90, vindo a ganhar expressão na literatura científica nacional, em especial no domínio da sociologia, mas também nas páginas
de
jornais
e
ecrãs
de
televisão
onde
apareciam
1
Dissertação de mestrado ReciproCidade: Apropriação e Exclusão em Urbanismo, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1996.
[18]
insistentes
reivindicações
pela
protecção
e
criação
dos
Espaços Públicos Urbanos. Entre os muitos exemplos é incontornável não apresentar aquele
que
questionamento
talvez e
tenha
de
exercido
mobilização
um
para
o
maior estudo
poder do
de
tema:
Projecto Lisboa – Capital do Nada, que decorreu numa freguesia de Lisboa – Marvila - de 1 a 31 de Outubro de 2001. Um conjunto
de
artistas
e
especialistas
de
várias
áreas
disciplinares encarou como uma oportunidade a possibilidade de intervir no espaço urbano da freguesia para o que contou com o apoio dos órgãos autárquicos locais e com as populações. Esta
intervenção
suscitou-nos
múltiplas
interrogações
mas entre as quais ganhou força a que questionava a forma, admitindo a existência de uma crise do espaço público, como operar a sua reanimação ou recentramento no quotidiano dos espaços e comunidades urbanas. Ou seja, como é que espaços onde o vazio e o nada marcam o tempo podem ser revertidos de modo a possibilitar, como afirma Teresa Alves, “(...)a criação de um sentimento de comunidade através da mobilização das populações de forma a que estas reivindiquem o espaço público como um bem colectivo de promoção da qualidade vida” (AAVV:
Figura 1 - Elemento gráfico de lisboa – Capital do Nada
[19]
2002; 12). Estes espaços públicos de Marvila não são mais que uma metáfora de uma qualidade urbana paupérrima e de frágeis dispositivos de promoção da coesão social. Marvila inovadoras propósito
era
assim
formas de
um
de
um
espaço
intervenção
movimento
ideal em
para
desencadear
Espaços
artístico,
novos
Públicos,
a
comportamentos
colectivos, marcados pela participação, pela observação e pelo envolvimento.
Os
seus
organizadores
não
esconderam
estes
propósitos justificando a escolha de Marvila porque “é uma zona mal amada; porque é um conjunto de bairros com muita história mas também muito futuro; porque é um território rico e
variado,
onde
há
pessoas
e
colectividades
de
grande
dinamismo” (AAVV: 2002; 13). Os objectivos centrais situavamse na mudança da imagem negativa do bairro através da arte e de intervenções várias contando com a participação cidadã. O “Nada”
inscrito
no
título
do
projecto
partida que conduziria à inversão do
seria
a
matéria
de
passado.
O impacte e a visibilidade que este projecto teve junto dos
meios
artísticos
não
encontrou
correspondência
na
realidade local. Todavia, a fugaz intervenção de um mês e a bondade do emprenho colocado no projecto não podem apagar décadas
de
esquecimentos
e
erros
urbanísticos.
Daí
a
importância conferida a este evento pois a sua avaliação exige que se questione sobre as melhores formas de intervir sobre o espaço público, o que exige a explicação para o seu declínio. Como
mérito
participação
e
do
projecto
envolvimento
salientam-se
público
em
as
temáticas
matéria
de
da
Espaços
Públicos Urbanos convencendo-nos em definitivo que esta será uma das matérias cruciais para a sobrevivência da ideia de Cidade sedimentada ao longo de centenas de anos. Se estes acontecimentos ajudaram a consolidar o tema e os conteúdos a tratar as vicissitudes, as limitações de ordem
[20]
diversa e até a incongruência de algumas tarefas concebidas inicialmente não alteraram o rumo traçado mas introduziram novos contornos nos conteúdos face ao esperado. Isto é o que sucede quando o objecto de estudo se refere a mudanças que ainda estão a decorrer, por isso, parte das suas consequências permanecem invisíveis. É o que sucede com os Espaços Públicos Urbanos e a forma como hoje se inscrevem na
cidade
e
no
imaginário
das
suas
comunidades
de
utilizadores. Qualquer uma das dimensões de motivação atrás enunciadas (cidade,
pessoas
e
quotidiano)
estão
especialmente
bem
reflectidas na temática dos EPU: ►
O mundo urbano com as suas infinitas possibilidades
de libertação e de composição dos elementos que os constituem; ►
Os
EPU
na
construção
da
aprendizagem
social
suportada na relação com o espaço e na relação com o outro; ►
O quotidiano feito de mudança e acaso ganha novo
protagonismo nestes tempos de aceleração física e imaterial. Como
interagem,
como
mudam,
como
são
vistos
e
consequências têm estes aspectos tornou-se quase uma obsessão para o que se recorreu a listagens infindáveis de actividades e tarefas. Algumas delas abandonadas, outras começadas sem se prever, um pouco de tudo aconteceu
durante a elaboração da
tese. Dito de outro modo, a estrutura a que se chegou é apenas o resultado de um desbaste muito mais amplo e dispersivo que encontrou finalmente um ponto de equilíbrio sustentado. Dessa estrutura é possível apresentar os seus três pilares maiores: ►
Reflexão conceptual
►
Dimensão Histórica
[21]
►
Auscultação do território
A organização formal e sistematizada encontrada para a adequada explicitação destes conteúdos exigiu que fossem elaborados seis capítulos, excluindo a introdução e a conclusão. O primeiro ficou reservado para a discussão dos objectivos e teses em torno dos quais se construirá este trabalho académico. O segundo capítulo detém-se na ideia de crise dos Espaços Públicos Urbanos dado que esse será a sua grande motivação. O protagonismo passa do espaço para o utilizador e os seus comportamento que moldam parte do quotidiano urbano. O capítulo quatro envereda pela exploração das leituras múltiplas que são feitas dos EPU a partir de sensibilidades e preocupações disciplinares diferentes. Pensar o futuro e as tendências significa saber gerir um passado que em matéria de Espaços Públicos é muito rico e diversificado, sendo este o centro de interesse do capítulo 5. Finalmente, no capítulo seis trabalhou-se dados recolhidos no terreno de modo a validar muitos dos aspectos abordados atrás.
[22]
1.
Discussão
em
torno
dos
espaços
públicos
urbanos
(EPU): Hipóteses de partida e áreas cinzentas 1.1. Os EPU como metáfora das transformações urbanas O questionamento da Cidade nem sempre foi uma atitude corrente
na
disciplina
geográfica.
reforçada quando deixamos a ideia Cidade
e
passamos
centrais,
a
equipamentos
a
considerar
demografia sociais,
urbana, entre
Esta
convicção
abstracta aspectos a
outros.
Essa
e genérica de
como
promoção
fica
as
funções
económica,
os
interrogação
só
surge, em Portugal, de um modo mais evidente e depois de algumas incursões de Orlando Ribeiro2 sobre temas urbanos, com Jorge Gaspar (1968), José Pereira de Oliveira (1973), Teresa B. Salgueiro (1971, 1972) e Paula Bordalo Lema (1972), a que se seguiram outras abordagens geográficas do urbano, marcadas por uma crescente diversidade temática. Pode, assim, afirmar-se que o tratamento da Cidade na análise
geográfica
respectivas
funções
partia centrais
do
interior
(traços
e
urbano,
com
localização)
as para
observar a sua irradiação no território envolvente – área de influência. Conjugando os resultados de estudos sistemáticos realizados em centros urbanos da mesma região era possível obter a correspondente rede urbana, com a sua hierarquização e debilidades. Espaço urbano e área envolvente, cidade e território por ela influenciado eram, deste modo, variações do mesmo tema. A abordagem do urbano em função do urbano e até para intervir no urbano só surge claramente nos anos 70 e 80, relacionada com problemas concretos e colocando em causa valores histórico, sociais e económicos (Mendes, 1979; Gaspar, 1975, 1976, 1977a, 1977b; Fonseca, 1980; Salgueiro, 1984). Nesta aproximação aos
2
Cf. a excelente reunião de textos sobre a matéria, concebida por Suzanne Daveau, em Ribeiro,O. (1994), Opúsculos Geográficos,FCG, Lisboa.
[23]
aspectos
mais
restritos
da
cidade,
visando
a
colecta
de
elementos para uma melhor intervenção, a geografia revelou algum
à
vontade,
desde
que
pudesse
contar
com
bases
de
informação credíveis como as estatísticas, a cartografia e a possibilidade de efectuar levantamentos directos. Conhecer para intervir passou a ser prática recorrente, sendo apenas na última década do século XX que se sentiu o arejamento nas temáticas e até nas escalas onde dominavam a região, os concelhos e as cidades, estas consideradas como um todo ou segmentadas por ruas e bairros. Esta
perspectiva
(implicada
nos
princípios
da
Nova
Geografia) decorria do tipo de representação que os restantes campos disciplinares e políticos possuíam dos geógrafos e que o
geógrafo
tinha
do
espaço
e
da
cidade.
O
modelo,
o
funcionalismo e a lógica mecanicista/racional, imperavam como pano de fundo da análise e explicação do urbano. Nestes atenção
passos
conferida
introdutórios, ao
objecto
de
preocupa-nos estudo
discutir
identificado
a
como
Espaço Público Urbano (EPU) e, ao mesmo tempo, justificar essa escolha na justa medida em que configura ainda uma ruptura com os
temas
clássicos
da
geografia.
O
corte
será
ainda
mais
pronunciado quando se fizer alusão à diversidade de domínios que terão de ser implicados e que são ainda pouco comuns em estudos de natureza geográfica. Todavia, alguns artigos de âmbito geográfico escritos em Portugal, nos anos 90, continham já referências explícitas aos EPU (Gaspar, 1992; Abreu e Fonseca, 1995), mas a lógica sob a qual se abrigavam não permitia desmantelar o quadro social, económico e urbano que suscitou os problemas identificados. Persistia
uma
descrição
dominantemente
geográfica,
com
referências ténues e superficiais a condicionantes sociais, culturais ou ideológicas, resultando num quadro explicativo
[24]
insuficiente e pouco indutor de uma produção científica a jusante. Com idêntico hermetismo o tema é também tratado noutros campos
disciplinares,
Fortuna
(1999a,
Teixeira
autores
1999b),
Arendt
2001)
entre
(1998,
preocupações
que
Urbanos
planos
em
onde
afectam tão
a
como
(2001),
Bassand
outros,
cidade
distintos
e
Habermas
os
como
(1962),
(2001),
demonstraram Espaços a
ou as
Públicos
sociedade,
a
arquitectura, a filosofia, a economia e o direito. A geografia mantém-se
à
margem
desta
discussão,
negligenciando
o
contributo potencial que poderia conceber a partir da sua posição de charneira face às múltiplas dimensões urbanas. No entanto, merecem relevo os trabalhos de Valentine (1995, 1999) e Chintya Gorra-Gobin (2000, 2001), que utilizam os EPU como centro da análise para tratar temas como a insegurança, a política, o consumo e o género. Daí que se considere como uma excelente oportunidade a percepção
de
que
os
EPU
podem
constituir
uma
chave
interessante para decifrar as transformações operadas, e ainda hoje
e
sempre
activas,
nos
contextos
urbanos
ou
metropolitanos. Esta será a matriz de referência, mas alertase para a intensa probabilidade da análise e reflexão nos transportar para universos aparentemente distantes mas sempre, de um modo ou de outro, com ela relacionados. As dimensões tecnológica, social e cultural da concepção urbana afectam o uso e a centralidade tradicional dos EPU, tratando-se agora de medir
as
consequências
múltiplas
também
deste
processo
de
transferência de sociabilidades e, de certo modo, das novas formas de “produzir cidade”3.
3
Não deixa de ser interessante a utilização desta frase que é hoje recorrente dos discursos político e técnico e que remete para conceitos pré-formatados na intervenção urbana almejando com imodéstia oferecer espaços que contém a espessura histórica, cultural e socioeconómica da cidade tradicional. Esta preocupação incide não só sobre as estratégias
[25]
Como
em
todos
os
processos
de
mudança
em
curso,
a
investigação corre sempre o risco de sair prejudicada por ainda não se vislumbrar a estabilização ou o final deste ciclo de
incerteza,
conhecidos
na
com
resultados
íntegra.
Por
desfocados
outro
ou
lado,
ainda
existem
não
também
vantagens a reter, de que sublinhamos a de investigar por antecipação,
juntando
e
trabalhando
as
peças
do
puzzle
disponibilizadas até agora, encontrando a justa posição dos EPU na cidade,não só numa perspectiva física mas igualmente no campo das representações individuais.
1.2. Questionar
os
EPU
ou
os
Múltiplos
Campos
da
Urbanidade O desenvolvimento de uma temática como a dos EPU num documento
académico
sistematizar
os
desta
natureza
resultados
da
obriga
reflexão
a
feita
formular
e
previamente,
formatados de modo a construir interrogações e até algumas hipóteses quadro
provisórias.
conceptual
orientar
as
Torna-se,
sólido
preocupações
e
assim,
satisfatório
iniciais.
Se
possível para já
obter
suportar
eram
um e
sentidas
dificuldades de precisar o campo da geografia por oposição às demais
disciplinas,
proporção
quando
essa
nos
dificuldade
centramos
em
aumenta escalas
em
idêntica
crescentemente
localizadas e até cirúrgicas, sendo, no limite, impossível proceder a essa distinção como, aliás, sucede com as outras disciplinas4.
recentes de estetização da Cidade (PEIXOTO, 1998), como a EXPO’98, EURO2004 ou o programa Pólis, mas também sobre um urbanismo que é reflexo da densificação e da massificação suburbana. 4 Veja-se o caso recente da sociologia espacialista “alimentada” por Isabel Guerra e Vítor Matias Ferreira e da economia do território ou antropologia do espaço, onde se sente intensamente a presença de Filomena Silvano.
[26]
Com esta convicção é possível colocarmos as hipóteses de partida que configuram a presente investigação e as submeter a uma reflexão profunda com uma natureza holística e, por isso, sistémica
e
transversal
a
outras
perspectivas
da
análise
urbana. Apesar
de,
como
já
foi
salientado,
se
defender
o
carácter total dos EPU não deixa de ser conveniente reportar estas hipóteses a quatro universos de referência procurando tornar mais claro o quadro de partida:
Universo pós-moderno5 ►
A manifestação da sociedade do conhecimento através da desmaterialização dos contactos subtraiu aos EPU mais uma das suas funções centrais: a da comunicação e publicitação da informação;
►
A
imposição,
pela
competitividade
urbana,
de
uma
paisagem global por oposição à condição urbana local, capaz de seduzir o investimento, tem transformado a Cidade implicando a desvalorização dos traços urbanos tradicionais; ►
O
EPU
passa
a
participar
do
acréscimo
de
competitividade a diferentes escalas, justificando os esforços de higienização em meio urbano6, libertando as áreas disponíveis para o usufruto de utilizadores que sigam códigos precisos e maioritariamente aceites de comportamento e sociabilidade;
5
O termo é substituído por outros consoante a perspectiva dos seus autores: sobremodernidade para Augé (1994), modernismo tardio para Giddens (1994), entre outras propostas. 6 Realojamentos, salas de chuto, casas de prostituição, centros de acolhimento para imigrantes são iniciativas que para além do seu objectivo de conferir maior dignidade à existência de cada um dos segmentos da população a que reportam, não deixam de significar um acantonamento social e urbano, higienizando a Cidade.
[27]
►
Um
dos
elementos
moderno aliás,
talvez
mais
seja
condicionou
valorizados
a o
no
experiência uso
dos
período
pós-
individual
que,
modelos
de
natureza
mecânica e linear ainda aplicados no campo cientifico. Nessa experiência foi convocada o elemento corporal como
estratégia
central
para
o
uso
do
espaço
(Gonçalves, 2002). Os EPU e a sua utilização estão a sofrer perturbações significativas com as disfunções associadas ao culto do corpo, insegurança, consumo.
Universo do Ambiente Urbano ►
A
qualidade
do
espaço
urbano
tem
caminhado
para
encarar o ambiente urbano como um instrumento eficaz de construção da sempre perseguida sustentabilidade que, segundo Rodrigues (2002;16), corresponde “a um metabolismo linear”,
circular
por
materializada
urbanos
ou
no
ainda,
noutra
oposição
nos
tratamento escala,
grandes
das
zonas
nos
ao
metabolismo
parques
verdes
ribeirinhas
corredores
ou
verdes
metropolitanos. Os grandes projectos, consumidores de investimentos, recursos materiais e humanos, ganham protagonismo
e
são
desvalorizados
os
EPU
de
proximidade, de pequena escala ou, se se quiser, de vizinhança; ►
O
papel
dos
EPU,
apesar
destas
mudanças,
ainda
é
relevante na moldagem do espaço e silhueta urbana, na certeza de que a persistência desse estatuto decorre da presença de utilizadores assíduos e diversificados que vão fomentando as inter-relações; ►
A
natureza
complexa
e
dispersa
dos
EPU
obriga
a
convocar outros olhares disciplinares que, para além da
sua
visão
mais
sectorial,
fornecem
contributos
valiosos, pertinentes e actuais, para formalizar uma
[28]
ideia mais precisa e, em simultâneo, mais próxima dos fundamentos do objecto de análise; ►
A Cidade apresenta uma relação nem sempre pacífica e nem sempre clara com os espaços públicos, pois se em alguns períodos históricos essa presença é valorizada noutros é remetida para posições marginais ou mesmo apagada7. A esta discussão acresce o facto de os EPU persistirem no centro ou em localizações privilegiadas nos
tecidos
concluir
por
política
ou
urbanos,
não
qualquer
forma
económica
permitindo de
ou
directamente
apropriação
por
uma
social,
valorização
8
concretizada no uso ; ►
Os EPU constituem uma razoável síntese da dinâmica socioeconómica
que
afecta
a
Cidade
e,
por
tal,
assumem-se como um barómetro que é importante saber descodificar
na
sua
complexidade
como
metáfora
do
estádio de desenvolvimento de cada comunidade.
Universo da Sociabilidade ►
A
transformação
da
Cidade
como
o
produto
de
um
conjunto alargado de domínios e de relações complexas associadas à globalização e à individualização obrigou
7
Aristóteles (1977) no Tratado da Política deixa clara a importância do arranjo interior da Cidade: “É conveniente que abaixo desta fortaleza haja, como na Tessália, um lugar livre para se poder passear, onde se não efectue nenhum mercado e onde não se admitam nem trabalhadores, nem artistas nem outras pessoas semelhantes, a não ser que sejam chamados pelos magistrados(...). O mercado deve ser separado deste lugar, numa situação cómoda, para que a ele possam chegar com facilidade os produtos provenientes donde quer que seja, por terra e por mar.” (p.71). Distingue-se a praça do mercado em que o primeiro é vazio e livre e o outro é o centro das trocas e transacções. Não deixa de ser curioso a proximidade com o que se verificava ainda no século XX, em Lisboa, em que o Rossio era a praça e a Praça da Figueira o Mercado. O urbanismo dos espaços periféricos, que no caso português podemos exemplificar com as Áreas Urbanas de Génese Ilegal ou as IlhasSubúrbio, faz desaparecer os espaços de encontro e de sociabilidade como resposta a exigências dominantes de rentabilidade do uso do solo. 8 Poderá comprovar-se a partir da relação, p.e., que os lisboetas estabelecem com o Parque Eduardo VII ou Monsanto.
[29]
a repensar os problemas urbanos de modo diverso ao que sucedeu
num
período
anterior
como
foi
a
fase
modernista. Em lugar de destaque surgem as questões do uso e apropriação do espaço público urbano tal como os concebemos hoje; ►
A concepção dos EPU atendendo à alteração estrutural quer
do
clama
urbanismo por
quer
das
diversas
comunidades
culturas
instaladas,
profissionais
e
científicas visando uma reconstrução do espaço público que responda
às exigências e expectativas actuais
mesmo que em condições muito limitadas; ►
A revolução operada nos domínios tecnológicos e da transferência
de
bidireccional,
informação,
permite
criar
dominantemente
espaços
públicos
de
discussão fora do contexto territorial, acessíveis a um
número
crescente
de
utilizadores
até
porque
as
possibilidades de exploração destes novos meios não param de ampliar-se9 e aperfeiçoar-se10.
Universo de Representação ►
Desde sempre as cidades reconhecem e reconhecem-se nos espaços
públicos
que,
no
entanto,
vão
variando
em
função das sociedades em presença (Àgora grega, Fórum romano, Adro da igreja, Largo da feira, Rossio, ...). Num
contexto
utiliza palavras,
o
de crise
EPU como
para
urbana se
conferir
como
redefinir a
estes
é
que
ou,
lugares
a
cidade
por
outras
uma
carga
9
Por exemplo, nos meios escolares ou no plano do “Ele procura Ela” a utilização dos SMS ou do software tipo Messenger que permite a comunicação em tempo real e a baixo custo ganhou uma expressão que impressiona pela sua generalização e facilidade de utilização. Se se pensar como estas vias implicam a substituição dos espaços físicos tradicionalmente utilizados, percebe-se como os EPU estão à margem dos actuais processos de comunicação e socialização. 10 A tecnologia UMTS que permite o uso de telemóveis com câmra instalada e em que os interlocutores se podem ver em tempo real e a utilização das câmaras web no Messenger prolonga a erosão funcional dos EPU simulando os contaftos “olhos nos olhos”.
[30]
simbólica
fundamental
para
a
(re)construção
do
sentimento identitário?; ►
A emergência de novos “sentimentos urbanos colectivos” ou, dito de outro modo, de novas representações da cidade e da vida urbana, tem gerado novas tipologias de EPU que colocam em causa os fundamentos de direito público
em
que
assentavam
os
tradicionais.
Ganham
expressão termos como “não-lugares” no dizer de Augé (1994)
ou
a
privatização
do
espaço
público
como
assinala Lúcio in Moreno (2001); ►
Para além do futuro, mantêm-se as preocupações com a memória,
sendo
esta
o
garante
para
o
reforço
da
identidade urbana e o cimento para as novas formações sociais em desenvolvimento; ►
A possibilidade de uma maior mobilidade de pessoas e ideias
conduz
territórios
a
uma
habitados
acentuada por
fragmentação
minorias
carentes
de de
referências e espaços simbólicos, surgindo os espaços étnicos,
alternativos,
dificuldade
de
conexão
nacionalistas, aos
etc.,
restantes
com
segmentos
urbanos.
1.3. Quadro conceptual e metodológico 1.3.1.
Objectivos
As hipóteses levantadas em 1.2. procedem a um tratamento alargado
das
áreas
complementarmente, realidade
de
são
cidades
em
que
os
consequência, portuguesas,
EPU no
interferem
tempo com
presente,
uma
e, da
expressão
demográfica e económica que as aproximam das dinâmicas nas áreas metropolitanas e sedes de distrito, sem olvidar aquelas que tenham manifestado recentes desenvolvimentos à custa de
[31]
dinâmicas económicas ou outras razões (universidade, saúde, investigação, desporto, ...). Para
além
disso,
as
hipóteses
de
trabalho
permitem
estabelecer o leque das preocupações que, na generalidade, se colocam às cidades, convergindo quase todas para a convicção de que estão a mudar mas cuja forma final ainda se encontra longe de poder ser determinada. Os EPU constituem, assim, uma oportunidade para encontrar novas pistas sobre: ►
O
estado
das
estrutura
cidades,
no
que
respeita
à
sua
física e das realizações materiais. Da
sua concretização
resultam
múltiplos impactes na
estrutura urbana (distribuição das vocações e áreas imprescindíveis protagonismo
ao
ou
funcionamento
desvalorização
da
de
cidade,
determinados
elementos de composição urbana, ...); ►
A
composição
urbanas
e
funcionamento
que,
mais
uma
condicionadas
pela
estrutura
cultural,
diversidade
vez,
das
comunidades
interferem urbana.
e
são
Opulência
étnica-religiosa-cultural,
ampliação da sedução exercida pelo consumo apoiada em mecanismos de pressão social (como tão bem tem sido
tratado
por
Jean
Baudriallard)
explicam
a
densificação e diversidade nos espaços colectivos privados
encontrando
justificação,
a
par
aqui das
parte
razões
da
políticas
sua e
económicas; ►
A dimensão económica e política é ainda hoje um sustentáculo seguro do fenómeno urbano, pelo que muito
do
que
se
passa
na
cidade
deve
ser
interpretado à luz das respectivas estratégias. Da alteração das estruturas urbanas às transformações sociais
e
tecnológicas,
foi
sempre
possível,
ao
[32]
investimento fórmulas próprio,
e
à
intervenção
capazes
de
explorando
as
os
política,
reverter
desejos,
encontrar
em
proveito
expectativas,
as
inseguranças e incertezas. O desenho arquitectónico e urbano pode também ser interpretado à luz destes princípios
bem
como
o
estímulo
do
recurso
às
tecnologias e demais formas de comunicação.
Com estas hipóteses e preocupações parece pertinente tomar os espaços públicos urbanos como indicador credível destas mudanças. A sua leitura deverá ser feita numa perspectiva orientada
para
a
dimensão
urbanística
embora,
como
se
observará adiante, não seja possível dissociá-la de muitos outros campos que se associam directa ou indirectamente à ideia de urbanidade. Os objectivos da tese não se conformam assim com o papel que os EPU têm enquanto chave de leitura das mudanças operadas e
ainda
activas
na
cidade,
procurando
ir
mais
longe
na
identificação do sentido e da justificação dos sentimentos reais dos utilizadores da cidade, desconstruindo convicções que
poderão
apenas
estar
no
plano
das
representações
individuais e não no campo das práticas colectivas. A cidade somos nós, paredes e pessoas, ruas e edifícios, espaços fechados e espaços públicos. Mas a polis, de onde derivam em simultâneo, as palavras política e cidade, livre e democrática, discussão
e
exige a
o
encontro,
celebração.
a
troca,
Questionar
o
a
partilha,
estado
a
destes
princípios fundamentais é um objectivo central desta tese.
[33]
1.3.2.
Defender uma tese ou teses?
Em concreto, tendo presente as hipóteses de partida e os objectivos enunciados, qualquer tese que daqui resulte deve tratar, neste caso, os espaços públicos, a sua ocorrência, distribuição, utilização e papel no funcionamento do organismo urbano. O que é preciso também assegurar é que a consideração de todos estes aspectos permita chegar a conclusões bem mais ricas e distantes do objecto inicial. Talvez não seja descabido explicar esta preocupação a partir de uma metáfora referente a um elemento urbano e, para ser mais preciso, a um traço particular dos espaços públicos urbanos: alguém disse, um dia, que pela altura dos passeios das
vias
urbanas
desenvolvimento comunidade
podia
democrático
urbana.
infelizmente
não
inexistência
de
passeio
se
que
Dizia
se
o
reteve
que
marcava mesmo
o
diferenças
significa
concluir
nome
os
um
grau
nem
de
território
personagem,
altimétricas
ambos
pelo
a
de
origem,
entre
a
utilizadores
ou que
que
rua
se
e
a o
respeitam
mutuamente, conhecendo os limites dos respectivos direitos e deveres, condicionados pelos dos restantes. Assim, para que o sistema funcione basta uma simples demarcação ou a utilização de
texturas
visualmente
ou os
cores dois
que
permitam
territórios.
estabelecer
Porém,
não
táctil
deixa
de
ou ser
interessante olhar de forma invertida para o exemplo acabado de descrever. Mais exactamente para a realidade onde não só o passeio tem um desnivelamento acentuado em relação ao plano da rua como é reforçado através da colocação de barreiras que impeçam,
em
definitivo,
a
invasão
dos
passeios
pelos
automóveis. Não
é,
concerteza,
difícil
de
reconhecer
de
imediato
cidades onde é recorrente esta última imagem. Lisboa, onde nos iremos
deter
sempre
que
possível
é
um
desses
exemplos.
Todavia, tem mais pormenores que interessa recordar, como é o
[34]
caso de diversos obstáculos ao longo destes canais e de muitos atravessamentos para
cidadãos
onde com
não
existem
mobilidade
ainda
reduzida,
desníveis cadeiras
adequados de
rodas,
carrinhos de bebé, etc. Fotografia 1 - A altura dos Passeios: baixo num lado e alto no outro (Cruzamento da Av. da República com a Av. de Berna)
Ao limite dos passeios, já altos, foram acrescentados em muitos locais os célebres “frades” ou pilaretes, que Câmara e freguesias
exibem
com
orgulho
nos
respectivos
boletins
de
imprensa, para balizarem a fronteira das vias de circulação automóvel.
Definitivo?
Não,
pois
outra
das
imagens
do
quotidiano também poderia ser “a queda” destes objectos por automóveis mais possantes ou condutores menos convencidos da sua robustez e eficácia. Fotografia 2 - Campo Pequeno. As novas muralhas da cidade(1)
[35]
Fotografia 3 - Calçada do Combro. As novas muralhas da cidade(2)
Finalmente,
cumpre
ainda
dizer,
antes
de
chegar
ao
corolário desta metáfora, que, mesmo no interior de cada uma das
vias
sinais
(pedonais
da
fraca
e
rodoviárias),
qualidade
de
é
possível
democracia.
identificar
Na
estrada
é
desnecessário relembrar o que se passa, mas nos passeios, a célebre
calçada
portuguesa,
talvez
seja
bom
enumerar
as
questões mais graves: ►
irregularidade
que
características
lhe
está
próprias
paralelepípedos,
desníveis
associada, (ausência
sucessivos,
por de
reduzida
largura) ou introduzidas (pelas permanentes “obras na via pública”); ►
presença
de
elementos
de
mobiliário
urbano
agressivos na ocupação do espaço diminuto (mupis, candeeiros, ecopontos); ►
estacionamento anárquico;
[36]
►
contentores
de
resíduos
sólidos
urbanos,
em
especial nos edifícios mais antigos, sem condições para os integrar no seu interior; ►
paragens de autocarro predadoras do espaço público.
O conjunto destas realidades traduz-se em dificuldades acrescidas para o cidadão, mas em especial para deficientes e crianças
e
impeditivo
modalidades
de
uso
mais
recreativo/desportivas
generalizado
individuais
para
(patins
em
linha, skate, bicicleta). Esta
reflexão
serve
para
demonstrar
as
implicações,
materiais e imateriais, que um simples facto do quotidiano urbano ajuda a revelar e a descodificar. Para
a
tese
que
aqui
se
apresenta
esta
lógica
é
fundamental, já que é a partir dos Espaços Públicos Urbanos que se pretende fazer, não tanto a sua descrição física mas, sobretudo,
perceber
o
uso
e
as
concepções
sobre
eles
formuladas pelos cidadãos de Lisboa em particular e que se pensa
poder
generalizar
a
outros
casos
da
realidade
portuguesa. Em todo o caso, existem já convicções que podem ser traduzidas
em
teses
e
ajudar,
então,
a
estruturar
todo
o
trabalho que a seguir se apresenta permitindo validá-las (ou não!).
Relembra-se
que
foram
as
hipóteses
de
partida
que
abriram caminho para a reflexão em torno das teses que agora se apresentam.
[37]
►
Tese 1 – Os Espaços Públicos Urbanos11 não têm o mesmo significado para todos os actores urbanos. Isto é especialmente verdade quando se segmentam por
traços
primeiro
11
individuais
caso,
idosos
ou e
profissionais. crianças,
homens
No e
Apresenta-se, desde já, um pequeno glossário para apoiar o acompanhamento do texto:
Alameda – Canal destinado à circulação, integrando a estrutura verde urbana, coexistindo funções de estar, recreio e lazer. É uma tipologia urbana que, devido ao seu traçado uniforme, à sua extensão e ao seu perfil franco, se destaca da malha urbana onde se insere. Elementos nobres do território, as alamedas combinam. Assim, equilibradamente duas funções distintas: articulação entre áreas urbanas; importantes funções de estadia, recreio e lazer. Avenida – Parecido com a alameda mas com menor destaque para a componente verde, ainda que a contenha. O traçado é uniforme, a sua extensão e perfil francos (ainda que menores que os das alamedas). A avenida poderá reunir maior número e/ou diversidade de funções urbanas que a alameda, tais como comércio e serviços, em detrimento das funções de estadia, recreio e lazer. Rua – Via de circulação pedonal e/ou viária, ladeada por edifícios quando em meio urbano. Poderá apresentar uma estrutura verde, o seu traçado poderá não ser uniforme bem como o seu perfil e poderá incluir no seu percurso outros elementos urbanos de outra ordem – praças, largos, etc. – sem que tal comprometa a sua identidade. Hierarquicamente inferior à avenida, poderá reunir diversas funções. Calçada – Caminho ou rua empedrada geralmente muito inclinada. Ladeira – Caminho ou rua muito inclinada. Azinhaga – Caminho de largura reduzida, aberto entre valados ou muros altos. Tipologia urbana geralmente associada a meios urbanos consolidados, de estrutura orgânica e grande densidade de ocupação do solo. Praça – Espaço público largo e espaçoso de forma regular, confinado por edificações. Em regra as praças constituem centralidades de diversas escalas, concentrando funções de carácter público, comércio e serviços. Podem ter uma componente mais mineralizada ou vegetal.
Praceta – Espaço público com origem num alargamento de via ou resultante de um impasse. Geralmente associado à função habitar, podendo também reunir funções comerciais ou de serviços. Largo – Terreiro ou praça sem forma definida nem rigor de desenho urbano ou que, apesar de possuir estas características, não constitui intensa centralidade, reunindo oucas funções para além da habitação. Os largos são muitas vezes espaços residuais resultantes do encontro de várias malhas urbanas diferentes, de forma irregular, e que não se assumem como elementos estruturantes do espaço. Parque – Espaço verde público, de grande dimensão, destinado ao uso indiferenciado de uma população de um lugar, cidade ou até concelho. Espaço informal com funções de recreio e lazer, podendo ser vedado e preferencialmente fazendo parte de uma estrutura verde mais vasta. Jardim – Espaço verde urbano e público, com funções de recreio e bem-estar das populações residentes nas proximidades. Deve ser facilitado o seu acesso pedonal. Faz parte de uma estrutura verde urbana mais vasta. Rotunda – Praça ou largo de forma circular devido à tipologia da sua estrutura viária – em rotunda. Rótula de articulação das várias estruturas de um lugar, muitas vezes de valor hierárquico diferente, que não apresenta ocupação urbana na sua envolvente imediata. (Adpatado de vários regulamentos toponímicos – Porto, Braga, Guimarães).
[38]
mulheres,
por
exemplo,
diferenciada
sobre
posicionam-se
este
de
objecto
forma
levantando
legítimas dúvidas acerca do real significado das referências
aos
disciplinares
EPU.
Da
referem-se
mesma ao
forma,
tema
os
de
campos
acordo
com
metodologias e abordagens específicas, agravando as condições de análise e sobretudo a qualidade da intervenção
física,
mesmo
quando
se
trata
de
pequenos espaços, ditos de proximidade12;
►
Tese 2 – No discurso é comum ficar destacada a centralidade dos EPU quer para a cidade quer para a qualidade de vida dos cidadãos. Todavia, os saltos tecnológicos envolvendo novas e inovadoras formas de
comunicar
directo
à
mas,
interacções levantam
distância,
ao e
mesmo
diminuindo
tempo,
prolongando-as
mais
um
desafio
o
contacto
multiplicando por ao
mais
as
tempo,
papel
que
tradiconalemtne era desempenhado pelos EPU. Contra a
convicção
também
um
da
indispensabilidade
leque
tradicionalmente
imenso visto
de como
dos
aspectos
EPU
está
que
são
desagradáveis
ou
desvantajosos e que podem ser, de forma resumida, apresentados como: ●
Higiene (Dejectos, lixos, sujidade, ...);
●
Segurança (problemas de iluminação, acessos, vegetação densa, qualidade do piso, ...);
12
Na entrevista à responsável dos EPU da Câmara Municipal de Lisboa surgiu uma das muitas histórias centradas nos temas e que respeita a uma pequena intervenção feita num espaço público junto ao Cemitério do Alto de S. João (Rua Morais Soares) ao abrigo da qual foram colocados alguns ciprestes. Dias após a conclusão da obra os ciprestes foram cortados acompanhados de mensagens onde se podiam ler “em espaços de vivos não se colocam árvores de mortos”.
[39]
●
“Indesejáveis”(sem-abrigo, mendicidade,
toxicodependentes,
prostituição,
grupos
de
jovens
violentos ou mesmo a apropriação do EPU por indivíduos
muito
marcados
numa
perspectiva
cultural, étnica ou religiosa); ●
Comodidade
(mobiliário
sombras,
serviços
urbano,
de
apoio
valências, como
WC
e
bebedouros); ●
Articulação de competências (em alguns espaços são as juntas que procedem à sua manutenção, noutros
é
a
Câmara
Municipal
ou
empresas
contratadas para o efeito, mas já a remoção de
lixos
é
sempre
feita
pela
Câmara
assim
como a iluminação, entre outros aspectos. A má compatibilização destas competências pode fazer
que
um
esforço
de
qualificação
em
qualquer um destes domínios fique diminuída por não ser acompanhada de igual atenção nos outros); ●
Sedução
pelos
Espaços
Colectivos
(multiplicação
dos
espaços
de
vocação
comercial
com
roupagem
de
espaços
públicos
mas –
ruas,
largos
praças,
toponímia,
jogos de água, ...); ●
Ausência (o urbanismo moderno apresenta menor densidade
de
pequenos
espaços
tradicionais
destinados ao usufruto público); ●
Animação (eventos vários que gerem atracção e encontros).
[40]
Fotografia 4 - Ateliê de Olaria no anfiteatro de ar livre da Culturgeste (Maio de 2004, Sábado, 16:00)
Tudo
conjugado
resulta
num
afastamento
entre
a
prática e a representação no que respeita à postura dos cidadãos face à importância dos Espaços Públicos Urbanos.
►
Tese 3 – O apagamento dos EPU tem sido um facto no urbanismo
contemporâneo,
não
só
pelas
razões
invocadas nas teses 1 e 2 mas também por acções concertadas visíveis no campo político e técnico. Defende-se que é a elevada frequência dos EPU que estimula
o
diferenças,
uso a
da
cidade,
aprendizagem
a
do
aceitação
viver
social.
das Num
contexto em que é vulgar encontrar jovens e adultos que podem ter quotidianos onde não pisam a rua ou qualquer
outra
forma
de
espaço
público,
era
de
esperar um acréscimo de sedução por estes espaços. O que se verifica é um desinvestimento nos pequenos, jardins,
largos
e
pracetas
e
um
reforço
das
intervenções em parques verdes urbanos ou corredores ecológicos metropolitanos.
[41]
Fotografia 5 - Pequeno jardim, Bairro do Arco do Cego
É
exactamente
aqui
que
as
dimensões
política
e
técnica se encontram. Isto é, os responsáveis pela gestão
urbana
(sobretudo
alguns
técnicos
com
os
políticos
destaque
para
os
mas
também
arquitectos
paisagistas) preferem criar EPU de grande expressão espacial, em localizações privilegiadas, recheados de equipamentos desportivos, ambientais, educativos, etc.,
muitas
vezes
à
sombra
de
componentes urbanísticas (Programa de
Requalificação
de
Áreas
programas
com
Pólis, Programa
Urbanas
Degradadas,
Programa de Requalificação de Áreas Suburbanas da AML
Programa
de
Invariavelmente
Reabilitação
procura-se
que
Urbana, estes
etc.).
novos
EPU
acarretem ganhos de visibilidade para a respectiva acção
política.
predadores
de
remetem
rede
a
Mas
recursos
estes
novos
financeiros
intersticial
dos
espaços e
humanos
Espaços
são que
Públicos
Urbanos para um plano secundário, sem estratégia e sem futuro.
[42]
O
paisagismo,
cujo
protagonismo
na
gestão
dos
espaços naturais em meio urbano tem vindo a ganhar notável reconhecimento, não só pela acção mediática de alguns dos seus técnicos mais carismáticos13 e apoio dos media, como pelo suporte técnico que assim dá
às
estratégias
substancial
das
políticas,
mudanças,
suporta
sobretudo
de
parte escala,
operadas na abordagem aos espaços públicos. Termos como
sistemas
ecológica
corredores
metropolitana,
urbanístico, promoção
naturais,
do
mas
com
quotidiano
urbanos,
entraram
no
rede
léxico
implicações
negativas
na
próximo
contactos,
do
dos
viver a cidade, do conciliar das obrigações diárias com
a
possibilidade
descompressão
de
uso
como
poderiam
teses
que
dos ser
espaços os
de
EPU
de
postura
dos
proximidade.
Este
conjunto
de
combinam
a
cidadãos, responsáveis políticos e técnicos, convergem para a busca do lugar dos Espaços Públicos Urbanos na reconfiguração física e social da cidade. A figura 1 procura resumir e sistematizar a descrição metodológica feita ao longo do capítulo 1.
13
É inevitável sublinhar (como se fosse necessário) o papel do Arquitecto Gonçalo Ribeiro Teles e de uma conjunto de discípulos (Arquitecta Paisagista Manuela Raposo de Magalhães, Prof. Drª Teresa Pinto Correia, Arquitecta Paisagista Graça Saraiva, ...) que não se cansam de repetir, em Conferências, Encontros científicos e em obras consagradas ao tema, as vantagens e a necessidade do planeamento dos espaços naturais em larga escala.
[43]
Figura 2 - Síntese da estrutura metodológica e conceptual
Pós-Moderno
Ambiente Urbano
Sociabilidade
Representação
Estado físico da cidade
Composição e funcionamento das Comunidades Urbanas
Dimensão Económica e Política
Os EPU não são entendidos da mesma forma (gestor, técnico, cidadão)
Distância entre discurso e prática do cidadão comum
Apagamento físico dos EPU no Urbanismo Contemporâneo
Os Espaços Públicos Urbanos na recomposição física e social da Cidade
1.3.3. A
Sequência metodológica
tradução
das
preocupações
acima
expressadas
fica
reflectida na estruturação do corpo principal deste trabalho onde, de forma progressiva, se avança de um tratamento da realidade sociocultural e urbana para um plano que se vai centrando nos Espaços Públicos Urbanos. Essa análise abriga-se no ponto 2 – Elementos de uma crise anunciada-cobrindo uma
[44]
teia de aspectos correlacionados, ainda que indirectamente, com o objecto de estudo. A localização começa a surgir a partir do ponto 3 – No campo
do
actor
e
do
seu
cenário
-
onde
se
descrevem
as
motivações dos utilizadores da cidade e as expectativas que nela depositam. No ponto 4 a concretização torna-se mais fina, de maneira a fixar as especificidades dos campos disciplinares no entendimento e intervenção sobre os EPU. O capítulo 5 faz a abordagem do percurso histórico, tratando as principais etapas do fenómeno urbano cruzadas com as características dos EPU. Como esta história acaba no nosso tempo, joga directamente com os trabalhos de campo e a avaliação da postura do cidadão face à problemática, cuja análise dos resultados surge no capítulo 6. É, finalmente, tempo de conclusões no capítulo 7. Esta sequência metodológica pode sistematizar-se em duas partes complementares: ► Avaliação do estado da arte, onde as leituras, as reflexões
pessoais
e
o
levantamento
empírico
tiveram um papel central e decisivo. Corresponde a uma parte substancial da tese pela necessidade de consolidar ideias e conceitos; ► Averiguação da realidade, onde o recurso ao caso nacional e, em particular, a Lisboa, foi a âncora para a validação da reflexão inicial. Daí que tenha segmentado-se em três partes: ●
Uso do tempo, partindo do princípio que a expansão urbana, as migrações casa-trabalho e casa-escola, as obrigações quotidianas, a sedução deixam
por
múltiplas
grandes
actividades,
oportunidades
não para
frequentar os EPU. A base foi um processo
[45]
de inquirição recente do Instituto Nacional de Estatística à ocupação do tempo; ●
Entrevistas,
realizadas
aproximações
a
indivíduos
diferenciadas
aos
com EPU
resultantes de experiências disciplinares e de
terreno
específicas,
identificar entre
si
as
e
por
permitindo
principais essa
via
divergências
os
respectivos
olhares sobre os EPU; ●
Inquéritos, onde, através de um processo alargado Lisboa, parte
de se
da
inquirição procurou
aos
cidadãos
conhecer
apreciação
feita
e
na
de
validar primeira
dimensão da metodologia com destaque para as teses de trabalho. A selecção de Lisboa como base para o trabalho empírico encontra justificação
no
desenvolvimento considera observar
que com
seu
estádio
urbano,
de
pelo
seria
aqui
que
maior
rigor
e
maior
que se
se
poderia
clareza
os
sinais de mudança bem como os traços mais consolidados de caracterização dos EPU. Mas Lisboa e os seus espaços públicos merecerão um tratamento mais alargado imediatamente antes
da
apresentação
dos
resultados
do
inquérito aos utilizadores da cidade.
[46]
2.
Elementos de uma crise anunciada
2.1. Introdução A cidade vibra e expõe-se pelo que se passa nos espaços exteriores, e não nos interiores, sendo que aqueles estão agregados, no essencial, no que se pode designar por esfera pública14. marcados
As
cidades
por
dispõem
percursos
de
históricos
territórios e
diferentes
culturais
singulares,
reflectindo-se estes trajectos em espaços públicos únicos e com
formas
originais
de
apropriação
e,
finalmente,
por
agregação, em cidades de personalidade vincada. Sinais
dessa
mudança
estão
hoje,
mais
que
nunca,
visíveis nos espaços urbanos deixados livres, voluntária ou involuntariamente,
pela
transformação
urbana.
Desde
a
configuração até às suas formas de utilização, passando pela animação,
mobiliário
e
equipamentos,
muito
tem
mudado
nas
fórmulas de intervenção sobre os espaços públicos urbanos. Mas os
resultados
nem
sempre
têm
sido
concordantes
com
os
objectivos perseguidos, quer porque não se regista uma maior procura daqueles espaços, quer porque existem distorções nos modos
de
apropriação
exibidos
pelos
diferentes
grupos
de
utilizadores. As transformações societárias têm-se revelado como as marcas mais profundas, interessantes e inesperadas ocorridas no
ocidental15.
mundo
Como
propulsores
principais
destas
mudanças (que em determinados casos e momentos se aproximam de verdadeiras radical)
mutações
surge
o
atendendo progresso
ao
seu
carácter
tecnológico,
global
reflectido
e na
14
Na acepção que lhe deu Habermas (1978). Veja-se a título de exemplo, a obra de Giddens (p.e.1992, 1994) no campo da Sociologia ou de Howbsbawm (p.e. 1994) na História. 15
[47]
revolução
operada
nas
comunicações
(rapidez,
qualidade
e
16
versatilidade) e nas alterações ao modelo económico vigente . Os impactes da nova tecnologia e de contextos económicos emergentes fizeram-se sentir não só nos respectivos campos específicos como também introduziram perturbações colaterais, quer na morfologia social quer urbana. Por isso, a cidade nunca deixou de espelhar o estado da sociedade, com a particularidade de ir fixando no tempo esses vários
momentos
históricos.
Como
exemplo
maior
dessa
impregnação histórica surge o centro da cidade - o seu local mais importante nem que seja por ser ainda o centro simbólico -
apresentando
percurso
rico
uma
densidade
por
razões
significativa históricas,
de
marcas
funcionais
e
dum de
acessibilidade. Ora a actual perda de dinamismo do centro urbano,
verificada
designadamente,
em
pela
muitas
cidades,
observação
das
pode
ser
avaliada,
características
dos
espaços públicos aí existentes e dos seus utilizadores, e podem
ser
ensaiadas
leituras
sobre
as
transformações
que
conduziram a um progressivo alheamento da presença de outros utilizadores destes espaços. Nas linhas que se seguem procura fazer-se uma pequena paragem na vertigem de transformação urbana que afecta as cidades europeias (e a cidade de Lisboa com uma intensidade particular)
detendo-se
na
temática
dos
espaços
públicos
enquanto símbolo duma urbanidade de memórias e identidades e, ainda
hoje,
personalidade
instrumento urbana.
territorial
Deixa-se,
para
para
já,
a
construção em
suspenso
da a
consideração relativa aos EPU como instrumentos de promoção urbana e competitividade entre cidades. Perceber
de
que
forma
é
afectada
pelos
processos
em
curso e que estratégias foram sendo encontradas para a criação 16
Cf. Virilio (1993, 1997, 2000), Asher (1998) e Gofman (1993).
[48]
e sobrevivência dos espaços de relação tem sido um objectivo central na política de gestão da Cidade, de modo a evitar uma excessiva perda de animação de rua, consequente interiorização da vida pública e emergência de fenómenos de marginalidade. Os
espaços
públicos
são,
por
definição
teórica,
territórios de partilha colectiva, cuja apropriação não pode ser exercida por ninguém em particular (indivíduos, grupos de indivíduos,
empresas).
tipologia
de
heterogénea, alamedas,
espaços pois
parques
urbanizações, interessa
A
elencagem públicos
inclui
parques
e
neste
e
entre
ponto
duma
extensa
calçadas,
espaços
infantis,
referenciar
elementos
resultaria
jardins
urbanos
dos
largos
residuais outros,
pelo
e
entre
que
seu
e
não
estatuto
crescentemente especializado. Cada um deles possui uma oferta ajustada
a
interesses
específicos
dos
utilizadores,
a
sua
razão de ser fundamental. Estes aão os espaços-problemática, mas a discussão deve sobretudo
centrar-se
na
sua
quantidade,
qualidade,
funcionalidade e ocupação, de modo a identificar os pilares nucleares que expliquem o seu funcionamento e sucesso, ou o inverso. Os espaços públicos urbanos, numa visão de interesse geral, constituem elementos de desenho urbano decisivos para a produção de cidade, na medida em que é aí que se manifesta a vida e animação urbana e onde se processa grande parte da socialização dos utilizadores. A lógica produtivista do espaço urbano, comandada por interesses privados e regulada pela Administração Central e Local, tem progressivamente remetido para segundo plano os espaços de convivialidade e relação, enfatizando os espaços construídos17.
Este
facto,
visível
na
escassez
de
EPU
nas
17
Todavia, os anos 90 vieram mostrar uma nova dinâmica associada aos poderes públicos ao promoverem o imobiliário por via da comemoração de grandes eventos culturais, desportivos, ou outro (Exposições universais, mundiais, Jogos Olímpicos, Campeonatos de Futebol, Taça
[49]
novas realizações urbanas, insere-se um processo mais vasto e complexo de produção de cidade, convivendo de perto com o aumento da velocidade das deslocações (ligadas aos novos eixos viários urbanos), a multiplicação das novas centralidades e a insegurança dos residentes, entre outros traços do quotidiano urbano actual.
Fotografia 6 a, b, c – O cresimento das periferias e EPU
Mas a esta redução, fácil de contabilizar através da quantificação existentes?
de As
áreas,
corresponde
estratégias
uma
adoptadas
qualificação
para
contornar
dos as
crescentes dificuldades na criação de EPU parecem situar-se em planos distintos: ►
Retoma de projectos históricos e contrapartidas pela
realização dos projectos imobiliários permitindo a criação de grandes
espaços
verdes
(parques
verdes
urbanos,
corredores
ecológicos, etc.) com equipamento desportivo e lúdico; ►
Qualificação
dos
espaços
públicos
existentes,
da
responsabilidade directa da Câmara Municipal, das Juntas de Freguesia ou de empresas em troca de outros benefícios; ►
fruição
Criação de novos EPU incaracterísticos e apenas de visual,
como
sejam
as
rotundas
que
a
uma
função
América, ...). Ainda no plano dos EPU devem reter-se as intervenções ao abrigo de programas comunitários ou outros específicos (Urban, PRU,...).
[50]
rodoviária
e
urbana
associam
muitas
vezes
intervenções
artísticas com o emigrante, o soldado, o bombeiro; ►
A
acessibilidade.
Não
podendo
encontrar-se
indiscriminadamente junto às residências, exige deslocações motorizadas,
em
muitos
casos
morosas
e
custosas
e,
por
arrastamento, provoca a selectividade da procura; ►
A
segurança.
apropriação
informal
Estes e
espaços
marginal
por
tendem grupos
a
ter
uma
específicos.
Constroem-se territórios de identidades delimitados por uma semiologia apreendida facilmente, cujos signos se afirmam com maior intensidade quando surgem “intrusos”, criando graduais sentimentos de insegurança e instabilidade psicológica capazes de desmobilizar futuras deslocações. Nascem, então, os espaços repulsivos no mapa mental dos residentes urbanos a partir da experimentação de situações vividas ou relatadas18.
A segunda estratégia, pela sua capilaridade no espaço urbano, apresenta-se muito mais visível aos utilizadores da cidade. No fundamental encara-se estes espaços como locais óptimos para reanimar a vida pública, voltando a protagonizar um papel de socialização. Nesta
linha,
constata-se
que
as
intervenções
para
a
requalificação dos espaços públicos na cidade têm sido uma preocupação e mereceram cuidados que privilegiam: ►
o mobiliário urbano (mesas, cadeiras, iluminação, recipientes
de
resíduos
sólidos,
suportes
publicitários);
18
A este propósito cf. Gonçalves e Magalhães (2001), onde se analisa os domínios espaciais e os protagonistas dos mitos e rumores urbanos.
[51]
o conforto, protecção e segurança (piso, separador
►
das vias urbanas, natureza dos materiais); o
►
desenho
urbano
(legibilidade,
visibilidade,
esteticidade); a vegetação (espécies adequadas ao ambiente local e
►
aos microclimas); o comércio e serviços (uma componente indispensável
►
para a animação urbana como os cafés, esplanadas, quiosques, lavabos). O balanço sistemático dos resultados deste esforço não foi ainda feito pelo volume de trabalho que tal implica, mas a constatação empírica identificou consequências objectivas e, por extensão, as respectivas vantagens e deficiências. Como se de
um
hipertexto
explorar
outros
problemática
se
tratasse,
temas
central,
na
mas
a
tentação
é
dependência
resta-nos,
por
grande
directa agora,
para desta
focar
no
processo de leitura e intervenção dos EPU (cf. Figura 2). Assim, a utilização de espaços públicos urbanos pode ser lida
ou
descodificada
segundo
dois
sincrónico.
No
fundo,
trata-se
(para
além
de
outras
susceptíveis
entre
o
espaço
e
o
tempo,
de
planos:
diacrónico
e
confirmar
as
de
estabelecidas)
serem
materializadas
na
diferenças ocupação
e
partilha de espaços públicos urbanos: ►
Plano sincrónico – É possível identificar nos mesmos
territórios a constituição de espaços próprios de grupos de indivíduos grosso modo caracterizados por uma afinidade de idades ou interesses. Quando esse espaço é pequeno e o grupo muito
representativo
pode
suceder
que
no
seu
período
de
utilização obrigue à exclusão de outros indivíduos; quando a dimensão o permite delimitam-se territórios distintos;
[52]
►
Plano diacrónico – Decorre da constatação de que ao
longo do dia existe uma apropriação do tempo, isto é, o mesmo espaço
é
ocupado
por
vagas
sucessivas
de
grupos
de
utilizadores diferentes variando temporalmente (manhã, tarde, noite, hora de almoço, fim de tarde, etc.).
A riqueza de respostas que os EPU têm de garantir está bem expressa no exemplo atrás referido e materializado nas dimensões diacrónica e sincrónica. Devem estar preparados para responder,
em
simultâneo,
à
presença
de
utilizadores
de
características e interesses diferenciados, promovendo a sua coexistência espacial e, por essa via, colorindo e animando o espaço, incentivando à inclusão e à partilha. Por
outro
lado,
os
ritmos
e
os
estilos
de
vida
condicionam também o uso da cidade, não só ao longo do dia como
ao
longo
potenciais
da
semana,
utilizadores
e
pelo
que
garantir
há a
que
identificar
sedução
adequada
os à
manutenção do seu interesse e dos níveis de frequência.
[53]
Figura 3 - Descodificação do padrão de utilização dos espaços públicos
Estes espaços
apontamentos
públicos,
tipologias,
quer
quer no
que
não no se
esgotam referente associa
à
a ao sua
problemática seu
desenho
utilização,
dos e até
porque não se centram no papel dos espaços públicos urbanos na socialização dos indivíduos. Estas
preocupações
não
foram
ainda
convenientemente
traduzidas para a literatura científica. A imagem dominante ainda é a do espaço público como o espaço da inclusão social, apesar de, neste momento, a sua procura ter diminuído bastante a ponto de, em muitos casos, se tornar apenas um espaço urbano
[54]
residual ou de enquadramento visual. Com efeito, a temática dos EPU não tem sido central nas análises da cidade e da sociedade
urbana,
processos
mais
tendo
sido
alargados
do
tratada
como
acessória
conhecimento
urbano
e
em com
referências consensuais mas pouco reflexivas. Os EPU e o seu estudo geográfico remetem-se para o campo duma
geografia
trajectos
da
percepção,
quotidianos,
dos
pequenos
claramente
espaços
inserida
no
e
dos
que
se
convencionou designar por geografias pós-modernas. A vantagem do seu estudo é a de poder abordar um universo de interesses e motivações permitem
cruzadas, conhecer
concorrentes
as
ou
consequências
antagonistas, mais
profundas
que de
transformação urbana e a sua relação com os utilizadores da cidade. Assim, surgem quase naturalmente os temas do género, dos grupos etários, das minorias, entre outros. As geografias do quotidiano estão no centro da problemática. O espaço público constitui-se, assim, como um exercício de reflexão sobre a cidade e o urbano, sobre a tradição e a inovação e, finalmente, sobre o cidadão e o consumidor. Não é deslocado evocar as conclusões gerais obtidas em múltiplos exercícios de planeamento em Portugal (Faro, Castelo Branco, Olhão, ...), em que a esmagadora maioria dos entrevistados aponta os EPU como indispensáveis para a qualidade de vida urbana,
embora
quando
confrontados
sobre
a
frequência
de
utilização desses espaços, menos de um terço aí se desloque e quase ninguém o faça depois das 23 horas19. Estes transição
traços em
que
duais já
não
remetem ocorrem
para os
o
actual
padrões
período
de
clássicos
de
utilização dos espaços públicos, mas que ainda são fulcrais na representação simbólica da cidade. Fazer o balanço actual do estado destes espaços e das formas que têm vindo a assumir, 19
Aliás, no âmbito do trabalho de campo os resultados obtidos corroboram amplamente este comportamento.
[55]
enquanto fórmula para avaliar a própria cidade e a sociedade, é, como já se havia referido em 1.2., a problemática central. Toda a carga histórica inerente aos EPU, que procuraremos também
sublinhar,
decorre,
no
fundo,
do
reconhecimento
do
papel protagonizado no percurso de socialização activa, fruto da
tensão
entre
norma
e
transgressão
ou
apropriação
e
conflito.
2.2. As dinâmicas urbanas recentes: emergência do híbrido e da desterritorialização 2.2.1.
A fluidez espacio-temporal da noção de cidade
Desde há décadas a cidade tem servido como objecto, em particular análises
com de
economia.
o
nascimento
natureza
As
da
diversa,
“várias
sociologia
desde
cidades”
a
deram
urbana,
psicologia origem
ou
para até
à
foram
consequência de transformações mais profundas no plano social, económico e cultural. Essas mudanças, especialmente marcantes na transição para a Cidade Industrial e reforçadas na Cidade Moderna do século XX, resultam em contínuos acrescentos ao existente, sendo o espaço urbano uma justaposição de camadas históricas economia
com e
particularidades cultura
e
nos
domínios
corporizadas
da
em
sociedade,
instituições,
arquitectura e desenho urbano específicos. Alguns destes espaços sobreviveram até hoje atravessando momentos
cíclicos,
veneração.
Centros
monumentais
são
regularmente
ora
ostracismo,
históricos,
alguns
vão
de
áreas
exemplos
assumindo
ora
de
de
repulsa
industriais,
fragmentos
pressões
e
ou
zonas
urbanos
que
protagonismos
diferentes, de acordo com as ideias dominantes na gestão e transformação socio-urbana. Cada cidade, assim, é depositária de
uma
memória
que
lhe
há-de
marcar
indelevelmente
o
seu
futuro: “(...) Poderia dizer-te de quantos degraus são as ruas
[56]
em escadinhas, como são as aberturas dos anos pórticos; mas já sei que seria o mesmo que não te dizer nada. Não é disto que é feita a Cidade, mas sim das relações entre as medidas do seu espaço e os acontecimentos do seu passado (...). Uma descrição de Zaira tal como é hoje deveria conter todo o passado de Zaira. Mas a Cidade não conta o seu passado, contém-no como as linhas da mão, escrito nas esquinas das ruas, nas grades das janelas, nos corrimões das escadas, nas antenas dos páraraios, nos postes das bandeiras, cada segmento marcado por sua vez de arranhões, riscos, cortes e entalhes” (Calvino: 1993; 14-15). Como
construção
humana,
ela
havia
de
continuamente
ajustar-se às exigências do Homem, que por sua vez, permanecem em activa mudança. O rompimento da escala humana da cidade, através da sua horizontalização e verticalização, operadas com o que Virilio (1993) designou de próteses mecânicas como o comboio, o automóvel e o elevador, é talvez um dos melhores exemplos dessa relação intensa e persistente entre pensamento humano e intervenção urbana. Mas a cidade não é fruto só da racionalidade, do ordenamento e planeamento. Ela é, no que é de
mais
intrinsecamente
urbano,
sobretudo
casuística,
inesperada, irracional e emotiva, pois é feita pelo Homem.
2.2.2.
Transformações da cidade física
Chegados a este ponto, é altura de relançar a questão da mudança
que
social,
cultural
economia
tem
afecta e,
o
espaço
urbano
sobretudo,
condicionado
o
associado
económico.
ao
Como
desenvolvimento
dos
contexto sempre
a
vectores
urbanos e até culturais. A transição da cidade fordista/industrial para a Cidade terciária/pós-moderna tem revelado profundas divergências face aos padrões clássicos do fazer e usar a Cidade.
[57]
Estas
novas
formas
urbanas
emergem
de
processos
profundos de reestruturação económica e social a que tem de dar
imperativamente
respostas
objectivas,
resultando
em
diferentes maneiras de pensar o urbanismo. Figura 4 - A transição urbana
As implicações sociais dos processos de reestruturação económica
(como
a
exclusão
social,
a
toxicodependência,
a
criminalidade urbana, os sem abrigo, entre outros) adquiriram especial
relevância
nos
contextos
urbanos
nos
quais
os
problemas de desemprego e da precariedade do emprego cresceram associados:
[58]
►
à transformação das relações sociais no sentido de uma maior fragilidade e isolamento;
►
à
redução
da
decorrente
da
protecção contenção
da
social
convencional
despesa
pública
dos
Estados.
Na consideração genérica dos resultados desta transição a metrópole fragmentada (ou as novas formas urbanas) pode caracterizar-se por (Salgueiro, 1998): ►
Estrutura policêntrica devido à perda de hegemonia do centro único e formação de novas centralidades;
►
Desenvolvimento de complexos comerciais de grandes dimensões,
com
frequência
de
uso
misto
e,
por
vezes, espectaculares; ►
Presença
de
enclaves
dissonantes,
seja
homogéneas, apontando
seja para
socialmente
no em
diferenciados
seio
de
malhas
sítio
de
produção
fenómenos
de
e
antigas nova,
contiguidade
sem
continuidade; ►
Dessolidarização da envolvente porque os indivíduos e actividades participam em redes de relações à distância
e
dependem
menos
de
relações
de
proximidade.
Muda
a
metrópole,
formam-se
novos
profundas
alterações
alteram-se
conglomerados no
campo
os
padrões
sociais. cultural,
Ao
de
consumo,
mesmo
social
tempo, e
mesmo
psicológico levaram ao aprofundamento da fragmentação social.
[59]
O
consumo
substitui
a
produção
na
determinação
e
exibição das diferenças sociais: Eu sou aquilo que mostro e consumo e não aquilo que faço. A identidade, a afirmação e o reconhecimento social constroi-se pelo consumo e pelos sinais adquiridos por essa via20. A
imagem
asséptica
e
de
uma
realidade
perfeita,
urbana
continuamente
mais
terciária,
reconstruída
pelos
veículos modernos de transporte de comunicação e informação é, paradoxalmente, contrariada por um aumento da exposição das situações
de
pobreza
e
de
exclusão
social
que
afectam
indivíduos, empresas e territórios mas que por via do aumento da insensibilidade que atinge o todo, não tem efeito inibidor. A
exclusão
é
um
universo
poliédrico
marcado
pela
desqualificação de saberes, de qualificação e de localizações, a qual arrasta uma desvalorização e, portanto, uma dificuldade maior
de
acesso
a
empregos,
a
clientes,
a
mercados.
Os
excluídos são excedentários, incapazes de uso ou reconversão, produto de uma estratégia que os desvaloriza e torna inúteis. Surge então a marginalização, que pode ser: ►
Económica:
empresas
e
actividades
que
perdem
rendimentos e competitividade; ►
Social: indivíduos que perdem afectos, relações e empregos;
►
Territórial:
sítios
que
perdem
valor
e
suscitadas
ao
específica
do
investimentos.
Por
outro
transportar-se
lado, a
novas
análise
para
questões a
são
componente
20
Baudrillard (1991, 1995a, 1995b, 1996) não se cansou de demonstrar esta valorização do objecto através da sua reflexão como atributo ideológico e social.
[60]
espaço público, que tradicionalmente propicia o contacto entre a esfera pública e privada e é o catalisador dos processos de sociabilização e de reprodução do sistema social. Longe manifestam,
de
se
homogeneizarem,
nos
locais
públicos
não
os só
comportamentos
a
diversidade
das
origens geográficas e dos grupos sociais, mas também os laços que unem uma mesma classe etária ou género ou etnia. Esta exibição
das
diferenças
produz
ao
mesmo
tempo
permanentes
ajustes entre os grupos que partilham o mesmo território, cujas
identidades
sociais
transportam
os
sinais
destes
compromissos locais. De
uma
forma
mais
generalizada,
os
espaços
públicos
representam uma intromissão na análise destas formas instáveis de interacção que se constroem à parte dos laços duradouros, das
pertenças
definição,
comuns
não
é
e
das
passível
de
identidades ser
partilhadas.
apropriado
por
um
Por grupo
particular que lhe designe um uso privativo. A sua natureza fluida decorre de não poder ser em definitivo traduzida por um qualquer conceito científico, sendo inversamente um objecto em constante
construção,
transformação
e
ajustamento
à
cidade
física, à cidade económica e à cidade cultural. Símbolo
perene
da
urbanidade,
o
espaço
público
é
o
elemento, por excelência, que transforma a cidade no contrário do somatório de bairros e de pequenos universos herméticos. São um espaço de mediação, em permanente reconfiguração e revalorização,
para
os
diferentes
grupos
sociais,
para
os
conjuntos de indivíduos de diferentes idades ou sexo, cujo sucesso tem dependido do discernimento demonstrado em cada momento
pela
consciência
colectiva.
Materializa-se,
assim,
21
numa questão política e de comunicação .
21
Como bem enfatiza Grafmeyer (1994; 113-116).
[61]
2.2.3. Sobre
O estilhaçar da imaterialidade urbana a
cidade
existente,
física
e
material,
começa
agora a sedimentar-se e a depositar-se uma outra que durante bastante tempo apenas se insinuava junto dos utilizadores da cidade. Os telefones, telefaxes e a televisão por satélite anteciparam toscamente o que viria a ser a aceleração da vida urbana e a desterritorialização progressiva de processos que se julgavam consistentemente físicos. Nasce, assim, de acordo com Asher (1998; 58-59), a sobremodernidade aplicada à cidade: “(...)As
dinâmicas
são
sobremodernas
por
duas
razões
principais: pelas evoluções económicas, sociais, políticas e culturais, que determinam largamente a evolução das cidades; pelos discursos produzidos sobre as cidades e pelas práticas urbanísticas,
que
extraem
de
bases
comuns
as
mesmas
referências e ideologias científicas, técnicas, filosóficas, políticas...”. Na
base
destas
mutações
está,
como
se
aludiu,
a
aceleração que, ao assentar na velocidade da luz, produz a desvalorização do espaço e a hipervalorização do tempo, pois gera maior rapidez nas trocas e faz coincidir o ponto de partida com o ponto de chegada “(...) A variação crescente das velocidades reforça cada vez mais a heterogeneidade do espaço. Outrora,
os
homens,
os
bens
e
as
informações
tinham
velocidades quase equivalentes e foi apenas ao longo do século XIX,
com
sobretudo,
a com
especialização as
parcial
telecomunicações,
dos que
as
transportes velocidades
e, se
diferenciaram fortemente. Hoje, a diversidade da velocidade da informação e as de deslocação das pessoas e dos bens induzem no espaço uma heterogeneidade ainda maior e reforçam o peso das estruturas territoriais” (Asher: 1998; 66). Não perdendo de vista a problemática central do nosso trabalho, as práticas de sociabilidade até aqui fortemente ancoradas
no
território
e
nas
suas
estruturas,
como
as
[62]
escolas, as fábricas, os escritórios, não deixaram ainda de constituir componentes nucleares do dispositivo de reprodução social.
Desta
públicos
arquitectura
urbanos
faziam
tradicionais,
ainda
que
não
parte tinham
os
espaços
como
função
esbater as diferenças sociais, antes reproduzi-las pela via da diferente apropriação que deles era feito pelos vários grupos. O forma
estilhaçar as
da
alterações
transferência
para
cidade
imaterial
verificadas
o
plano
na
virtual
acompanhou cidade não
da
real,
só
de
mesma
pois
a
negócios,
consultas e intercâmbios culturais, mas sobretudo de afectos e de projecção de novas ideias e posturas, enfatizou os novos meios de comunicação como canais privilegiados para uma maior eficácia
no
processo
de
sociabilização.
Passou
a
ser
um
poderoso instrumento orientado para a inclusão social, para revalorização
dos
direitos
das
minorias,
etc.
(Habermas,
1978). Espaço
virtual
e
novos
espaços
urbanos
conjugam-se
então para a emergência de novas práticas e, talvez, para a criação dum novo urbano.
2.3. Contributos para uma teoria dos Espaços Públicos Urbanos 2.3.1.
Espaço Público: crise ou novas lógicas?
A cidade sempre foi definida com dificuldade por quem a queria
explicar.
comprovada encontrar,
pelo
Essa facto
sobretudo,
complexidade do
maior na
de
êxito
definição nesse
intervenção
é,
aliás,
desígnio das
se
artes,
designadamente, a literatura22, a poesia, a fotografia ou a pintura. Não foi, também, por acaso que, em 1994, no Centro de 22
É impossível não referir de imediato as Cidades Invisíveis de Italo Calvino. È também sintomático que seja de leitura obrigatória em muitas escolas de arquitectura.
[63]
Cultura
Contemporânea
de
Barcelona,
esteve
patente
uma
exposição que procurou colocar a par a Cidade do Artista e a Cidade
Arquitecto23,
do
particular
expressividade
decorrendo
desse
das
de
obras
confronto
arte
perante
a o
funcionalismo operatório das propostas de urbanistas. Analisar e discutir o urbano, no entanto, não é pertença exclusiva destas duas esferas- arte e ciência -, pois, pela técnica
hermética
ou
pela
subjectividade
de
expressão
artística, corre-se o risco de marginalizar um amplo universo de utilização quotidiano da cidade que, no fundo, se traduz por aquilo que pode designar-se por experiência da cidade. Esta, vivida por todos e por cada um, faz a verdadeira cidade, desmentindo em toda a dimensão a frase em voga no discurso político e urbanístico do “fazer cidade” como a materialização das
estruturas
físicas.
É
que
a
visão
urbanística
tem
um
carácter redutor, conferido pela ênfase depositada na estética e nos materiais aplicados, desvalorizando ou alheando-se da necessária
reflexão
acerca
do
espaço
idealizado.
“Fazer
cidade” é, portanto, frase eleita no discurso dos técnicos urbanistas e políticos mas, porque se encontra cerceada de múltiplas
visões
complementares
(da
sociologia,
da
comunicação,
etc.),
realidade
de
intervenções
parcelares
urbana
e
é a
retribuição
política.
do
antropologia,
da
que
na
se
visando
Socializar,
trata a
animação
comunicar,
trocar, questionar, contemplar, são algumas práticas que até agora tinham estado, quase em exclusivo, reservadas aos EPU e que, mesmo nestes espaços onde “se faz cidade”, começam a abandoná-los. Mas a valorização social que é conferida aos EPU resulta da interiorização muito forte de imagens de espaços abertos, verdes urbanos, praças, entre outros, que remete para baixas densidades e para a qualidade urbana. Quanto à sua utilização
23
AAVV (1994), Visiones Urbanas, CCCB, Barcelona.
[64]
efectiva assiste-se a algum distanciamento que parece reforçar o estatuto que os técnicos e políticos vêm a conferir aos EPU de meros elementos de composição urbana, apreciados como obras de arquitectura e design urbano. Se hoje, a ideia de espaço público urbano é central no discurso que visa a qualificação do espaço urbano, é porque ele foi posto em causa pelas práticas sociais, urbanísticas e económicas. O desencontro entre o uso e a oferta dos EPU de qualidade
aprofunda-se,
propostos
pelo
sedutores
que
segundo a
na
medida
começam
em
a
potencial
que
ser
os
mecanismos
infinitamente
procura
noutros
menos
espaços
alternativos. Arrastado
para
o
centro
da
análise
urbana,
o
termo
“Espaço Público Urbano” surge, pela primeira vez, nos anos 70, num texto da Administração Francesa. A cidade burguesa nascida da Revolução Francesa, com os célebres ideais, trouxe ainda consigo o passeio público por onde deambulam as novas elites, e
um
leque
vasto
de
outras
modalidades
de
expressão
e
comunicação (cafés, tertúlias, etc.), lançando na cidade um burburinho, discussão, agitação nunca antes conhecida/sentida e transformando-a num palco. Também
aí,
as
movimentações
não
eram
populares
ou
interclassistas, pois tinham um carácter genuinamente burguês, que era quem detinha o tempo, o dinheiro e a informação. O público encontrava-se, uma vez mais, como um conceito limitado e
que
estavam século
não
expressava
então XIX?
as
o
ideal
camadas
Confinavam-se
da
Revolução
populares às
da
esferas
Francesa.
cidade
próximas
Onde
burguesa dos
do
bairros
operários em que residiam – a rua, o beco – e aos espaços de consumo que lhes estavam reservados, como as tabernas, as casas
de
pasto,
as
mercearias,
etc.,
beneficiando
da
proximidade do local de trabalho ou de residência.
[65]
Até aqui, o espaço público funcionou sempre como mais uma instituição disciplinadora da rígida hierarquia social, forte contribuinte para a normalização e cristalização das relações entre os indivíduos e os seus grupos. A prática do urbanismo com os seus jardins românticos ou com os chafarizes para o abastecimento das populações mais simples, ilustra o entendimento que na época se fazia dos EPU, especializando-os socialmente. A comunicação e política são outros dois aspectos da realidade social que encontram ainda base de sustentação em territórios urbanos como os espaços públicos ou colectivos. Na Cidade grega o Àgora cumpria uma função específica no estímulo à reflexão e à troca de ideias, muito embora a democracia grega não incluísse todos os utilizadores da Cidade, pois alguns
(estrangeiros,
escravos)
não
reuniam
todas
as
qualidades políticas para participar na vida pública. Interessa
realçar
que
o
reconhecimento
do
papel
do
espaço público na formação das massas é construído não pelas suas características intrínsecas (físicas ou estéticas) mas pelo
impacte
que
as
ideias
aí
emergentes
tinham
sobre
os
posteriores comportamentos individuais. Aliás, surgem exemplos renovados
no
século
XIX
com
a
animação
social
e
política
sentida na cidade burguesa, onde o café e o passeio público passaram
a
constituir
os
espaços
onde
se
processavam
discussões e até decisões na esfera política. Não é, então, por acaso que as ditaduras do século XX estabelecem
que
uma
das
suas
leis
de
sobrevivência
é
transformar o espaço público e a sua ocupação pelas massas populares numa montra do sucesso e eficácia do poder exercido. Aproveitando as emergentes tecnologias de comunicação (imagem, rádio),
o
palco
já
dominado
pela
política
foi
sabiamente
utilizado pelas formas autoritárias de poder, correspondendo à
[66]
instrumentalização
das
massas
em
grandes
espectáculos
políticos. De novo, se pressente que este espaço público não adere aos conceitos hoje adoptados para a mesma expressão porque pressupõe
liberdade
coexistência
de
de
grupos
movimentos de
e
estatuto
comunicação social
e
e
a
económico
diferenciado, o que não parece ser o caso pois recusavam-se a assistir a alguns destes ritos. Entretanto, o urbanismo havia, também,
sofrido
reorientações,
sobretudo,
com
a
Carta
de
Atenas (encontros do CIAM), funcionalizando a Cidade e os seus espaços de modo a apresentá-la como um enorme espaço fabril em que os movimentos são previsíveis e as suas consequências conhecidas. Normalização, controle social e vigilância passam a ser exercidos mais facilmente num espaço até então caótico e complexo24. A transversalidade social nos EPU só se conseguiu em pleno em momentos de festa, dos quais não podemos alhear os momentos de comemoração. Embora a palavra crise não seja a mais adequada, é curioso verificar que, com excepção destes momentos, as práticas territoriais incidentes sobre o espaço público quase nunca foram “democráticas”, na medida em que sempre os grupos se auto segregaram ou a isso foram obrigados pela organização urbana. Ora elitista, ora popular, ora marcadamente ideológica, ora
apenas
atingiram forma
espaço
de
intensidade
todos
os da
democratização
iria,
públicos
urbanos.
suficiente
grupos
implementação
contemplação, para
os
democracia também
Essa
que
nunca
ideia
mesmos
espaços. pensar
entranhar-se
veio
motivações
mobilizassem
poder-se-ia ela,
as
a
nos
revelar-se
de
igual
Após
a
que
a
espaços não
só
deslocada porque a miscigenação social nunca se verificou, 24
Cf. Sobretudo os trabalhos de Foucault sobre o controle , a vigilância e a normalização nas sociedades modernas.
[67]
como o percurso tem sido no sentido do apagamento da própria ideia de espaço público, apoiado em três argumentos: ►
promoção do espaço individual/privado;
►
emergência dos espaços colectivos;
►
desvalorização social do usufruto do espaço público.
As diferenças entre estas três dimensões aprofundam-se e, nesse processo, algo acelerado, descortinam-se causas e consequências que interessa pelo menos assinalar, mas que no seu conjunto legitimam o uso do termo “crise” para designar o progressivo esvaziamento do espaço público urbano. No plano das causas podemos encontrar as que se abrigam no acto de planear e desenhar o território urbano, depositando o maior empenho na estética e muito desligado do acto do usufruto dos utilizadores. Da
crise
à
lógica
do
esvaziamento
vai
uma
distância
idêntica à verificada entre o interesse público e o interesse privado. Tomemos como exemplo um dos factores mais delicados e com mais amplos efeitos repulsivos sobre o EPU que é o da insegurança. É como usar o medo e o seu alastramento como catalisador do alargamento do dispositivo repressivo por parte do
Estado.
interferir
Porém, no
modo
ele
pode
como
os
ter
efeitos
cidadãos
mais usam
largos a
ao
cidade,
condicionando-os psicologicamente na apropriação dos EPU ou na escolha de soluções alternativas para a ocupação dos tempos livres. O aprofundamento deste sentimento alimentado pelos meios de comunicação social e amplificado pelas suas notícias, e ainda
mais
desencadeia
distorcidos a
pelos
formalização
rumores de
novas
e
mitos
urbanos,
estratégias
de
[68]
socialização
em
alternativa
às
formulas
convencionais
de
encontro em espaços abertos e de acesso livre. Os espaços públicos têm sido, em simultâneo, alvo de intervenção por parte dos poderes públicos, no sentido da sua (re)qualificação e do renovar do seu histórico protagonismo, mas até agora não têm sido capazes de promover, de forma consolidade largo,
e
generalizada,
caminhando,
estetização
do
pelo
espaço
o
retorno
contrário, (arte
à
rua,
na
pública,
à
praça,
direcção
da
mobiliário,
ao
pura design
urbano), sem consequências efectivas no seu uso. O espaço público permanece (embora no urbanismo moderno e contemporâneo sofra uma contracção apreciável), mas a sua capacidade
de
multiplicar
contactos
interpessoais
ou
constituir matriz de comunicação, mantém idêntica tendência regressiva. Finalmente, fundamentais
aquilo
da
comunicação
e
condenados
à
que
eram
algumas
existência
dos
espaços
sociabilidade
–
descolam
sobreposição.
Com
o
das
públicos e
deixam
razões
urbanos de
aperfeiçoamento
–
estar das
tecnologias de comunicação à distância e a constatação da sua eficácia
no
político
–
transporte e
um
das
receptor
mensagens –
foi
entre
tornando-se
um
emissor
–
desnecessário
recorrer aos espaços tradicionais. Consequentemente, em comunicação espaço público já não significa
praça,
mas
livre
circulação
de
ideias
entre
múltiplos emissores e múltiplos receptores, o que ampliou o universo
finito
inicial
contido
nos
limites
físicos
dos
espaços públicos urbanos. Esta mudança, que continua activa, é ainda marcada por outros traços particulares associados ao consumo, à fragmentação social (nem sempre numa perspectiva económica, pois os atributos etários, de género ou profissão, são
âncoras
para
a
especialização
dos
novos
espaços),
[69]
conduzindo ao empobrecimento da vida urbana porque encapsula as relações entre indivíduos.
2.3.2.
Estratégias de Substituição e Sedução
Se no tempo da Grécia antiga, a Àgora representava o espaço de excelência de encontro dos cidadãos (embora nem todos tivessem esse título), na polis - à semelhança do Fórum romano -, muitos séculos depois, a ideia de “espaço público” atravessou todo o percurso urbano da humanidade tendo, porém, o
seu
significado
sido
alterado
e,
com
ele,
a
função
do
território no encontro e na comunicação. Todavia, como já referido, a expressão espaço público é bastante mais recente, introduzida em França nos anos 70, demonstrando que só se deu por
este
elemento
urbano
quando
se
verificou
que
as
transformações emergentes no plano social e urbano estavam a afectar a sua configuração e o seu uso e mesmo a imagem da cidade. Teoricamente, o espaço público – uma rua, uma praça, passeios - é percepcionado como um território de todos e de ninguém em particular. Todavia, são muitos os exemplos ao longo dos tempos que mostram que ele tende a ser acessível apenas
a
alguns.
O
seu
elemento
caracterizador
-
o
ser
“aberto” a qualquer indivíduo – foi-se dissipando e fechando e, progressivamente, o espaço público vai-se privatizando e transformando num espaço de acesso condicionado, num espaço semi-público (noutros casos privado), aberto a uns e fechado a outros. Este “fechamento” ou privatização do espaço público pode ter
efeitos
dramáticos
para
a
cidade
e
seus
cidadãos,
na
medida em que a complexidade da organização dos espaços das cidades
está
directamente
associada
à
dinâmica
dos
grupos
sociais que utilizam e gozam esses espaços, ou seja, o que
[70]
caracteriza
uma
cidade
é,
precisamente,
o
facto
de
haver
espaços públicos que permitem o encontro com a diferença e o inesperado.
Simplificar
e
organizar
esta
ordem
desordenada
corresponde sempre à perda de identidade do espaço sobre o qual incide a fúria normalizadora (que apesar de desfocada, se mantém presente desde finais do século XIX). A questão que aqui se levanta é a de saber se existe, ou não,
uma
“crise”
do
espaço
público
e
se
a
essa
crise
corresponde uma ascenção na importância de outros espaços, materiais
ou
imateriais,
mais
sedutores
pela
comodidade
e
pelas possibilidades que estabelecem entre os indivíduos. A resposta não é pacífica, nem unânime. Para essa análise partese
do
princípio
que
a
problemática
do
espaço
público
das
cidades está relacionada com processos de apropriação social e cultural e com a própria degradação do espaço urbano. Se
a
estrutura
configuração social
que
espacial a
da
suporta,
cidade podem-se
reflecte
a
identificar
diferenças espaciais em termos de posição social ou de origem étnica
dos
grupos
que
persistentemente
procedem
à
(re)construção simbólica da cidade. Assim, ao crescimento das cidades, com extensas e complexas aglomerações, junta-se o somatório dos estilos de vida dos grupos que nela habitam, demonstrando a realidade que os indivíduos tendem a organizarse em grupo, em função do meio social, cultural, étnico ou económico
a
que
pertencem,
num
claro
processo
de
neo-
tribalização. Tal
forma
de
organização
parece
principal
marcar
uma
determinada
identidade
inserção
dos
indivíduos,
sociabilidade.
No
através
entanto,
a
da
ter
como e
ampliação
cidade
função
assegurar da
funciona
rede como
a de um
território de contrapartidas, na medida em que, sendo um lugar privilegiado
de
inclusão
social,
as
acções
nesse
domínio
[71]
processam-se de uma forma socialmente discriminada, controlada e condicionada. Esta
situação
territorialmente grupos
de
e
sociais,
segregação
corresponde
resultante
é
a
do
visível
uma
e
perceptível
separação
efeito
das
física
dos
desigualdades
produzidas pela diferenciação social. Os condomínios privados e os bairros sociais, por exemplo, representam territórios de estatutos diferentes, que se podem apelidar de primeira e de segunda
classe,
e
onde
habitam
indivíduos
de
realidades
sociais diferenciadas. Mas, por muito que se pretenda misturar as “tribos”, faz parte da natureza do Homem apropriar-se de espaços com os quais mais se identifica e com os quais consegue manter uma relação,
à
semelhança
do
que
acontece
quando
escolhe
e
selecciona os indivíduos que melhor se encaixam na sua visão do
mundo
e
nas
suas
práticas
do
quotidiano,
relegando
os
restantes para um plano mais afastado. O espaço público, enquanto cenário dos hábitos e cultura da
sociedade
consegue Embora
urbana
anular seja
“aberto” diferentes meramente
a
que
estas
um
vive
“tribos” ou
e
dele
desigualdades
território
todos,
física
o
torna
neutro, sempre
urbanas
e
visual,
apropria,
sociais por
possível
esta
entre
se ser o
e
culturais. teoricamente
encontro
convivência, diferentes
não
ainda
grupos,
de que pode
gerar conflitos e criar situações de insegurança e sintomas de desqualificação do espaço público. Associada implícita
a
a
sentimentos
questão
da
de
qualidade
insegurança, do
espaço
está
também
público.
Na
verdade, a apropriação do espaço público depende, em certa medida, do nível de conforto que este oferece e proporciona aos seus utilizadores, pelo que a degradação da estrutura edificada que o limita e a sua própria degradação, fazem com
[72]
que a vivência urbana desse espaço seja cada vez menor. É, portanto, de extrema relevância que o espaço público seja capaz de transmitir as condições físicas, sociais e ambientais exigidas pelos diferentes grupos que habitam a cidade ou serem eles próprios capazes de se tornarem uma referência para a restante qualidade urbana. Por outro lado, a própria multifuncionalidade do espaço público é determinante, porque permite ao cidadão a realização de um conjunto diversificado de actividades sociais, lúdicas, culturais, desportivas, ..., aumentando o seu grau/nível de utilização e apropriação. A monofuncionalidade dos territórios contribui, pelo contrário, para a desertificação dos espaços ou
para
a
sua
apropriação
por
grupos
marginais
ou
com
motivações específicas. No
fundo,
os
novos
tipos
de
espaços,
que
podemos
apelidar de espaços colectivos e que servem de matriz para a vida social, parecem resultar de uma sensação de insegurança perante espaços demasiado abertos e pouco controlados (jardins e parques das cidades), que leva alguns indivíduos a exigir uma limitação ou um controlo do espaço “totalmente” público25. Este vida
sentimento
social:
as
de
insegurança
relações
sociais
afecta,
sem
diminuem,
os
dúvida,
a
indivíduos
tendem a desenvolver mecanismos gregários, mas fechados, os lugares públicos de encontro perdem-se e a cidade tende ao encapsulamento mantendo as suas evidentes ambições económicas. O problema acentua-se à medida que a segregação numa cidade se agrava e se torna mais visível, até porque uma maior percepção
da
insegurança
nos
espaços
públicos
implica
uma
maior individualização e uma dimuinição drástica na interacção entre habitantes pertencentes a estratos sociais diferentes.
25
Que, no fundo, já se vai verificando com a vigilância mais apertada e com os horários de abertura e fecho de alguns do EPU em Portugal e, em especial, em Lisboa.
[73]
Está-se, então, perante uma cidade mais classista, em que os espaços já não são de todos, mas de grupos e onde o medo funciona
como
catalisador
do
esvaziamento
dos
EPU
com
implicações políticas e económicas. Com efeito, o medo tem vindo a ser instrumentalizado, pois pode permitir e legitimar o reforço do dispositivo do poder e o exercício do controle sobre os cidadãos, ainda por cima com o fervoroso assentimento destes. Contudo, as pessoas (maioritariamente jovens e idosos) que fazem da rua um ponto de encontro e de sociabilidade, parecem
ser
em
número
suficiente
para
justificar
que
se
recupere o sentido público e mesmo educativo (enquanto espaço de
sociabilidade
aprendizagens)
da
recolhimento,
constitui rua,
palco
numa
enclausuramento
e
oportunidade
de
condenação
do
implícita e
filtragem
dos
espaços
privados. Com isto não se exclui a possibilidade de ocorrerem experiências
desagradáveis
durante
a
movimentação
dos
indivíduos nos territórios das cidades, sobretudo, nos espaços públicos totalmente abertos, até porque tais acontecimentos constituem momentos normais na experiência da Cidade. Mas se as preocupações acerca dos riscos nos espaços públicos são compreensíveis (a partir do empolamento mediático de acontecimentos localizados espacial e temporalmente), já as acções indiscriminadas que procuram afastar os indivíduos das ruas e de outros espaços públicos são questionáveis. A solução não parece estar na protecção em relação à rua (aqui entendida como
perversa)
privado
pode
-
até
porque
o
recolhimento
ser
tão
prejudicial
quanto
a
exclusivo exposição
ao aos
perigos das ruas – embora o facto da cidade se tornar violenta faça com que as pessoas prefiram garantir a segurança, em detrimento
da
liberdade.
A
escolha
perversa
é
a
de
que
preferimos não ser cidadãos, no sentido de podermos circular livremente por todo o lado, mas estarmos protegidos, fechados e condicionados no espaço.
[74]
A maior contradição de todas está, porém, no facto de concebermos
e
construirmos
a
cidade
para
que
seja
completamente aberta e depois fechamo-la. São disso exemplo, os condomínios - um simples aglomerado de espaços privados que permitem apenas alguns encontros (os desejados aos detentores dos espaços) e impossibilitam outros - ou mesmo os centros comerciais
(espaços
condicionada
pela
colectivos
vigilância
privados
electrónica
com e
liberdade
pela
presença
física militarizada). Com frequência a sociabilidade pública da rua tende a ser transferida para áreas privadas como centros comerciais, parques
temáticos
habitacionais,
assim
e
de
lazer
como
a
diversos
ocupação
do
e
condomínios
tempo
livre
se
individualiza, cada vez mais, na solidão do espaço doméstico. Estaremos,
então,
perante
a
redefinição
do
espaço
público e privado? A realidade das cidades parece confirmar esse
movimento
quando,
para
além
dos
condomínios
e
das
vedações, outras iniciativas de segurança e controle criam um quadro
de
“prisão
colectiva”
ao
qual
os
habitantes
das
cidades, não só se estão a acostumar, como estão a exigir persistentemente.
2.3.3.
Dos Espaços Públicos aos Espaços Colectivo: que consequências para as sociedades urbanas?
Tucherman (1991) refere que George Simmel salientava que “na Londres ou na Paris antiga, em público, as pessoas tinham a expectativa de abordar e de serem abordadas” (p.81). Hoje, existe
a
convicção
que
a
esfera
individual
não
permite
intrusões dessa natureza, aliás considerando-as como uma grave intromissão no território da intimidade. Do mesmo modo, a proximidade entre os cidadãos num período pré-transporte de massas não era tão reduzida, o que faz com que as pessoas
[75]
tenham de fazer a gestão do olhar e da oralidade, de modo a não entrarem em conflito com o outro. A
grande
dificuldade
de
apreensão
da
totalidade
das
mudanças que ocorrem nos EPU são o produto da sua dimensão heurística, mas que, por facilidade, dele extraímos, sobretudo até
agora,
o
vector
associado
à
insegurança.
Mas
não
é
possível continuar a esconder que a passagem do público ao colectivo só pode ser descodificada se se atender à riqueza multidimensional do processo. Nesse sentido adoptaram-se as quatro dimensões heurísticas propostas por Debarbieux (2000) para os espaços públicos: ►
Capacidade de interpelar todas as ciências sociais. A geografia pela sua materialidade, o direito pelo qualificativo,
a
política,
a
sociologia
ou
a
economia podem trazer novas leituras e contributos para a compreensão da natureza dos EPU. A conversa com
Laborinho
dúvidas
Lúcio
sobre
o
(MORENO,
2001)
envolvimento,
por
não
deixa
exemplo,
do
direito nestas matérias já que está impregnada por questões
de
problema
direito
em
ser
público: vigiado
“Não no
tenho
espaço
nenhum privado
colectivo, no aeroporto, no centro comercial, etc. ... Porque não é o meu espaço de pertença, é onde eu estou mas não onde eu sou. Eu sou no espaço público” (p.25); ►
Relações
dialécticas
sociedade. sempre
entre
Construir
foi
um
intrínsecos
aos
dos
o
indivíduo
normas,
valores
atributos
mais
EPU,
expondo
o
e
e
regras
genuínos
indivíduo
a
a
e um
tecido social que só pode sobreviver através da transmissão
codificada
dessas
balizas.
Entre
os
territórios individuais e as identidades colectivas tudo se pode encontrar nos EPU;
[76]
►
Intervenção
física
e
semiótica
dos
espaços
públicos. Sendo a cidade eminentemente material, o interesse
simbólico
reproduzido
e
funcional
territorialmente
do
poder
pelos
é
urbanistas
adequando-o ao uso comunitário. O jogo entre forma espacial e forma social/política não se esgota no desenho
ou
nos
elementos
aí
colocados,
acrescentando-se nesse espesso conjunto de relações prévias,
normas
e
condutas
que
também
devem
orientar os indivíduos nesses territórios. Parece ser particularmente útil a ideia de olhar para a relação
entre
colectivo,
indivíduo
como
um
jogo
e
espaço,
público
de
espelhos,
em
e
que
o
utilizador tem de se rever no espaço onde se julga melhor
enquadrado
e
sinta
mais
valorizado
socialmente; ►
Finalmente, a dimensão que distingue o objecto e a análise
que
dele
apesar
dos
movimentos
demonstrarem
a
pode
ser
feita.
e
práticas
importância
dos
Em
Portugal,
quotidianas
novos
espaços
colectivos, a representação dos EPU no imaginário do
indivíduo
mantém-se
como
um
factor
chave
na
qualificação dos espaços urbanos. Assim se explica as
múltiplas
movimentações
em
defesa
ou
em
reivindicação de espaços públicos que desencadeiam genuínas
associações
espontâneas
de
cidadãos
sem
nada em comum até aí (cf. Exemplos 1 e 2)
[77]
Exemplo 1 Moradores da Ajuda conquistaram um Jardim-Miradouro O que começou por ser um jardim-manifesto, erguido pelos moradores contra um projecto do Plano Especial de Realojamento, no Rio Seco, à Ajuda, vai tornar-se um jardim oficial, desenhado pelo punho de técnicos do departamento dos Espaços Verdes da Câmara de Lisboa. Esta foi uma vitória para os habitantes da Rua Glovanni Antinori e das artérias envolventes da Ajuda, já que, em finais do ano passado, o que o futuro lhes reservava era a construção de três blocos de habitação social na escarpa, em vez do jardim prometido há uma década pela autarquia. Quando em Dezembro do ano passado, os moradores conheceram os planos do departamento de Habitação da câmara, que entaipavam o miradouro natural que ali existe, não só protestaram publicamente como lançaram mãos à obra, plantando árvores e arbustos no local onde até ali havia barracas ocupadas por toxicodependentes. Fizeram nova acção de protesto na última reunião do executivo camarário do ano 2000, após a qual o vereador da Habitação e o presidente da câmara lhes prometeram procurar uma alternativa para a construção dos 22 fogos de realojamento. Agora têm razão para estar satisfeitos, como salienta um dos residentes, Manuel Soares, porque lhes foi dada a garantia de que o espaço verde que esboçaram irá tornar-se uma realidade.
Jornal Público, 02-08-2001
[78]
Exemplo 2
Mais Um Apelo Pelas Árvores do Marquês Acção pública no jardim do Porto
Mariana jura que costuma visitar o Jardim do Marquês, no Porto, para brincar "às caçadinhas e ao macaquinho chinês". Ontem, foi escrever uma frase num grande papel estendido em frente ao coreto, a convite da Comissão de Cidadãos em Defesa do Jardim. Desenha as letras devagar e com o cuidado de alguém que ainda faz palavras com pernas e formas redondas. "Não quero que matem as arvores", escreveu a pequena Mariana, com seis anos, corrigida de imediato pela irmã mais velha, Catarina, que lhe colocou o acento nas árvores. "Tenho pena delas e são seres vivos", justifica Mariana Reininho Araújo Toscano que - além do nome completo, dito de forma expedita - também vai adiantando que sabe que "algumas árvores vão morrer por causa do metro que vai passar por ali". "Eu também quero o metro", diz. Então qual a solução, Mariana? "Ele não pode passar um bocadinho ao lado?". Para a recém-formada Comissão de Defesa do Jardim do Marquês, que já se manifestou várias vezes contra o projecto da empresa do Metro do Porto e que ontem voltou a desafiar a população a acender uma vela e a participar numa acção pública, o lema também é: "Metro sim... mas fora do jardim". Jornal Público, 10-03-2002
Exemplo 3
MANIFESTO O Parque da Cidade - maior espaço verde público da cidade do Porto está ameaçado. Sem que as intenções de ali promover "frentes urbanas" e outros empreendimentos imobiliários sejam sequer claras e totalmente assumidas, a verdade é que uma extensa área do parque será destinada a construção. O que constitui um evidente atentado contra aquilo que é, no Porto e na Área Metropolitana, um dos poucos "oásis" disponíveis para o usufruto dos cidadãos, em contacto com a Natureza. O Movimento pelo Parque da Cidade pretende mobilizar os cidadãos em torno de um objectivo claro: recusar novas construções no parque e salvaguardar a integridade da área verde. Para tal, importa esclarecer, com transparência, quais as intenções da Câmara Municipal do Porto em relação a toda esta matéria, porque não seria compreensível que aquilo que a todos diz respeito pudesse ser decidido no segredo dos gabinetes. Em breve, este grupo de cidadãos divulgará uma série de acções que se pretende levar a cabo, tendo em vista a sensibilização pública para a defesa do Parque da Cidade e da sua função única no plano social e ambiental. Fonte: http://parquedacidade.no.sapo.pt/manifesto-pequeno.html
[79]
A
condução
do
público
ao
colectivo
só
pode
ser
apreendida numa lógica multidimensional como a que atrás se descreveu, pelo que desde já interessa afastar a ideia de crise. Com efeito, avaliando empiricamente para os espaços públicos portugueses e os comportamentos dos seus principais utilizadores
reforça-se
a
ideia
de
inexistência
de
uma
verdadeira crise, salientando-se antes, porém, uma mudança de lógica
e
de
intensidade
de
uso
que
pode
pode
ter
uma
explicação mais complexa que as convencionais razões ligadas à transformação física. A este propósito, ainda que de forma questionável, Carréve, em 1876, afirmava, por exemplo, sobre Lisboa, respectivos quintais e Passeio Público que “... esta espécie de logradouros são inúteis em Lisboa: os portugueses não passeiam e as portuguesas ainda menos... Os portugueses convivem
pouco
uns
com
os
outros
e
menos
ainda
com
os
estrangeiros” (in Barbosa, 1993). A rua direita, o campo da feira, o rossio, entre outros espaços urbanos tiveram sempre um papel muito funcional, que fazia convergir sobre si uma procura interessada em algo mais que
o
próprio
espaço.
À
sua
maneira,
já
era
colectivo
e
selectivo. As consequências para a cidade e para a sociedade urbana não são, portanto, assim tão dramáticas como algumas análises e comentários deixam antever pois, por um lado, não existe uma ruptura e, por outro, sendo a relação entre o indivíduo e os EPU um jogo de espelhos, ele vai estar onde espera que a sua imagem
ganhe
mais
destaque
socialmente.
O
risco
é
que
o
encapsulamento e confinamento a espaços isolados e herméticos dificultem o encontro, a troca, o convívio com a diferença, a partilha, empobrecendo a ideia de cidade, exercendo-se sobre os cidadãos os efeitos de uma agorafobia generalizada aos espaços públicos convencionais.
[80]
2.4. Propostas de tipologia 2.4.1. Um
Segmentando a análise
dos
sistemática
problemas
mais
incompreensão
de
fortemente que
sentidos
componentes
é
foi
o
da
composto
o
Espaço Público Urbano, com a agravante de que o urbanismo produz hoje espaços com a mesma designação de ontem, mas cujas funções se alteraram de modo significativo. Estão neste caso, por exemplo, a praceta, tradicionalmente vista como uma área livre entre edifícios, podendo registar a presença de algumas vias de acesso e de lugares de estacionamento mas contemplando sempre áreas verdes, de estadia ou apenas de descompressão do edificado. Um simples olhar às áreas de expansão metropolitana ou aos espaços lisboetas sujeitos a regeneração urbana (Páteo Bagatella, Alcântara Rio, ...) permite verificar que a praceta se transformou neste novo desenho urbano num lugar precioso para a circulação local e o estacionamento. Por outro lado, a segmentação tipológica dos EPU foi exigida pela percepção que nem todos manifestam um perfil de ocupação semelhante, gerando níveis de atracção e repulsão diferenciados, de acordo com alguns atributos próprios ou que lhe
são
imputados.
atravessamento, cada
momento,
intensa,
Desporto,
convívio, poderão
consoante
contemplação,
etc.
são
suscitar as
uma
circulação
características procura
actividades
mais
que,
e em
ou
menos
consideradas
mais
socialmente relevantes. Esta preocupação tem tido reflexo em trabalhos de vários autores
sendo,
no
entanto,
afectada
pelos
contornos
dos
objectivos que cada um perseguia. Vale a pena sistematizar as propostas encontradas, de modo a produzir uma tipologia que procure não só incorporar estes contributos mas acrescentarlhes
uma
perspectiva
mais
abrangente
em
resultado
da
fertilização obtida através dos múltiplos olhares.
[81]
2.4.2.
Espaços de recreio e lazer
A primeira referência resulta da proposta apresentada por
SEELEY (1973),
numa
obra
com
três
décadas,
cuja
nota
interessante é também a da ausência do termo Espaço Público, embora seja impossível descolar o conteúdo desta obra pioneira deste conceito. Preocupações ocupam
parte
como
a
distinção
significativa
da
obra
entre
lazer
optando
e
recreio
sobretudo
pelo
segundo, entendido aqui como uma das modalidades de ocupação do
lazer.
Pode
envolver
formas
como
desporto
físico
ou
actividades intelectuais: “(..) Basically, recreation involves activity – be it physical, mental or emotional – and it has no single form, as the range of activities which people enjoy during leisure is almost limitless. Recreation is determined by motivation, is fundamentally an attitude of mind and occurs in “unobligated” time. Engagement in recreational pursuits is entirely
voluntary
as
the
moment
participation
becomes
compulsory the activity ceases to be recreation. Recreation is universally
practised
and
sought
and
can
take
place
in
a
variety of settings, can be organised or unorganised and can be enjoyed alone or in groups. Recreationalists are often quite serious when absorbed in activities from which they secure satisfaction and pleasure. Finally it has by-products in that recreation can reward the participant in terms of intellectual, improved
physical
citizenship;
and and
social in
growth;
better
health;
other
qualities
of
personal
melhor
entender
a
proposta
development(…)” (p.3). Como
estratégia
para
tipológica apresentada por SEELEY, vale a pena identificar o que o autor considera como as vantagens da recreação: ►
Apoiar
o
desenvolvimento,
movimento
e
coordenação
corporal através das actividades físicas;
[82]
►
Contribuir para a sobrevivência e segurança;
►
Aprofundar o gosto pela natureza;
►
Promover a estabilidade mental, descomprimindo do mundo do trabalho. É uma forma de relaxe. Estas
vantagens
podem
ser
encontradas
em
diferentes
espaços, organizados de acordo com o tipo de oferta e com a postura do utilizador, formalizando assim a sua proposta de tipificação: Quadro 1 - Classificação de áreas recreativas Tipos de área recreativa Item
Baseados no Utilizador
Baseados nos Recursos
Intermédios A maioria não estão demasiado afastados dos utilizadores; Estão próximos dos recursos embora tenham como a distância como séria limitação
Localização comum
Próximo dos utilizadores
Onde se encontram os recursos; podem encontrar-se longe de grande parte dos utilizadores
Actividades dominantes
Jogos como ténis, natação, picnics, zoos, etc.
Interesse científico e histórico; pesca e caça; campismo
Utilizados para acampar, pescar, nadar, caçar e pescar.
Período mais intenso de uso
Período póslaboral ou pós-escolar
Férias e finsde-semana alargados
Saídas de dia inteiro e fins-desemana
Dimensões
1-100 Ha
Envolvem milhares hectares
De 50-1000 Ha ou mais
Autarquias, Privados
Parques Nacionais; reservas naturais; Áreas Protegidas
Responsáveis
de
Reservas naturais, etc.
Fonte: Adaptado de Seeley (1973)
[83]
O espaço público nas cidades portuguesas26
2.4.3. Esta
foi
uma
das
obras
percursoras
elaboradas
em
Portugal versando os EPU. Desde logo porque os colocava no centro de uma problemática dominantemente urbana e geográfica, ao sublinhar o seu valor simbólico e referenciador a par das suas funções mais óbvias de organizadores do tecido urbano e de
garantia
das
condições
para
a
circulação
automóvel
e
pedonal (p.60). Garantir ao peão a satisfação das suas necessidades era, assim, a função fundamental que praças, jardins e até ruas deveriam cumprir com eficácia e eficiência. No entender dos autores “a praça pública representa um dos espaços urbanos mais complexos, ao materializar exemplarmente o conceito de coração da urbe (o core) e de pólo cristalizador das vivências urbanas. É através dela que o poder político, religioso ou económico (central ou local) tendem a afirmar-se na Cidade (...). Já os jardins e os parques urbanos, detém uma função ambiental importante: contribuem para a diminuição da poluição atmosférica, fornecem habitats para a sobrevivência de algumas espécies
animais
e
atenuam
a
agressividade
presente
nos
reduz
as
ambientes construídos e edificados (...). A
praça
ajardinada,
por
sua
vez,
potencialidades de utilizações extensivas oferecidas por um espaço amplo e sem barreiras e corresponde a uma situação tipológica de compromisso que procura seduzir para a estada humana” (p.67-68). Perante as referências aos contornos e funções que os
EPU
deveriam
satisfazer,
são
apresentados
ao
longo
do
trabalho um conjunto de sistematizações que se referem ao
26
Este ponto deve muito ao trabalho inovador de SEIXAS, Ana et al. (1997).
[84]
piso, às vias, etc., sempre com o objectivo de o tornar um assunto cada vez mais conhecido mas também cada vez melhor caracterizado. O título da obra, com um carácter romântico e carinhoso, precisão
e
o
depois
o
sentimento
seu de
conteúdo,
nostalgia
antecipam
que
afasta
com
grande
muitos
dos
utilizadores da cidade quando se referem aos EPU. Distinguemse fundamentalmente entre espaços lineares e não lineares, sendo que nestes a praça consegue atrair o maior conjunto de funções
e,
por
isso,
assumindo
uma
maior
capacidade
polarizadora. Quadro 2 - Especialização funcional dos EPU Espaços Lineares Rua
Funções
Circulação Acesso Comércio
Espaços Não Lineares Praça
Jardim
Recreio Lazer Cultura
Fonte: Adaptado de Seixas (1994)
2.4.4.
Ensaio tipológico para os EPU
Após todas as considerações feitas, opta-se por, neste momento em que se irá averiguar o grau de utilização dos espaços públicos urbanos, proceder a uma análise das propostas identificadas para a segmentação dos EPU e verificar da sua pertinência e validade para sistematizar os resultados dos inquéritos, quer aos utilizadores quer aos cidadãos em geral (utilizadores ou não dos EPU).
[85]
A referência aos espaços deixados livres pela edificação urbana é dominada pela ideia de EPU, mesmo sabendo da enorme disparidade funcional, espacial e simbólica existente entre eles.
Neste
exercício,
para
além
de
desmontar
esta
ideia
geral, será também útil referir as medidas que se adoptam para comparar estes espaços entre cidades (relação entre superfície de EPU por habitante). Finalmente, é fácil perceber, de igual modo, que os trajectos urbano, político e económico seguidos pelas cidades e países se traduziam em EPU diferentes ou, pelo menos, com uma estratificação distinta que torna mais difícil a comparação. Por todos estes motivos, privilegiar-se-ão as abordagens já produzidas sobre o tema versando a realidade nacional não olvidando as relacionadas com outros contextos. De
acordo
com
este
princípio,
adopta-se
a
tipologia
proposta por Brandão Alves (2003), quer por se tratar de uma reflexão recente (finais dos anos 90), quer por se centrar no território
nacional
e,
ainda,
por
se
debruçar
sobre
a
qualidade dos espaços públicos urbanos. A
classificação
tipificação
da
tipológica
informação
contida
de em
base
resultou
cidades
do
da
mundo
ocidental com especial ênfase para as cidades americanas e europeias (Cf. Quadro 3).
[86]
Quadro 3 - Ensaio de tipificação dos EPU Tipo/designação
Descrição
Ruas Ruas pedonais
Dedicadas exclusivamente ao fluxo de peões e, pelas suas implicações no consumo, têm sido criadas sobretudo nas áreas urbano/comerciais a revitalizar. São complementadas com elementos de conforto urbano como o arranjo das fachadas, vegetação, iluminação, segurança, etc.
Percursos/eixos
Troços urbanos de intenso fluxo pedonal
pedonais
aproveitando os maiores níveis de densidade comercial, passeios mais longos e agradáveis, locais de mais fácil acesso em TP ou em TI.
Ruas
Vias de 1º nível, canalizando os
predominantemente
principais fluxos automóvel. Articulando
motorizadas
as partes fundamentais de cidade e da área metropolitana.
Ruas de tráfego
São consideradas espaço público genérico,
condicionado
embora admitindo a presença esporádica de veículos automóveis (P.e., EXPO’98).
Ruas partilhadas
Vias concebidas/utilizadas por modos de transporte “amigáveis”: vias cicláveis, “trans”, ...
[87]
Praças/Largos Praças – Pracetas
Espaço deliberadamente não construído entre edificações, podendo ter funções políticas, simbólicas, sociais, etc. O facto de ser um local tradicionalmente de concentração de pessoas faz com que surjam actividades comerciais e de serviços. A ausência de rentabilidade destes espaços implicam uma menor visibilidade no urbanismo actual.
Largos
Dimensões variáveis, distinguem-se das Praças e Pracetas por serem espaços urbanos mais limitados. Raramente é possível, aí observar a presença de comércio e outras actividades. Nesta categoria encontramos os adros de igreja ou os largos de implantação dos pelourinhos.
Espaços Comerciais Largo de Mercado e Espaços abertos, do tipo praças ou largos Feira
ou respectivos prolongamentos (ruas, jardins, ...) que são ocupados com uma determinada frequência (periódica ou sazonal) por práticas comerciais. Em Portugal, surgem em meios urbanos como sendo mais uma herança da presença de aparelhos comerciais débeis e que são periodicamente colmatados com os mercados.
[88]
Espaços Verdes Parques Urbanos
Também designados por parques verdes urbanos, são espaços arborizados integrados no sistema ecológico urbano. Mesmo os mais antigos apresentam regras de utilização definidos por planos de ordenamento. A sua localização é preferencialmente junto a áreas mais sensíveis na perspectiva ecológica (forte erosão, linhas de água, ...). Recentemente, em Portugal, fazem parte dos espaços indispensáveis à auto-estima dos residentes (e políticos), surgindo um pouco por todas as cidades. A sua crescente dimensão levanta problemas ainda não completamente resolvidos como o de acessibilidade, segurança, manutenção, ...
Jardins
De dimensões mais reduzidas que os parques, não apresentam grande variabilidade quer na área quer na configuração e valências, localizam-se pulverizados pela área urbana, envolvidos ou por edificações ou por vias motorizadas.
Outros Frentes Mar/Rio
Tratamento paisagístico e funcional de áreas adjacentes a planos de água, recentemente valorizados pela sua qualidade paisagística ou amenidade climática. Conjuntamente com os Parques Verdes Urbanos, constituem o âmago dos investimentos municipais mais representativos, actualmente. Aliás, vejase a discriminação das intervenções ao abrigo do Programa Polis.
[89]
Espaços
Áreas limitadas de difícil caracterização
intersticiais
e de uso híbrido, mas permitindo sempre a utilização pública. Servem para resolver problemas de desenho urbano, ou topográfico: escadarias, alargamento de passeios, impasses, ...
Recintos de Lazer, Muitas vezes inscritos noutros espaços, recreio e desporto como jardins e parques, podem surgir com uma autonomia própria, isolados de quaisquer outros equipamentos ou tipo de EPU. São corporizados pelos Polidesportivos, Campos de Ténis, Miradouros, Parques Infantis, ...
Fonte: Adaptado de Brandão Alves (2003)
Pelo dinamismo associado às transformações urbanas que, por seu turno, se alimentam das mudanças societais operadas em espaços globais, nenhuma definição/sistematização de espaço público se pode considerar estabilizada. A adaptação forte à proposta
a
Brandão
Alves,
no
entanto,
faz
uma
leitura
restritiva de espaço público, expurgando-a do que pode ser entendido como o espaço colectivo e por tal, de algum modo, poder filtrar a admissão de cidadãos por qualquer motivo. É, portanto, um princípio de direito que aqui é invocado e que nos
parece
que
tem
vindo
a
ganhar
alguma
pertinência
no
sentido de evitar confusões legitimas entre Espaço Público e Espaço Colectivo. Se
já
se
registaram
equívocos
com
espaços
comerciais
fechados, agora com os Centros Comerciais, cuja arquitectura contempla confundem
amplos com
espaços o
abertos
verdadeiro
que,
espaço
nalguns público
casos27,
se
através
de
transições subtis, pontuadas pelo aparecimento dos sistemas 27
Veja-se o caso do Fórum Aveiro.
[90]
electrónicos
de
vigilância,
pessoal
de
segurança,
maior
arranjo e limpeza dos canais de circulação. Verifica-se que a cada período histórico correspondem EPU específicos, sendo fácil reconhecer-se a fase do Rossio, Passeios Públicos, dos Jardins, entre outras. O exercício de identificação
dos
actuais
espaços
públicos
pode
ser
feito
através da leitura dos novos espaços urbanos, nascidos quer nas áreas periféricas das cidades quer na reestruturação das áreas consolidadas. A crise do espaço público urbano tradicional encontra na sua expressão física talvez o maior expoente, pois na referida identificação sublinha-se a ausência dos largos e praças, mas com
passeios
obstáculos
para
suficientemente permitir
a
largos
circulação
e
desimpedidos
pedonal
de
desafogada,
espaços verdes utilizáveis junto às áreas residenciais. Por outro lado, ganham ênfase as situações de condomínio fechado onde surgem os “antigos EPU” com jardins e mobiliário urbano adequado
à
sociabilidade28,
os
parques
verdes
situados
no
centro das novas urbanizações mas que, no fundo, representam uma oferta insuficiente quer no rácio espaço verde/hab. quer pelas
condições
locativas
(muitas
vezes
se
acessível
de
automóvel). Levam, ainda, a sentimentos de insegurança pelo excesso de vegetação, deficiência de iluminação e vigilância limitada.
28
Todavia, múltiplas referências indicam-nos a sub-utilização destes espaços, alertando para a possibilidade do afastamento consolidado das pessoas deste tipo de espaço público.
[91]
3.
No campo do actor e do seu cenário
3.1. Notas preliminares Escrever
sobre
cidade
é
abordar
os
seus
espaços
de
troca, de circulação, de estadia mas também, e sobretudo, de negociação da relação com o outro, como sempre sucede quando se
trata
gerir
complexidade discussão
espaços
de
em
no
do
às
espaço
envolvendo
conflitos,
torno
associados
materializados
tempos
interesses,
anterior
composição
e
tensões,
urbano
e
práticas
público,
uma
dos
infinita
paixões.
elementos
A de
socioterritoriais,
pretendia
sublinhar
as
mudanças operadas no plano das sociabilidades e da relação com o outro. As para
fórmulas
optimizar
que
de
foram
modo
sendo
político
historicamente e
económico
adoptadas
a
vida
em
sociedade baseiam-se, no fundamental, no controlo disciplinar que se exerce sobre todos e, muito em particular, sobre os comportamentos. Esta estratégia tem-se assumido como a forma mais
dissimulada,
eficaz
e
até
produtiva,
de
obter
tais
objectivos, com a vantagem de nunca intervir, como não se cansou de sublinhar Foucault (1978) recorrendo ao panoptismo: “(...)permite aperfeiçoar o exercício do poder. E isto de várias
maneiras:
porque
pode
reduzir
o
número
dos
que
o
exercem, ao mesmo tempo em que multiplica o número daqueles sobre os quais é exercido. Porque permite intervir a cada momento e a pressão constante age antes mesmo que as faltas, os erros, os crimes sejam cometidos. Porque, nessas condições, sua força é nunca intervir, é se exercer espontaneamente e sem ruído,
é
constituir
um
mecanismo
de
efeitos
em
cadeia”
(p.170). Hoje pode correr-se o risco de se considerar anacrónica esta
leitura
do
espaço
e
do
controle
social
mais
pelas
dificuldades crescentes de descodificação que afectam as novas
[92]
fórmulas de panoptismo do que pela sua efectiva ausência. Admitindo, sem custo, um aprofundamento e, sem dúvida, um aperfeiçoamento sem precedentes do sistema panóptico, bastanos
observar
em
redor
e
lançar
olhares
avisados
sobre
os
universos onde se exerce esse controle enfatizando não só as instituições onde tradicionalmente se procedia à domesticação do corpo. Com efeito, o empenho na aplicação da disciplina corporal, de acordo com os princípios do panoptismo permite ultrapassar as barreiras tradicionais e lançá-las de maneira difusa, ramificada e polivalente no conjunto da sociedade: “(...) ele programa, ao nível de um mecanismo elementar e facilmente
transferível,
sociedade
toda
o
funcionamento
atravessada
e
de
penetrada
base
por
de
uma
mecanismos
disciplinares(...)” (p.172). Ora a sociedade que assim se constrói, mesmo que de forma pouco assumida ou explícita, é menos uma sociedade do espectáculo
e
mais
uma
sociedade
da
vigilância:
“sob
a
superfície das imagens, investem-se os corpos em profundidade; atrás da grande abstracção da troca, se processa o treinamento minucioso
e
concreto
das
forças
úteis;
os
circuitos
da
comunicação são os suportes de uma acumulação e centralização do saber; o jogo dos sinais define os pontos de apoio do poder; a totalidade do indivíduo não é amputada, reprimida, alterada
por
nossa
ordem
social,
mas
o
indivíduo
é
cuidadosamente fabricado, segundo uma táctica das forças e dos corpos. (...) Não estamos nem nas arquibancadas nem no palco, mas na máquina panóptica, investidos por seus efeitos de poder que
nós
mesmos
renovamos,
pois
somos
suas
engrenagens”
(p.179). O aprofundamento da modernidade, sobremodernidade para Giddens
e
pós-modernidade
desenvolvimentos
para
as
para
outros,
estratégias
de
trouxeram controle
novos social
reforçando ainda mais o protagonismo da cidade e conferindo diferente valorização aos espaços públicos urbanos. De facto,
[93]
os
novos
EPU
apresentam
novos
dispositivos
de
controle
e
vigilância, que seleccionam, protegem e higienizam a par da glorificação do consumo. Opera-se a partir de uma tribalização e especialização dos locais de encontro, normalmente, ligados aos consumo em espaços circunscritos e vigiados.
3.2. O crescente investimento no Self O verdadeiro significado deste investimento nunca será completamente
delimitado
mas,
apesar
de
tudo,
quando
é
detalhadamente observado e descrito por alguém que se encontre na nossa periferia cultural, ou mesmo no seu exterior, a sua análise ganha uma força inigualável: “O Papalagui esforça-se o mais possível por cobrir as suas carnes. O homem só existe realmente como homem acima do pescoço; quanto ao corpo e aos membros,
não
temporalmente
passam estas
de
carne”29.
anotações
Mesmo
verifica-se
contextualizando como
a
evolução
atingiu o corpo e as modalidades da sua afirmação. Acredita-se que o momento actual é mais de ruptura que de
aperfeiçoamento,
económicos,
pois
culturais,
as
diferenças
individuais
se
nos
comportamentos
aproximam
mais
de
mutações que de simples transformações do existente. À quebra de valores tradicionais e à perda de referências até aqui solidamente instaladas como a família, as ideologias ou a religião não se segue forçosamente o vazio. Ou mesmo que ele ocupe um lugar outrora preenchido por matérias substanciais disfarça-se de políticas de ilusão. O hedonismo e o narcisismo fazem parte de um inovador investimento no self, decorrendo até
dum
excessivo
materialismo
do
período
fordista,
que
salvaguardava pouco a diferenciação individual.
29
Tuiavii (1983) O Papalagui, Antígona.
[94]
Uma atitude
outra
leitura
emancipatória
comportamento
de
é
a
face
rebanho
de à
que
pela
via
disciplina,
ao
poderá
com
maior
narcíssica controle, eficácia
a ao
ser
contrariada: “A vaga do potencial humano psíquico e corporal não passa do último momento de uma sociedade que se arranca à ordem
disciplinar
sistemática
e
já
leva
ao
operada
seu
termo
pela
a
idade
privatização do
consumo”
(Lipovestky:1989;51). Esta mudança operada na importância concedida ao self é ainda mais marcante pelo obscurantismo a que havia estado sujeito
o
corpo
num
passado
não
demasiado
distante.
O
sentimento de culpa em caso de doença afectava mais o seu portador que as próprias consequências físicas da maleita. A transição resulta da percepção ao longo dos séculos XVIII e XIX
por
parte
crescentes
no
industrial
e
dos
poderes
controle da
públicos
social
degradação
da
que
as
dificuldades
correlativo vida
da
pública
expansão
poderiam
ser
contornadas com a imposição de novos valores centrados no corpo regularizando e promovendo novas condutas mais dóceis e mais úteis. Passa-se, assim, de um momento onde o corpo era um objecto
desfocado,
sem
vida
própria,
para
um
momento
de
afirmação de protagonismo. Como
mostra
aleatórias
e
Crespo(1990)
poderão
ser
estas
muito
bem
mudanças
têm
o
de
fruto
pouco
de
concepções
transversais para o desenvolvimento societal: “(..)as práticas do corpo não se podem compreender enquanto realidades simples e homogéneas mas, sim, no cruzamento dos múltiplos elementos económicos, políticos e culturais de uma totalidade. (...) A intervenção do Estado resulta, neste quadro, quase como óbvia e
decisiva
seguindo
três
vectores:
simples
repressão;
fortalecimento da consciência moral individual dos cidadãos e o
exercício
do
auto-controlo;
homogeneização
das
condutas
contando com a mobilização de médicos e educadores” (p.8).
[95]
Este
processo
não
foi,
Portugal. A sua construção
contudo,
fácil
nem
rápido
em
e concretização só foi operada com
maior credibilidade ao longo do século XX e em rigor com o Estado
Novo.
É,
aliás,
sintomático,
que
os
períodos
de
ditadura sejam normalmente momentos de grande valorização da cultura física, denunciando a sua oportunidade na docilidade não só dos corpos como também, e sobretudo, do espírito. Mas o domínio
total
da
preocupação
corporal
só
sucede
com
o
envolvimento directo do sistema económico que, em conjunto com a intervenção política, permitiu atingir níveis de sucessos desconhecidos anteriormente. Curiosamente, o investimento no corpo foi acompanhado por mudanças de valores que afectavam o universo psicológico: “a explosão psi sobrevém no momento preciso em que todas as figuras da alteridade (perverso, louco, delinquente, mulher, etc.) se veêm contestadas” (Lipovestky:1989;56). Só
à
luz
destas
observações
pode
dar-se
início
à
desmontagem dos princípios que estão na origem do culto do corpo e das acções/preocupações a que se encontra sujeito em permanência como a manutenção da “linha”, o cuidado com o estado de saúde, com o envelhecimento, com a imagem, com o desenvolvimento
da
cultura
física,
com
a
higiene.
A
generalização e a interiorização destes cuidados tem vindo a construir uma normalização do corpo30, num tempo em que se acreditava
exactamente
no
oposto,
isto
é,
na
individualização. O que parece ter-se imposto é uma espécie de massificação individualizada. A tatuagem é uma das formas de 30
Não pode deixar de se sublinhar como os tempos pós-modernos, paradoxalmente, contêm também tanto de massificação, designadamente no perfil corporal e nas práticas que lhes estão associadas. É igualmente claro que as estratégias individuais procuram apagar estas evidências pela via da indumentária, do aspecto exterior do cabelo e barba ou mesmo por marcas provisórias ou definitivas impostas ao corpo. É corrente a tatuagem, com motivos também recorrentes, nos corpos femininos e masculinos. Para ultrapassar a constante banalização das estratégias de diferenciação aprofunda-se até ao limite os modelos anteriores e é neste contexto que surgem por exemplo tatuagens faciais representando enormes cicatrizes.
[96]
individualização identificadas e até uma das que regista um passado mais sólido: “En cierto modo, el tatuage es un modo de expressión. Cada persona busca su manera. No necesariamente tenemos que utilizar las que ya existen, siempre se puede evolucionar e inventar nuevas maneras. Las cosas no se dicen solo
hablando,
no?
También
pueden
decir-se
con
gestos,
mediante la estética o con un grito.... Yo lo uso para vestir la piel.” (Ehrenhaus: 1999; 155). De um tempo em que se pretendeu fazer crer às pessoas que o seu corpo de facto não existia, certeza essa que só era questionada em momentos de doença, passou-se para a sua hiper valorização,
mas
para
leitura
a
sua
cuja
descodificação como
objecto
deste
mas
processo
também
remete
como
matriz
31
cultural . Finalmente, em que estádio nos encontramos? Para onde vamos? É ainda possível encontrar surpresas ou espantarmo-nos face à multiplicidade dos caminhos a seguir? Parece que sim. Os
sinais
emergentes
passíveis
de
serem
recolhidos
hoje
indicam várias orientações para o desenvolvimento das posturas sobre
o
corpo,
Baudrillard
tem
aparentemente insistido
no
numa corpo,
lógica
pós-moderna.
simultaneamente
como
mercadoria e palco de consumo: “Se a redescoberta do corpo é sempre a do corpo/objecto no contexto generalizado dos outros objectos,
percebe-se
como
é
fácil,
lógica
e
necessária
a
transição da apropriação de bens e de objectos de compra. (...) Da higiene à maquilhagem, passando pelo bronzeamento, pelo desporto e múltiplas libertações da moda, a redescoberta do corpo passa antes de mais pelos objectos” (Baudrillard: 1995; 143).
31
Não é o centro deste texto mas é interessante verificar como esta passagem desvalorizaçãovalorização corporal corresponde a sentimentos de maior intolerância e agressividade face a comportamentos divergentes de origem cultural ou política.
[97]
Esta
leitura
ganha
ainda
mais
pertinência
quando
é
orientada para o erotismo e para os efeitos multiplicadores que gera no campo económico ou ainda quando se liga o fenómeno da “libertação do Corpo” à designada força de trabalho. O trabalhador ao se emancipar do patrão ou, dum modo mais lato, duma figura tutelar que coordena objectivamente todos os seus movimentos e pensamentos, pode ser melhor explorado para fins produtivistas32. Uma outra tendência parece emergir da crescente inserção das
novas
tecnologias
no
quotidiano
urbano,
produzindo
a
aceleração dos ritmos de vida e trazendo consequências ainda não amplamente medidas sobre quadro cartesiano espaço-tempo. Virilio, filósofo e urbanista, debruçou-se em particular sobre estas dimensões e identificou a velocidade como um referencial obrigatório
no
tratamento
das
sociabilidades
e
dum,
modo
geral, da vida urbana. A
cidade,
até
às
primeiras
décadas
da
Revolução
Industrial (princípios do século XIX), apresentava uma escala humana pelo atrito gerado pelo espaço às deslocações humanas. Tanto
na
escala
horizontal
como
na
vertical
existia
uma
contenção real, havendo condições para uma grande intensidade de interacções sociais. Com o advento dos transportes mecânicos passou a ser possível o alargamento urbano, através das linhas de caminhode-ferro e do elevador. Pela primeira vez, existia o designado efeito túnel entre a origem e o destino das deslocações. Isto é, o espaço intermédio deixou de constituir uma experiência para quem se desloca apresentando-se desfocado e sem condições
32
O discurso colabora activamente nesta estratégia quando substituiu, por exemplo, o termo empregado por colaborador, dando-lhe a ilusão de um maior envolvimento na vida da empresa e conferindo-lhe, por essa via, maior responsabilidade em termos de horários e maior complacência face ao salário, períodos de férias, feriados, etc.
[98]
para o contacto pessoal. Foi assim despoletado o processo de dessocialização pela via da aceleração. Com a velocidade da luz, imposta pelas tecnologias da comunicação,
a
distância
ficou
em
definitivo
eliminada,
desqualificando o espaço ao fazer coincidir pontos de partida e chegada anulando as deslocações físicas e, em consequência, reduzindo ao mínimo as relações pessoais. Com estas condições, nasce o “ciberespaço e a infoesfera, o mundo tornou-se uma informação a ser tratada por sistemas, a imagem de sínteses, prescindindo agora do observador, ou seja, não há objecto como não
há
sujeito
processa
e
o
ser
informações,
humano
assim
tornou-se
como
tantos
um
sistema
outros
que
sistemas”
(Virilio:2000;59). O genoma humano é tratado da mesma maneira: como um conjunto de informações até agora à espera de serem descodificadas. Finalmente
uma
outra
orientação
identificada
decorre
também em larga medida da tecnologia mas agora não como um prolongamento
das
capacidades
humanas
mas
como
uma
substituição fisiológica. Frankenstein e os cyborgs de algum modo
evocam
ideias
de
exteriorização,
partilha
e
colectivização dos corpos. Mas a ideia que germina não é só a transformação do corpo humano em andróide como o inverso, resultado
da
tecnológico.
produção O
espaço
ficcional público
ou
e
do
desenvolvimento
reconhece
esta
violenta
sofisticação tecnológica que afecta os corpos, as relações entre eles e as relações entre os corpos e os espaços ou perde em
definitivo
a
sua
capacidade
sedutora
e
de
acolhimento
porque se torna anacrónico face ao estádio de desenvolvimento dos seus utilizadores.
[99]
3.3. A cidade como terreno narcíssico Apesar das práticas corporais (trabalhar, comer, dormir, higiene
e
apresentação)
dominarem
o
nosso
quotidiano,
a
geografia e os estudo urbanos em particular, só recentemente lhe concederam alguma atenção. Era uma presença ausente, na medida em que a sua referência nunca era tomada como central sendo
sempre
instrumental
para
a
compreensão
de
outros
fenómenos. A
reversão
desta
postura
científica
surgiu
quando
se
aludiu ao carácter social do corpo, à semelhança do que sucede com outros espaços (casa, comunidade). O espaço do corpo, sendo
o
produto
natureza
uma
ciências
sociais
de
relações
problemática em
geral.
de O
e
produções
eleição corpo
sociais,
para
como
a
é
por
geografia
fronteira
e
e
como
espaço táctil são algumas das oportunidades que se deparam aos investigadores: “The body is after all, a tactile space – always sensing and actively engaging with itself (the inside) and the world (the outside). Our understandings of our bodies attempts to manage them are therefore predicated not only on visual information – what we look like -
but also on sensual
information about how we feel, about the relationship between the inside and the outside – about our spatiality” (Valentine: 1999; 131). O contacto entre cidade e corpo faz-se assim através da experiência
individual.
As
transformações
urbanas
resultam
muito desta percepção e a história dá exemplos que confirmam esta relação. As intervenções para solucionar os problemas de saúde pública da cidade industrial levaram os construtores e urbanistas a enfatizar na realização urbana a maior largura das ruas e a circulação de ar, facilitando a respiração e melhorando a sua qualidade.
[100]
No século XIX, e na sequência da turbulência induzida pela Revolução Industrial, a cidade organiza-se e transformase de acordo com os princípios higienistas em voga na altura e que perduraram até hoje. Nasce o papel higiénico, a limpeza diária de penicos, novos hábitos de vestuário que aliviavam o corpo de um peso excessivo e mal-são. Com este modelo corporal foi exigido aos espaços urbanos novas práticas de higiene, drenando buracos e depressões alagadas, cheias de urinas e fezes,
para
esgotos
subterrâneos.
As
ruas
tornam-se
mais
limpas e, por baixo delas, os esgotos substituem os canais a céu aberto. A segurança pública justifica, em conjunto com as ideias higienistas, o rasgar de grandes eixos por entre malhas urbanas
antigas
e
densas,
como
sucede
na
Paris
do
barão
Haussman. A
funcionalização
gradualmente
a dos
formalização.
A
concentração
dos
cidade
retira-lhe
espontaneidade
territoriais/sociais, ritualização
da
produzindo
contactos perda
da
locais
obstáculos
sociais rua
de
nas
como
e
a
local
interacção
práticas
que
um
obrigam
maior
de
também
grau
estadia
social
à de
e
a
obrigam
à
reconfiguração das relações individuais e à sua segregação. A Carta
de
Atenas,
encarregou-se
de
documento
magno
do
operacionalizar
urbanismo as
moderno,
preocupações
funcionalistas. Os efeitos de estigmatização gerados pelos sucessivos enclaves instalados no tecido urbano acabaram por provar o insucesso
desta
fórmula
e
indicar
o
caminho
da
multi-
funcionalidade e diversidade de usos evitando a criação de guetos. A promoção dos espaços públicos é uma acção chave para mobilizar as forças no sentido duma partilha da cidade e não de um contínuo afastamento social. Sendo um palco privilegiado para a reprodução dos princípios da hierarquia social, ele foi desde
sempre
acarinhado
por
sucessivas
vagas
de
modelos
urbanísticos. Recorde-se, para Lisboa, o exemplo do Passeio
[101]
Público onde é hoje a Avenida da Liberdade, no século XIX, servindo de palco para a burguesia urbana se poder exibir e mostrar aos demais. As
transformações
societais
têm-se
revelado
como
as
marcas mais profundas, interessantes e inesperadas ocorridas no
mundo
ocidental.
Como
propulsores
principais
destas
mudanças (que em determinados casos e momentos se aproximam mais de verdadeiras mutações atendendo ao seu carácter global e
radical)
melhoria
surge das
o
progresso
tecnológico,
comunicações
traduzido
(rapidez,
na
qualidade
e
versatilidade), e as alterações ao modelo económico vigente. Os impactes da nova tecnologia e de contextos económicos emergentes
fez-se
sentir
não
só
nos
respectivos
campos
específicos como também introduziram perturbações colaterais quer na morfologia social quer urbana. Não se trata da anulação da relação interpessoal, mas sim
da
sua
propriedades
transferência (jurídicas,
para
limites
outros e
espaços
localização)
cujas
acarretam
consequências sobre a “qualidade” da relação com o outro. Esta transferência ocorre num período em que a Cidade se altera e em que os indivíduos reconstroem a imagem do “eu”, provocando este
duplo
efeito,
original
no
percurso
histórico
das
sociedades urbanas. Centros comerciais, centros de lazer e diversão,
espaços
semi-públicos/semi-privados,
constituem
a
emergência de novas configurações urbanas mas que ainda não foi possível descortinar se se encontram a montante, a jusante ou em paralelo dos processos de revalorização individual. Estes
novos
contextos
do
exercício
das
práticas
de
sociabilidade activa interferem no seu redesenho, lançando a mesma dúvida exposta perante a questão da génese das mudanças verificadas para os espaços públicos.
[102]
Veja-se
como
o
investimento
no
Self,
através
da
reconstrução e manutenção da imagem, a preocupação com a saúde psicológica e física do corpo, visível na insegurança (e não criminalidade), a cultura física, etc., se cruza com os novos espaços de sociabilidade. A
pulverização
de
ginásios,
health
clubs,
piscinas,
institutos de beleza, comercialização de produtos de beleza e de produtos dietéticos, minam a paisagem urbana promovendo novas deslocações e desafiando as ideias clássicas sobre as funções mais banais ou elevadas. Correlativamente,
à
promoção
destes
espaços,
comportamentos e deslocações assiste-se à desvalorização e, mais
grave,
ao
estigma
de
territórios
urbanos
de
que
são
exemplo as áreas desocupadas ou de edifícios abandonados, os grandes
parques
frequentadas,
verdes,
os
áreas
jardins
mal
iluminadas
apropriados
por
e
sem
pouco abrigo,
toxicodependentes, idosos, etc. Num misto de insegurança e de sentimentos de repulsa de um modo consolidado e persistente, verifica-se o declínio do uso social destes espaços. Todavia, não se trata ainda duma desvalorização
física
e
urbana,
pelo
que
nos
programas
urbanísticos e, sobretudo, nos loteamentos onde o interesse colectivo se torna ainda mais desfocado face aos interesses dos particulares, permanecem as referências ao espaço público mesmo que seja para contemplar e não para usar ou que se localize
nos
sítios
menos
interessantes
para
construir,
tirando-lhe o carácter estruturante que é conferido à rua ou ao
estacionamento.
Estes,
sendo
também
espaços
públicos
urbanos, não apresentam condições adequadas para a interacção comunitária de qualidade. A actual relação com o corpo, o endeusamento narcíssico da carne, encontra-se agora a jogar para um campo contrário,
[103]
protegendo-se das condições meteorológicas desfavoráveis, dos problemas de higiene urbana, da insegurança e contacto com grupos desfavorecidos. Aliada à pressão comercial, este quadro urbano alimenta vagas sucessivamente maiores em direcção aos espaços comerciais, criando novos espaços de sociabilidade, envolvendo trocas de informação, contemplação e até espaços de afectos. A hipervalorização do corpo, não só implica a sua defesa como se traduz em mudanças de padrões de consumo que merecem
acolhimento
na
íntegra
nestes
enormes
espaços
de
consumo. Por outro lado, a comunicação virtual substituiu também o espaço público tradicional com consequências drásticas e radicais na experiência corporal dispensando a deslocação e o contacto. Porém, o ciberespaço é também espaço de afectos e de reconfigurações de relações sociais, culturais e ideológicas, faltando ainda conhecer a sua real repercussão sobre a cidade. Espera-se que os EPU, apesar de todas as interferências produzidas por novos padrões de comportamento, continuem a permitir aos utilizadores urbanos beneficiarem de tréguas dum quotidiano natureza
preenchido, e
continuem
de a
se
aproximarem
promover
dum
intensos
pedaço
de
contactos
interpessoais onde o estatuto, o género, a naturalidade e a idade não interessam, glorificando a ideia maior do espírito democrático e, em particular, da Cidade.
3.4. Transformações e mutações sociais e urbanas 3.4.1.
O paradoxo
urbano-metropolitano
Se falamos de Espaços Públicos Urbanos, temos de falar de cidade. Se procuramos conhecer qual o seu estatuto e em que medida é que eles se adequam à cidade emergente então temos de conhecer elementos em torno do qual se fazem as suas mudanças.
[104]
Não
se
trata
tratamento
de
um
ensaio
cirúrgico
sobre
sobre
a
espaços
cidade
mais
ou
sequer
delicados,
um
embora
centrado no caso de Lisboa, recorrendo amiúde aos contributos feitos
por
Salgueiro
(2001),
Ferreira
e
Castro
(2000)
e
Pinheiro, Baptista e Vaz (2001).
das
Olhando para a Áreas Metropolitanas
parece que, apesar
mudanças,
idos
alastramento manchas
nada
em
mudou
dedos
urbanísticas
conteúdo
social;
a
de
desde pata
de
segregadas
os ave;
pela
insuficiência
a
anos
o
persistência
localização
das
70: ou
de
pelo
super-estruturas
que
moldam o quadro de vida (ensino, saúde, acção social, cultura, ...); a crónica deficiência das infra-estruturas (ambientais, transportes e acessibilidades, saneamento, energéticas, ...); a organização casuística e caótica das vocações do espaço urbano. Não
obstante
pacotes
os
legislativos
documentos Regionais
de de
esforços e
na
planeamento Ordenamento
manifestados elaboração
de do
escala
na
produção
generalizada
diferenciada
Território,
Planos
de de
(Planos
Directores
Municipais, Planos Estratégicos Concelhios e de Cidade, Planos de
Acessibilidade,
Mobilidade
e
Estacionamento,
...),
continuam a ser demasiado visíveis os problemas penalizadores do quadro de vida dos cidadãos e da capacidade competitiva das áreas
urbano-metropolitanas.
Parece,
desajustamentos espacio-funcionais
aliás,
que
os
ganharam novo fôlego com a
conclusão de grandes infra-estruturas de transporte, como a ponte Vasco da Gama e os Itinerários Complementares com perfil de auto-estrada que rasgam a AML. Em paralelo com este urbanismo de expansão, próprio de contextos
não
estabilizados
de
desenvolvimento
económico
e
crescimento demográfico, corre um outro, desde finais dos anos 80 e ao longo dos 90, que busca a transformação de áreas incrustadas na Cidade, com escalas que podem ir do lote a
[105]
extensos espaços urbanos. Longe de serem meras operações de cosmética,
este
urbanismo
ameaça
mudar
a
fisionomia
das
cidades desde o seu âmago – bairros históricos – até às áreas ocupadas por espaços industriais da 1º revolução industrial. Este urbanismo, que tanto pode ser de cirurgia (reabilitação arquitectónica,
incorporação
estacionamento regeneração
subterrâneo) urbanística,
de como
novas de
valências
implantes
introdução
de
como
(renovação
novas
o e
funções
urbanas),tem consequências ainda mal avaliadas. Da
ocorrência
diferentes,
simultânea
traduzindo
lógicas
de que
modalidades podem
ser
urbanísticas associadas
a
perfis de desenvolvimento de países do Centro (nobilitação, rurbanização)
e
periurbano),
fica
da a
Periferia ideia
de
(alastramento que
também
suburbano
nestes
e
domínios
Portugal se encontra numa zona de fronteira. Aliás, esse país urbano dual vai voltar a ser visível quando abordarmos mais em detalhe o urbanismo que se faz em espaço consolidado, pois mais uma vez se apresentam em escalas diferenciadas e com preocupações muito distintas.
3.4.2.
Territórios da Alegria
A um urbanismo de alastramento tem vindo a opor-se um urbanismo
de
preenchimento
que,
vulgarmente,
promove
o
ressuscitar de tecidos urbanos votados ao abandono ou a usos marginais. Ganham protagonismo, neste contexto, sobretudo as áreas ribeirinhas, espaços vazios e os que foram sujeitos a processos de desindustrialização. As primeiras porque estavam vetadas
a
um
uso
portuário
relacionado
com
indústrias
de
primeira geração e muito dependentes do transporte marítimo e fluvial e agora são submetidas a uma pressão social no sentido de se tornarem permeáveis segundos,
por
motivos
a um uso público e qualificado. Os muito
diversos
(dificuldades
[106]
morfológicas, de acessibilidades, ...) foram “esquecidos” para agora serem recuperados e integrados na vertigem urbanística. Finalmente, os espaços monofuncionais associados à indústria observam também uma terciarização generalizada, que implica sempre memória
polifuncionalidade do
local
a
e
muitas
partir
da
vezes
a
manutenção
preservação
de
da
elementos
arquitectónicos do passado (a manutenção da chaminé é, talvez, a referência mais óbvia para ilustrar estes esforços). Tendo
presente
estas
questões,
a
preocupação
deve
centrar-se nas modalidades possíveis capazes de proceder à requalificação
destes
territórios
e
de
garantir
o
seu
revertimento para a Cidade em condições ajustadas à melhoria do
quadro
de
vida,
a
par
de
uma
natural
procura
de
rentabilização e retorno do investimento que neles são feitos. A
condução
do
processo
descrito
tem
sido
da
responsabilidade do Estado que, no entanto, procura conjugar essas “obrigações” com a realização de eventos de uma dimensão compatível.
As
intervenções
urbanísticas
estão,
assim,
dependentes das Exposições Mundiais, dos Campeonatos Europeus de Futebol, das Capitais Europeias da Cultura, Taça América, .... Daí a dimensão “Festa e Alegria” que está inevitavelmente ligada a este urbanismo. Fotografia 4 - A Expo’98
[107]
Fotografia 5 - Os Estádios do Euro 2004
Fotografia 6 - Porto - Capital Europeia da Cultura. Casa da Música.
Fotografia 7 - Chelas
A festa, isto é, a realização de eventos de dimensão nacional e supranacional, como motor da transformação urbana e
[108]
garante da sua efectiva concretização pela pressão dos prazos e do controle internacional, é algo que se tem generalizado no mundo ocidental. Por isso, tornou-se acérrima a luta pela atracção destes acontecimentos envolvendo muitas vezes não só as Cidades e os seus órgãos autárquicos como outras instâncias de poder (presidentes da república, governos e parlamentos). O contributo da iniciativa pública para o arranque da Cidade da Festa é aqui uma alavanca essencial, podendo contar com
a
parceria
de
entidades
privadas
ou
para-estatais.
A
cidade ainda é, portanto, fruto da capacidade de realização do poder político continuando, por isso, a envolver uma forte carga
ideológica.
poder,
para
o
Servirá
de
matriz
desenvolvimento
para
a
económico
propaganda e
para
do o
reconhecimento social da ideologia que lhe está subjacente.
3.4.3.
Cidades da Angústia
Pós-modernidade contradições,
urbana
alimentado
é
um
pela
terreno
crescente
minado
fragilização
por do
Estado-Providência, a economia ultra-liberal, a globalização e os localismos, a terciarização e a concretização da livre circulação de pessoas, bens e capitais no seio da UE. Todavia, para a Cidade continuam a convergir todos os olhares e sonhos, o que se tem traduzido numa combinação com repercussões autofágicas
já
que
espacial)
ameaçam
objectivos
da
as
exclusões
minar,
pela
(social, dimensão
competitividade
étnica-religiosa, que
urbana,
atingiram,
os
assentes
no
desenvolvimento, coesão social e territorial. Os problemas são múltiplos e a sua terapia envolve o enfrentamento dos sintomas e das causas. Estas normalmente mais complexas que as primeiras. A fórmula encontrada foi a concepção de programas dirigidos para a solução dos problemas
[109]
específicos.
A
síntese
seguinte
é
apenas
uma
das
que
é
possível apresentar: ►
Programa Polis
►
PER - Programa Especial de Realojamento
►
PROQUAL - Programa Integrado de Qualificação das Áreas Suburbanas da Área Metropolitana de Lisboa
►
Urban II
►
PRU - Programa de Reabilitação Urbana
►
Recria, Recriph, Rehabita
►
UrbCom – Urbanismo Comercial
►
PRAT
-
Programa
de
Requalificação
de
Áreas
Turísticas ►
PRAUD - Programa de Requalificação de Áreas Urbanas Degradadas
►
AUGI – Áreas Urbanas de Génese Ilegal
Mais uma vez é ao Estado que compete corrigir estes desvios do desenvolvimento urbano. A sua actuação
e função de
regulação
acaba
intervenção
dirigidos
para
também
de
por o
condicionar
ataque
causas,
aos
visando
processos
sintomas uma
mas,
solução
de
nalguns
mais
casos,
profunda
e
sustentável dos desajustamentos encontrados.
Alguns destes
programas
e
reanimação,
caíram
num
outros
esquecimento
continuam
oportuno
activos
mas
sem
esperam
a
recursos
financeiros adequados. Estes programas têm, na generalidade dos casos, um campo de acção restrito quer espacial quer sectorialmente, mas o
[110]
carácter
inovador
que
alguns
demonstram
problemas urbanos é uma das suas
no
enfrentar
dos
vantagens mais evidentes
enquanto que o seu carácter muito específico coloca riscos de alheamento face ao conjunto das dinâmicas urbanas. Aparentando enfrentamento
deter
das
apenas
uma
marginalizações
importância urbanas,
limitada
no
Cidade
da
a
Angústia reveste-se de uma importância extrema na procura de equilíbrios delicados e no evitar de rupturas socioeconómicas. Mas esta acção sobre o fio da navalha não pode ser mais que um paliativo
ou
um
estádio
intermédio
no
percurso
urbano
em
direcção a uma cidade da inclusão, entendida aqui não apenas no sentido social e económico mas, sobretudo, individual.
3.4.4.
Cidade dos Extremos
A cidade faz-se hoje por impulsos, grandes e pequenos: os
primeiros
quando
decorrem
da
localização
de
eventos
importantes e que servem de alavanca para grandes operações de transformação urbana muitas vezes adiadas; os segundos quando se trata da aplicação de Programas específicos, que visam a resolução de problemas concretos dos espaços urbanos e que têm um papel de intervenção em muitos casos cirúrgico pelo seu efeito localizado. Chegados
a
uma
encruzilhada
em
que
apenas
os
dois
caminhos descritos estão visíveis, não se acredita que seja possível percorrê-los em simultâneo a não ser que, algures, eles
se
encontrem,
fundindo-se
numa
forma
original,
socialmente mais justa, de produzir Cidade. É esta convicção que nos permite suportar as feridas, sangrentas e dolorosas, provocadas pela Cidade dos Extremos.
[111]
4.
Os Espaços Públicos Urbanos na multiplicidade dos olhares
4.1. Ciências Sociais e da Comunicação O
espaço
público
está
no
coração
do
funcionamento
democrático. Habermas (1978) tomou a palavra de Emanuel Kant que foi, provavelmente, o seu autor, e popularizou o seu uso na análise política a partir dos anos 70. Define-o como a esfera intermédia que se constituiu historicamente, no período das Luzes, entre a sociedade civil e o Estado. É o lugar, acessível a todos os cidadãos, onde um público se reúne para formular
uma
opinião
pública.
O
intercâmbio
discursivo
de
posições racionais sobre problemas de interesse geral permite identificar uma opinião pública. Esta «publicidade» é um meio de pressão à disposição dos cidadãos para conter o poder do Estado. Mas Habermas considera que o aparecimento do EstadoProvidência
perverteu
esse
mecanismo
de
concertação
democrática. Para a filosofia da comunicação e do poder trata-se de um espaço simbólico onde se opõem e se dirimem discursos, emanados dos agentes políticos, sociais, religiosos, culturais e
intelectuais
antes
de
formar,
mais, tempo,
reconhecimento
que um
constituem espaço
um
uma
simbólico,
vocabulário
mútuo
sociedade.
das
que
e
É,
portanto,
requer,
valores
para
comuns,
legitimidades;
uma
se um
visão
suficientemente próxima das coisas para discutir, contrapor, deliberar. Não se decreta a existência de um espaço público da mesma maneira que se organizam eleições. Constata-se a sua existência. É o espaço da comunicação que durante muito tempo coexistiu com o outro – o espaço público urbano. O uso e a criação do espaço público não é da ordem da vontade. democracia
Simboliza, a
simplesmente,
funcionar
de
a
verdade,
realidade ou
a
de
uma
expressão
[112]
contraditória das informações, das opiniões, dos interesses e das ideologias. Constitui o laço político que liga milhões de cidadãos
anónimos,
dando-lhes
a
sensação
de
participar
efectivamente na política. É preciso recordar que o modelo democrático pluralista que, desde os anos 1980, é objecto de um
consenso
na
Europa
como
nunca
antes
o
havia
sido
na
História, foi considerado entre 1930 e hoje, e sobretudo entre 1947 e 1977, devido ao peso do marxismo, a Guerra Fria e às oposições
ideológicas,
Opunha-se
a
como
democracia
um
conceito
«formal»,
«direita»33.
de
burguesa,
à
democracia
«real», mais ou menos socialista. E nesta batalha ideológica amarga,
ninguém
dominantes
do
falava
de
vocabulário
espaço
político
público. eram:
As
poder,
palavras conflitos.
contradição, interesses de classe, alienação, ideologia. O espaço público pressupõe, pelo contrário, a existência de indivíduos mais ou menos autónomos, capazes de formar a sua própria
opinião,
acreditando
nas
não
«alienados
ideias
e
na
aos
discursos
argumentação
e
dominantes»,
não
apenas
no
confronto físico. Esta ideia de formação de opiniões através das informações e dos valores e, em seguida, da sua discussão, pressupõe
também
autónomos
em
que
relação
os aos
indivíduos partidos
sejam
políticos
relativamente para
poderem
formar a sua própria opinião. Numa palavra, com o conceito de espaço público é a legitimidade das palavras que se impõe sobre
a
dos
sujeitos
da
História.
É
a
ideia
de
um
reconhecimento do outro e não a sua redução ao estatuto de «sujeito alienado». Mas o espaço público tornou-se uma palavra da moda por uma outra razão, menos política que sociológica, reforçando-se ambas e tendo ligações uma com a outra. O espaço público também é o resultado do movimento de emancipação que consistiu em valorizar a liberdade individual e tudo o que é público,
33
Veja-se a este propósito Howbsbawm (1997).
[113]
sobre o «privado», identificado com o domínio dos interditos de antigamente e com as tradições, ancorada na ideia de pósmoderno. Defender o privado era, afinal, defender as regras, as convenções, as tradições; era ser conservador. E deu-se, assim,
um
encontro
entre
dois
movimentos
relativamente
diferentes: um a favor da liberdade individual, logo de uma certa capacidade para mostrar publicamente aquilo que se é, e o
movimento
publicidade
democrático, contra
a
de
que
favorecia
segredo
e
também de
a
ideia
interdito.
de Foi
valorizado, de ambos os lados, o que era «público». Levanta-se aqui, a propósito, a necessidade da distinção de lugar comum, espaço público e espaço político. Um espaço comum é simultaneamente físico, definido por um território, e simbólico, definido por redes de solidariedade. O espaço público é, à partida, um espaço físico; o da rua, da praça, do comércio e das trocas embora a sua dimensão simbólica já fosse visível nos espaços envolventes às igrejas e aos edifícios que representavam o poder militar e político. Só a partir dos séculos XVI e XVII este espaço físico se tornou
simbólico,
com
a
separação
entre
o
sagrado
e
o
temporal, e o progressivo reconhecimento do estatuto da pessoa e do indivíduo face à monarquia e ao clero. Este movimento abrange facilmente dois séculos. É, com efeito, a redefinição do privado que permite, em contraponto, ao espaço público, desenhar-se e afirmar-se. A palavra público aparece no século XIV, do latim publicus; o que diz respeito a «todos». Público remete
para
«tornar
público»,
para
publicar,
do
latim
publicare. Isto pressupõe um alargamento do espaço comum e a atribuição de um valor normativo àquilo que é acessível a todos. A passagem do que é comum ao que é público, tornou-se, mais
tarde,
uma
característica
da
democracia,
ligada
ao
princípio da liberdade.
[114]
O espaço público é, evidentemente, a condição para o nascimento do espaço político, que é o mais «pequeno» dos três34 espaços no sentido daquilo que circula. Não se trata, neste espaço, nem de discutir nem de deliberar mas, sim, de decidir
e
de
agir.
Sempre
houve
um
espaço
político.
Simplesmente, a especificidade da política democrática moderna reside
no
alargamento
do
espaço
político,
à
medida
do
movimento de democratização. A palavra emerge entre o século XIII e o século XIV, vinda do latim politicus, e tomando da palavra grega politik a ideia essencial da arte de gerir os assuntos
da
cidade.
Existe
então,
não
apenas
um
desafio
suplementar em relação ao espaço público, que é o poder mas, também, um princípio de fechamento mais estrito, ligado aos limites territoriais sobre os quais se exercem a soberania e a autoridade. Para
simplificar:
o
espaço
comum
diz
respeito
à
circulação e à sociabilidade; o espaço público, a discussão; o espaço político, à decisão. Como se vê a relação da comunicação, com a política e a cidade
é,
neste
contexto,
extremamente
forte
ao
ponto
de
tornar credível este olhar sobre o Espaço Público. Hannah Arendt
(2001)
prolongou
estas
reflexões
de
Habermas
introduzindo a ideia de esfera pública colada à de polis: “O termo público denota dois fenómenos intimamente relacionados mas não completamente idênticos. Significa, em primeiro lugar, que tudo o que vem a público pode ser visto e ouvido por todos e tem maior divulgação possível. (...) Em segundo lugar, o termo «público» significa o próprio mundo, na medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele” (pp. 64-66). Adoptando esta visão de Espaço Público como espaço da comunicação, levanta-se a questão da relação dos indivíduos 34
Espaço comum, Espaço público e Espaço político.
[115]
com os outros e mais especificamente com quem quer ou não estabelecer a comunicação. Isto força ao desenvolvimento de um conjunto
de
estratégias
comunicacionais
inevitáveis
também
hoje na fruição dos espaços públicos. Erving Goffman (1993) discute
aprofundadamente
enquanto
obrigação
sensíveis
e
a
social,
penetrantes
encenação em
da
função
sobre
a
das
vida
quotidiana
suas
observações
estruturação
das
relações
comunicação
que
poderia
humanas. A
ênfase
finalmente
depositada
na
desterritorializar-se
a
partir
das
novas
modalidades de generalização e divulgação da informação, com uma
ou
duas
vias,
encontrou
um
poderoso
aliado
quando
Le
Corbusier, em 1929, declarou a morte da rua como metáfora para uma nova cidade na qual não poderia coexistir a promiscuidade de usos e vocações que desde sempre parecia marcar todos os espaços
urbanos.
cidade
social
e
O
empobrecimento
politicamente
das
sociabilidades,
normalizada
e
uma
controlada,
a
menor densidade dos contactos pessoais e a multiplicação de novos
dispositivos,
colectivos
privados,
que
propiciam
a
tribalização da fruição da cidade foi a consequência, que hoje sofre contestação mas que ainda continua a aprofundar-se. Na mesma linha, surge com especial relevância para o caso
em
análise
a
disciplina
do
Direito.
Sendo
o
EPU
do
domínio público como o próprio nome já parece adiantar, ele não é possível de apropriação/delimitação definitiva pelo que a regulação do seu uso é enquadrada pelas leis gerais. A aplicação destas regras não tem sido de molde a garantir o seu respeito e dignidade, multiplicando-se as situações em que a presença
de
frequentadores
dos
EPU
gera
o
afastamento
de
outros potenciais utilizadores, remetendo-os progressivamente para os espaços colectivos privados, higienizados e sobretudo controlados. Há uma questão de direito que se coloca quando foi
posta
em
causa
a
capacidade
do
Estado
em
garantir
o
exercício da norma, mesmo considerando que se está perante um
[116]
momento
de
desocupação
dos
EPU
por
parte
dos
antigos
frequentadores. Como afirmou Laborinho Lúcio: “A questão está em saber se o que faltou foi a cultura da norma ou se, pelo contrário, a cultura da norma acabou por falhar e deixar livre o espaço para uma cultura da não-norma, do desvio” (Moreno: 2001; 25). A disciplina do Direito está aqui envolvida de uma forma inesperada. Ou melhor, de formas inesperadas, já que os planos de análise podem incidir
quer sobre a propriedade do
espaço colectivo e, portanto, sobre as regras a aplicar aos utilizadores. Também são estas que questionam a pertinência da multiplicação dos dispositivos de vigilância electrónica, já que o quadro legal em vigor considera que tal significa uma violação
das
estabelecidas
liberdades em
individuais
Portugal,
inibindo
constitucionalmente o
usufruto
livre
e
desinibido do EPU. As questões que se levantam são inúmeras, mas não deixa de ser verdade que a sua ocorrência nos espaços colectivos privados satisfaz
os seus utilizadores e até cativa uma maior
procura. Mas o âmago do problema situa-se no campo da pertença e da cidadania e isso só é possível de se sentir e exercer num espaço neutro e imparcial, não controlado de modo algum. O
ambiente
de
crise
simultâneo
pela
filosofia
Sociologia
completando
urbana
foi
política
esta
e
análise
pressentido
quase
da
comunicação
de
Hanna
em
e
a
Arendt
e
Habermas, consolidando as implicações das transformações do espaço
público
na
óptica
habermasiana
sobre
as
sociedade
urbanas e até, nalguns casos, sobre os seus prolongamentos espaciais na ausência de um espaço de reflexão oriundo da Ciências Geográficas. São clássicas as análises de Isaac Joseph em o “Passant considerable – Ensaio sobre a Dispersão do Espaço Público” (1984), de Chyntia Gorra-Gobin, Richard Sennet, Erving Gofman, mas em Portugal foi um terreno fértil primeiro para a Escola
[117]
de Sociologia de Coimbra, onde se destaca Carlos Fortuna com obras
como
“Cidades,
cultura
e
globalização”
ou
ainda
“Identidades, Percursos e Paisagens Culturais” e depois com Vítor Matias Ferreira no âmbito do Projecto Observa com ganhos de visibilidade a partir da publicação da revista Cidades do Centro de Estudos Territoriais (CET). No caso de Coimbra a preocupação ainda se situa no espaço abstracto da comunicação enquanto que para os investigadores do ISCTE o objecto da pesquisa
aproxima-se
claramente
da
Cidade
e
dos
Espaços
Públicos, fazendo-se a propósito uma oportuna distinção entre espaço isto
público é,
(asserção
sublinhando
a
habermasiana) separação
e
espaços
entre
o
públicos,
exercício
da
comunicação e o tradicional espaço da comunicação. Aliás, a percepção de sentidos diversos para o singular e plural da expressão Espaço Público já tinha sido também referida por Claval (in Gorra-Gobin: 2001). De facto o grande problema que a crise comunicacional implicou (já que a explosão da comunicação não corresponde a melhor comunicação) situa-se nas dificuldades levantadas às práticas de sociabilidade e à experiência do espaço. Todos estes trabalhos, que têm que acentuado a ruptura passível de ser reconhecida na quebra de valores tradicionais do
meio
urbano,
têm
manifestado
claras
dificuldades
na
percepção do momento seguinte e na construção de cenários prospectivos
onde
a
comunicação
em
espaço
público
se
vai
tornando residual, interiorizando-se e desterritorializandose. Por outro lado, o estudo das representações, que aparenta ser
um
outro
campo,
é
contributivo
para
a
constatação
da
sensação de perda de qualidade de vida urbana alicerçada no crescente afastamento entre o que se entende como padrões de vida urbanos adequados e os que são vivenciados de facto. É flagrante a referência aos espaços públicos em geral e aos espaços verdes urbanos em particular, como sinal de qualidade, mas também a sua baixa frequência no quotidiano.
[118]
Talvez o verdadeiro percursor dos estudos sociológicos sobre
Espaços
Públicos,
e
numa
lógica
muito
próxima
da
adoptada nesta tese tenha sido WHYTE que, em 1980, elaborou a obra “The Social Life of Small Urban Spaces” e que foi também produzido contido
em
documentário.
nestas
linhas
O
espírito
iniciais:
deste
“This
book
trabalho is
about
está city
spaces, why some work for people, and some do not, and what the practical lessons may be. It is a by-product of first-hand observation” (p.10). O cruzamento entre os elementos físicos e humanos foram centrais
nesta
abordagem,
que
aponta
resultados
concretos
sobre os efeitos das características do mobiliário urbano, designadamente cadeiras e mesas, das sombras, de elementos de composição diversas, como muros e escadas, a presença dos “indesejáveis” etc., sobre a frequência e o tipo de uso que é feito dos pequenos espaços públicos urbanos.
4.2. Urbanismo, arquitectura e paisagismo Construir
e
transformar
espaços
foi
e
será
sempre
a
preocupação central da arquitectura, tratem-se eles de uma habitação ou de uma cidade. Todavia, não o fazem, de modo independente político
e
concreto
ao
cidadania,
mas
em
cultural espaço mas
concordância dominante. público
também
de
com
o
Quando
estão
em
meio
nos
referimos
em
valores
de
financeira
do
causa
rentabilidade
económico,
território ou ainda de afirmação política. Daí que perante estas “balizas” o arquitecto pode ser afectado por uma dupla personalidade que decorre, por um lado, da
auto-representação
dos
EPU,
enquanto
um
conjunto
de
princípios, imagens e valores e, por outro, da imposição dos programas
de
trabalho
feitas
por
entidades
públicas
e
privadas.
[119]
As reflexões sobre a arquitectura dos Espaços Públicos têm vindo a multiplicar-se, à semelhança, aliás, do que sucede noutros campos do conhecimento. Umas vezes mais próximas da globalidade dos actores, outras mais narcísicas e orientadas para
a
produção
de
espaços
singulares
e
objectos
de
contemplação. No campo do urbanismo, interessa não esquecer o papel central na crítica à cidade moderna e ao empobrecimento da vida na cidade por efeito do esvaziamento da vida pública, interiorização das práticas sociais, aumento do sentimento de insegurança que foi protagonizado por Jane Jacobs (1961) na célebrizada obra Live and Death of Great Americans Cities. As referências generalizadas ao New Urbanism nos EUA e emergentes na Europa decorrem da reacção concreta a essas críticas. No fundo trata-se de um velho Novo Urbanismo, de retorno aos valores
tradicionais
defende
esta
manutenção
e
postura,
dos
à se
valores
cidade
plurifuncional.
Só
assim,
garantirá
a
animação
urbana
essenciais
à
cidade
assentes
e
a em
intensas práticas de sociabilidade, de encontro e de aceitação da diferença. Mais
que
retratar
dinamismos,
interessa
conhecer
as
formas de intervenção na actualidade, já que se tornou clara a mudança
verificada
na
concepção
dos
EPU.
Com
efeito,
das
soluções tipificadas e estereotipadas da cidade moderna passase progressivamente para espaços concebidos de acordo com as circunstâncias
do
tempo
e
modo
associadas
ao
lugar
da
intervenção. Esta mudança no tratamento dos espaços privados tornou-se
mais
aliciante
para
os
urbanista,
arquitectos,
paisagistas, permitindo a estes profissionais pensar a cidade na perspectiva de “fora para dentro”, isto é, do exterior (EPU)
para
alguns Teixeira
dos
o
interior
resultados
refere
fragmentação
que
(fachada, das
entrevistas
“depois
generalizada
edifício).
do
das espaço
Utilizando
efectuadas,
periferias, torna-se
já
Manuel
subúrbios, fundamental
voltarmos a dar muita atenção aos espaços públicos e torná-los
[120]
pontos
de
ancoragem
da
vida
em
comum
que
é
a
cidade”
(entrevista, 2002). Para Manuel Salgado este novo momento corresponde a uma reconquista
que
intervenções
de
só
teve
escala
visibilidade
porque
significativa,
se
tratou
designadamente
de
com
a
requalificação que tem vindo a afectar a zona ribeirinha de Lisboa (Docas, Expo). Intervenções como a Praça das Flores, Jardim da Parada são também relevantes, mas não apresentam a escala da reconquista e, por isso, não lhe parece exercer impactes tão claros sobre as transformações dos EPU. Não deixa também, por outro lado, de ser interessante verificar que a ênfase, quando se trata de responder às razões da propalada crise do Espaço Público Urbano, vai na íntegra para
os
problemas
físicos
relacionados
com
a
difícil
coexistência entre automóvel e peão. Como diz Manuel Salgado “As
dinâmicas
das
intervenções,
cada
vez
mais
pesadas
de
recuperação dos EPU e, principalmente, de procurar resolução para
as
dificuldades,
resultam,
no
fundo,
do
conflito
automóvel/peão, que está na base do que foi a destruição do espaço público desde o início deste século, século passado e que está na base também do que é a reconquista do espaço público” (entrevista, 2002). A
todo
junta-se
a
este
movimento
arquitectura
pressentido
paisagista,
em
que
torno
tem
dos
vindo
EPU
a
ser
responsabilizada de modo crescente pela concepção dos EPU, atendendo componente
à
valorização mineral.
sustentabilidade
da
Os
obrigam
componente
paradigmas à
vegetal
ecológicos
transplantação
da
face
à
e
de
natureza
na
Cidade, privilegiando os EPU como locais centrais para esse exercício. Para esta mudança contribui também, mais uma vez, as escalas de intervenção, já que os parques verdes urbanos, frentes de água, frentes marítimas, estruturas verdes urbanas
[121]
e metropolitanas, corredores verdes constituem amplitudes de intervenção mais adequadas à acção do paisagismo. A maior dificuldade que esta disciplina parece revelar é a aproximação aos desejos dos utilizadores dos espaços embora também
estes
profissionais
cumpram
programas,
por
vezes
apertados e cheios de constrangimentos, impostos por entidades públicas e privadas. Os trabalhos produzidos vão, de alguma forma, no mesmo sentido que o da arquitectura strictu sensu valorizando crescentemente a componente estética e de desenho urbano,
marginalizando
os
elementos
que
podem
promover
a
atracção e a estadia de um maior número de utilizadores de condição
social
baixa
ou
média.
O
esvaziamento
de
muitos
destes equipamentos constitui uma ilustração dolorosa destes insucessos. Figura 5 - O humor nos olhares sobre os EPU
Fonte: Recipiente de E-mail
[122]
As
representações
que
cada
um
dos
actores
faz
dos
Espaços Públicos são marcadas por várias oposições entre as quais
surgem
com
maior
destaque
as
concepções
estéticas/artísticas face às funcionais e de uso, implicando consequências
no
conforto,
funcionalidade
do
mobiliário
urbano, etc. Bassand (2001) vê nestas oposições uma demarcação sustentada entre o utilizador e o profissional esquematizada da seguinte forma: Figura 6 – Oposição nas representações dos EPU
Habitantes/ utilizadores
Arquitectos/ Designers
Actores
Termos da representação
Estética e artística
Funcional
Estética contemporânea
Património
Mineral
Vegetal Dedicada aos cidadãos/ utilizsdores/ Residentes
Orientada para os turistas
4.3. História O
campo
da
História,
mesmo
quando
se
trata
da
problemática do Espaço Público Urbano, é difuso e gerador de enormes
dificuldades
clarificadores
do
em
olhar
encontrar da
pontos
disciplina
de
sobre
ancoragem o
tema.
A
sistematização possível remete os contributos desta ciência para
dois
domínios:
História
do
Urbanismo
e
História
das
Sociabilidades (ou se se quiser do Quotidiano). Esta distinção
[123]
não é inibidora, todavia, de situações de maior indefinição como
as
que
mentalidades
sucedem e
das
quando
ideias
se
trata
políticas
ou
da
evolução
ainda
da
das
História
Económica. Atendendo
a
que
o
urbanismo
permite
integrar
ainda
outros olhares, opta-se neste caso pelo centramento na ideia de História como descritora e bengala para a compreensão das práticas dos espaços públicos nas sociedades urbanas, fixando as suas maiores preocupações sobretudo na Cidade pós-revolução industrial. A contaminação a que se aludiu entre a política e EPU fica expressa nas abordagens clássicas às Cidade Grega e Romana
onde
pontificam
a
Àgora
e
o
Forum
como
pontos
aglutinadores da vida política e social já retratadas nos pontos anteriores. Fixando-nos, em definitivo, no que a História nos pode revelar sobre a evolução das práticas de sociabilidade, as referências encontradas andam na órbita da ocupação dos tempos livres,
na
inovação
tecnológica
associada
à
Cidade,
dos
processos de comunicação, da afirmação política e dos usos dos espaços públicos. Por
várias
vezes
iremos
aludir
à
importância
da
disponibilidade de tempo livre para poder usufruir da Cidade e dos seus espaços de uso colectivo. A revolução industrial iniciou também desenvolvimentos sentidos nesta área onde a pouco a pouco, depois de algumas lutas e muitos insucessos, foi surgindo um tempo vazio na vida dos operários em lugar da clássica flexibilidade que marcava o tempo dos artesãos e camponeses, em função da sua lentidão, imprevisibilidade e maleabilidade. A exigência da produtividade foi substituindo este tempo por um outro, ordenado, calculado, medido, sem margem para incertezas.
[124]
Com esta reformulação dos ritmos e da segmentação dos tempos de trabalho ganha corpo uma nova forma de uso da cidade e dos seus espaços, mas também de outros espaços valorizados para
a
prática
do
lazer.
A
par
desta
realidade
surgem
iniciativas visando reprimir o que se entendia como formas abusivas
e
imorais
da
utilização
do
tempo,
impondo-se
um
controle e repressão de actividades anárquicas e impregnadas pela ociosidade: “A regulamentação das praças, dos parques e outros
espaços
públicos,
a
proibição
dos
combates
entre
animais, a vigilância do boxe, a da venda de bebidas andam então a par da multiplicação dos campos de jogos destinados a moralizar os bandos juvenis. Nesses meios manifestam-se, em simultâneo, uma viva antipatia pela ociosidade e um forte desejo de modelar o lazer do outro, considerado inferior, naturalmente sujeito à imoralidade, à desordem dos instintos, à pulsão imediata e ao risco da miséria” (Corbin: 2001; 9). Aliás,
a
obsessão
normalizadora
e
disciplinadora
do
período moderno iniciado com a expansão da cidade industrial teve um tratamento adequado por Foucault35, quando se referia às inovadoras formas de vigilância dos condenados, recorrendo ao panoptismo36, e à dissimulação dos doentes psiquiátricos em instituições
especializadas,
subtraindo-os
ao
convívio
da
“normalidade” exterior.
35
Ver, por exemplo, as suas obras Vigiar e Punir (ed. Original, 1975) e Microfísica do Poder (ed. Original, 1979) 36 O panóptico gera o efeito supremo de criar um estado consciente e permanente de visibilidade do poder, exercido por uma vigilância permanente que é, como afirma, Foucault, ao mesmo tempo excessiva e limitada, pois o essencial é que o indivíduo se saiba vigiado e limitado porque pode não estar a sê-lo. O inventor do panoptismo foi, de facto, Bentham com a revolucionária e metafórica arquitectura prisional: Sendo que o poder deve ser visível e inverificável, o visível deve resultar do prisioneiro ter diante dos olhos a alta silhueta da torre central de onde é observado e inverificável porque nunca poderá saber se está ou não de facto a ser observado. Cria-se, assim, um dispositivo poderoso de normalização dos comportamentos que condiciona a nossa vida também no espaço público. Aliás, as câmaras de vigilância electrónica, ligadas ou desligadas, exercem exactamente o mesmo efeito.
[125]
É inevitável a transposição destas teses quer para a cidade moderna quer para a cidade que continua a ser feita, onde se multiplicam e sofisticam os dispositivos de controle e vigilância em nome da segurança pública e do Estado. Hannah Arendt é clara a este respeito quando afirma: “Em vez de acção, a sociedade espera de cada um dos seus membros um certo tipo de comportamento, impondo inúmeras e variadas regras, todas tendentes a «normalizar» os seus membros, a fazê-los «comportarem-se», a abolir a acção espontânea ou a reacção inusitada. Regressando também
ao
grande
Espaço
sedução
Público,
pela
a
História
descrição
do
demonstrou terreno
da
comunicação, dado que esta era matriz fundamental das relações de sociabilidade que se iam construindo. Eram aliás vitais para a partilha de informações de natureza social, política, económica, cultural, etc., só possível de compreender pelas tiragens limitadas dos jornais e pela inexistência de outros meio
de
veicular
verdadeira
a
opinião
informação.
pública
para
A
uma
transferência opinião
desta
crescentemente
publicada haveria de ser criticada por Habermas, que também procurou
tecer
as
consequências
e
efeitos
dessas
transformações na mudança das modalidades de manipulação das massas. Neste contexto, a praça e a rua são, de longe, os EPU de referência Bonifácio
da
cidade
(2002)
obviamente.
“A
Porque
moderna Praça
há
como é
vários
o
não
deixou
espaço
tipos
por
de
de
referir
excelência,
praças.
Se
nós
remontarmos à cidade grega ou romana, que no fundo é aquela que
influencia
a
nossa
cidade,
a
Praça
é
a
Pólis
grega,
fundamentalmente, que é a praça política, onde as pessoas se reúnem
para
fazer
política,
a
assembleia
popular,
nalguns
casos, noutros não tem é a própria área onde se faz tudo e que pode servir, simultaneamente, até como praça comercial. Em Roma é um pouco a mesma coisa, o Fórum é também de algum modo
[126]
a praça que junta tudo é a praça principal da cidade. Tem a actividade política, religiosa, onde há o convívio social, até cultural”. Todavia,
esta
simples
constatação
implicava
também
crescentes inovações técnicas no ambiente urbano propiciadoras de uma melhor fruição da cidade. Entre elas destaca-se, com pertinência, a conquista da noite pela iluminação urbana. Em primeiro
lugar,
esta
conquista
associa-se
à
lógica
já
sistematizada por Foucault no sentido da procura da ordem e transparência agora aplicada à noite que sempre escapou a esta fúria normalizadora. Depois depara-se uma transmutação da vida apelando e seduzindo apara viver a noite e o privado. Com o advento
da
electricidade
os
espectáculos
interiores
vão
ganhando espaço e sedução subtraindo cada vez mais adeptos ao espaço público (teatro, café-concerto, cinema). Com
a
alfabetização
progressiva
os
tempos
livres
vão
também caminhando para a individualização em torno de novos objectos agora tornados mais populares como os livros. O
esvaziamento
destas
práticas
de
sociabilidade
encontram justificação nos avanços da técnica que sobretudo modificaram
as
práticas
de
sociabilização
e
tornaram
desnecessário os contactos e a proximidade entre indivíduos para comunicar e para informar. O advento de inovadoras formas de divulgação da informação esvaziou de sentido muitas das práticas anteriores. 4.4. Síntese Em
jeito
referências especialistas profissional
de
conclusão,
anteriores, do a
espaço
uma
foram público
prática
e
para
aferir
efectuadas e
que
académica,
as
breves
entrevistas
acumulam
a
a
prática
procurando-se
assim
garantir que nos entrevistados se possa reconhecer uma ponte
[127]
entre a reflexão e a prática. Serviram também para confirmar os olhares diferentes sobre os EPU. As áreas privilegiadas foram: ►
Arquitectura,
com
entrevistas
a
Manuel
Teixeira,
professor responsável pelo curso de arquitectura do ISCTE e a Manuel Salgado, arquitecto responsável pelo
Atelier
RISCO
e
docente
do
curso
de
arquitectura do IST; ►
História,
com
professor
entrevista
Catedrático
na
a
Horácio
Universidade
Bonifácio, Lusíada
em
História Urbana e História de Arte; ►
Arquitectura
Paisagista,
com
entrevista
a
Paulo
Monteiro, profissional do paisagismo e docente na Universidade de Évora; ►
Geografia,
com
entrevista
a
João
Ferrão,
Investigador no ICS, docente em diversos cursos de Mestrado
e
consultor
em
equipas
de
planeamento
urbano, estratégico e sectorial.
As
entrevistas,
que
se
apresentam
em
anexo,
serão
tratadas no seu conteúdo de acordo com duas preocupações: ►
quantitativa, medindo a ocorrência de determinados conceitos em cada uma das entrevistas e, por essa via, acentuar o olhar de cada disciplina sobre os EPU;
►
qualitativa,
sublinhando
e
comparando
ideias
fundamentais de cada entrevistado e estabelecendo pontes ou rupturas entre si.
[128]
Este trabalho é possível por duas ordens de razão: o guião
utilizado
embora
a
foi
idêntico
para
todos
pudesse
por
vezes
conversa
os
entrevistados,
tomar
rumos
de
oportunidade de acordo com as considerações do entrevistado; as
entrevistas
transcritas. reprodução
foram
Este
fiel
gravadas
processo
das
para
garantiu
opiniões
posteriormente que
recolhidas
e
fosse que
serem
feita
se
a
pudesse
tratar quantitativamente o seu conteúdo. Atendendo à dimensão diferenciada de cada entrevista, não era possível basear esta análise no registo absoluto dos termos que nos pareciam pertinentes para os vários domínios (cidadania,
comunicação,
complementaridades),
pois
elementos que
a
de
ocorrência
de
composição, determinadas
ideias num universo de palavras menor terá certamente mais relevância que noutro com mais palavras. Daí que se tenha optado por criar a relação palavra submetida a análise por cada 1000 palavras. Os
domínios
e
os
conceitos
inicialmente
considerados
tiveram após a avaliação quantitativa um reajuste eliminando os
que
nunca
foram
referidos.
A
matriz
considerada
foi
a
apresentada no quadro seguinte.
[129]
Quadro 4 - Domínios e conceitos fixados para a análise quantitativa das entrevistas Elementos de
Cidadania
Comunicação
Cidadania
Comunicação
Alameda
Acessibilidade
Diferença
Conversa
Arquitectura
Acessibilidades
Diferente
Democracia
Arte
Acessos
Encontro
Diálogo
Bancos
Automóveis
EPU
Opinião
Calçada
Automóvel
Espaço Público
Jornais
Cidade
Cães
Espaços Públicos
Partilha
Desenho
Câmaras
Exclusão
Poder
Design
Cão
Gente
Política
Equipamentos
Centro Comercial
Idosos
Políticos
Espaços Verdes
Controle
Imigrantes
Rádio
Iluminação
Degradação
Indivíduo
Televisão
Jardins
Estacionamento
Indivíduos
Troca
Jardim
Fórum
Integração
Largo
Gestão
Jovens
Miradouro
Graffiti
Mulheres
Mobiliário
Higiene
Passear
Parque
Insegurança
Práticas
Parques
Limpeza
Prostituição
Passeios
Manutenção
Sem-abrigo
Piso
Porcaria
Sociabilidade
Praças
Segurança
Social
Praça
Sujidade
Toxicodependência
Praceta
Transportes
Toxicodependentes
Rossio
Vigilância
Composição
Complementaridades
Rua Ruas Urbanismo
[130]
Numa análise por domínios constata-se uma diferenciação nas
ocorrências
dos
conceitos
por
entrevistado,
ilustrando
desde logo a perspectiva especializada que leva à valorização e
desvalorização
de
determinadas
referências.
Nas
diversas
hipóteses e abordagem seleccionou-se a que põe em confronto todos
os
entrevistados
perante
cada
um
dos
conceitos
permitindo desde logo estabelecer de modo directo valorações diferenciadas. Alguns termos que podem ser associados a cidadania e considerados
na
matriz
original,
foram
deixados
cair
no
tratamento das entrevistas dada a sua ausência no discurso dos entrevistados.
Assim,
mulheres,
prostituição,
imigrantes,
exclusão, inclusão, nomeadamente, foram preteridos por outros (cf. Quadro 5). Restaram
onze
palavras
que
foram
avaliadas
na
sua
ocorrência por permilagem no texto discursivo da entrevista. Arquitectura
e
Geografia
registaram
a
maior
densidade
de
referências se atendermos que Espaços Públicos teve um peso muito
elevado
na
entrevista
ao
paisagista,
mas
sem
correspondência com outros termos do mesmo domínio. Mais
de
26
referências
por
cada
mil
ocorreram
no
discurso de Manuel Salgado e quase 17 por mil na entrevista de João
Ferrão,
relativos
à
revelando cidadania
clara na
sua
preocupação articulação
com com
os os
temas espaços
públicos urbanos. A determinado passo da entrevista refere SALGADO, sublinhando a necessidade e a actualidade do Espaço Público na Cidade: “(...)O que eu penso é que os conceitos de espaço público vão evoluindo, e acho que as pessoas utilizam mais o espaço público agora. Eu não sei quantificar isto, mas tenho a noção que quando eu tinha 20 anos se utilizava menos o espaço público do que se utiliza agora. Hoje, há muitas formas de se utilizar o espaço público. Por exemplo, a rua por trás da minha, onde há duas Associações populares, está pejada de
[131]
gente, novos, velhos, uns sentados no chão, encostados aos carros, a beber cerveja, a conversar, a discutir futebol, isto é uma clara utilização do espaço público. A Madragoa está cheia de gente a qualquer hora do dia, as vizinhas a falarem, isso não é utilização do espaço público?(...)”. Como ilustração da valorização atribuída por João Ferrão e pela Geografia à dimensão cidadania é pertinente extrair o excerto seguinte da sua entrevista: “(...)A sociabilidade é que
marca
a
diferença
entre
o
género
humano
e
os
outros
géneros todos, também tem as suas sociabilidades mas nós temos formas de sociabilidade muito mais complexas. Ora, as cidades em
geral
sempre
foram
e
particularmente favorável à
serão
com
certeza
um
contexto
complexidade e à diversidade das
sociabilidades e ao longo da história isso verificou-se muito bem a visão moderna, digamos, que tinha por grande objectivo democratizar aquilo que durante muito tempo estava acessível a um grupo muito pequeno”. Aliás foi este entrevistado o único a fazer alusão clara ao termo cidadania. Não
deixa
de
ser
importante
assinalar
que
o
Horácio
Bonifácio (historiador) foi não só o que menos valorizou este domínio em termos de densidade (menor repetição destes termos) como
em
diversidade
estender
as
admissível
e
objectivo
era
(apenas
4
conclusões
destes
reconhecer
as
apenas
termos
11).
resultados
suas
discutir
em
para
limitações,
os
EPU
de
Convirá
não
além
do
visto
que
o
acordo
com
a
experiência profissional e académica do entrevistado. Como se verá
adiante,
Horácio
Bonifácio
dará
destaque
sobretudo
a
outras áreas mais próximas dos seus centros de interesse.
[132]
Quadro 5 - Matriz relativa ao domínio Cidadania (‰) Domínio
Conceitos
Manuel Salgado
Manuel
Horácio
Paulo
João
Teixeira Bonifácio Monteiro Ferrão
Cidadania
0,00
0,00
0,00
0,00
0,44
Diferença
4,15
2,19
1,69
0,00
3,80
Encontro
0,00
0,00
0,00
0,00
0,44
Públicos
18,85
7,46
0,00
15,29
8,48
Gente
1,88
3,51
3,66
0,00
2,63
Idosos
0,00
0,00
0,00
0,00
0,44
Integração
0,38
0,00
0,00
0,00
0,15
Jovens
0,00
0,00
0,00
1,27
0,15
Passear
0,38
0,66
1,97
1,27
0,00
Sem-abrigo
0,00
0,00
0,28
0,00
0,00
Social
0,38
0,44
2,53
1,27
0,44
26,02
14,26
10,13
19,1
16,97
Espaços
Cidadania
Total
Fonte: Análise de conteúdo de entrevistas
Este antever
primeiro o
quadro
carácter
permite
igualmente
“globalizante”
ou
e
desde
já
abrangente
das
disciplinas de Arquitectura e Geografia sobre a História e o Paisagismo. Com excepção de dois termos em Geografia e cinco em
Arquitectura
existe
uma
fraca
aderência
disciplinar
ao
domínio da cidadania.
[133]
Quadro 6 - Matriz relativa ao domínio Comunicação (‰) Domínio
Manuel Salgado 0,00 0,38 0,38 0,00 0,00 0,00 0,38 0,00 0,00 1,14
Conceitos Comunicação Conversa Opinião Jornais Partilha Poder Política Rádio Troca
Comunicação
Total
Manuel Horácio Paulo João Teixeira Bonifácio Monteiro Ferrão 0,00 0,00 0,00 1,32 0,00 2,53 0,00 0,00 0,00 0,28 0,00 0,00 0,22 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00 0,88 0,22 0,00 0,00 0,29 0,00 2,81 0,00 0,15 0,00 0,00 0,00 0,15 0,00 0,28 0,00 0,00 0,44 5,9 0,0 2,79
Fonte: Análise de conteúdo de entrevistas
Em
paralelo
generalizada continuam
o
a
com
a
cidadania,
protagonismo
fazê-lo
(embora
que
é
os
menos
aceite
EPU
de
forma
desempenharam
eficazmente)
comunicacional. Na ausência dos dispositivos
no
e
campo
eléctricos e
electrónicos, da generalização da imprensa, rádio e televisão, o contacto interpessoal era incontornável para a satisfação das necessidades informativas, para os exercícios de reflexão política e cultural para estabelecer a discussão e troca de ideias.
O
esvaziamento
dos
EPU
destas
funções
por
transferência para outros meios não significa que não continua associado ao contacto e à partilha. Os
termos
comunicacional
seleccionados através
de
pretendem
ideias
com
acentuar
o
comunicação,
domínio opinião,
política e partilha. De modo geral, este domínio foi o menos referenciado, consolidando
a
ideia
de
progressivo
abandono
desta
função
original desde a Àgora Grega e demonstrando que ele agora se encontra noutras instâncias. É na História que se observa maior preocupação em assinalar a vertente comunicacional nos EPU, com um total de quase 6‰ de referências, sobretudo devido ao
emprego
(2,81‰)
das
talvez
palavras os
pilares
“conversa”
(2,53‰)
estruturantes
e
neste
“política” vector
de
[134]
especialização dos EPU. Os restantes entrevistados apenas se referiram
residualmente
às
palavras
conotadas
com
o
acto
comunicativo. Como afirmou Bonifácio: “(...) A rua não é só um local de passagem, as pessoas vão de um sítio ao outro através da rua, também é um local de paragem. Tem uma função social, política, porque estamos a falar da cidade política que mantém até hoje as suas características, quando as pessoas na rua se reúnem para discutir os seus problemas(...)”. A arquitectura e o paisagismo, sobretudo este, passaram ao
lado
da
comunicação
nos
EPU,
levantando-se
a
legítima
questão quanto à primeira se é possível encarar pacificamente posturas
diferenciadas
sobre
Cidadania
e
Comunicação.
Por
outras palavras, os resultados inversos não poderiam indiciar a falência desta proposta metodológica? A comunicação social é,
a
nosso
ver,
fornecedora
de
informação
política,
não
facilitando a interacção entre o emissor e o receptor, mas cumpre papel fundamental para o funcionamento da sociedade e sobretudo
contribui
para
a
sua
coesão
ao
tornar
comuns
determinadas preocupações e ajudar na fiscalização da acção política.
Se
ela
não
se
verificar
nos
EPU
dificilmente
encontra outro terreno ajustado à satisfação desta função. Pelo
contrário,
sentido
lato,
a
comunicação
pode
ser
que
envolva
encontrada
e
a
política,
ampliada
em
noutros
contextos. Centrando
agora
a
nossa
atenção
noutra
vertente
da
análise do conteúdo das entrevistas (cf. Quadro ....), os elementos de composição pretendem reunir as referências quer às designações mais específicas dos EPU quer a elementos que deles
fazem
parte.
Surgem
assim,
lado
a
lado,
praças
e
mobiliário, ruas e desenho, por exemplo. A sua vastidão torna impossível a sua não referência, pelo que é o domínio onde se regista um maior equilíbrio. Por outro
lado,
mesmo
neste
quadro
de
equilíbrio
é
possível
[135]
destacar o paisagismo pelo dobro da densidade de arquitectura e de quase cinco vezes mais que a Geografia. Percebe-se também que no seu interior tenham sido ideias como Desenho, Cidade, Praças e Ruas a concentrar o fôlego discursivo. Quadro 7 - Matriz relativa ao domínio Elementos de Composição Domínio
Conceitos Arquitectura Arte Cidade Desenho Espaços Verdes Jardins Largo Mobiliário Parques Passeios Praças Rossio Ruas Urbanismo
Elementos de composição
Total
Manuel Salgado 1,13 2,26 4,90 5,28
Manuel Horácio Paulo João Teixeira Bonifácio Monteiro Ferrão 0,66 0,56 0,00 0,00 1,76 0,28 1,27 1,02 8,56 12,95 6,37 5,12 0,88 0,00 7,64 1,02
0,00 3,02 0,00 0,38 0,00 0,38 3,39 0,00 4,15 0,38 25,27
0,00 0,66 0,00 0,44 1,10 0,00 4,39 1,97 4,83 0,00 25,25
0,00 0,56 0,28 0,56 0,00 0,00 13,51 0,00 9,57 0,00 38,27
0,00 5,10 6,37 0,00 5,10 0,00 6,37 0,00 10,19 0,00 48,41
0,15 1,90 0,00 0,29 0,15 0,00 0,58 0,00 0,88 0,00 11,11
Fonte: Análise de conteúdo de entrevistas
Já para João Ferrão a conclusão deve ser inversa. Com 11,11‰
não deixa de ser reveladora a frase em que este
investigador enuncia que “(...)o grande objectivo dos espaços públicos é estimular as sociabilidades, ou seja, ouvir a troca de
informação,
partilha,
a
a
comunicação,
criatividade,
o
conhecimento
tudo
quanto
recíproco, é
a
colectivo”
(Entrevista, 2002). Finalmente, no último domínio considerado e que trazem elementos relevantes para o capítulo das amenidades dos EPU ou para os seus problemas, é o paisagismo que se destaca na sua denúncia seguida à distância pela Arquitectura e Geografia.
[136]
Quadro 8 - Matriz relativa ao domínio Complementaridades Domínio
Conceitos Acessibilidade Automóveis Centro Comercial Gestão Higiene Manutenção Segurança Vigilância
Complementaridades
Total
Manuel Salgado 1,13 1,13 0,38 0,00 0,00 0,00 0,00 0,38 3,02
Manuel Teixeira 0,00 0,44 0,66 0,22 0,44 0,00 0,88 0,22 2,86
Horácio Bonifácio 0,00 0,00 1,97 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00 1,97
Paulo Monteiro 0,00 1,27 1,27 0,00 2,55 2,55 0,00 1,27 8,91
João Ferrão 0,29 0,15 0,88 1,46 0,00 0,00 0,15 0,00 2,93
Fonte: Análise de conteúdo de entrevistas
O canibalismo praticado pelo automóvel sobre os EPU e os problemas suscitados pela higiene e segurança são centrais no discurso da Arquitectura Paisagista, discutidos na perspectiva das limitações que afectam o acesso e usufruto destes espaços. Basicamente são também estes os termos em que os Arquitectos entrevistados se referem às complementaridades que envolvem a utilização
e
concepção
dos
EPU.
Nas
palavras
de
Manuel
Teixeira: “(...)é óbvio que as pessoas não gostam de estar em sítios sujos, é óbvio que as pessoas gostam de estar em sítios aprazíveis e um espaço público onde não se passa nada à volta e estão uns tipos a dormir lá num canto não é muito agradável. É preciso que as pessoas vão para um espaço onde haja alguma coisa
para
fazer,
que
tenha
um
mínimo
de
limpeza,
a
tal
segurança que tenho a impressão que é mais ilusória do que real”. João Ferrão faz uma incursão ligeiramente distinta ao valorizar
a
necessidade
de
uma
maior
atenção
à
gestão
da
animação e da ocupação dos EPU: “(...)Com certeza um centro comercial está todo ele pensado, um espaço como a EXPO, está todo ele pensado. Entre estas duas situações que são extremas e um outro extremo clássico como um jardim normal e quem quiser
que
lá
vá.
Há
uma
margem
enorme
entre
situações
intermédias em que eu posso organizar, como se diz hoje gerir
[137]
a procura. Essa é a questão fundamental, como gerir a procura de espaços públicos? Porque a diferença entre espaços públicos públicos,
espaços
que
utilidade
pública
e
são
para
espaços
o
público
públicos
e
que
privados.
são
de
Espaços
públicos privados, se não ganharem dinheiro, paciência é o projecto
que
tinham,
faliu,
vão
para
outro.
Nos
Espaços
Públicos estão recursos públicos envolvidos e, portanto, para não haver má utilização dos recursos públicos, o mínimo que eu tenho de fazer é quando eu tenho que tornar o processo no projecto
conceber
e
depois
garantir
a
própria
gestão
da
procura. E aí é que é completamente novo(...)” (entrevista, 2002). Acreditamos que tenha ficado comprovado a diversidade dos
olhares
e
preocupações
que
formações
e
percursos
profissionais singulares estabelecem face ao entendimento e à intervenção nos EPU. Para a sua reanimação e inclusão adequada na reconfiguração física e social da cidade, são necessários múltiplas intervenções mas é
importante que de todos estes
esforços contem com uma âncora, que pode ser uma nova ideia de cidade ou de sociedade urbana, capaz de fixar e articular todas estas visões para que não resulte num mero somatório de idiossincrasias sem relação com o utilizador e a cidade. Este justificar
trabalho melhor
de o
auscultação que
se
contribuiu
pretende
ainda
demonstrar
para
com
a
enunciação da Tese 1 relativa às diferenças de significado atribuído aos EPU (mais à frente tratar-se-á dos utilizadores em geral da cidade) e com a Tese 3 que remte para o apagamento dos EPU na cidade, que o renovado interesse por esta temática, exemplificado pelo discurso dos interlocutores, pode também ajudar a explicar.
[138]
5.
O percurso histórico do EPU
5.1. Introdução O protagonismo dos EPU no discurso urbanístico e até no universo
das
ciências
sociais
(comunicação,
sociologia,
filosofia), bem como a sensação da necessidade de proceder a múltiplos desdobramentos para os entender, remete-nos para uma oportuna actualidade do nosso sujeito de estudo mas é forçoso reconhecer que o papel simbólico e de representação política e cultural não tem um carácter contemporâneo, antes associandose ao que de mais intrínseco existe no processo milenar de construção urbana. Daí ser indispensável a apresentação de uma leitura diacrónica dos EPU, apoiada nas múltiplas análises do urbano feitas até hoje apesar de, nestas, os Espaços Públicos apenas mereceram breves alusões, com excepção à Àgora grega ou, por vezes, ao Fórum romano. Para além da dimensão urbana e simbólica que remete para a
intervenção
política,
acrescentam-se
ainda
algumas
notas
relativas à mentalidade e economia, verdadeiros motores das transformações societárias com implicações físicas, urbanas e de sociabilidade. A estrutura desta grelha de descrição ficará completa com os períodos históricos retidos para a análise, tentando descortinar,
em
mundos
vida
da
cada
um,
as
articulações
quotidiana
e,
entre
objectivo
os
vários
fundamental,
demonstrando a capacidade de ajustamento do urbano e das suas formas
a
toda
respectiva
a
carga
dinâmica
que
política, afecta
a
económica cidade.
e
Esses
social
e
momentos
coincidem, naturalmente, com aqueles que marcaram a Humanidade pela carga cultural carreada para o mundo urbano. Estas notas não permitem, todavia, que se conclua que os EPU são apenas função das actividades humanas que neles se desenvolvem,
pois
isso
seria
admitir
que
se
assumem
como
[139]
matriz neutra e imparcial, incapaz de condicionar o rumo do quotidiano
dos
seus
utilizadores.
Ao
inverso,
as
formas
urbanas, onde se incluem aquelas que mais enfaticamente têm merecido a nossa atenção, não sendo inventados, apagados ou reestruturados a partir dos poderes instituídos na cidade ora para lhe conferir maior funcionalidade – garante do exercício cabal das actividades aí sedeadas – ora para possibilitar com maior
segurança,
a
aplicação
das
regras
e
condutas
mais
ajustadas seguida pelo poder político vigente. A construção de uma ideia dinâmica dos EPU obtida a partir do diacronismo tem a vantagem de demonstrar a coerência histórica das preocupações actuais e de contrariar a ideia feita de que os EPU só entraram no discurso dos anos 70 confundindo
o
significante
com
o
seu
significado
ou,
por
outras palavras, a designação pelo conceito. Aquele podia não existir, mas este era o centro das preocupações para muitos.
5.2. Até ao período Romano Correndo-se histórico
o
demasiado
risco
de
este
exagerado,
constituir
não
só
em
um
tempo
intervalo como
em
conteúdos políticos e sociais, entre outros, não pode deixarse de lhe conferir uma certa unicidade. Os valores herdados pelos romanos aos gregos, sobretudo no plano da cultura, permitem esta opção com as implicações que ela tem na Cidade e no modo de a usufruir.
[140]
5.2.1.
Ambiente económico
5.2.1.1. A Cidade Ancestral Construir
uma
cidade
significa,
em
primeiro
lugar,
garantir um território com capacidade de produção alimentar; a presença de elites capazes de gerir a sobreprodução agrícola e pecuária;
criar
condições
para
a
sua
distribuição
e
comercialização; promover os apetrechos primários e acessórios à actividade primária mas também àqueles que a garantiam; convocarem
para
si
próprias
níveis
crescentes
de
poder
e
influência medidos pela posse da terra e por outras condições materiais. Obrigatório é também assegurar a emergência de um sistema
de
valores
ajustado
a
uma
maior
densidade
e
confinamento dos indivíduos que não conflitua com o sistema anterior, nómada ou aldeão, mas que os amplie e aprofunde. Mumford (1998; 38-39) regista assim estas mudanças: “(...) Quando aconteceu tudo isso, a arcaica cultura de aldeia cedeu lugar
à
civilização
urbana,
essa
peculiar
combinação
de
criatividade e controle, de expressão e repressão, de tensão e libertação, cuja manifestação exterior foi a cidade histórica. Em verdade, a partir das suas origens, a cidade pode ser descrita
como
armazenar
e
uma
estrutura
transmitir
os
especialmente bens
da
equipada
para
civilização
e
suficientemente condensada para admitir a quantidade máxima de facilidades
num
mínimo
de
espaço,
mas
também
capaz
de
um
alargamento estrutural que lhe permite encontrar um lugar que sirva de abrigo às necessidades mutáveis e às formas mais complexas de uma sociedade crescente e de sua herança social acumulada”. A
inicial
transição
do
contexto
camponês,
rural
ou
naturalizado para um ambiente urbano não poderia, contudo, deixar
de
reflectir
a
importação
de
valores
e
regras
de
funcionamento comunitários e, com isso, conferir um ambiente campestre ao espaço artificializado da Cidade.
[141]
Esta
segmentação
da
abordagem
histórica,
da
qual
se
pretende realçar a importância fulcral dos EPU em todos os momentos urbanos, não como uma forma casuística ou desenhada ao
sabor
dos
urbanismo,
conceitos
mas
como
a
sempre
dinâmicos
emergência
da
urbana
arte
de
e
do
formas
de
funcionamento da economia e da sociedade, pode conduzir a erros de interpretação os quais desde já se devem acautelar: não
é
pacífico
separar
a
economia
de
outras
dinâmicas
societárias designadamente o poder político (rei) e religioso, embora muitas vezes andem de mãos dadas. Só o desígnio acima repetido parece reforçar esta opção. Para
assentar
algumas
das
premissas
de
que
não
nos
poderemos afastar, recorre-mos à autoridade, mais uma vez, de Mumford37 e fica clara a sobreposição dos universos económicos e políticos: “(...) Na medida em que teve utilização quase militar,
a
armazenagem,
cidadela onde
o
primitiva produto
foi das
antes
um
pilhagens
ponto do
de
chefe,
principalmente cereais e possivelmente mulheres, estaria em segurança contra depredações puramente locais – em segurança, vale dizer, contra ataques por parte dos aldeões ressentidos. Aquele
que
controlasse
os
excedentes
agrícolas
anuais
exerceria poderes de vida e morte sobre seus vizinhos. Essa criação artificial de escassez em meio à crescente abundância natural
foi
um
primeiros
trunfos
característicos
da
nova
economia da exploração civilizada: uma economia profundamente contrária aos costumes da aldeia” (pp.44-45). A
distinção
cidade-campo
era
sublinhada,
em
primeiro
lugar, visualmente, através de um recinto muralhado onde as trocas interior-exterior se faziam com algum controlo, de modo a assegurar que os contactos se cingiam ao essencial e não se verificassem contaminações desnecessárias (entrada exagerada de novos residentes na urbe).
37
Idem, Ibidem, p. 44-45.
[142]
O celeiro, lugar de acumulação dos excedentes agrícolas e
a
área
que
lhe
servia
de
apoio,
constitui
a
primeira
demonstração da interferência do comércio na criação urbana e do seu papel estruturante no moldar da cidade física e da própria sociedade ao permitir ou desmobilizar os contactos interpessoais, as trocas de informação, a manifestação das classes mais importantes, etc. Outro espaço obrigatório era o mercado
(cf.
Figura
5)
que
poderia
não
coincidir
com
o
primeiro, de forma a garantir a menor perturbação entre os dois modos de vida crescentemente opostos – campo e cidade – que
haveria
de
chegar
por
vezes
ao
extremo
de
forçar
a
existência do Mercado no exterior de recinto muralhado: “(...) As aberturas na muralha da cidade eram tão cuidadosamente controladas como as comportas de um sistema de irrigação; e é conveniente lembrar que, excepto pela passagem diária, indo e voltando dos campos circundantes, apenas uma pequena parcela das
pessoas
entrava
na
cidade
por
barco
ou
caravana.
Na
verdade, até que a cidade afinal alcançou as dimensões de uma metrópole, não houve qualquer problema de congestionamento ao redor
dos
seus
comerciante
se
portões,
detivesse
fazendo ali,
com
com
que
estalagem,
a
população
estábulos
e
armazéns próprios, para constituir um bairro de mercadores e entreposto ou porto. Encontraremos as mesmas formações de novo na Idade Média.” (Mumford: 1998; 79). A dificuldade de destrinçar nos grandes marcos urbanos como foram Ur, Nippur, Uruk, Tebas, Heliopolis ou Assun toda a expressão
da
economia
e
os
seus
prolongamentos
na
cidade
decorre do afastamento temporal a que estamos obrigados e de onde
apenas
retivemos
poucos
documentos
avulsos
e
algumas
ruínas.
[143]
Figura 7 - Cidade de Nippur: A primeira planta urbana
Fonte:http://www.usc.edu/dept/LAS/religion/arcproj/war/MapAncientmapofNippur.jpg
Mas também não deixa de ser ilustrativo reconhecer que o berço da civilização urbana apresenta vincados laços com o campo e a sua produtividade ou com as acessibilidades que desde a invenção do barco assentavam nos rios que permitiam a navegabilidade (ao todo eram 1000 Km no Egipto e 1600 Km no vale
do
cidades
Indo) na
como
Palestina
resulta no
da
localização
interior
do
que
se
das
primeiras
convencionou
designar por Crescente Fértil (cujos limites se situam no Nilo Superior e no Eufrates Inferior). Finalmente, conclusivo
a
ainda
importância
fixados do
na
Mercado
cidade cuja
ancestral,
palavra
é
confunde
[144]
lugar
e
conceito,
situação
repetida
noutros
momentos
históricos: “Nas cidades onde temos os mais antigos registos, verificamos
que
as
funções
do
mercado
–
fornecimento,
armazenagem e distribuição – eram desempenhadas pelo templo. (...) Mais importante, afinal de contas, que a distribuição mais ampla dos produtos no mercado foi o desenvolvimento do sistema de comunicação que cresceu ao lado dele: o registo permanente
parece
ser,
a
princípio,
um
sub-produto
das
transações de mercado e a maior invenção, após as notações linguísticas
e
numéricas,
foi
a
invenção
do
alfabeto”
(Mumford: 1998; 84-85). A
especialização
dos
espaços,
de
acordo
não
com
a
transação mas com a produção, era também característica da cidade.
A
segmentação
do
trabalho
e
a
sua
divisão
urbana
aparecem recorrentemente nos textos legados pela história: “Na chamada Sátira das Profissões, que talvez remonte ao segundo milénio a.C. no Egipto, o autor menciona cerca de dezoito profissões, além da sua própria, a de escriba – mas omite as mais elevadas, o sacerdote, o soldado, o médico, o arquitecto, que devem ter sido respeitosamente encaradas como acima da crítica ou do denegrimento; pois, na verdade, era, em parte, para ter o privilégio de ver tais augustas figuras que dava valor
à
profissão
que
ele
próprio
seguia.
As
profissões
mencionadas variam do barbeiro ao embalsamador, do carpinteiro ao remendão e ao curtidor de couro; e, em cada caso, acentua suas
dificuldades,
suas
inabilidades
ocupacionais
e
deformidades, comparando-as com as oportunidades oferecidas pela
profissão
do
escriba,
que
vivia
tranquilamente
e
se
misturava com os grandes” (ibidem: idem; 119). Deveriam então surgir
ruas
e
eixos
de
circulação
especializados
em
determinadas actividades, no fundo, situação idêntica à que encontrámos
nas
nossas
cidades
e
que
ainda
hoje
estão
inscritos na toponímia (antiquários, douradores, sapateiros, etc.).
[145]
5.2.1.2.
Polis grega e cidade romana
A economia muda porque muda a envolvente e o quadro natural. Esta mudança compreende-se melhor quando se verifica que a civilização urbana se transfere dos vales e rios da Palestina para as margens acidentadas e rochosas da margem norte e ocidental do Mar Mediterrâneo, sublinhados por um clima
agreste
(seco
e
com
distribuição
assimétrica
da
precipitação). A centralidade do incontornável cereal perde-se e ganha protagonismo a oliveira, a vinha e o castanheiro, com prolongamentos
na
pecuária.
E
se
as
funções
urbanas
não
sofreram uma transição brusca de início, a organização da cidade
grega
comércio
e
“(...)
deve-se,
economia
Esses
fabricantes cidade;
e
fundamentalmente,
monetária.
comerciantes artífices,
depois
do
Retomando
e
os
VI,
novos
incremento
Mumford
banqueiros,
foram
século
ao
do
(ibidem)
apoiados
por
organizadores
ameaçaram
o
da
poder
dos
aristocratas originais e dos guerreiros. Contudo, o problema de incorporar esses novos grupos comerciais na comunidade, introduzindo-os activamente aos grandes espíritos da Grécia. A própria constituição de cidades comerciais tratava o comércio como se fosse inexistente. Um cidadão, por definição, não podia ter parte no comércio. Se queria seguir tal carreira, era
necessário
que
migrasse,
como
estrangeiro,
para
outra
cidade” (p.149). O
burburinho
e
o
encontro
entre
gente
de
múltiplas
proveniências teve uma clara expansão e visibilidade na cidade grega potenciada pelas incursões dos gregos, sobretudo, no Norte
de
África.
A
àgora
era
um
espaço
aberto,
cumprindo
funções de mercado ainda no século V a.C., o que não significa apenas um espaço de troca de mercadorias, transações diversas mas,
sobretudo,
um
ponto
de
encontro
que
permitiria
o
exercício da troca de informação e notícias. De facto são
[146]
várias as indicações que a Àgora se preencheu em demasia de funções,
a
tal
ponto
que
“tornou-se
um
recipiente
indiscriminado. (...) Ali, um templo ou santuário teria o seu lugar num amontoado de oficinas e o camponês podia, com o seu burrico, gozar a pausa de um filósofo, como Platão (...) para ver um oleiro ou carpinteiro a trabalhar diante da sua loja aberta” (p.168). Não é por acaso que se verificou que muitos dos aristocratas deixaram de o frequentar, evitando contactos demasiado próximos com grupos sociais inferiores quedando-se pelo ginásio onde apenas se juntavam indivíduos de idêntico estatuto. O problema hoje sentido de dificuldade de conjugar as diferenças ou a utopia que vai emergindo no discurso político e social da necessidade de salvar o Espaço Público como matriz de
aprendizagem
da
cidadania
carece,
assim,
de
alguma
confirmação não só a partir das análises do presente como, designadamente, destas fortes referências históricas. Para
além
desconfiança
da
aos
promiscuidade grupos
mais
funcional
influentes,
que
suscitava
mantinha-se
a
histórica distância e até desprezo face ao comércio como é compreensível numa sociedade em que a ênfase era depositada na discussão política e filosófica, praticada em público, e que não deveria ser perturbada ou contaminada por outro tipo de exercícios económicos ou profissionais. Daí que a sobreposição de funções na àgora com destaque para as relacionadas com a economia e o comércio à cabeça não era bem aceite surgindo até a proposta veiculada por Aristóteles de criar a Àgora-Mercado fisicamente distanciada da Àgora-Forum político, onde apenas se
concentrariam
comércio
ou
os
homens
actividade
definitivamente
adoptado
livres,
manual. e
o
desprovida
Esse
comércio
de
desejo persistiu
qualquer
nunca como
foi uma
função que se colou à cidade sendo responsável por muito do seu capital não só financeiro como cultural possibilitando e
[147]
estimulando os contactos interpessoais cujas consequências iam muito para além dos puramente económicos. Este problema sério de (in)compatibilização no espaço público estendeu-se até à cidade romana que ganhava cada vez mais corpo económico e, por isso, mais comerciantes, até pelo estatuto de império comandado por Roma. A rua direita, tão comum
na
cidade
portuguesa
e
tão
amplamente
descrita
por
Orlando Ribeiro (cf. 1994, por exemplo), faz a sua aparição sob o império romano, aliás como sucedeu com outras cidades (por
exemplo,
Damasco
na
descrição
dos
Actos
dos
Novos
Testamentos).
5.2.2.
Política, cultura, e religião
Reafirmando a dificuldade de proceder à separação das diversas componentes da realidade, julga-se conveniente, ainda assim, para cada momento histórico, distinguir a economia da vida imaterial feita de novas hierarquias e adorações. Estas referências servem “apenas” para justificar a necessidade de maior ou menor interacção social, culminando no final com a espacialização destes contactos.
5.2.2.1. A cidade ancestral Não deixa de surpreender a importância das componentes não económicas, imateriais, na formação e desenvolvimento da cidade pré-helénica, até porque o urbanismo e a sua história assentou no excelente trabalho de historiadores como Henri Pirenne que não se cansou de repetir que “a cidade é filha do comércio”. Reafirma-se, nestas páginas, a intersecção entre o poder económico
e
o
poder
político,
militar
e
religioso,
[148]
condicionando na sua essência os modos de vida, os tempos de vida e, para o que mais nos interessa, os espaços e a natureza das interacções entre indivíduos na cidade. A conjugação destas forças e poderes conduz a economia à dependência passiva e alimentada dos restantes poderes, não deixando, todavia, de os enformar. Com efeito, a materialidade dos
EPU,
consubstanciada
nos
seus
aspectos
estéticos,
constitutivos ou funcionais, foi sempre vista como um fim em si mesmo por muitas disciplinas – urbanismo, arquitectura, economia
-,
mas
a
sua
imaterialidade
que
os
desligava
de
qualquer território em concreto, transferindo-os para os meios de
comunicação
espaços
de
social
consumo
ou,
na
melhor
privados,
das
embora
hipóteses,
passíveis
para
de
uso
colectivo, passou a determinar consequências importantes na vida da cidade. Disciplinas,
como
a
sociologia,
a
antropologia,
a
política ou a filosofia tiveram um forte impulso inicial com o trabalho de Jurgen Habermas, que explicou o esvaziamento de sentido
ocorrido
na
cidade
com
a
passagem
da
discussão
política e quotidiana do tradicional EPU para a publicidade e mass-media. Desde
cedo
se
percebe
que
os
indivíduos
que
mais
e
melhor aproveitaram da emergência da cidade foram os que já detinham algum poder, sobretudo religioso, agora potenciado com o aparecimento dos excedentes agrícolas. Estes exigiam não só conceber o seu destino como organizar o trabalho no campo e a relação com as actividades urbanas, garantindo a manutenção do poder das elites. Como afirma Mumford “o chefe local passou a ser o rei dominante, tornando-se ao mesmo tempo o principal guardião sacerdotal do santuário, agora dotado de atributos divinos reduzidos
ou a
quase
divinos.
súbditos,
cujas
Os
vizinhos
vidas
eram
iguais,
viram-se
supervisionadas
e
dirigidas por funcionários militares e civis, governadores,
[149]
vizires,
colectores
de
responsáveis
perante
transferência
do
impostos,
o
poder
rei” da
soldados,
(p.38).
aldeia
A
directamente acompanhar
tradicional,
em
que
a a
sabedoria dos mais velhos cedeu lugar ao dinamismo dos mais jovens,
em
que
nasceu
um
espaço
capaz
de
perpetuar
e
enriquecer a ideia de civilização, surgem novos instrumentos e entidades como a escrita, a escola, a biblioteca ou o arquivo. O simples domínio ou poder sobre eles conferia poder singular e esmagador sobre a comunidade urbana. Estamos sensivelmente a 3.000 anos a.C. e, como tal, é difícil reconstituir com certeza a vida nas primeiras cidades, mas desde o inicio podemos conceber a sociedade urbana como uma estrutura complexa e híbrida, decorrente da presença de tecidos
socio-profissionais
atomizados,
e
com
um
núcleo
organizador investido de poder religioso e político, capaz de lhe dar unidade e, sobretudo, futuro. Assim, motivação ambiente
um
novo
mundo
específicas, rural
e
surgiu,
afastando-o
das
suas
com
carga
simbólica
irremediavelmente
estruturas
tradicionais
e do de
organização social. Um território assim transformado, sofrerá mudanças de relacionamento quer no plano horizontal, i.e., entre grupos socio-profissionais de natureza diferente, quer no
plano
vertical,
subordinação,
ordem
i.e., e
nas
relações
hierarquia.
A
que
cidade
implicam vai
então
reconstruindo a matriz espacial capaz de acolher as novas interacções
e
abrindo
caminho
à
invenção
das
marcas
mais
características da urbanidade. Esta relevância do sagrado e do simbólico contém em si elementos permanentes em muitas das civilizações urbanas ou sem o serem. O caso dos Bororós, descrito por Claude Lévy Strauss, ilustra as polaridades simbólicas de que o espaço parece ter sempre precisado para ser reconhecido como central ou organizador. Também as primeiras cidades sumérias nascidas
[150]
entre o Tigres e o Eufrates (cf. Figura 6), apresentam uma organização
comandada
pelo
cosmos,
sendo
então
o
espaço
público submetido a essa lógica perfeitamente implacável e incontornável onde não havia possibilidade de outra qualquer afirmação de espaço de encontro ou de reunião: “(...) l’espace public se reduit à l’espace sacré du palais oú l’on progresse par
un
l’endroit
jeur oú
de
seuils
apparait
et à
de temps
cours
sucessives,
régulier
le
jusqu’á
roi.
Une
bureaucratie nombreuse et minutieuse, entièrement dévouée au pouvoir
divin
du
roi-prêtre,
assure
la
continuité
de
l’administration du corps social dans les villes-etat. Chacune se définit comme le centre du monde. Cela rend leur existence exclusive
et
les
pousse
à
la
conquête
des
autres
cités :
conquête qui se solde par l’arasement des cités vaincues et le massacre de leur population” (Toussaint (dir.): 2001; 35). Figura 8 - O Berço da Civilização Urbana
Fonte: http://images.google.pt/imgres?imgurl=www.bible-history.com/babylonia
[151]
5.2.2.2. Polis Grega e Roma Imperial A
mudança
alteração
de
profunda
registo
é
verificada
mais na
que
justificada
importância
pela
depositada
no
sagrado da polis grega. Não é que ele tenha deixado de marcar presença
etérea,
pelo
contrário,
um
dos
elementos
chave
continua a ser a acrópole – lugar dos deuses e de identidade. Mas a civilização grega dá, em larga medida, a cidade aos indivíduos, retirando-lhe muito da carga simbólica e sagrada que até então marcaram os espaços e as elites. A base para um entendimento singular no tempo e que se assumiu como a base da cidade moderna foi apresentada por Aristóteles: “(...) se todas as associações tendem para algum bem, com muito maior razão deve tender a mais soberana de todas, e compreende todas as outras: aquela a que chamamos cidade
e
associação
política
[...].
Em
primeiro
lugar,
é
necessário que se associem os seres que foram feitos para viverem juntos, ou seja, o homem e a mulher para garantirem a descendência, e o patrão e o servo para as tarefas materiais. Dessa associação para as necessidades fundamentais da vida nasce
a
família.
A
associação
de
várias
famílias,
para
a
consecução de uma utilidade mais ampla e mais complexa é a aldeia. A associação de várias aldeias é a cidade, que se basta a si própria, formando-se para conservar a existência, e depois de ter alcançado esse objectivo, para atingir a sua perfeição. A cidade existe por natureza, como existem por natureza as associações mais simples, porque a cidade é a ambição
final
para
que
tendem
todas
as
outras.
De
facto,
chamamos "natureza" de uma coisa à sua condição na última fase do seu desenvolvimento”. Aristóteles ganhou em proceder à construção da ideia e natureza da cidade recorrendo à família: “(...) Portanto, a cidade é um facto natural, e o homem é, por natureza, um animal político. Mas o homem é um animal político por motivos
[152]
diversos e mais fortes do que os das abelhas ou de qualquer animal que vive em rebanho. O homem é o único animal que possui o dom da palavra; a voz pode exprimir dor ou prazer, e os outros animais também a possuem; mas a palavra serve para exprimir o que é útil e prejudicial, justo ou injusto. É esse, com efeito, o carácter do homem: ter a noção do bem e do mal, do correcto e do incorrecto, e das outras distinções morais. A associação dos seres que possuem essas noções cria a família e a cidade. Por conseguinte, a cidade é a condição da família e do
indivíduo.
De
facto,
se
ninguém
se
basta
a
si
mesmo,
estará, em relação à cidade, na mesma situação da parte em relação
ao
citadina,
todo. ou
propriamente
Quem
não um
não
é
necessita homem,
capaz disso,
mas
sim
de
participar
não um
pode
animal
na
dizer ou
vida
que
um
é
deus”
(Benevolo: 1995; 20-21). Abandonada a acrópole é a Àgora que se assume como o elemento sustentador desta nova forma de uso da cidade. Ao contrário dos anteriores espaços de poder religioso ou
monárquico,
onde
o
controle,
condicionamento no encontro entre os
a
filtragem
e
o
residentes eram atitudes
centrais como forma de garantir a permanência e a perpetuação do poder, a àgora passa a ser um espaço de liberdade aberto aos cidadãos, mesmo que estes não representem todos aqueles que
povoam
as
cidades.
É
o
espaço
de
governação
e
de
deliberação mas, pelas causas apontadas, também de subtracção e exclusão. A dissociação dos espaços religiosos dos espaços de
diálogo,
Àgora,
iniciada
prosseguiu
ambiente
por
pela
quase
outras
de
praças
separação
entre
imediato e
ruas,
com o
a a
que
acrópole difusão foi
e
a
deste
amplamente
descrito na literatura e em peças de teatro onde o ideal de democracia do debate e da liberdade se encontravam sempre presentes.
Para
o
que
nos
interessa
“os
edifícios
e
os
ambientes públicos que predominam sobre os privados conferem
[153]
ao
cenário
urbano
o
carácter
perfeito
e
acabado
que
a
definição aristotélica exige” (p.21). A
Roma
Imperial
parece
mais
interessante
vista
do
território conquistado e das intervenções aí efectuadas, no sentido de garantir a sua coerência face aos interesses do colonizador, percebendo-se assim melhor algumas das alterações introduzidas nos espaços urbanos. A reprodução de fórmulas de concepção e gestão da cidade, passíveis de serem observadas em múltiplos locais do Império, são a ilustração mais óbvia deste imperativo
de
sobrevivência,
mas
na
Roma
Imperial
também
existiam modificações, ao ponto de transformar a Àgora, o que foi justificado, mais uma vez, pela mudança operada nas formas de viver a cidade, o espaço público e os tempos livres. E é assim que, ganhando um protagonismo renovado e afirmativo o desporto
e
a
animação
urbana,
o
Fórum
perde
o
carácter
simbólico da democracia e do debate (como seria de esperar num império) e passa a ser marcado pelo espectáculo e, em menor medida,
pela
presença
dos
templos
dedicados
aos
deuses
romanos. A cidade “se transforme en un espace d’ostentation dominé par les temples et relié aux lieux de spectacle : les cirques,
les
amphithéatres,
les
odéons“
(Toussaint
(dir.):
2001; 37). Mas
este
espaço
tradicional,
com
o
progressivo
fechamento de muitas das actividades urbanas de recreio, lazer e convívio, vai tornando-se passivo e monótono. Aqui passam a destacar-se os edifícios públicos e religiosos, atraindo uma maior presença e densidade de funcionários, mas lhe confere a chama que teve noutros períodos.
5.2.3. A
Das formas urbanas dos Espaços Públicos
apresentação
dos
EPU
é
fácil
bastando
recorrer
às
ilustrações disponibilizadas em obras de carácter histórico e
[154]
com preocupações urbanísticas. Todavia, o percurso efectuado de discussão dos contextos económicos e religioso-político e social
ajuda
a
interpretar
de
um
modo
mais
rico
os
seus
contornos, dimensões e funções. Para
este
período
as
formas
urbanas
permanecem
desfocadas até pelo menos ao período helénico, sendo apenas reconhecidos pelos documentos recuperados por arqueólogos e decifrados por historiadores, o que limita a sua descrição. Esta descrição é o reflexo, como se defende desde o início,
não
estéticas,
de
mas
intervenções
considerando
arquitectónicas
estas
subordinadas
puras ao
ou
contexto
económico e social da cidade e do momento histórico. De modo a manter
a
análise diversos
coerência geográfica campos
do das
princípio formas
disciplinares
enunciado urbanas
em
jogo
e
a
efectuar
–
articulando
–
justifica-se
a os a
aplicação da fórmula já adoptada por Orlando Ribeiro onde se jogam os conceitos de sítio e posição. Com efeito, sempre que possível descriminar-se-á para cada forma urbana do Espaços Públicos a sua localização no seio da Cidade (posição) e a sua descrição
mais
detalhada
(dimensão,
forma
e
funções
associadas) – sítio.
[155]
Figura 9 - Níveis de conhecimento dos EPU
Recuando
às
cidades
da
Mesopotâmia
cuja
vitalidade
resultava naturalmente da concentração de excedentes agrícolas e, em especial, do poder religioso, Mumford por várias vezes se refere às tabuínhas de Nippur que remetem para a forma circular da cidade, o que carrega consigo também uma forte carga simbólica. Apenas se distinguem espaços de afirmação do poder religioso e do celeiro. Nas cidades do antigo Egipto permanece, e até se reforça, a importância da religião, agora cruzada
com
o
poder
monárquico
(representante
divino
na
Terra). A
cidade
vive,
assim,
do
e
para
o
seu
soberano
e
orienta-se urbanisticamente para ele na justa medida em que é a
sua
residência
estrutura
a
ou
entidade
o
local
urbana.
de O
exercício
espaço
do
público
poder
que
convoca
a
importância relativa destes poderes através da sua dimensão e características físicas. Todavia, como é próprio de contextos político-religiosos desta natureza, a função dos EPU esgota-se nesse papel de aprofundamento simbólico do poder, dado que os registos
históricos
apontam
sempre
para
uma
vida
pública
[156]
limitada, em que a necessidade do livre encontro e troca de ideias era desconhecida, pois tal implicava o exercício da cidadania que só mais tarde foi possível. A dependência à vida religiosa ou a subordinação aos monarcas, muitas vezes acumulando o poder terreno e o poder divino, era uma obrigação que se projectava sobre todos os comportamentos,
quotidianos
e
espaços
dos
habitantes.
A
monumentalidade que se encontra na cidade ancestral deriva do poder simbólico associado aos monarcas ou a outras elites e não
concebida
para
a
manifestação
da
expressão
colectiva:
“(...) No século VI a.C., Babilónia era uma grande cidade, atravessada
pelo
rio
Eufrates
e
bem
guarnecida
de
lances
rectilíneos de fortes muralhas, por sua vez defendidas por um fosso. Ao princípio, devia ser uma cidade de ruas irregulares e tortuosas, mas, quando começou a engrandecer-se, à medida que os imperadores iam erguendo novas e sumptuosas construções (...)
foram
abertas
novas
vias,
como
a
grande
avenida
processional, que ligava a principal porta monumental (a porta de Istar ou Astarte) com os palácios e templos”
(Goitia:
1982; 45) (cf. Fig. 8). O isolamento do templo ou do palácio face ao restante tecido
urbano
superioridade arrastamento,
era face os
também às
espaços
um
formas que
modo de
lhe
de
vida estão
manifestação terrena associados
e,
de por
apenas
admitem manifestações religiosas ou de celebração do poder. Recorde-se, a propósito, o facto já descrito da incipiente ou mesmo inexistente actividade económica pela gestão autocrática do soberano dos bens essenciais à vida das populações.
Figura 10 - Planta da Babilónia
[157]
Fonte: http://www.angelfire.com/tx/tintirbabylon/map.html
Com as cidades-estado do Mar Egeu (séc. IV a. C.) surgem também as comunidades mais livres, muito por causa da mudança de
estatuto
dos
soberanos
que
passaram
a
governar
sem
se
atribuir a natureza omnipotente e divina. As modificações são óbvias com base no maior exercício de
cidadania
e
de
uma
maior
actividade
comercial,
o
que
implica maiores fluxos de circulação interna e de entrada e saída,
para
além
dos
inevitáveis
acréscimos
dos
contactos
inter-pessoais. A pluralidade dos espaços consagrados quer a outras funções públicas (mercado, lazer, desporto) justifica a designação encontrada de centro cívico para este conjunto. Mas a referência de EPU é a àgora que, para além da função social, política e económica, cumpria um papel na estrutura urbana articulando sectores da cidade (cf. Fig. 9) de modo a dar
[158]
maior harmonia ao quadro construído como também conferir-lhe um maior rigor estético. Figura 11 - Mileto e a Àgora como charneira urbana
Fonte: http://www.webdianoia.com/presocrat/mileto.htm
A teoria racional de Cidade onde se inscrevem os espaços públicos modernos foi inaugurada na Grécia muito pelas novas condições
societais
e
políticas.
A
enriquecer
este
espaço
surgem “o ecclesiasteron (sala para assembleias públicas), o bouleuterion (sala para assembleias municipais), o prytaneion (onde se reunia a câmara municipal). Aí estava situada a stoa, construção alargada que formava por vezes um dos lados da àgora, com pórticos de uma ou duas formas, que serviam para a vida da relação e para o comércio” (Goitia: 1982: 48).
[159]
5.3. Período medieval Neste percurso introduz-se um hiato assumido que contempla o período entre o fim do Império Romano e o ressurgimento urbano na Europa, consubstanciado pelas invasões bárbaras e pela presença da civilização muçulmana na Península Ibérica quer pelo seu contributo menor para a vida urbana na Europa38 quer pela reduzida expressividade que aportam para o objecto de estudo.
5.3.1.
Ambiente económico
Todo o trabalho de Henri Pirenne em torno das cidades da Idade Média, renascidas a partir do século X, deixa antever um protagonismo da economia urbana que não foi corrente noutros momentos
da
vida
urbana.
Aliás,
desde
os
fenícios
que
a
actividade comercial não assumia este destaque na cena urbana, isto após as cidades sumérias, egípcias, gregas e romanas onde surgia
sempre
ou
desprezada
(Grécia),
anulada
(Suméria)
e
ofuscada por outras formas dominantes de usar a cidade (Roma). O
comércio
designadamente,
o
e
as
actividades
artesanato,
que
possuíram
na
o
suportavam,
Idade
Média
um
brilho ainda mais forte pelo período de quase 5 séculos (entre a
queda
do
império
romano
do
ocidente
e
o
abandono
dos
muçulmanos da península ibérica) em que a Europa observou um assinalável recuo urbano. Muitas cidades deixam de existir e outras vêem reduzidas o seu potencial humano. Os antigos castros renascem dando 38
Embora não em Portugal e Espanha, pois enquanto se assistia ao designado renascimento Carolíngio na Europa central, no sul do continente o espaço urbano sofria transformações significativas quer na textura do tecido urbano quer na ampliação do domínio privado face ao espaço colectivo próprio das sociedades islâmicas. Orlando Ribeiro não se cansou de descrever as influências da ocupação árabe no sul de Portugal, visíveis na urbanização, na arquitectura e nas práticas agrícolas.
[160]
suporte a uma vida rural mais intensa e que viria a ser um dos aspectos mais estruturantes da Idade Média, ficando conhecido como Feudalismo39. Com efeito, só o entendimento de uma nova sociedade assente sobre uma nova base económica e política permitirá
construir
cidades.
A
base
uma
de
nova
partida
cidade não
e
um
podia,
novo
sistema
assim,
ser
de
mais
diferente do que até aí a História tinha revelado: “(...)esta situação implicava um contraste e diferença notáveis com o que tinha
sucedido
no
mundo
antigo
e
islâmico,
onde
a
função
orientadora da sociedade tinha pertencido às cidades, tendo-se a
população
concentrado
nalgumas
destas
particularmente
desenvolvidas e de grandes dimensões” (Goitia: 1982; 82). Na
génese
da
reconfiguração
urbana
ocorrida
está
a
agricultura, muito mais que o comércio: Em primeiro lugar tendo
permitido
corporizados comerciais
a
pela que
sobrevivência vida
de
monástica;
suscitava
junto
pequenos em
às
focos
segundo portas
urbanos
pelas
destes
trocas espaços
religiosos; finalmente, porque constituíram uma matriz para o nascimento
de
um
poder
político
essencial
para
o
desenvolvimento de uma nova sociedade. Numa perspectiva económica é fácil perceber que a base do tecido produtivo continua marcada pelo sector primário e que a cidade cumpre a função de redistribuir os excedentes pela via comercial e até apoiá-lo pelo apetrecho em utensílios e bens complementares à vida rural. É curioso, no entanto, sublinhar que a cidade e a sociedade feudal são duas faces da mesma moeda, pois à primeira não era permitido o fácil acesso dos camponeses garantindo a sobrevivência da segunda. Habitar a cidade corresponde ao estatuto de homem-livre, o que era contraditório com a condição dos servos da gleba. A este facto também não é alheio, num número significativo de casos, o 39
O Feudalismo dá, de facto, origem a uma nova sociedade assente na terra e com uma estrutura de poder senhorial, que exerce entre outros poderes o legislativo e o político, embora na dependência hierárquica do monarca.
[161]
comércio
e
as
trocas
se
processarem
junto
às
portas
da
cidade, mantendo o seu miolo à distância dos mais pobres, doentes e estrangeiros. O século XI vê despontar no interior da cidade uma nova classe - a burguesia – que com a expansão do comércio e indústria, ganha visibilidade através dos numerosos grupos que encerra
(viajantes
mercadores,
artesãos,
banqueiros,
comerciantes). As cidades também se diferenciam de acordo com a
intensidade
e
o
tipo
de
tráfico
que
registam:
portos,
cidades-feira, cidades de fronteira, cidades de passagem. A economia gera uma tensão crescente com o meio envolvente, marcado pela vassalagem e condições de vida precárias, através de exigências de maiores facilidades para o exercício das trocas comerciais e de um mais amplo e profundo estatuto de espaço livre dos constrangimentos sociais e políticos feudais.
5.3.2. Política, cultura, e religião O período pós-romano observou profundas alterações nos modos de vida comunitários, exigindo a partir de certa altura uma
reaprendizagem
da
vida
urbana
no
que
respeita
à
organização do espaço, ao estatuto político da cidade e dos seus residentes ou à coexistência dos poderes emergentes. A Idade Média é um longo período em que a dificuldade de análise surge desde logo quando se pretende tomá-la como uma unidade. De facto existe um percurso, uma construção e um enriquecimento, indispensável
dos face
sistemas ao
político,
estado
social
desorganizado
e em
cultural, que
se
encontrava a Europa desde o apogeu do Império Romano e as posteriores vagas de ocupações episódicas e por isso mesmo instáveis de povos e comandantes, sem grandes preocupações de estabelecer sistemas territoriais organizados e complexos.
[162]
Não
se
tratando
de
produzir
monografias
exaustivas
acerca dos desenvolvimentos políticos e religiosos observados na cidade medieval é, no entanto, exigível que se entenda a sua organização e a sua potencial importância na demarcação do espaço urbano. Se, como vimos no ponto anterior, o ambiente económico ganhou uma dimensão incomparável com outros períodos históricos,
a
cidade
veio
juntar
a
classe
social
que
lhe
estava associada – a burguesia- às restantes que estruturavam a sociedade medieval – clero e nobreza. O
clero
foi
um
desaparecimento
da
turbulentos
que
se
inseguras,
pois
pilar
fundamental
civilização seguiram.
eram
as
As
visível
desde
romana
e
momentos
cidades
tinham-se
mais
procuradas
nos pelo
o
tornado produto
proporcionado às pilhagens e os vestígios urbanos eram afinal apenas
centros
de
administração
religiosa.
A
civitas
parisiensis, por exemplo, servia para intitular quer a cidade quer
a
diocese
de
Paris.
Justamente
a
propósito
deste
destaque da Igreja na cidade medieval, Henri Pirenne assinala que
“Quando
o
desaparecimento
do
comércio
no
século
IX
aniquilou os últimos vestígios da vida urbana e pôs fim ao que ainda
subsistia
da
população
municipal,
a
influência
dos
bispos, já tão extensa, tornou-se sem rival” (Pirenne: 1989; 61). É assim que o bispo exerce um direito de polícia na base do qual administrava o mercado, regulava o recebimento do imposto, vigiava a cunhagem da moeda, assegurava a manutenção das pontes e entradas. Um
regime
teocrático
ganhava
legitimidade
face
às
estruturas municipais antigas, já que não havia domínio na administração da cidade em que o bispo não manifestasse a sua autoridade no sentido de garantir a paz, a ordem e o bem comum, quer pelo direito quer pela ordem pública (p.63). A
partir
de
1000
verifica-se
um
aprofundamento
das
estruturas urbanas e uma maior visibilidade da sua capacidade
[163]
de se distinguir dos meios rurais por via das liberdades e do protagonismo económico40. Neste reforço identitário da cidade, há ainda espaço para referir um outro grupo que nasce nesta altura e que recebe o nome de burguesia, dos seus membros serem
exclusivamente
habitantes
do
novo
burgo,
vocacionado
para as trocas. Daí que a ideia de população urbana que “deve ser procurada não entre a população das primitivas fortalezas, mas na população imigrada que o comércio fez afluir à sua volta e que, a partir do século XI, começou a absorver os antigos
habitantes”
(Pirenne:
1989;
125).
Com
o
poder
eclesiástico, herança de períodos de resistência urbana, o poder da nobreza que não deixou de se exibir nos meios rurais e insinuar a sua importância na cidade41 e ainda o poder de uma
sociedade
civil
constituída
pelos
seus
próprios
habitantes, os burgueses, se construía o tecido socio-político da cidade medieval e que obrigava esta a reflectir, como se de um espelho se tratasse, esta heterogeneidade.
5.3.3.
Das formas urbanas dos Espaços Públicos
A organização dos sistemas económicos e sociais
produz
a emergência de espaços urbanos ajustados ao seu funcionamento e à importância relativa de cada segmento. Daí que a forma urbana não seja o fruto de um desenvolvimento aleatório da cidade e de jogos imobiliários casuísticos, mas uma tomada de decisão
consciente
no
sentido
de
responder
às
tensões
existentes.
40
A própria construção de recintos muralhados contribui para aumentar a clivagem entre o meio urbano e rural, ao tornar mais eficiente a recolha de impostos. 41 É necessário sublinhar que se a Igreja conferia protecção e permitiu a resistência do facto urbano também é verdade que só a produção de excedentes alimentares no campo a partir dos senhores feudais gerou as condições para a criação de bens e de população fundamentais para o exercício das trocas comerciais (Lewis Mumford, op. cit., p.277).
[164]
A forma urbana é, em primeiro lugar, condicionada pela própria localização da cidade que, pelo ambiente de incerteza e de volatilidade dos interesses, deve atender antes de mais ao primado da segurança
e da defesa. É comum a implantação em
colinas e ilhas, sendo que esta escolha determina a ocorrência de uma organização urbana irregular e até original. As ruas serviam não só para tornar permeável a cidade mas também para articular espaços separados por desníveis significativos. Estas particularidades contribuíram para que
Benévolo
(1995)
designou
como
conformar o
quatro
inovações
privados,
combinados
constitutivas: ►
Os
edifícios
públicos
e
livremente formam um aglomerado individualizado
que,
global fortemente
contemplando
do
exterior,
oferece uma visão de conjunto bem legível. Todavia, este não deriva do brilho das plantas urbanas ou das
actividades
aí
desenvolvidas,
mas
do
espaço
exterior construído pelas fachadas, pelas ruas e pelas praças. Estes elementos são o espelho de cada actor urbano e daí o investimento que cada grupo faz na promoção e qualificação do seu espaço. As praças são apenas maiores aberturas urbanas que as ruas
mas
não
comportam
diferenças
funcionais
substantivas entre si. A delimitá-los estão sempre os
edifícios
intra-muros
que
pela
assim
o
sua
altura
exige)
(a
confere
densidade
ainda
mais
protagonismo ao espaço livre na cidade. Estamos na interface
entre
o
público
importância
acaba
por
regulamentos
medievais,
e
ser
o
privado,
cuja
reconhecido
nos
dispondo
cirurgicamente
sobre estes interesses (pórticos, escadas, etc.); ►
O aumento da complexidade do espaço urbano está em proporcionalidade directa com o corpo social e o
[165]
cenário físico. O espaço público procura encontrar o equilíbrio entre os três tipos de poderes que coexistem na cidade medieval e que se materializam no
episcopado,
corporações,
governo
classes.
civil,
Uma
ordens
cidade
religiosas,
bastante
grande
nunca tem um único centro: tem um centro religioso, um centro civil e um ou vários centros comerciais, muitas vezes contíguos; ►
As muralhas, o carácter fechado do sistema social e económico
e
favorece
a
o
especial
concentração.
estatuto O
dos
centro
burgueses é
o
mais
procurado e, logo, o mais valorizado. Crescem os edifícios
e
a
densificação
e
ganham
crescente
visibilidade nesta área os edifícios públicos como os palácios e as igrejas como forma de afirmar o seu poder; ►
A outra face deste destaque urbano é a volatilidade das estruturas e formas urbanas. A cidade é, entre os
séculos
X
e
XV,
um
espaço
persistentemente
inacabados que faz com que os limites urbano sejam colocados em causa, os edifícios como as igrejas e palácios apresentam-se como inacabados envolvidos de andaimes, as casas refazem-se num processo de crescente densificação. A unidade segundo Benévolo é apenas conseguida pela generalização do estilo gótico – A arquitectura da luz.
Deslocando a discussão para as formas mais concretas dos espaços públicos, agora é mais fácil entender que se está perante um retorno ao espaço exterior após o período romano que
viu
nascer
o
espectador
e
o
espectáculo
em
recintos
fechados ou, pelo menos, bem delimitados. Mas agora o povo
[166]
medieval
estava
habituado
a
quotidianos
dominados
pela
liberdade do espaço público e que quando por qualquer razão se enchiam logo outros se criavam em condições de acessibilidade adequadas ao usufruto dos indivíduos. Afirma Mumford: “(...)no que diz respeito aos espaços abertos utilizáveis, a cidade medieval típica teve, no seu início e através da maior porção de sua existência, um padrão muito mais elevado para a massa da população do que qualquer outra forma posterior de cidade, até os primeiros subúrbios românticos do século XIX” (Mumford: 1998; 315). Pegando nas funções das portas da cidade verificar-se-á como a complexidade afecta os espaços das cidades medievais. Neste caso estamos na presença de uma fronteira que ora separa ora mete em contacto dois universos (rural e urbano) e um conjunto heterogéneo de visitantes habitualmente ligados ao comércio, fazendo despertar nas suas imediações uma dinâmica de apoio visível nas estalagens, lojas, etc.. Nos
espaços
mais
convencionais
surge
a
catedral,
buscando o lugar central e exigindo um largo fronteiro capaz de responder aos fluxos de fiéis que ali acorrem diariamente em volume significativo. Esta romaria quotidiana justificava os imponentes espaços dianteiros aos espaços religiosos e que muitas vezes era aproveitada por outras funções como o mercado e os festejos. O vezes,
mercado
tende
denunciando
a
a
procurar
a
dependência
centralidade face
a
e,
outros
muitas
poderes,
encosta-se aos locais de intensa procura como as igrejas. Mas nas cidades mais associadas ao comércio a praça do mercado era não
só
onde
praticava
a
as
guildas42
justiça,
o
se
exibiam,
desporto
e
os
mas
também
festejos
onde
se
populares.
Voisin (in Toussaint : 2001) escreve que « Les marchés sont sans doute les premiers espaces à se constituer en espaces 42
Associações corporativas medievais.
[167]
publics. Ils mettent en scéne tout à la fois les échanges et les
objects
échangés.
Dans
les
villes
italiennes
et
germaniques, les grandes halles fonctionelles qui abritent les activités
du
marché
accueillement
aussi
les
cérémonies
publiques ainsi que les activités de la justice bourgeoise ou princière» (p.39). Figura 12 - Praça central de Siena
5.4. Período renascentista – Cidade clássica e barroca O período fixado para a análise decorre entre o século XV e o século XVIII apesar da polémica ainda concluída quanto ao fim da Idade Média e início do Renascimento, resulta da convicção de que se encontram nesse período os fundamentos para
muito
do
que
se
seguiria,
nomeadamente,
no
plano
demográfico, económico e político. A
esta
nota
acresce
uma
outra,
não
menos
oportuna,
relativa à heterogeneidade que este período encerra, em que
[168]
pelo menos se distingue o período de transição com a Idade Média, os Descobrimentos e colonização e o período Barroco.
5.4.1. Ambiente económico Nasce o capitalismo mercantilista. É um nascimento que não foi fácil nem rápido e que surge na sequência de uma crise europeia de múltiplas faces, observada entre os últimos anos do
século
XIV
e
o
século
XV.
Nestas
faces
destaca-se
a
regressão demográfica registada como consequência da epidemia de
1347-1348,
residentes
subtraindo
à
cidade,
recursos
levando
à
humanos
à
emergência
agricultura de
uma
e
crise
económica e uma estagnação urbana. No meio destas perturbações surgem também derivações no campo social: “Os altos e baixos da economia avivam os conflitos sociais e as revoltas das camadas subalternas – os artesãos de Nuremberga, em 1348, os cardadores de lã de Florença, em 1378, os tecelões flamengos, em
1379,
os
tuchins
do
Languedoc,
em
1380,
os
camponeses
ingleses de Mile’s End, em 1381, o povo de Paris, em 1382 – resolvem-se
com
vantagem
para
as
classes
dominantes,
as
senhorias ou os reinos nacionais, que limitam as liberdades citadinas.
As
cidades
embora
continuem
a
ser
importantes
passam a ficar sob tutela”43. Todas
as
crises
implicam
um
desafio
que
visam
uma
solução que impeça a sua repetição e esta também despertou um conjunto de reacções no universo económico alertando para a emergência de novas condições e oportunidades. Funcionam como boas
ilustrações
os
desenvolvimentos
na
circulação
de
informação a partir de novas vias de comunicação e da melhoria do
serviço
regulador
de
correio;
na
inovação
no
campo
financeiro, com as lojas de câmbio; na relação laboral, a
43
F. Braudel in Benevolo, L., op. cit., p. 93
[169]
partir
da
centralização
na
contratação
de
mercadores;
no
progresso da técnica, com as comportas, relógios, etc. Parece, assim, poder afirmar-se com alguma segurança que muito
do
renascimento
fertilização
do
da
tecido
Europa
está
económico.
A
enraizado
este
nesta
propósito
é
especialmente claro Fernand Braudel(1992; 29): “O século XV vai assistir, sobretudo após 1450, a um relançamento geral da economia,
orientado
em
benefício
das
cidades.
E
estas,
favorecidas pela subida dos preços industriais, enquanto, por outro lado, os preços agrícolas estagnam ou baixam, arrancam mais rapidamente do que o campo. Sem qualquer margem de erro podemos dizer que, nesse momento, o papel de motor cabe às lojas de artesãos, ou mais precisamente, aos mercados urbanos. Estes mercados ditam as suas leis. O relançamento inscreve-se, assim, na base da vida económica”. Estas
mudanças,
porém,
exigiram
oxigénio
para
que
pudessem singrar e ele veio em larga medida da empresa dos Descobrimentos. Entre os extremos corporizados por uma herança pesada
da
entender
Idade este
Média
período
e
a
Revolução
renascentista
e
Industrial
é
fácil
barroco
como
uma
modernização das estruturas sociais e urbanas mas, sobretudo, como um indispensável momento de acumulação e reorganização capitalista. O mercado passou a ser espacio e temporalmente limitado, enquanto a loja sempre de portas abertas fixa o mérito de estar sempre disponível e, assim, manter a continuidade das trocas
e
a
animação
urbana.
Mas
como
afirma
Braudel
“a
economia de mercado encontra-se em fase de progresso e põe em contacto um número suficiente de burgos e de cidades, para iniciar já a organização da produção e orientar e comandar o consumo. Para isso vão ser precisos séculos, sem dúvida, e entre estes dois universos – a produção em que tudo nasce e consumo em que tudo se destrói – a economia de mercado
surge-
[170]
nos como a ligação, o motor, zona apertada, mas viva, de onde brotam
os
estímulos,
as
forças
vivas,
as
novidades,
as
iniciativas, as múltiplas tomadas de consciência, os fenómenos de crescimento e, até, o progresso”44. A alavanca para o desenvolvimento económico marcante, agora não só a uma escala urbana mas planetária, verifica-se simbolicamente em 1434 quando Gil Eanes dobra o Cabo Bojador e deixa antever o comércio com outras regiões do planeta e a futura colonização. Benevolo é claro quando afirma “Portugal, que durante todo um século comanda as explorações oceânicas, é um
país
povoado
pequeno para
e
periférico,
conquistar
não
vastos
suficientemente
territórios,
mas
rico
que
e
visa
implantar uma rede de bases comerciais na rota das Índias Orientais para controlar a oferta das especiarias que deverão chegar
a
Antuérpia
e
ao
mercado
europeu.
(...)
A
cultura
esquemática e utilitária dos aglomerados populacionais é a que domina, na primeira metade do século XVI, as sedes do poder económico e militar [como foi o caso do Bairro Alto de Lisboa - 1513]”45. Assim, configura-se um renovado ambiente económico que implica novos espaços de consumo e troca: os portos passaram a deter
os
marítimo
maiores é
financeiros,
de
níveis
tal
modo
actividades
de
centralidade
mobilizador
que
indiferenciadas,
pois atrai
o
comércio lojistas,
esvaziando
as
antigas praças dos mercados medievais e outros espaços livres. A consideração das mudanças económicas e o alargamento dos seus interesses para além-mar foram motores fundamentais para as transformações quer dos espaços urbanos existentes quer daqueles que foram necessários criar para apoiar a exploração dos novos territórios ultramarinos.
44 45
Idem, Ibidem, p.24 Benevolo, L., op. cit., p.123.
[171]
5.4.2. Política, cultura e religião Também domínio
do
aqui
as
poder
mudanças
(com
a
foram
violentas,
transferência
do
operadas
poder
no
feudal
ou
urbano para uma ideia de estado-nação), na religião subtraindo algum
fulgor
à
Igreja
cultural/artístico permitiu
em
dissociar
Católica
que
o
a
e,
forma
momento
de
finalmente, de
no
intervir
reflexão
da
na
plano cidade
execução
do
projecto. Em primeiro lugar a política. Surgem as raízes do Estado central.
Recorde-se
que
a
Europa
sofreu
uma
sangria
demográfica ao longo do século XIV que lhe subtraiu, na pior das
hipóteses,
quase
50%
da
população
com
o
que
de
desorganização e desvitalização tal implica. Tornou-se, para os
que
controlam
o
comércio
e
os
exércitos
mais
fácil
o
reforço do poder, anulando até a segmentação municipal até aí verificada. Recorremos uma vez mais a Mumford para ilustrar a transferência do poder municipal e a emergência de um poder mais
generalizado
assente
nas
forças
das
armas
e
com
aspirações absolutistas: “O Estado crescia à custa das partes componentes; a capital crescia fora de toda a proporção com as cidades provinciais, e, em medida não pequena, à custa delas. Quando as municipalidades se tornaram importantes, o controle local precisou ser complementado pela legislação nacional e, finalmente,
nada
pôde
ser
feito
sem
a
ajuda
e
sanção
da
autoridade central. Embora as capitais naturais fossem, em geral, situadas em pontos de especial vantagem para o comércio e
a
defesa
militar
originariamente
na
sua
–
já
que
escolha
-,
tais os
elementos
entraram
governantes
barrocos
lançaram mão de todos os poderes do Estado para confirmar essas vantagens”46. O reforço das cidades e sobretudo das capitais resulta do desenvolvimento e ampliação deste novo poder absoluto que, 46
Mumford, L., Op. Cit., p. 387
[172]
para
garantir
exércitos
a
mas
chancelarias,
sua
eficiência,
também
uma
tribunais
não
burocracia
que
renegara
a
assente
em
necessitavam
de
força
um
dos
arquivos, património
imobiliário significativo e de um batalhão de funcionários que dava visibilidade permanente ao poder do monarca absolutista. De algum modo a cidade servia para plasmar o poder real e assim servir como instrumento político e de dominação. A sofisticação a que se assiste entra, pois, em ruptura com o que era prática anteriormente como seria de esperar com a ampliação dos exércitos, a instauração de uma burocracia, surgimento do capitalismo mercantilista e o desenvolvimento de uma
teia
que
abafava
os
anteriores
poderes
religiosos
e
municipais e que tinha no centro a capital e o rei. O
poder
foi,
durante
segmentado
como
o
reflectir
nos
edifícios
arquitectónicos
e
a
demonstra
Idade
o e
urbanísticos
Média,
próprio nos a
repartido
espaço
urbano
restantes importância
e ao
elementos dos
vários
actores: sacerdote, mercador, artesão, senhor feudal, etc.. “O príncipe” de Nicolau Maquiavel é um claro sinal como neste período se regista uma concentração de poderes em torno do governante e um alargamento desse poder não a uma cidade ou município mas a todo um Estado compreendido na sua dimensão metropolitana e colonial. Esta concentração do poder unipessoal faz-se à custa da força e da lei marcial. Os exércitos aumentam o número de efectivos mesmo em tempo de paz e sobretudo aumentam o seu poder bélico agora com um novo e revolucionário trunfo: a pólvora.
Desde
o
urbanismo
à
arquitectura
quase
todas
as
estruturas territoriais se renderam a esta inovação empregada no exercício da repressão e da guerra. Reproduzindo Mumford “(...) os tiros simplificaram a arte de governar: eram um meio rápido de pôr fim a uma discussão embaraçosa. (...) O rifle, o canhão, o exército regular ajudaram a produzir uma raça de
[173]
governantes
que
não
reconhecia
outra
lei
senão
a
de
sua
47
própria vontade e capricho” . A par da reconfiguração do sistema de forças presentes na cidade e a recolocação hierárquica dos vários actores surge uma
outra
transformação
relacionada
com
uma
em
dimensão
parte
complementar
artística
e
daquela,
cultural.
Arte,
cidade e política conjugam-se sempre que possível sendo que essa
possibilidade
há-de
ser
maior
nos
territórios
recentemente descobertos e colonizados e menor ou, pelo menos, mais complexo nas cidades herdadas da Idade Média. Um
dos
instrumentos
mais
eficientes
adoptados
na
renovação cultural foi a pintura onde os mestres de Florença e Siena propuseram, com sucesso, renovadas modalidades de olhar o mundo, desde finais do século XIII. É neste quadro que são elaboradas as primeiras plantas urbanas; pela primeira vez não impregnada pelos valores religiosos48. Pode afirmar-se que se operou neste início do século XV uma revolução visual que havia de atingir não só a arte como aspectos materiais da coexistência
humana,
como
as
cidades,
sendo
a
principal
49
impulsionadora das suas transformações . Finalmente, para entender o que mudou e porque mudou é imprescindível
apresentar
a
chave
dessa
mudança:
a
perspectiva. Esta, por seu turno, reenvia à ideia, também nova, de tridimensionalidade. Como Benevolo notou “A tendência
47
Idem, Ibidem, p.393. A planta urbana de Veneza, datada de 1348, e as tabuinhas de Siena são exemplos clássicos. 49 Leonardo Benevolo recorda oportunamente que “(...)se até meados do século XV, os pintores e os escultores trabalham integrados nas instituições corporativas – em Florença, os pintores estão inscritos na corporação dos médicos e boticários, a quem compram as cores, os escultores em pedra estão inscritos na corporação dos mestres pedreiros e carpinteiros, e os escultores em metal e os ourives estão inscritos na corporação da seda, que reagrupa vários ofícios dedicados ao fabrico dos objectos de luxo -, a sua competência não se considera limitada a uma determinada laboração material: trata-se de um magistério geral no domínio das formas visíveis e habilita-os mesmo a dar conselhos no campo da arquitectura e do projecto urbano.” (op. cit., p.99) 48
[174]
para
compreender
e
controlar
o
mundo
das
formas
visíveis
encontra uma resposta científica e definitiva: a perspectiva linear, que estabelece uma correspondência precisa entre a reprodução
artística,
tridimensional
dos
esculpida
objectos
ou
pintada,
reproduzidos.
e
A
a
forma
perspectiva
selecciona o mundo das imagens de acordo com uma hierarquia de valores – em primeiro lugar, as relações proporcionais, em seguida, as dimensões e as características físicas, o grão e a cor – de que derivam as regras de projecção das obras de todos os géneros, desde os edifícios até às paisagens urbanas”50. Para
o
conduziram
que
a
nos
um
interessa
urbanismo
todas
apoiado
em
estas
inovações
três
princípios
fundamentais: ►
Linha recta
►
Perspectiva monumental
►
Programa
Se visual
os a
projecto
dois
primeiros
última
dissocia,
da
fase
de
revolucionaram pela
execução,
primeira ou
por
a
nova
vez,
outras
a
paisagem ideia
palavras,
do a
reflexão sobre o espaço e a sua construção. Pode, económica
assim, e
ser
traduzida
construída
uma
espacialmente
de
mensagem modo
política,
premeditado
e
estudado. É evidente que as cidades medievas são um palco de grande
constrangimento
e,
por
isso,
nelas
encontramos
os
exemplos mais minimalistas enquanto que nas cidades novas ou os arredores ou ainda as cidades construídas nos territórios colonizados, a perspectiva, a linha recta e os novos espaços urbanos surgem com grande vigor. 50
Benevolo, L, Op. Cit., p. 101
[175]
A dificuldade inicial em exprimir estas regras estimulou ainda o aparecimento de variados tratados51 que procuravam, simultaneamente, descrever cidades imaginárias e os sistemas económicos, políticos e sociais que lhe estavam associados com o grave inconveniente de um afastamento cada vez maior com a realidade.
Torna-se,
porém,
importante
sublinhar
o
entendimento de cidades como espaços completos, coerente e, sobretudo, indispensável ao exercício do poder, agora não só local como nacional. A colonização no nosso mundo é a rara oportunidade que se depara ao urbanismo de pôr em prática algumas das novas ideias
sem
constrangimentos
prévios.
Benevolo
refere-se
ao
“primeiro concílio da Igreja mexicana, em 1555, exige que os indígenas sejam convencidos – ou obrigados, se for necessário, mas
com
a
menor
violência
possível
–
a
morar
em
locais
convenientes e em cidades razoáveis, onde possam viver de uma forma política e cristã”52. Chegados aos séculos finais do período em análise (XVII e XVIII) estamos em pleno período barroco sendo este marcado pela
exuberância
das
formas
quer
em
extensão
(avenidas,
passeios públicos) quer em volumes (estatuária, edifícios). A cidade
fica
marcada
pela
abertura
de
enormes
vias
de
circulação que convergem para um centro carregado de um enorme significado político. Esta evolução linear teve também como causa as exigências numa melhor mobilidade intra-urbana, dado que já
se haviam verificado progressos técnicos interessantes
nas formas de mobilidade (as rodas deixaram de ser maciças para
se
ligarem
ao
eixo
por
raios
de
madeira,
com
as
extremidades a terminarem no arco e, no centro, no cubo). O aumento
da
velocidade
exigia
novas
condições
das
infra-
estruturas de suporte e até de organização das próprias vias 51
São vários os tratados mas destacam-se o de Filarete, Tomás Campanela (cidade do sol) e Tomas Morus (Utopia). 52 Benevolo, L., op. cit., p.132
[176]
dado que há que garantir a separação clara entre quem circula (os
ricos)
e
quem
se
queda
pela
calçada.
Mumford
é
especialmente duro com estas mudanças: “Para eles foi feita a avenida, aplainou-se o calçamento e se acrescentaram molas e almofadas ao veículo de rodas: era para protegê-los que os soldados se punham em marcha. Possuir cavalo e carruagem era sinal de êxito comercial e social; possuir um estábulo inteiro era
sinal
de
fartura.
No
século
XVIII,
os
estábulos
e
cocheiras invadiram os bairros menos requintados das capitais, por trás das largas avenidas e praças sumptuosas, levando para ali o odor débil e sadio de palha e esterco. Se não havia mais galos a cantar na aurora, o patear incansável de um cavalo de alta linhagem podia ser ouvido à noite pela janela dos fundos; o homem a cavalo tinha tomado posse da cidade”53.
5.4.3. Das formas urbanas dos espaços públicos Como se verificou o ambiente económico, político e até tecnológico sofreu mudanças que se repercutiram sobre a cidade e respectivos conteúdos. Desde a gradual passagem do comércio para espaços fechados e reservados como as lojas, deixando as feiras e mercados, até às necessidades de manifestação do poder
simbólico
e
efectivo
por
parte
dos
monarcas
absolutistas, tudo conduziu a uma oferta de espaços públicos urbanos francamente singulares e de concepção reflectida de modo a impregna-los de determinados significados. É, nesta perspectiva,
possível
esboçar
uma
semiologia
dos
espaços
públicos urbanos. Fixaremos
para
análise
alguns
dos
elementos
mais
relevantes onde se destacam o Jardim, a Avenida e a Praça, embora esta apresente diferentes configurações e sentidos, de
53
Mumford. L., op. cit., p. 403
[177]
acordo com a sua posição na cidade ou com a função dominante que é suposto garantir. Perspectiva,
racionalidade,
plano,
projecto,
geometrização, são conceitos que ganham expressão, sobretudo quando aplicados à expansão urbana e reforçados quando se reportam aos espaços públicos. O período da colonização, a emergência
do
militar
ainda
e
poder a
absolutista,
o
reconfiguração
protagonismo do
ambiente
do
poder
económico
permitiram, no domínio do conteúdo funcional, que os espaços públicos passassem a incorporar outros significados que não os que até aí lhes tinham sido conferidos pelo mercado, pela igreja ou pelo palácio. Surgem então novas formas e renovados usos nos espaços urbanos como resultado das múltiplas mudanças ocorridas entre os séculos XV e XVIII e como instrumentos de instauração
de
uma
singular
ordem
espacial
de
uma
também
original ordem sociopolítica54. Em primeiro lugar impõe-se a descrição da praça pois pela sua dimensão, forma e significado, coloca-se em lugar destacado
na
estrutura
da
cidade.
Se,
enquanto
na
cidade
medieva a praça não apresentava qualquer traço regular, pois o espaço aberto que ela exigia era obtida casuísticamente pelo desaparecimento de uma construção ou pela área conquistada a uma rua, a imposição de um olhar geométrico e racional sobre a cidade impediu a continuidade deste modo de produzir espaço público.
54
Embora este ponto se pretenda deliberadamente sumário, não é possível contornar o autor que maior impulso concedeu à revolução das formas urbanas – Leon Battista Alberti. A sua importância, consubstanciada num tratado que renova a forma de olhar para a cidade e arquitectura, vem concretizar a separação entre projecto (lineamenta) e a sua execução (strucutra).
[178]
Figura 13 - Monsaraz
Fonte: Carvalho (2003)
Por outro lado, a praça renascentista ganhou expressão também porque se multiplicou no tecido urbano. Com efeito ocorreu
um
natural
desdobramento
das
funções
que
a
praça
medieval acumulava (religiosa, judicial, municipal, económica) fazendo emergir uma especialização no domínio destes espaços públicos: a praça de armas, a praça real, a praça dos paços do concelho, o adro da Igreja, etc.. Neste
processo
esvaziamento
das
há
praças
que
entender
medievais
o
pelos
progressivo mercadores
e
consumidores em direcção a espaços novos: a rua e os portos fluviais e marítimos, onde chegava o comércio de paragens mais ou menos distantes mas que a partir do século XVI se foram reforçando com a chegada de produtos das paragens entretanto “descobertas”
e 55
André Sauvage du
Roi,
son
colonizadas
pelos
europeus.
Como
salienta
as praças “manifestent la puissance militaire régne
et
la
subordination
des
institutions
municipales. Elles sont des ruptures dans la ville féodale organique. Elles changent le statut des délaissés des anciens faubourgs. Ainsi, le Champ de Mars à Paris, la place Bellecour 55
In Toussaint, Jean-Yves (Dir.), op. cit., p.41
[179]
à Lyon, ou la place Stanislas à Nancy, sont autant de places royales qui bordent le noyau ancien de la ville et qui, ce faisant, articulent de nouveaux quartiers. D’abord champs de manoeuvre
pour
les
armées,
l’urbanisme
les
transforme
en
espaces de représentation centrés sur la statue royale ou princière.
Ces
places
deviennent
l’espace
privilégié
des
manifestations de la puissance de l’Etat. Elles accuillent les défilés militaires. Les prises d’armes y sont magnifiée”. Talvez a melhor prova de que estas praças eram sobretudo criadas para celebração do poder, quer através da concentração massas
populares,
estrutura
quer
urbana,
quer
pela
sua
ainda
imponência para
campo
e
destaque
de
na
exercícios
militares, e só lateralmente cumpriam as funções que hoje atribuímos constatação “Toutefois,
aos
espaços
também
apresentada
entre
surdimensionnées
públicos
deux
sont
contemporâneos,
por
Toussaint
(2001;
manifestations,
abandonnées
à
la
está
ces
sociabilité
na 41):
places et
aux
espaços
são
loisirs populaires”. Para
além
do
carácter
real,
estes
novos
marcados por um carácter militar a que já se referiu Sauvage. Com a pólvora e o violento aumento do número de efectivos do exército por motivos de sustentação do poder absolutistas foi terreno
aberto
para
a
almejada
geometrização
dos
espaços
urbanos agora aplicada às cidades fortificadas militares. Os planos Vauban são os mais conhecidos, dado que incorporou, de um modo inovador, a arquitectura e o urbanismo
adequados à
guerra e à defesa contra artilharia. Não só as muralhas passam a deter um inesperada configuração, necessária para resistir mais eficazmente aos tiros de canhão, mas também a organização geométrica e racional do tecido urbano passa a deter uma praça de armas ao centro que pode chegar a um hectare. Entretanto
uma
grande
oportunidade
se
abria
para
a
concretização de muitas das reflexões com a cidade por pano de
[180]
fundo relacionada com a ocupação das terras colonizadas. Se as cidades
medievas
apresentavam
constrangimentos
arreliantes
estas permitiam fazer cidade na verdadeira acepção do termo até suscitando a criação de leis urbanísticas56.
Uma das leis das índias, produzida por Filipe II, ordena «que se leve sempre já feita a planta do lugar que irá ser fundado». No que se refere ao traçado, a planta dividir-se-ia em praças, ruas e terrenos de construção «a régua e cordel», «começando na Praça Maior e fazendo sair dela as ruas em direcção às portas e caminhos principais e deixando tantos espaços abertos que mesmo que a população tenha um grande crescimento, se possa sempre prosseguir e dilatar sehuindo sempre a mesma forma» (Goitia, p.120). Ainda no sentido de aclarar as implicações da racionalidade na forma urbana, interessa reproduzir algumas das referências estruturais para a criação de novas cidades: «Ao chegar ao local onde a nova cidade irá ser fundada (por nossa vontade, deve ser um lugar vago, que possa ser ocupado sem causar aborrecimentos aos índios ou com o seu consentimento), o plano, com as praças, as ruas e os lotes para construção, deve ser traçado no terreno com cordas e piquetes, começando pela praça principal [...] e deixando suficiente espaço livre, de modo que a cidade, ao crescer, se possa estender sempre do mesmo modo [...]. A praça central, de forma oblonga, com um comprimento pelo menos igual a vez e meia a sua largura, porque esta proporção é a melhor para as festas onde se utilizam cavalos e para as outras celebrações, deve ficar no centro da cidade [...]. A praça deve ser projectada tendo em conta o possível crescimento da cidade. Não deve ter menos de 200 pés de largura e 300 de comprimento, nem ter mais de 500 pés de largura e 800 de comprimento. Uma praça bem proporcionada, de média grandeza, terá 400 pés de largura e 600 pés de comprimento. «Quatro ruas principais devem sair do ponto médio de cada lado e duas de cada um dos ângulos. Os ângulos devem ser voltados para os pontos cardeais, para as ruas não ficarem directamente expostas aos quatro ventos principais. A praça e as ruas principais serão providas de pórticos [...]. As oito ruas que convergem para os ângulos devem desembocar na praça sem serem obstruídas pelos pórticos [...]. As ruas serão largas, nas regiões frias, e estreitas, nas regiões quentes; todavia, para fins defensivos, nos locais onde se utilizam cavalos, convirá que sejam largas. «Nas cidades do interior, a igreja não deve ser construída no perímetro da praça, mas a uma distância tal que fique separada dos edifícios e o acesso seja feito por uma série de degraus [...]. O hospício para os doentes não contagiosos será construído no lado norte, para ficar exposto ao sul [...]. Os lotes para construção em volta da praça não devem ser entregues aos particulares, mas reservados para a igreja, as casas rurales, os edifícios municipais, as lojas e casas dos mercadores [...]. Os lotes remanescentes serão distribuídos à sorte pêlos colonos que estiverem habilitados a construir. Os lotes não entregues serão guardados para os colonos que vierem depois, ou para se dispor deles a nosso bel-prazer [...].Os lotes e os edifícios devem estar dispostos de modo que as casas recebam ar do Sul e do Norte [.. J. Todos os edifícios devem, tanto quanto possível, ser uniformes, tendo em vista a beleza da cidade.» (Benevolo, p.135). 56
[181]
A
partir
dos
estudos
promovidos
por
Teixeira57
foi
possível aprofundar os traços dos espaços públicos portugueses sublinhando-se particularidades como a diversidade das praças: “Uma característica importante da tradição urbana portuguesa é a multiplicidade de praças dentro de um mesmo núcleo urbano. É habitual
encontrarem-se
nas
cidades
portuguesas
diferentes
praças para diferentes funções: funções de mercado, em espaços que muitas vezes tinham a sua origem em campos e em terreiros localizados à margem das malhas urbanas e que posteriormente se
transformavam
nomeadamente
os
medievais
as
políticas
e e
em
praças
campos
urbanas;
associados
praças
de
às
armas
administrativas,
em
funções
que
torres
militares, de
menagem
seiscentistas;
funções
se
incluem
as
praças
associadas ao poder municipal, onde se localizavam a Casa de Câmara e o pelourinho; funções religiosas, associadas à origem de alguns destes espaços como adros de igreja, terreiros de igrejas matrizes ou de conventos. Esta multiplicidade de praças associadas a diferentes funções, que encontramos inscrita nas cidades portuguesas de diferentes períodos, é rigorosamente formalizada nos traçados urbanos setecentistas, em que habitualmente encontramos pelo menos duas praças: uma associada ao poder político, outra ao poder religioso. A forma das praças surge inevitavelmente associada ao processo que lhes deu origem. Existem praças geradas a partir da
íntima
aparentemente
relação não
dos
traçados
planeados,
com
a
urbanos estrutura
vernáculos, física
do
território em que se implantam e praças que resultam de acções de planeamento inspiradas em modelos eruditos. No primeiro caso, estes espaços resultam habitualmente do cruzamento ou do entroncamento de caminhos e são bastante ricos do ponto de 57
Director da licenciatura em Arquitectura e do Centro de Estudos de Urbanismo e de Arquitectura do Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa e entrevistado no âmbito dos trabalhos desta dissertação.
[182]
vista morfológico, apresentando uma grande variedade de formas resultantes das situações topográficas em que se situam e dos tipos
de
confluências
de
caminhos
a
partir
dos
quais
se
geraram. Estas praças são normalmente pontuadas por edifícios de natureza religiosa e são muitas vezes geradoras dos tecidos urbanos que em torno delas se desenvolvem. No segundo caso, as praças que resultam de acções de planeamento, embora variando na sua forma e na sua relação com a malha urbana envolvente, de acordo com as épocas da sua construção e as respectivas culturas
arquitectónicas,
ortogonal.
O
portuguesas, adicionando,
adoptam
processo
habitual
através
de
gera
ainda
de
malhas outras
geralmente
uma
crescimento sucessivas
situações
das que
forma cidades se
vão
potenciadoras
de
futuras praças. É assim que no encontro de malhas urbanas construídas em momentos diferentes restavam por vezes espaços residuais, que em tempo se viriam a estruturar como praças urbanas” (Teixeira: 2001; 11). Os primeiros jardins e parques urbanos surgem ao longo do século XVI em Paris como elementos de enquadramento dos palácios
e
edifícios
reais
mas
também
como
lugares
de
sociabilidade para os grupos que viram na segregação social uma
modalidade
natureza,
a
de
elitização
tranquilidade
são
e
destaque. valores
A
harmonia,
assumidos
e
a que
encaixavam muito bem nos novos espaços de expansão, através da composição
das
ruas
e
eixos
rectos
traçados.
Criavam-se
ambientes de descoberta, aventura, inesperados e de intimidade que
deliciavam
as
elites
e
as
faziam
dispensar
as
outras
realidades urbanas. Os jardins e parques urbanos tiveram um enorme sucesso e reproduziram-se até ao século XVIII até sob a forma de Passeios Públicos, como sucedeu em Lisboa em 1764.
[183]
5.5. Cidade moderna Mais
uma
vez,
apela-se
para
a
compreensão
da
complexidade de um período que em termos gerais se estende desde os finais do século XVIII até meados do século XX. As guerras mundiais, as revoluções industriais e culturais entre outras
são
os
desenvolvimento
exemplos dos
mais
óbvios
transportes
com
dessa
complexidade.
O
grandes
implicações
na
vida económica e social foram responsáveis pelo crescimento horizontal das cidades enquanto outros artifícios mecânicos e técnicos
se
responsabilizaram
pelo
seu
crescimento
na
vertical.
5.5.1. Ambiente Económico Já tinham ocorrido muitas revoluções desde o início da Humanidade, mas nenhuma teve a capacidade de aceleração das sociedades no sentido da mudança como a revolução industrial. A
Revolução
Industrial,
ocorrida
inicialmente
na
Inglaterra, integra o conjunto das “Revoluções Burguesas” do século XVIII, responsáveis pela crise do Antigo Regime, na passagem do capitalismo comercial para o industrial58. No seu sentido mais pragmático, a Revolução Industrial significou
a
substituição
da
ferramenta
pela
máquina
e
contribuiu para consolidar o capitalismo como modo de produção dominante. Esse momento revolucionário, de passagem da energia humana
para
motriz,
é
o
ponto
culminante
de
uma
evolução
tecnológica, social e económica, que vinha a processar-se na Europa desde a Baixa Idade Média.
Os outros dois movimentos que a acompanham são a Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa. 58
[184]
Nessa
evolução,
industrial
conheceu
a
produção
duas
etapas
manual bem
que
antecede
definidas,
a
dentro
do
processo de desenvolvimento do capitalismo: ►
O artesanato foi a forma de produção característica da Baixa Idade Média, durante o renascimento urbano e comercial, sendo representado por uma produção de carácter familiar, na qual o produtor (artesão), possuía os meios de produção (era o proprietário da oficina
e
das
ferramentas)
e
trabalhava
com
a
família na sua própria casa, realizando todas as etapas da produção, desde o arranjo da matériaprima, até o acabamento final; ou seja, não havia qualquer divisão do trabalho ou especialização. Em algumas situações o artesão tinha junto a si um ajudante, porém não assalariado, dado que realizava o mesmo trabalho pagando uma quantia determinada pela utilização das ferramentas. ►
É
importante
produção
lembrarmos
artesanal
que
estava
nesse sob
período
controle
a das
corporações de ofícioe o comércio encontrava-se sob controle
de
associações,
limitando
o
desenvolvimento da produção; ►
A manufactura predominou ao longo da Idade Moderna, resultando da ampliação do mercado consumidor com o desenvolvimento do comércio monetário e financeiro. Nesse
momento,
já
ocorre
um
aumento
na
produtividade do trabalho, devido à divisão social da produção, onde cada trabalhador realizava uma etapa na confecção de um produto. A ampliação do mercado
consumidor
alargamento
do
relaciona-se
comércio,
tanto
directamente
ao
em
ao
direcção
oriente como em direcção à América, permanecendo o lucro
nas
mãos
dos
grandes
mercadores.
Outra
[185]
característica desse período foi a interferência do capitalista
no
processo
produtivo,
passando
a
comprar a matéria prima e a determinar o ritmo de produção,
uma
vez
que
controlava
os
principais
mercados consumidores.
A
partir
da
máquina59,
fala-se
numa
primeira,
numa
segunda e até numa terceira e quarta Revolução Industrial. Porém, se concebermos a industrialização como um processo, seria mais coerente falar-se num primeiro momento (energia a vapor no século XVIII), num segundo momento (energia eléctrica no século XIX) e num terceiro e quarto momentos representados, respectivamente,
pela
energia
nuclear
e
pelo
avanço
da
informática, da robótica e do sector de comunicações ao longo dos séculos XX e XXI. A Inglaterra industrializou-se cerca de um século antes de
outras
nações,
por
possuir
uma
série
de
condições
históricas favoráveis entre as quais se destacam: o capital acumulado durante a fase do mercantilismo; o vasto império colonial
consumidor
e
fornecedor
de
matérias-primas,
especialmente o algodão; a mudança na organização fundiária, com a aprovação dos enclausures responsável por um grande êxodo no campo, e consequentemente pela disponibilidade de mão-de-obra abundante e barata nas cidades.
A máquina e a sua invenção abriu as portas a outros desenvolvimentos estruturalmente relacionados com a expansão da actividade industrial: 1733, John Kay inventa a lançadeira volante. 1767, James Hargreaves inventa a “spinning janny”, que permitia a um só artesão fiar 80 fios de uma única vez. 1768, James Watt inventa a máquina a vapor. 1769, Richard Arkwright inventa a “water frame”. 1779, Samuel Crompton inventa a “mule”, uma combinação da “water frame” com a “spinning jenny” com fios finos e resistentes. 1785, Edmond Cartwright inventa o tear mecânico.
59
[186]
Outro factor determinante, foi a existência de um Estado liberal na Inglaterra desde 1688, surgido com a Revolução Gloriosa. Essa revolução que se seguiu à Revolução Puritana (1649),
transformou
a
Monarquia
Absolutista
inglesa
em
Monarquia Parlamentar, libertando a burguesia de um Estado centralizado e intervencionista, que dará lugar a um Estado Liberal Burguês na Inglaterra um século antes da Revolução Francesa. Este período que nos transporta até meados do século XX observa
ainda
um
outro
momento
fundamental
–
a
grande
depressão de 1929. A crise económica desencadeada a partir deste
ano,
quando
da
quebra
da
Bolsa
de
Valores
de
Nova
Iorque, reflecte a crise mais geral do capitalismo liberal e da democracia liberal. No período entre guerras (1919 – 39), a economia procurou encontrar caminhos para a recuperação, a partir
do
liberalismo
de
Estado,
ao
mesmo
tempo
que
se
consolidava o capitalismo monopolista. Mesmo nos EUA, as leis anti-monopólio
perdiam
o
efeito
e
grandes
empresas
–
industriais e bancárias – tomavam conta do cenário económico, protegidas
pela
política
não
intervencionista
adoptada
principalmente a partir de 1921. Convirá americano.
tratar
Com
com
um
efeito,
pouco
desde
o
mais
de
detalhe
o
caso
final
do
século
XIX,
a
indústria norte americana conheceu um grande crescimento, no quadro da Segunda Revolução Industrial. Em
1912
foi
eleito
o
presidente
Woodrow
Wilson,
do
Partido Democrata, a partir da defesa da Nova Liberdade, que começou a ser aplicada com a criação de leis trabalhistas específicas
a
marinheiros
e
privilégios
de
algumas de
leis
pequenos
categorias que
profissionais
pretendiam
grupos,
eliminar
através
de
os
como
os
grandes
mecanismos
que
coibiam o controle de mercado, aperfeiçoando a Lei Anti trust.
[187]
No
entanto,
política
e
a
o
início
economia
da
passou
Primeira a
ser
Guerra
anulou
dominada
por
essa
Trusts,
Holdings e Cartéis. A produção norte americana deu um salto gigantesco em vários sectores, destacando-se a indústria bélica, de material de campanha, de alimentos e mesmo de sectores destinados ao consumo interno, uma vez que o potencial de consumo no país aumentou com a elevação do nível de emprego; ou ainda para a exportação, principalmente para a América Latina, tomando o lugar que tradicionalmente coube à Inglaterra. Terminada a Guerra, realizou-se a Conferência de Paris, onde
os
três
grandes
tomaram
as
principais
decisões
e
impuseram os tratados aos países vencidos. No entanto, apesar da
participação
do
presidente
Wilson,
os
EUA
não
criaram
mecanismos que garantissem a sua participação nas reparações de guerra ou o pagamento dos empréstimos e das vendas aos países aliados, ao mesmo tempo que não reivindicaram nenhum território colonial. A
partir
de
1922
a
França
e
a
Inglaterra
processo de recuperação e passam a saldar
começam
o
as suas dívidas com
os EUA: porém, esse procedimento só será colocado em prática, na medida em que os alemães pagarem as reparações de guerra. A partir de 1924, os EUA passam a colaborar com a recuperação da economia
alemã,
assim
pagamento
o
fazendo das
investimentos
no
reparações
consequentemente
e
país,
garantindo das
dívidas da época da Guerra esse período, após o ano de 1921, até
a
crise
de
29
ficou
conhecido
como
Big
Bussines,
caracterizado por grande desenvolvimento tecnológico, grande aumento da produção em novas áreas como a automobilística, geração de emprego e elevação do nível de consumo das camadas médias
urbanas.
Os
edifícios
tornaram-se
os
símbolos
da
prosperidade norte americana. A política económica adoptada pelos republicanos estimulava o desenvolvimento industrial em
[188]
sectores variados e a concentração de capitais ao mesmo tempo que inibia as importações; essa política, caracterizada pelo nacionalismo,
traduziu-se
em
preconceito
e
intolerância
do
ponto de vista social A primeira expressão da crise ocorre no campo, na medida em que as exportações diminuíam, os grandes proprietários não conseguiam saldar as dívidas realizadas no período da euforia, além disso eram forçados a pagar altas taxas para armazenar os cereais,
acumulando
dívidas
que
os
levou,
em
massa,
à
falência. As dificuldades sentidas no campo reflectiram-se nas cidades com a crise no consumo pois o poder de compra diminuía na medida em que a mecanização da indústria passou a gerar mais
desemprego;
ao
mesmo
tempo,
promoveu
a
quebra
de
instituições bancárias, que confiscavam as terras e ao mesmo tempo não recebiam os pagamentos dos industriais que passavam a não vender sua produção. A
crise
espalhou-se
rapidamente
pelo
mundo,
devido
a
interdependência do sistema capitalista. Os EUA eram o maior credor dos países europeus e latinos e passaram a exercer forte pressão no sentido de receber o capital em falta.
5.5.2. Política, cultura e religião A condições
Revolução de
Industrial
vida
do
alterou
trabalhador
profundamente braçal,
as
provocando
inicialmente um intenso deslocamento da população rural para as cidades, com enormes concentrações urbanas. A produção em larga escala e dividida em etapas irá distanciar cada vez mais o
trabalhador
do
produto
final,
já
que
cada
grupo
de
trabalhadores irá dominar apenas uma etapa da produção. Na esfera social, o principal desdobramento da revolução foi o
[189]
surgimento classe
do
social
proletariado definida.
urbano
Vivendo
(classe
em
operária),
condições
como
deploráveis,
tendo o cortiço como moradia e submetido a salários miseráveis com longas jornadas de trabalho, o operariado nascente era facilmente
explorado,
devido,
à
inexistência
de
leis
protectoras. O desenvolvimento das ferrovias absorveu grande parte da mão-de-obra masculina adulta, provocando em escala crescente a utilização de mulheres a e crianças como trabalhadores nas fábricas têxteis e nas minas. O agravamento dos problemas socioeconómicos com o desemprego e a fome, foram acompanhados de outros problemas, como a prostituição e o alcoolismo. Os
trabalhadores
destacando-se Ludlan),
o
reagiam
movimento
caracterizado
operários,
e
o
das
mais
“ludista”
pela
diferentes
(o
nome
destruição
movimento
das
“cartista”,
vem
formas, de
Ned
máquinas
por
organizado
pela
“Associação dos Operários”, que exigia melhores condições de trabalho
e
o
fim
do
formação
de
evoluíram
lentamente
voto
associações em
censitário. denominadas
suas
Destaca-se
ainda
“trade-unions”,
reivindicações,
a
que
originando
os
resultante
da
primeiros sindicatos modernos” (Hobsbawm: 1994) O
divórcio
Revolução
entre
Industrial,
capital é
e
trabalho
representado
polarização entre burguesia
socialmente
pela
e proletariado. Esse antagonismo
define a luta de classes típica do capitalismo, consolidando esse sistema no contexto da crise do Antigo Regime. Neste período das revoluções (Rev. francesa, americana, industrial, ...) é enganador que as cidades sofreram também uma revolução do mesmo tipo ou ainda que só se deu a expansão urbana
onde
industriais.
se
assiste
Sennett
à
presença
considera
até
das que
grandes “(...)
unidades
parler
de
«révolution urbaine» et de «cité industrielle» est une maniére
[190]
trop rapide – et presque trompeuse- de décrire les changements qui se sont produits il y a un siécle. La premiére expression égare, car elle suggére que la croissance des villes du XIX siécle a été si importante que ces derniéres n’avaient plus aucun rapport avec les villes qui existaient auparavant. La seconde tromphe également, en suggérant que cette croissance s’est surtout manifesté dans les villes oú la population se consacrait à la production dans des usines géants. En réalité, le plus fort acroissement démographique a eu lieu dans des villes oú il existaient peu de grandes industries- il s’est produit dans les capitales“ (Sennett: 1979; 109). Isto significa que o aumento de permeabilidade urbana ocorrido do século XV ao século XVIII (praças, avenidas, ruas de grande extensão), num contexto de uma fraca dinâmica de crescimento político
urbano
vai
e
acolher
como
significado
uma
nova
de
cidade
um
que
novo
se
poder
densifica
económica e demograficamente e que torna mais complexas as relações de sociabilidade à escala inter-classista. A rua e o bairro, mais do que a cidade, passaram a ser os locais mais privilegiados
para
concentrar
grande
parte
da
população
trabalhadora, com custos pesados no direito à Cidade, sendo mais uma nova forma de dominação. Para camadas
além
mais
desta
humildes,
contracção outro
na
processo
territorialidade de
das
concentração
se
verifica no comércio a retalho em Paris e Londres, com a introdução
dos
experimentar
“grandes
sem
armazéns”.
obrigação
de
Estes
comprar
permitiam
ver
desenvolvendo
e a
possibilidade de promover a imagem pública dos indivíduos sem exigir
o
desenvolvimento
de
sociabilidades
dos
espaços
abertos. Todavia, o incremento e o aparecimento do significado do objecto (semiologia) aprofunda-se e faz com o novo comércio a
retalho
estimule
a
permanência
da
exposição
pública,
designadamente, através do vestuário sobretudo a partir de meados do século XIX.
[191]
A
dinâmica
cultural
constituindo-se intelectuais, entre
em
objecto
reunindo
outros.
afecta
Por
fortemente
favorito
escritores,
isso,
a
a
das
discussões
filantropos,
par
do
cidade,
políticos,
desenvolvimento
e
estruturação dos princípios e técnicas que virão a constituir as raízes do planeamento moderno e que têm como principais impulsionadores
as
reflexões
dos
três
séculos
anteriores,
surgem críticas contundentes, ainda marcadas pelo moralismo, sobre as características emergentes da cidade industrial. A obra de Engels sobre a Situação da Classe Trabalhadora em Inglaterra,
publicada
em
1845,
no
capítulo
referente
às
grandes cidades descreve enfaticamente as condições miseráveis dos bairros, casas, alimentação e vestuário das classes mais modestas. A par destas críticas, surgem as propostas sociourbanísticas
onde
as
comunidades
autosuficientes
eram
a
hipotética alternativa ao mundo capitalista60. Em síntese, na primeira metade do século XIX sublinha-se um esforço de denúncia e de medidas correctoras de carácter higienista e reformistas observáveis em intervenções como: ►
Pavimentação
de
ruas,
controle
higiénico
e
distribuição de água; ►
Controle
sobre
edificações
privadas
para
que
cumpram as disposições de higiene e segurança; ►
Instrumentos
de
apoio
e
promoção
da
habitação
social; ►
Reforço
da
capacidade
das
autoridades
para
expropriar o solo destinada ao caminho-de-ferro ou ao saneamento;
60
Cf. Françoise Choay, L’Urbanisme, utopies et réalités, 1965, em que é feita uma exaustiva análise dos exercícios teóricos saídos do desafio que foi lançado pela Revolução Industrial e correspondente explosão urbana.
[192]
Reestruturação
►
modo
a
das
autoridade
impulsionarem
disposições
e
higiénicas
de
acção
local
de
a
coordenarem
todas
as
e
de
fiscalização
de
edificação, actividades, entre outras.
Política e Igreja são entidades que foram anuladas em função do todo poderoso mundo capitalista, perdendo aquelas momentaneamente a capacidade de afirmação neste período de vertigem industrial e explosão urbana. De facto, continua a impôr-se a ideia de tornar a cidade uma máquina de produção eficiente à imagem e semelhança de qualquer outra unidade industrial. A lógica produtivista imposta à cidade obriga-a a ter uma atenção especial aos seus factores produtivos e, em particular,
ao
controle
social
de
uma
mole
imensa
de
indivíduos afectados por condições de vida paupérrimas. A aqui
raiz uma
pragmática-técnica justificação
decisivamente
o
mundo
para
da
urbanística
se
moderna
generalizar,
político-económico
tem
apoiando
emergente
com
a
revolução industrial. A organização racional concebida para satisfazer
as
necessidades
do
sistema
produtivo,
quer
no
âmbito da reforma e actualização da cidade existente quer no das
novas
cidades,
apresenta
como
objectivos
gerais
os
seguintes:
Garantir a reserva das áreas necessárias para a criação de novas unidades industriais e de armazenagem, infra-estruturas de transportes e interfaces (Portos, Estações, eixos viários); Promover o transporte de pessoas e bens na cidade e na sua envolvente, obrigando a romper com estruturas urbanas antigas e simbólica importantes (muralhas, cercas, etc.) e criando em seu lugar as circulares (rondas em castelhano) e avenidas; Facilitar as ligações entre pontos fundamentais do sistema como a articulação entre indústrias, portos e actividades económicas, ligações casa-trabalho, centralidades urbanas, etc.; Assegurar o controle social através da acção policial e militar e até informal num espaço em violenta dinâmica de crescimento, onde desapareceram as
[193]
tradicionais formas de relação interpessoal, controle informal da cidade medieval e renascentista; Organizar a produção de um novo espaço social (dominantemente residencial e comercial) representativo de uma nova sociedade e classes em ascensão (burguesia industrial, funcionalismo, técnicos, etc.).
Figura 14 - Exemplo da intervenção de Haussman em Paris
Figura 15 - Extensão e tipos de intervenção de Haussman e Paris
[194]
Fonte:http://images.google.pt/imgres?imgurl=www.scottf.com/ACityFractured/UrbanApproaches/haussman
Como actuações mais marcantes desta segunda metade do século XIX, e das quais resultaram por mimetismo dezenas de outras intervenções, merecem destaque: ►
a
imensa
reforma
desenvolvida Haussmann, estrutura
intra-urbana
entre a
de
1853
partir avenidas
da e
e
de
1869,
qual
se
praças
Paris,
pelo
Barão
constituiu
hoje
a
facilmente
reconhecível no tecido urbano pelo seu protagonismo comercial e cultural; ►
os
“ensanches”
concebidos
por
de
Barcelona
Castro
e
e
Cerdá,
Madrid
de
1860
respectivamente,
representam exemplos próximos do furor normativo e regulamentar, de acordo com rígidos projectos de conjunto. Finalmente, impõe-se uma abordagem à dimensão imaterial da cidade enquanto matriz de sociabilidades e de comunicação. O esforço actual tem sido orientado para a distinção do espaço
[195]
público - terreno da comunicação - e política dos espaços públicos - formas urbanas (Habermas, 1978; Ferreira, 2000; Claval, 2001), dado que até ao século XIX os dois conceitos se encontravam sobrepostos. Com efeito, os espaços urbanos livres destinados
ao
mercado,
às
armas
ou
ao
lazer
cumpriam
um
fundamental papel de inclusão e fortalecimento comunitário, construindo um sentimento de pertença só possível através de um conhecimento actualizado e pormenorizado do quotidiano. Habermas identifica a burguesia e o seu protagonismo do século XIX como responsável maior pela transformação que irá afectar
o
espaço
público
iniciando
e
fortalecendo
uma
descolagem que irá esvaziando funcionalmente a cidade e os seus espaços subtraídos à apropriação exclusiva. Passar da oralidade
dominante
na
comunicação,
que
exige
a
devida
espacialização, para a mensagem escrita (e mais tarde mensagem visual) que não é tão exigente em território, ou seja, é mais portátil, é uma transferência
que teria de ter implicações
inovadoras entre as quais a crescente “reclusão” doméstica ou a procura de espaços especializados (cafés, clubes, ...) que são
correlativos
urbanos.
Aliás
é
de nos
um
menor
cafés
afluxo
que
são
aos
espaços
concebidos
públicos
artigos
de
jornal61 relacionados com a política, artes ou filosofia. É esta imprensa que, no século XIX, se transforma em imprensa de opinião e em magazine literário e artístico (Rodrigues: 1985; 77) O público torna-se, assim, uma instância de decisão e legitimidade, na medida em que se arroga o direito e o dever de informar e de ser informado, situando para isso a sua legitimidade sob o modo do «saber», em oposição à modalidade da legitimidade do soberano. A opinião pública aparece assim como a instância do saber, dos factos, da honestidade, da 61
A imprensa periódica, aproveitando os avanços na tipografia, instala-se nos inícios do século XVIII, cativando mais leitores à medida que se vai generalizando a capacidade de leitura por parte da população.
[196]
razão, em luta contra o querer, associado à corrupção, ao obscurantismo despótico do soberano. Neste contexto surge a reivindicação da transparência dos actos do poder perante o julgamento
da
opinião
pública
instituída
como
tribunal
de
recurso. Constituída pelos proprietários de bens e/ou de saber, isto
é,
pelos
detentores
de
um
capital
económico
e/ou
simbólico, segundo a ordem social burguesa, a sociedade civil surge como uma nova leitura de esfera pública da democracia grega, na medida em que, aos espaços concretos da notoriedade, à agora,, lhes substitui um espaço abstracto, separado, cada vez mais autónomo, condição indispensável à instauração de uma publicidade
circulante,
regida
pelas
leis
modernas
da
mercadoria. É assim que a mercadoria, reduzida à sua mera componente formal de objecto de troca, subordina a si todas as restantes dimensões sociais, impondo campo económico a sua legitimidade aos
restantes
campos
sociais,
nomeadamente
o
político,
o
religioso, o familiar, o lúdico: todos os campos regidos pelas regras
de
subordinam
reprodução, ao
campo
tanto
da
biológica
produção
como
económica,
social,
ajustando
se aos
valores deste campo os seus próprios interesses e projectos. É neste contexto que o próprio espaço público se autonomiza e transforma em objecto de troca, numa pura forma abstracta de publicidade,
na
forma
jornalística.
De
veículo
da
opinião
publicamente produzida nos espaços de convivência que eram as sociedades, os clubes e os cafés, onde o cidadão, o honnète homme, o proprietário, o notável se confundiam no sujeito de um
saber
esclarecido
que,
na
argumentação
pública,
se
elaborava e se tomava visível, a imprensa toma-se, a pouco e pouco, fazedora de opinião, substituindo-se ao trabalho de elaboração
colectiva,
reservando
esse
trabalho
a
uma
nova
classe profissional anónima, os jornalistas.
[197]
As
funções
transferidas
conviviais
quer
para
o
do
espaço
domínio
público
privado,
são,
cada
então,
vez
mais
intimista, ao abrigo do olhar e da intrusão de estranhos, quer para a escrita jornalística, convertendo-se o espaço público num território anónimo, num espaço de circulação e passagem. Por isso, Sennett afirma que “plus la communauté formée par une personnalité collective est limitée, plus l’expérience des sentiments fraternels devient destructrice“ (Sennette: 1992; 203). Esvaziando assim toda a sociabilidade concreta, o espaço público desmaterializa-se e torna-se sem rosto, repercutindo ao nível da privacidade uma nova forma de visibilidade social, espécie de miragem espectacular de todas as modalidades de convivência, feita de desnudamento e mascaramento sem limite dos indivíduos. A fuga ao controlo, à vigilância, ao olhar dos outros, formas
de
que
se
reveste
o
projecto
de
preservação
da
autonomia individual no seio do espaço público e a natureza absoluta
da
individual, notoriedade
realização cortada do
nome,
do
«eu»,
de
toda
às
regras
e
a
busca
qualquer
arcaicas
de
da
identidade
referência filiação
e
à de
aliança, corresponde ao voyeurismo do espectáculo intimista dos media. São exemplos eloquentes da mesma lógica da morte do público
e
do
desnudamento
do
privado,
de
desorganização
burguesa do espaço social.
5.5.3. Das Formas Urbanas dos Espaços Públicos A herança do Renascimento é ainda muito visível neste período por responsabilidade sobretudo dos espaços públicos. Interessa notar que os espaços estão lá, mas os seus usos e práticas
(ritmos,
modalidades,
necessidades,
...)
são
diferentes. A Avenida vê os transportes mecânicos ganharam
[198]
espaço às deslocações pedonais e as praças cedem importância à rua e a espaços colectivos mas de natureza privada. A
rarefacção
do
encontro
e
da
vivência
dos
espaços
abertos é compensado pela agradabilidade da oferta privada (clubes, cafés, ...) e pela circulação de informação através da
imprensa
desvinculando
os
acontecimentos
ou
o
seu
conhecimento à co-presença nos espaços públicos urbanos. O
debate
iniciado
nos
Estado
Unidos,
muito
afectados
pela industrialização e por um crescimento urbano demográfico violento obrigou-se a reflectir a cidade e os seus espaços públicos desde muito cedo. Por razões de comodidade, os historiadores situam este debate à volta de 1820, com a morte de Thomas Jefferson, amplamente hostil à industrialização e à cidade. A fuga destes modelos conduziram à conhecida valorização do modelo da casa e do
jardim,
afastados
da
cidade
e
próximos
da
natureza,
buscando o ideal do campo e dos seus valores e referências, através de três tipos de defensores: ►
Os
transcendalistas
ruralidade
como
que
defendiam
fonte
o
campo
indentitária
do
e
a
povo
americano; ►
Os
reverendos
promovendo
a
ideia
de
família
enquanto célula privilegiada para a cristalização e perpetuação dos valores que afectam a comunidade; ►
As
feministas
domésticas
valorizando
a
esfera
familiar e a organização da casa.
Sendo
o
universo
doméstico
o
mais
procurado,
os
arquitectos desenham desde o século XIX os primeiros subúrbios românticos
para
as
famílias
típicas
americanas.
A
cidade
[199]
confina
a
sua
acção
à
aculturação
dos
imigrantes
e
à
actividade económica, enquanto o subúrbio se afirma como o exemplo
perfeito
da
qualidade
de
vida.
Acresce
a
esta
deambulação americana que o mundo doméstico passa a ser o centro das sociabilidades como também pode ser aferido através de
cidades
abertos
como
só
Los
pode
Angeles ser
onde
a
ausência
descodificada
a
dos
espaços
partir
destes
pressupostos. Diminuindo os contactos heterogéneos, ao mesmo tempo que cresce
a
diversidade
na
população
americana,
o
papel
dos
espaços públicos é minimizado de modo a evitar os contactos anónimos e imprevisíveis. Pelo contrário, ao longo do século XX são inventadas novas formas de sociabilidade através dos espaços privados abertos ao
público de vocação económica. É
aí, por isso, que nascem os centros comerciais e os parques temáticos. Na Europa, por outro lado, é evidente a presença das ruas, avenidas, mercados, praças ou jardins que, no seu todo, assumem uma categoria espacial bem vincada na cidade. A essa categoria espacial sobrepõe-se-lhe uma outra, relacionada com as práticas aí desenvolvidas, derivando assim para a dimensão social e política. Viver em conjunto e aceitar a diferença é um exercício de que os espaços públicos urbanos são a matriz mas que as orientações culturais e morais condicionam. Há, assim,
uma
integração
dos
espaços
públicos
no
contexto
político elevando-os para um plano que não se detém apenas no desenho
da
cidade
para
evoluir
para
a
realidade
social,
cultural e política. No período que estamos a tratar, marcado pela emergência do
modernismo
arquitectura
e
e
funcionalismo
urbanismo
na
abordagem
alhearam-se
dos
ao
espaços
urbano,
a
públicos,
excluindo aqueles que eram imprescindíveis para o ordenamento
[200]
e racionalidade do funcionamento urbano, designadamente, os que prestam serviço à mobilidade. Isso traduz
mesmo
a
percebeu
realidade
Ghorra-Gobin
da
primeira
quando
metade
incisivamente
do
século
XX
considerando que “(...) les grandes théories architecturales du mouvement moderne ont accordé peu d'importance au thème des espaces
publics.
Aussi
toute
la
logique
qui
prévalait
à
l'institutionnalisation et à l'avènement des espaces publics, en tant que mise en scène de la société civile, a disparu au profit
des
politiques
publiques
limitées
à
des
objectifs
essentiellement fonctionnalistes. L'aménagement urbain s'est pratiquement enfermé dans une logique d'équipements dont tous les
éléments
étaient
prescris
et
fixés
par
des
normes
administratives“. Insiste a mesma autora na ideia que “(…) Face à cette tendance
forte
ingénieres)
d'autres
influencés
par
professionnels les
courants
(architectes en
faveur
et
de
la
protection des quartiers historiques et la prise en compte de la valeur patrimoniale de la ville, ont choisi de préserver certains
espaces
publics.
Ces
derniers
le
plus
souvent
localisés dans des quartiers historique sont été l'objet d'une certaine muséification. Certains espaces publics ont ainsi été transformés touristes
en et
zones à
la
piétonnes clientèle
réservées des
exclusivement
commerces
de
luxe
aux des
quartiers centraux “62. Contudo,
o
desinvestimento
correlativo aumento
em
espaços
públicos
com
o
da administração autárquica e central na
preocupação com a mobilidade entre os territórios urbanos63,
Cynthia Ghorra-Gobin, L’utopie de la ville au 21 ème siécle : entre nouvelle donne politique et mythes fondateurs, 2000. 62
63
É hoje possível que nas deslocações urbanas nunca se aflore à superfície da cidade, pois desde a garagem de casa à garagem do local de trabalho, passando pelo crescente fechamento em recintos comerciais, o indivíduo pode passar todo o tempo em espaços colectivos mas
[201]
abriu espaço para a oportunidade do sector público intervir sobre
a
produção
de
espaços
de
utilização
colectiva
mas,
naturalmente, orientados para a promoção económica, ou por outras palavras, para o consumo. Estes novos espaços públicos, que
reproduzem
espaços
cada
públicos
vez
mais
urbanos,
intensamente
sem
os
automóveis,
tradicionais
com
toponímia
adequada, segurança máxima, riscos mínimos, iluminação natural e com formas urbanas decalcadas da cidade tradicional, podem ser
centros
comerciais,
parques
temáticos
ou
galerias
comerciais e que atendendo aos resultados tiveram um enorme êxito. O problema reside não na forma mas no conteúdo dos novos espaços. Cynthia Ghorra-Gobin é clara quando escreve: “Les Espaces Publics sont offerts ou encore ouverts à tout individu quel que soit sa culture, sa religion ou encore son statut social. Ils sont, de ce fait, des espaces de la rencontre et de la promiscuité sociale dans un contexte d'anonymat. Mais en mettant
en
scène
la
société
civile
et
sa
diversité,
les
espaces publics mettent en scène les inégalités sociales tout en
offrant
le
territoires
de
privilège la
ville,
de les
relier riches
entre et
eux
les
différents
pauvres.
Ils
deviennent des espaces communs aux différents quartiers et groupes sociaux. D'où leur caractère et leur légitimité en tant qu'espaces de médiation. Les Espaces Publics participent des luttes sociales et jouent ce rôle d'espaces de médiation symbolique entre classes sociales: on manifeste dans la rue pour
faire
entendre
sa
voix
et
négocier
dans
seguiu
as
recomendações
la
sphère
politique“ (2000 ; 88). A
cidade
moderna
precisas
e
oportunas da Carta de Atenas (1933), elaborada no âmbito do IV Congresso do CIAM, ficando assim definido que a forma seguirá a função e que esta será sempre menos rica que qualquer espaço
privados. A inibição é completa quanto À possibilidade da cidade cumprir o seu tradicional papel de integração social e cultural.
[202]
em que a flexibilidade e a polivalência sejam possíveis. As praças, os rossios ou os largos desaparecem definitivamente. Na base deste documento esteve a análise de 33 cidades e respectivos problemas, sublinhando-se a necessidade de lhes conferir
ordem
sobrevivência.
e As
funcionalidade orientações
para
centrais
garantir
da
Carta
a
de
sua
Atenas
podem, assim, ser definidas como:
►
Necessidade
de
regional,
modo
de
crescimento
planeamento a
nas
supramunicipal
integrar
a
cidade
potencialidade
e
e
o
seu
naturais
e
recreativas dos territórios envolventes; ►
Crítica ao modelo de cidade até aí desenvolvido pela sua escassez em áreas verdes ou de referências à natureza, de equipamentos, pela promiscuidade de usos, etc.;
►
Promoção de um urbanismo higienista e moralista em que
só
tem
desportivas
cabimento ou
as
ligadas
actividades à
cultura
quotidianas física
e
actividades culturais; ►
Preocupação com o tecido suburbano povoado por uma população desnidade limites
►
de
baixa
condição
populacional,
social,
chegando
as
com
elevada
tensões
a
preocupantes;
Crítica da cidade jardim de Ebenezer Howard apontase para a habitação colectiva pois acredita-se que esta
evitará
a
generalização
do
individualismo
escravizante; ►
Classificação funcional da cidade em 4 dimensões fundamentais:
habitar,
trabalhar,
recrear
e
[203]
circular. Só o zonamento do espaço urbano poderá traduzir na prática este princípio; ►
Os
vários
elementos
urbanos
devem
estar
hierarquizados e distribuírem-se de acordo coma sua posição no sistema e subsistema; ►
Consciência do valor estratégico do solo.
5.6. A “História” que se está a escrever O distanciamento histórico é fundamental para reconhecer e distinguir os traços estruturantes de realidades passadas de traços meramente conjunturais ou dependentes dos primeiros. Desde o início desta investigação que se sublinha a ingratidão do momento em ocorre, já que apenas se apenas se reconhecem sinais de mudança, na forma, localização e uso dos espaços públicos urbanos, com implicações nas análises que deles se podem
fazer,
resultando
conclusões
também
desfocadas.
Em
paralelo está a inexistência desse afastamento temporal face aos acontecimentos que se pretendem descrever ou estudar. As referências aos espaços públicos e à sua importância vital para a cidade e para as respectivas comunidades,feitas em
documentos
urbanística, caracterização
de
referência
devem dos
ser EPU.
para
convocados
Aliás,
a
a
prática para
crise,
ou
e
gestão
esta
breve
pelo
menos
o
reconhecimento do seu protagonismo, surge amplamente referida na bibliografia (cuja parte substancial se encontrará
decerto
no respectivo capítulo desta tese), pelo que não se estranha a progressiva reacção das entidades com competências reguladoras ou
orientadoras
no
sentido
de
inverterem
as
tendências
observadas. Mas o que fica é que se pressente a agonia dos espaços
públicos
e,
por
isso,
eles
foram
puxados
para
a
ribalta e tornados o centro de discussões e intervenções.
[204]
Resta saber se os esforços de reanimação dos EPU são convergentes ou coerentes entre si. Veremos que, entre lógicas mais abrangente e globais (Conselho europeu de urbanistas, União
Europeia)
e
outras
de
carácter
localista
(Gestão
autárquica), existem mais barreiras que pontes, inviabilizando efeitos mais interessantes no futuro. O distanciamento histórico é fundamental para reconhecer e distinguir os traços estruturantes de realidades passadas de traços meramente conjunturais ou dependentes dos primeiros. Desde
o
início
deste
empreendimento
que
se
sublinha
a
ingratidão do momento em que nos encontramos a realizá-lo já que
apenas
se
apenas
se
reconhecem
forma, localização e uso dos espaços
sinais
de
mudança,
na
públicos urbanos, com
implicações nas análises que deles se podem fazer resultando em conclusões da mesma forma desfocadas. Em paralelo está a inexistência
desse
afastamento
temporal
face
aos
acontecimentos que se pretendem descrever ou estudar. Utilizaremos três tipos de documentos para este efeito: ► Recomendação nº R (86) do Comité de Ministros dos Estados Membros da Comunidade Económica Europeia; ► A Nova Carta de Atenas (2003); ► Regulamento e Manual de uso de Espaço Público.
5.6.1. Recomendação do Comité de Ministros dos Estados Membros da Comunidade Económica Europeia O primeiro sinal público e sonante da agonia sentida nos EPU foi lançado, na Europa, em meados da década de 80, pela
[205]
recomendação NºR(86)11-CEE dedicada à denúncia e a formas de intervenção sobre o problema. Não é só do seu relevo político ou da capacidade de antecipação que resulta o brilho desta recomendação comunitária, mas também do exercício heurístico e delicado que foi capaz de cerzir. É, de longe, o documento que mais
cedo
e
objectivo,
a
melhor
soube
realidade
descrever,
destes
de
espaços
modo em
sucinto
meio
e
urbano,
identificando as maiores ameaças e os mais urgentes desafios. Foi, por tal, seleccionado para servir de entrada a este novo período da História urbana (embora o presente não tenha ainda História...) que sucede ao urbanismo moderno, grosso modo, concluído até aos anos 60 em muitos países do Centro mas prolongando-se pelos 70 em Portugal.
[206]
Figura 16 - Recomendações e princípios constantes na Recomendação NºR(86)11-CEE
A aplicação no terreno dos princípios de valorização dos EPU não é sempre feita de igual forma nem com os efeitos positivos desejados. Relembra-se o destaque dado à acção local por
esta
Recomendação,
designadamente,
de
onde
se
regulamentação
sublinha excessiva,
o
risco,
localização
medíocre, concepção e escolha de detalhes desadequados. Surge ainda
o
privados
apelo e
à
sector
criação
de
associativo
parcerias ou
e
envolvimento
solidário.
Com
de
efeito,
História recente é, então, também marcada por esta sugestão já que de modo crescente, se vai verificando a participação de outras esferas da sociedade no domínio dos espaços públicos. Desde a Administração Central, passando pelas autarquias locais até aos cidadãos organizados em movimentos mais ou
[207]
menos
espontâneos
e
formalizados,
é
possível
encontrar
um
conjunto expressivo de modalidades de intervenção neste campo.
5.6.2. A Nova Carta de Atenas Em documento aprovado em 1998, o Conselho Europeu de Urbanistas, na sua Conferência Internacional, estabelece um conjunto de preocupações, desafios e objectivos que incidem sobre o mundo urbano europeu. Foi, então, adoptada a Nova Carta de Atenas. Na altura ficou definido um ritmo de quatro anos para o seu processo de revisão. Assim, o resultado do primeiro momento de revisão foi aprovado em 20 de Novembro de 2003, onde o Conselho Europeu de Urbanistas, através do grupo de trabalho encarregado de redigir o documento, apresenta uma visão sobre o futuro urbano europeu. Esta visão contempla o desejo que a rede de cidades europeias: Preserve a sua riqueza cultural e a diversidade
►
como resultado de uma grande espessura histórica; Estabeleça ligações a partir de uma multitude de
►
redes
temáticas;
Permaneça
►
criativas
e
competitivas,
mas
busquem
igualmente, a complementaridade e a cooperação; Contribua de maneira decisiva para o bem-estar dos
►
seus
habitantes
e,
de
modo
mais
geral,
mais
agradável para todos os que a utilizam.
Estas cidades
aspirações,
europeias,
património transversal,
urbano
que
estão
ancoram
visão
impregnados
identitário,
compreendendo
a
a
de
entendido
sua
dimensão
do
futuro
respeito numa
das pelo
perspectiva
física,
social,
[208]
económica e ambiental. Por outro lado, com o quadro colocado fica
também
explícita
a
importância
conferida
ao
aproveitamento e compatibilização destes desejos com a mutação tecnológica e comunicacional em curso. Ou seja, utilizando o léxico da Nova Carta de Atenas - A Cidade Coerente. É ao abrigo desta coerência que as referências aos EPU se
tornam
evidentes,
apresentadas
dado
situam-se
em
que
muitas
rótulas
que
das
dimensões
articulam
aqui
espaços,
pessoas e equipamentos. Torna-se perceptível, então, a sua integração, por exemplo, nas esferas da coerência social, em particular, no quadro das relações entre gerações. Como se pode
ler
na
Nova
Carta
de
Atenas:
“o
objectivo
é
o
de
considerar as necessidades da vida social de todas as idades assim como de ter em conta as reacções e os ritmos específicos das pessoas na reforma
e daqueles mais idosos, nomeadamente
na concepção, uso e localização dos espaços públicos; e de coerência
ambiental
intervenções
a
(acepção
adoptar
pelos
lata)
onde
urbanistas
algumas serão
medidas
e
fundamentais
para que a arte pública e a composição urbana possam alavancar o renascimento das cidades”. Entre estas destacam-se: ►
Relançar a arte urbana e a composição urbana afim de proteger e valorizar as ruas, praças, caminhos pedonais e outros percursos como instrumentos de elo social e de continuidade do quadro urbano;
►
Promover
as
transformações
necessárias
para
facilitar
os contactos entre pessoas e para multiplicar os locais de paragem e lazer; ►
Favorecer
a
protecção
sistemática
dos
elementos
de
património natural e cultural assim como a protecção e extensão das redes de espaços abertos urbanos de acordo com regras e disposições urbanísticas.
[209]
Alguns aqui
a
dos
ganhar
sinais
já
tratados
neste
ênfase,
em
especial
a
documento
ideia
de
voltam
património
natural e redes de espaços abertos, remetendo para dimensões nem
sempre
concordantes
com
a
ideia
de
proximidade
ou
vizinhança, em consonância com as actuais políticas urbanas. Todavia,
reconhecendo
o
prolongamento
actual
verifica-se
a
preocupação de reanimar os espaços tradicionais quer pelos efeitos positivos gerados sobre o território urbano quer pelo favorecimento
da
integração
de
comunidades
urbanas
crescentemente multilíngues e multiculturais.
5.6.3. Regulamentos e manuais municipais de utilização dos EPU O Regulamento dos Espaços Verdes Municipais do concelho de
Oeiras
rigidez
é
com
aqui que,
convocado neste
como
caso
em
um
exemplo
Portugal,
da
excessiva
por
vezes
são
tratados os EPU, demonstrando um rigor normatico que não tem correspondência
na
sensibilidade
para
contrariar
a
lenta
agonia a que vão sendo condenados quase sem se dar por isso. Mas, de acordo com a pesquisa efectuada, regras semelhantes são possíveis de encontrar em muitas outras Câmaras Municipais como o Porto, Braga, Loures, etc. Recorde-se como a Recomendação NºR(86)11 do Comité de Ministros dos Estados Membros já criticava este excesso de zelo visando a preservação dos espaços (recomendando, como solução, a concepção ou o rearranjo adequado destes espaços). Acresce que Oeiras necessita de encontrar dispositivos que estimulem
coesão
social
e
territorial
face
à
pressão
demográfica e à diversidade étnica, cultural e económica. Em
Fevereiro
de
2002,
a
Câmara
Municipal
de
Oeiras
aprovou o Regulamento dos Espaços Verdes Municipais (Edital 292/2002) cujas linhas estruturantes são:
[210]
►
Estabeler princípios e definir regras que assegurem não só uma correcta utilização destes espaços pelas populações, como também a sua preservação e conservação;
►
Contemplar e tipificar novas infracções que ocorrem com certa frequência nestes espaços, relacionadas com atitudes e comportamentos menos correctos por parte dos munícipes e utentes;
►
Actualizar coimas que sancionam as infracções estipuladas no actual Regulamento;
►
Definir
a
possibilidade
de
intervenção
da
Câmara
Municipal de Oeiras em terrenos e propriedades privadas sempre
que
o
interesse
público
esteja
em
causa
(Preâmbulo).
Como se pode ler nestas linhas estruturantes, a ênfase está, sobretudo, na penalização dos utilizadores e não numa postura
de
sedução
convencionalidade
dos
que
potenciais
remete
para
utentes.
os
É
princípios
de da
uma
cidade
racionalista esquecendo a flexibilização capaz de gerar novos usos, eventos, etc. Vejamos
em
detalhe
as
principais
disposições.
No
Preâmbulo surge desde logo a postura repressiva exercida por via
da
explícita
responsabilização
(formatada
através
de
normas e regras) dos utilizadores: (...)Também não se pode descurar a conservação, manutenção e protecção de todo este património
que
é
utilização
através
pertença de
um
de
todos,
corpo
de
e
a
normas
sua
correcta
e
regras
que
é
aplicado
responsabilizem (...) os munícipes e utentes”. O
Artigo
regulamento: parques,
“O
1º
apresenta
presente
jardins,
espaços
os
espaços
Regulamento verdes
onde
aplica-se
municipais,
às
a
o
todos
os
árvores
e
[211]
arbustos neles existentes ou situados em arruamentos, praças e logradouros designadas
públicos, de
bem
interesse
como
público
à
protecção
municipal
das
ou
espécies
classificadas
pelo Instituto Florestal, situadas em terrenos urbanizáveis, públicos ou privados”. O ímpeto das regras proibitivas corre sempre o risco de deixar
algo
de
fora
bem
mais
importante
que
os
aspectos
enunciados fica completamente exposta no artigo 3º que se transcreve na íntegra:
ARTIGO 3º Parques, Jardins e Espaços Verdes 1. Nos parques, permitido:
jardins
e
espaços
verdes
municipais
não
é
a. Entrar e circular com qualquer tipo de veículo motorizado; b. Passear com animais, à excepção de devidamente presos por corrente ou trela;
animais
domésticos
c. Colher, danificar ou mutilar, relva, plantas, flores, ou frutos em canteiros, bordaduras ou simplesmente transitar por esses espaços ou fora dos locais ou passadeiras próprias; d. Retirar água ou utilizar os lagos para banhos ou pesca ou danificar fauna ou flora existentes nestes, bem como arremessar para dentro destes quaisquer objectos líquidos ou detritos de outra natureza; e. Caçar, perturbar ou molestar os animais parques, jardins e espaços verdes municipais;
existentes
nos
f. Fazer fogueiras ou acender braseiras; g. Lançar detritos, entulhos, águas poluídas provenientes de limpezas domésticas ou de qualquer outra natureza poluente que possa causar prejuízo ou morte a qualquer tipo de vegetação; h. Matar, ferir, furtar ou apanhar quaisquer animais que tenham, nestas zonas verdes, o seu habitat natural ou que se encontrem habitualmente a deambular por estes locais, nomeadamente, patos, cisnes e outros que ali foram colocados pela Câmara Municipal; i. Utilizar bebedouros para fins expressamente se destinam;
diferentes daqueles
para
que
j. Destruir, danificar ou fazer uso indevido de peças constituintes de sistemas de rega, nomeadamente, aspersores, pulverizadores, micro-jets, gotejadores, bocas de rega, válvulas, torneiras, filtros ou programadores; k. Abrir as caixas dos sistemas implantados, nomeadamente das válvulas do sistema de rega, nos sistemas de accionamento, quer sejam manuais ou automáticos, nos contadores de água,
[212]
electricidade, etc. ou equipamentos da rede telefónica, TV, gás, e saneamento; l. Retirar, alterar ou mudar placas ou tabuletas com indicações para o público ou com informações úteis, nomeadamente, a designação científica de plantas, orientação ou referências para conhecimento dos frequentadores; m. Prender nas grades ou vedações quaisquer animais, objectos ou veículos; n. Destruir ou danificar qualquer estrutura, equipamento ou mobiliário, nomeadamente, instalações, construções, bancas, vedações, grades, canteiros, estufas, pérgolas, bancos, escoras, esteios, vasos e papeleiras; o. Destruir ou danificar monumentos, estátuas, fontes, esculturas, escadarias ou pontes, que se encontram localizadas naqueles espaços; p. Destruir, danificar ou fazer uso de forma menos cuidadosa ou correcta, inclusive por adultos a quem são vedados, dos brinquedos, aparelhos ou equipamentos destinados às crianças com idade igual ou inferior a 12 anos, bem como de qualquer tipo de equipamento desportivo ali construído ou instalado; q. Destruir, danificar ou simplesmente utilizar, sem autorização dos responsáveis, objectos, ferramentas, utensílios ou peças afectas aos serviços municipais bem como fazer uso, sem prévia autorização, da água destinada a rega ou limpeza; r. Praticar jogos, divertimentos, actividades desportivas ou de outra natureza fora dos locais destinados a esse fim ou em desrespeito das condições estabelecidas para aqueles locais, ou ainda que pela sua natureza possam causar prejuízos ao Património Municipal; s. Urinar ou defecar; t. Acampar ou instalar acampamento em qualquer daquelas zonas; u. Confeccionar ou tomar refeições, salvo em locais para esse efeito (exceptuam-se as refeições ligeiras, nomeadamente sanduíches e similares); v. A utilização de brinquedos, aparelhos ou outro equipamento nos parques e jardins municipais, em desrespeito pelos limites etários previstos nas placas instaladas no local; w. A utilização dos espaços verdes para quaisquer fins carácter comercial sem autorização escrita e pagamento taxas de acordo com o regulamento de taxas em vigor município.
de de no
A bondade destes princípios e até a sua existência, não estão, obviamente, em causa mas quando os EPU estão demasiado expostos
a
uma
aguda
normalização
têm
tendência
para
a
desvitalização porque lhes foi sugado o seu dinamismo próprio, a possibilidade do inesperado, o interesse pelo diferente.
[213]
Acresce que, de acordo com esta postura municipal, fica sempre a sensação que se existir uma utilização desadequada dos
espaço
ela
será
sempre
da
responsabilidade
de
quem
o
utiliza e não de quem escolhe a sua localização, o concebe e o gere, produzindo uma assimetria insustentável na distribuição das
responsabilidades.
Este
aspecto
fica,
sobretudo,
bem
focado no Artigo 4º (Prática de jogos organizados) do Edital 292/2002 da Câmara Municipal de Oeiras: “1. Apenas é permitida a prática de jogos organizados, fora dos locais previstos para esse fim com autorização escrita para o efeito”. Fica a faltar um documento que incentive, apesar desta regulamentação, ao usufruto
dos
espaços
públicos
urbanos
e
a
uma
criativa
ocupação por parte dos indivíduos e das famílias. A Autarquia de Lisboa, em 1995, optou por uma estratégia distinta, mais próxima do espírito da recomendação de 1986, produzindo para além de um regulamento municipal, um “Manual do Utilizador dos Parques de Lisboa”. Figura 17 - Manual de Utilizador dos Parques de Lisboa
Este
visa
igualmente
“(...)
sensibilizar
a
população
para a sua adequada utilização” mas evitando a formalização
[214]
uma vez mais deste objectivo em edital ou regulamento. Sendo um livro de instruções, assume um carácter propositivo e até mobilizador
de
boas
práticas,
não
deixando
de
apresentar
noções de educação ambiental e de localização. O Índice tornase
aqui
um
instrumento
indispensável
para
se
entender
a
filosofia do documento:
SENSIBILIZAÇÃO AMBIENTAL INFORMAÇÕES
1.
Parques de Lisboa
PARQUE CENTRAL DE CHELAS PARQUE DO VALE FUNDÃO PARQUE FLORESTAL DE MONSANTO PARQUES RECREATIVOS DO ALVITO E ALTO DA SERAFINA PARQUE ECOLÓGICO PARQUE DO CALHAU MATA DE SÃO DOMINGOS DE BENFICA MOINHOS/CONJUNTO MOAGEIRO DE SANTANAJAJUDA MIRADOUROS PARQUE ORIENTAL DE LISBOA PARQUE PERIFÉRICO DE LISBOA JARDINS DA TAPADA DAS NECESSIDADES JARDIM DO PALÁCIO VENTURA TERRA ESTRUTURA DE DEFESA MILITAR PERCURSOS PEDESTRES
2.
Vida nos Parques
MAMÍFEROS AVES RÉPTEIS INSECTOS ÁRVORES ARBUSTOS HERBÁCEAS SCIURUS VULGARIS INFUSCATUS: 0 ESQUILO
3.
Parques em Lisboa: Onde ir?
PARQUE RECREATIVO DO ALTO DA SERAFINA PARQUE INFANTIL DO ALVITO PARQUE DO CALHAU PARQUE ECOLÓGICO MATA DE SÃO DOMINGOS DE BENFICA CONJUNTO MOAJEIRO DE SANTANA/AJUDA COMPLEXO DO GRUPO DESPORTIVO DE DIREITO
[215]
GARDEN CENTER DO ALVITO PARQUE DA BELA-VISTA PARQUE CENTRAL DE CHELAS PARQUE DO VALE FUNDÃO PARQUE DA MADRE DE DEUS PARQUE DE ALVALADE PARQUE PERIFÉRICO DE LISBOA JARDINS DA TAPADA DAS NECESSIDADES JARDIM DO PALÁCIO VENTURA TERRA
4.
Que fazer nos parques de Lisboa
A PROCURA DO TESOURO 0 JOGO DE “APILHAR” JOGAR AO BERLINDE AO GATO E AO RATO AO ESCONDER A MARCHA UM ANIVERSÁRIO MEMORAVEL ORGANIZAR UM LIVRO DE CAMPO SOBRE A NATUREZA HERBÁRIOS UM RELÓGIO SOLAR UM BARÓMETRO NATURAL AS FORMIGAS O CARACOL OS INSECTOS MÚSICOS ORIENTAÇÃO PELO SOL BORDA D'ÁGUA AS ESTAÇÕES ASTRONOMIA E METEOROLOGIA POPULAR JARDINS TODO O ANO PROVÉRBIOS RECICLAR PAPEL ENDEREÇOS ÚTEIS O QUE NÃO SE DEVE FAZER NOS PARQUES
5.6.4. A entrada em campo da cidadania Os movimentos de cidadãos agregados em torno da defesa de valores urbanos são comuns na Europa desde os anos 70 (muito
pelas
consequências
socais
do
Maio
de
68)
onde
o
exercício da cidadania passou a ser uma prática considerada pelos
sistemas
político
e
sociais
europeus.
Nos
Estados
Unidos, o funcionamento da cidadania, apoiado por um sistema jurídico eficaz e célere, conferia também aos cidadãos um protagonismo activo.
[216]
Todo este processo foi muito mais lento em Portugal em função das limitações impostas pelo Estado Novo à liberdade de opinião. Mas, mesmo após a euforia da Revolução de Abril de 74, a participação pública em planeamento e ordenamento do território foi sempre enquadrada de modo paternalista pela legislação (Gonçalves, 1996), envolvendo apenas os cidadãos nos últimos estádios dos trabalhos. Só a partir dos finais dos anos 80 as formações espontâneas, e mesmo o quadro legal se ajustou a formas de exercício de cidadania mais activas. É preciso
também
assinalar
que
a
amplitude
dos
problemas
a
resolver de âmbito territorial escapavam muito às questões relativas ao Espaço Público, já que havia ainda muito por fazer
em
matéria
superestruturas. opiniões
a
A
partir
de
habitação,
inversão de
começou
canais
infra-estruturas pelo
informais64
e
despertar de
das
denúncia
e
reivindicação dos problemas espaciais de escala local, cujo impacto
e
estratégias
cénicas
encontradas65
passaram
a
substituir com eficácia os pedidos às Câmaras Municipais ou a entidades públicas. Os motivos giravam muitas vezes em torno de arranjos de via e passeios, construção ou reparação de pontes e passagens, etc.. Gradualmente, a capacidade de mobilização e envolvimento dos grupos de cidadãos tem vindo a aumentar, suscitando na Administração
uma
sensibilização
lenta
e
até
a
posturas
convictas de defesa de espaço público. Não deixa, aliás, de ser curioso a contradição que ainda hoje se observa entre um discurso político que sempre apela à participação pública, à aplicação dos princípios da democracia directa e ao exercício da cidadania, com a dificuldade de gerir os movimentos de reivindicação popular de jardins, de manutenção de espaços de lazer, entre outros.
64
Quem não se recorda, por exemplo, do programa Praça Pública do canal televisivo SIC? Os pneus a arder, as palavras de ordem, os cartazes, etc. (mas só enquanto as câmaras gravavam). 65
[217]
O grau de desenvolvimento observado noutros países no domínio da participação e qualificação dos Espaços Públicos encontra a sua maior referência no PPS – Project for Public Spaces66,
organização
americana,
não
lucrativa,
dedicada
à
criação e organização de espaços públicos de raiz comunitária. Criada em 1975, já interviu em mais de 1000 comunidades em todo o mundo, de modo a qualificar os respectivos espaços públicos
e
torná-los
lugares
comunitários
assistência
técnica,
apoiam
programas
investigação,
realizam
parques, praças, etc.
workshops
sobre
vitais.
de
Fornecem
educação
a
e
de
dinamização
de
As suas publicações, acções de formação
e exemplos de boas práticas correm mundo através de várias formas de divulgação, onde surgem como as mais eficazes as que se suportam na Internet (site e mailling). É do trabalho da PPS que foram criados os 11 princípios para transformar os Espaços Públicos em lugares comunitários fundamentais: 1.
A
comunidade
é
o especialista
(ela
é
que identifica
as
suas
necessidades e expectativas) 2.
Criar um Espaço e não Design (estetizar um espaço pode não ser suficiente)
3.
Procurar Parcerias (o envolvimento dos actores locais significa uma sociedade local mais integrada e solidária)
4.
Pode ver-se mais apenas observando (pode aprender-se olhando para os
comportamentos,
para
o
que
tem
sucesso
ou
o
que
não
tem
funcionado) 5.
Ter uma visão (ajuda a tornar único cada espaço, definindo que actividades e valências podem coexistir)
6.
Começar
como
Petúnias:
Experimentar...
Experimentar...
Experimentar (nem tudo ficará bem inicialmente) 7.
66
Triangulação (o espaço mediará a relação entre os interlocutores)
http://www.pps.org
[218]
8.
Dizem sempre “não pode ser feito” (vencer resistências e inércias instaladas é um dos maiores desafios)
9.
A forma suporta a função (a visão precisa de encontrar uma forma atraente mas que responda às necessidades de uso)
10. Dinheiro não é o fundamental (organizar e gerir equipamentos, infra-estruturas,
comércios,
etc.
é
tão
importante
como
a
construção e concepção) 11. O trabalho nunca está acabado (as comunidades mudam ou até os seus desejos e expectativas pelo que é necessário monitorizar as evoluções de modo a ajustar os espaços a estas mudanças)
É este o caminho que pode vir a generalizar-se para o futuro a partir dos sinais de alarme que têm vindo a ser lançados um pouco de todo o lado, embora sem consistência ou sem
capacidade
de
serem
operacionalizados.
O
exercício
da
cidadania parece ser também aqui a resposta mais segura para a sobrevivência e reanimação dos espaços públicos urbanos e, assim, da cidade.
[219]
6.
Averiguar
a
prática:
A
ocupação
do
Tempo
e
a
utilizaçãods dos EPU Reconhecendo-se espaços
públicos,
e
aceitando-se
ela
tem
de
a
ser
crise
no
validada
a
uso
dos
partir
do
comportamento dos cidadãos em geral e não dos utilizadores dos EPU. Estes, apesar de não gostar das condições oferecidas, encontram-se aí. Interessa perceber: qual é o peso dos que vão e dos que não vão? O que preferem fazer? Quando o preferem? Porque o fazem? etc. As
discussões
atingiram
níveis
de
abstracção
67
exagerados , sem reconhecerem a postura dos indivíduos que no quotidiano
constroem
excessivamente
no
e
transformam
campo
reflexivo,
a
Cidade,
sem
o
vagueando
devido
suporte
documental e informativo. A sensação de crise que se vive no Espaço
Público
acontecimentos instâncias
da
Urbano, e
alimentada
transformações
realidade
(desde
e
aprofundada
operadas logo
em
por
múltiplas
urbanísticas
com
as
mudanças no tipo de espaços criados, mas também sociais com o acréscimo da imigração, o aumento da insegurança, a atracção por novos espaços de uso colectivo e, finalmente, políticas com a opinião pública a passar para os média) tem de ser validada
a
partir
de
elementos
mais
sólidos,
actuais
e
compreensíveis, de modo a conhecer a verdadeira extensão do fenómeno, a sua explicação e até desenhar estratégias que propiciem a reversibilidade desta tendência. Nesta dissertação, não era possível contornar o espaço e o seu conteúdo humano ao contrário do que é observável noutras disciplinas. É evidente (seria um contra-senso com a postura deliberadamente
ecuménica
(holística)
aqui
assumida)
que
a
Geografia não é a única disciplina capaz de resolver esta equação,
mas
será
um
contributo
liquido
para
aclarar
o
Ver trabalhos da esfera sociológica produzida pela Universidade de Coimbra em diversos documentos coordenados por Carlos Fortuna. 67
[220]
problema.
Estando
interesses
e
os
EPU
na
preocupações,
intersecção
a
Geografia
de
múltiplos
assumindo
o
seu
estatuto de charneira, poderá articular os diversos discursos e produzir respostas e entendimentos novos e úteis. Para este espaço de desenho de qual o posicionamento do utilizador do espaço (seja a Cidade no seu todo, seja o espaço público) optou-se por avançar com quatro frentes de recolha de informação: ►
Estatísticas
da
sublinhando-se
o
realizado
em
responsabilidade Inquérito
1999.
à
Ocupação
Pela
sua
do
INE,
do
Tempo,
actualidade,
características e credibilidade, oferece um campo de análise até aqui impossível de encontrar. Para aferir a qualidade das amostras recorreu-se, ainda, ao
XIV
Recenseamento
Geral
da
População,
em
especial aos quadros para o Concelho de Lisboa que reflectem a estrutura etária, género, habilitações e nacionalidade/naturalidade. ►
Entrevistas realizadas ao longo de 2001 a vários autores
que,
profissional
pela e
sua
diversificada
académica,
concorrem
condição para
uma
leitura mais rica das características actuais do EPU. Dos resultados conjuntos é possível encontrar divergências e visões particulares deste objecto de estudo. ►
Inquéritos aos cidadãos de Lisboa, sejam ou não utilizadores do EPU. Este é, seguramente, a fonte vertebradora da análise presente nesta dissertação, quer pela extensão do inquérito quer pela dimensão da
amostra.
A
sua
realização
apoiou-se
em
duas
modalidades: uma em que foi distribuído sob a forma física
(papel)
e
a
outra
em
que
se
procurou
[221]
pulverizá-lo via internet (E-mail). O conjunto de respostas atingiu os 600 exemplares.
6.1. O uso do tempo em Portugal Para
garantir
a
frequência
dos
EPU
têm
de
ser
verificadas algumas condições e, uma delas, relaciona-se com a forma como cada indivíduo gere o seu tempo. A utilização das “quatro categorias do tempo”68 é uma boa base de comparação: ►
Tempo
de
satisfação
das
necessidades
pessoais,
envolvendo os cuidados com o corpo; ►
Tempo contratual, relacionado como trabalho pago e a educação;
►
Tempo do empenhamento, ligado às tarefas domésticas e cuidados aos membros da família;
►
Tempo de lazer, associado a actividades sociais, práticas
de
desporto,
lazer
passivo,
actividades
cívicas e religiosas.
Assumindo que a frequência dos EPU se faz na parcela de tempo
remanescente
de
outras,
como
a
das
obrigações
profissionais, familiares e domésticas, essa frequência tem ainda que competir com outras ofertas sedutoras para esse tempo sobrante. É com esta população que prosseguiremos a análise do uso do tempo utilizando para isso o Inquérito à Ocupação do Tempo69.
68
LOPES, Maria Guilhermina Calado; COELHO, Edviges (2002), “Diferenças e semelhanças entre o uso do tempo das crianças e dos adultos em Portugal”, Comunicação apresentada na International Association of Times Use Researchers Conference, Lisboa. 69 INE, Inquérito à Ocupação do Tempo, 1999, ano de edição 2001.
[222]
Para
entender
melhor
os
resultados
obtidos,
impõe-se
proceder a uma prévia apresentação desta operação estatística. Sendo um inquérito já executado noutros países e noutros contextos, as suas origens remontam ao inicio do século XX, onde surge um estudo sobre a ocupação do tempo no trabalho, da responsabilidade de Frederic Taylor. De forma comparativa e sistemática esta averiguação à ocupação do tempo aparece em 1964,
onde,
amostras
com
a
participação
representativas
de
de
12
países,
populações
se
urbanas.
adoptam Com
a
consolidação da União Europeia e o aumento da harmonização estatística
coordenada
pelo
Eurostat,
estas
operações
estatísticas tendem a generalizar-se. Em Portugal apenas em 1999 foi realizado um inquérito à ocupação do tempo. Pretendia conhecer a forma de uso do tempo de todos os indivíduos residentes no país com 6 ou mais anos de idade, embora o conteúdo do volume publicado apenas se centre na população com quinze ou mais anos. Esta populaçãoalvo torna-se, assim, mais coerente com a que foi retida para estudo
e
inquérito
noutros
instrumentos
de
recolha
de
informação considerados no âmbito desta dissertação. O (cerca
contacto de
entrevista
com
10.000
os
indivíduos
indivíduos)
directa,
envolvendo
que
foi o
compõem
a
realizada
amostra
através
preenchimento
de
de
um
questionário de família e um questionário individual a que se acrescentou o registo num diário das actividades realizadas a cada 10 minutos de um dia (24 horas) escolhido pelo INE para todos os inquiridos, desagregados pela actividade principal e secundária, e local. A
recolha
do
conjunto
de
dados
decorreu
entre
1
de
Outubro e 15 de Dezembro de 1999 (com as implicações que daqui poderão
ocorrer,
quer
com
o
agravamento
das
condições
meteorológicas quer com a duração mais limitada do dia).
[223]
Para proceder à sistematização da informação recolhida criaram-se três grandes áreas: ►
A ocupação do Tempo: descreve-se “a forma como a população ocupa o seu tempo – o que faz, qual a duração dessas actividades e o ritmo com que as executa,
passando-se
alguns
depois
subgrupos,
para
tendo
uma
em
análise conta
de os
condicionalismos subjacentes à respectiva estrutura de ocupação do tempo”70. ►
Trabalho
e
Família:
relaciona
a
distribuição
do
tempo entre as actividades remuneradas a as que decorrem
de
familiar
e
responsabilidades noutros
assumidas
contextos
no
seio
(voluntariado,
71
movimentos associativos, ...) . ►
Lazer: aborda-se o tempo que resta das actividades incontornáveis (família, profissão, estudo) e das formas
de
participação
cívica
ou,
por
outras
palavras, o tempo livre. Neste domínio fixam-se “as práticas culturais domésticas e de saída, bem como outras actividades socioculturais de caracter mais genérico”72.
Os
10.000
indivíduos
distribuição
espacial
objectivos
fundamentais:
representativos
(cf.
da Quadro que
amostra
apresentam
uma
9)
garante
dos
os
que
resultados
um
sejam
ao nível de NUTS I e NUTS II e das Áreas
Metropolitanas de Lisboa e Porto.
70
Idem, Ibidem, p.5 Idem, Ibidem, p.5 72 Idem, Ibidem, p.5 71
[224]
Quadro 9 – Distribuição geográfica da Amostra Total Geral
10.013
Total (Continente)
8.304
Norte (Sem AMP)
1.727
Centro
1.409
LVT (sem AML)
1.854
Alentejo
878
Algarve
772
R.A. Açores
916
R.A. Madeira
748
Área Metropolitana
1.817
Porto Área Metropolitana
1.841
Lisboa Fonte: INE, Inquérito à Ocupação do Tempo, 2001
Desde já deve referir-se que algumas limitações poderão impedir um maior alcance das conclusões desta sistematização com destaque para: a insuficiente desagregação (pelo menos nos dados publicados) das actividades, o que dificulta/prejudica uma análise mais incisiva centrada nos espaços públicos; a consideração
de
valores
médios
deixa
também
desfocada
as
diferenças entre áreas metropolitanas e outras situadas em áreas ruralizadas. Certamente, que as práticas quotidianas são afectadas práticas
pelas d
possibilidades
enatureza
diversa
que
se
abrem
(desporto,
na
cultura,
oferta
de
recreio,
etc.). Assim, o recurso ao item dos passeios a pé será a opção que se julga mais próxima da utilização dos EPU em termos de frequência e tempo de utilização, atendendo ao leque dos itens disponibilizados nesta publicação do Inquérito à Ocupação do Tempo. Ao mesmo tempo tem-se consciência das limitações que encerra.
[225]
População com 15 ou mais anos Nem sempre é correcto tomar como objecto de descrição a população em geral, dado que ela na verdade não existe. O indivíduo médio ou a população média é uma abstracção a que se recorre visando a sistematização da informação recolhida e poder avaliar desvios face a comportamentos assumidos por esta via como típicos. Todavia, proceder-se-á à descrição de alguns dos
segmentos
mais
significativos,
capazes
de
explicar
comportamentos quotidianos diferenciados. A ocupação
do tempo é, como já se referiu, determinante
nas formas e nos períodos de utilização dos EPU. Para esta população se o dia começa à meia noite
então cerca de 80% dos
indivíduos estão a dormir, sendo que dos restantes 15% estão em frente à televisão, 3% a trabalhar e 1,3% em actividades dedicadas à família. Duas horas depois apenas resistem 2,3% por força da TV. O verdadeiro dia começa às sete horas, momento em que um terço da população com mais de quinze anos está acordada e a tratar da higiene pessoal, ocupados em tarefas domésticas ou já em deslocação para o local de trabalho/estudo. Passadas duas horas ainda estão na cama 18%. Se 36%
da população está a trabalhar durante a manhã,
31% está ocupada em trabalhos domésticos e 10% que desde as 10:20 até às 12:00 estão disponíveis
para práticas de lazer.
A hora de almoço decorre entre as 12:00 e as 14:00, embora as 13:00 sejam o momento mais generalizado de paragem, já que metade da população está a almoçar. O regresso ao trabalho e aos trabalhos domésticos
das
14:00 às 17:30 ocupa metade da população. A tarde, aliás, vê reforçada
a
presença
de
indivíduos
com
práticas
de
lazer
[226]
(18%), designadamente, passear, ler, ouvir música , ir ao cinema.
A
omnipresente
TV
atrai
6%
às
13:30,
evoluindo
acentuadamente para 12% às 18:00. O final do dia chega e às 19:30 já há famílias a jantar, actividade que se estende até cerca das 21:00. Para o serão as opções vão, na maioria dos casos (um terço), para a TV. Figura 18 - Perfil de ocupação da população com mais de 15 anos, num dia médio 15% 41% 15%
29%
Trabalho doméstico e cuidados à família Lazer Trabalho profissional e estudo Cuidados pessoais
Fonte: INE, Inquérito à Ocupação do Tempo, 2001
O dia médio, que conjuga os resultados dos dias úteis com os fins-de-semana, revela-nos que a população com mais de 15 anos que efectuou passeios a pé gastou, em média, 1 horas e 33 minutos nessa actividade, gastando os homens cerca de meia hora mais que as mulheres. A diferenciação por género continua a fazer-se sentir e a reforçar a ideia de que os Espaços Públicos Urbanos têm sexo. Como
seria
actividade cai
de
esperar,
o
tempo
médio
de
duração
da
mais ou menos fortemente quando a população
tem uma ocupação profissional ou “para-profissional” como os estudantes
e
a
população
doméstica.
A
população
empregada
[227]
afirma ocupar 1 hora e 10 minutos com passeios a pé com uma diferença de cerca de 15 minutos a mais para os homens. A leitura desta informação deve ser feita com cuidado atendendo
a
que
poderá
incluir
(embora
incorrectamente)
trajectos para o trabalho ou para a escola, para a aquisição de bens e serviços (p.e. jornais) ou para levar as crianças à escola. O período de almoço, a meio da jornada de trabalho poderá também contribuir para estes valores muito generosos no que toca a passeios a pé para a população empregada. Quadro 10 - População com mais de 15 anos que efectuou passeios a pé, um dia médio (hh:mm) Total
H
M
Pop. com mais de 15 anos
1:33
1:43 1:17
Pop. Empregada
1:10
1:16 1:02
Estudantes
1:24
1:31 1:13
Reformados
1:49
1:59 1:14
Pop. Doméstica
1:19
-
1:19
Fonte: INE, Inquérito à Ocupação do Tempo, 2001
A população que se apresenta como reformada é a que mais valoriza
o
passeio
a
pé
na
sua
ocupação
do
tempo,
mesmo
sabendo que tal possa corresponder igualmente à estada nos jardins e largos das cidades, vilas e aldeias de Portugal, onde
toda
a
gente
se
habituou
a
ver
neles
o
verdadeiro
oxigénio dos EPU nos centros urbanos. A hora e 49 minutos que os reformados (que manifestaram ter essa prática) dedicam, em média, aos passeios a pé é, por via da inexistência de ocupação profissional, muito estável face
aos
dias
úteis
e
fins-de-semana.
A
estabilidade
é
diferente quando nos reportamos à distinção por género, onde é exactamente nos Reformados que a distância temporal no uso do
[228]
espaço público é maior. Com efeito, os cerca de 45 minutos que num dia separam os homens das mulheres demonstram, uma vez mais,
e
agora
categoricamente,
as
dificuldades
e
constrangimentos sentidos pelas mulheres no uso dos EPU e que tanto poderão ser sociais como de incompatibilidade com outras tarefas (refeições, crianças, ...). A
desagregação
revelações,
apenas
potencialmente idosos)
não
apresentam
por
grupos
confirma têm maior
etários, que
ocupações
os
longe
novas
indivíduos
profissionais
disponibilidade
de
para
que
(jovens
e
usufruir
do
espaço urbano, designadamente o público. A hora e 36 minutos e hora e 47 minutos, para jovens
e idosos respectivamente,
contrastam com a hora e 9 minutos para a população dos 25 aos 54 anos. Quadro 11 - População que efectuou passeios a pé, por grupo etário, num dia médio (hh:mm) Total Pop. 15 aos 24 anos
1:36
Pop. 25 aos 54 anos
1:09
Pop. 55 ou mais anos
1:47
Fonte: INE, Inquérito à Ocupação do Tempo, 2001
Caracterizando
os
indivíduos
que
declararam
ter
efectuados passeios a pé por tipologia de família, verifica-se que a existência de filhos parece limitar as saídas e passeios a pé. Também é verdade que noutras instâncias foi referido que são as crianças um dos principais motivos para as saídas. Em todo o caso, dado o carácter extensivo e de qualidade desta recolha deve ser sublinhado que este resultado pode ser também descrito de uma outra forma, isto é, quem está mais liberto de responsabilidades familiares pode dar um outro uso ao tempo.
[229]
Resta
ainda
face
à
desagregação
por
tipologia
de
família, que os valores para as famílias monoparentais e de outro tipo são bastante elevados mas a sua qualidade (medida pelo coeficiente de variação) aconselha a ter reservas na sua interpretação, pelo
que se optou por não os utilizar de modo
a não introduzir ruído na informação disponibilizada. Quadro 12 - População que efectuou passeios a pé, por tipologia de família, num dia médio (hh:mm) Total Indivíduo sozinho
1:39
Casal sem filhos
1:46
Casal com filhos
1:23
Monoparental
-
Outro tipo
-
Fonte: INE, Inquérito à Ocupação do Tempo, 2001
Uma outra leitura que interessa fazer relaciona-se com os níveis de rendimento dos que referiram passear a pé e entendidos
como
uma
forma
grosseira
de
estabelecer
uma
hierarquia social. Se esta perspectiva estiver correcta, é possível afirmar, então, que os grupos socioeconómicos com rendimentos menores despendem mais tempo no passeio a pé, numa lógica de impossibilidade de recurso a outras alternativas. Aliás, uma das lacunas deste Inquérito à Ocupação do Tempo é a incapacidade de incorporar as compras e visitas a locais de consumo como uma prática activa de usufruto do tempo livre, e como tal, uma modalidade de lazer. Disponibilizar
uma
hora
e
48
minutos
para
os
que
apresentam rendimentos inferiores a 120 contos quando os que auferem entre 180 a 230 contos registam menos meia hora de passeio a pé comprova uma relação inversamente proporcional
[230]
entre
rendimento
elevados
e
padecem
tipologia
usufruto
do
mesmo
familiar,
isto
de
EPU.
problema, é,
a
Os
rendimentos
já
comentado
confiança
dos
mais
para
a
valores
apresentados baixa de tal modo que se tornam dispensáveis.
Quadro 13 - População que efectuou passeios a pé, por escalões de rendimento líquido mensal, num dia médio (hh:mm) Total
Lihat lebih banyak...
Comentários