Os Espaços Públicos na Reconfiguração Física e Social da Cidade

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Os Espaços Públicos na Reconfiguração Física e Social da Cidade por Jorge Manuel Gonçalves

Dissertação submetida à Universidade de Nova de Lisboa para obtenção do grau de Doutor em Geografia na especialidade de Gestão do Território.

Departamento de Geografia e Planeamento Regional Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade de Nova de Lisboa Julho de 2004

[1]

Universidade de Nova de Lisboa Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Departamento de Geografia e Planeamento Regional

Os Espaços Públicos na Reconfiguração Física e Social da Cidade

Jorge Manuel Gonçalves Tese de Doutoramento Orientadora: Prof. Drª Margarida Pereira

Lisboa Julho de 2004

[2]

No bairro do amor a vida é um carossel Onde há sempre lugar para mais alguém O bairro do amor foi feito a lápis de cor Por gente que sofreu por não ter ninguém No bairro do amor o tempo morre devagar Num cachimbo a rodar de mão em mão No bairro do amor há quem pergunte a sorrir: Será que ainda cá estamos no fim do verão? Eh, pá, deixa-me abrir contigo Desabafar contigo Falar-te da minha solidão Ah, é bom sorrir um pouco Descontrair um pouco Eu sei que tu compreendes bem No bairro do amor a vida corre sempre igual De café em café, de bar em bar No bairro do amor o sol parece maior E há ondas de ternura em cada olhar O bairro do amor é uma zona marginal Onde não há prisões nem hospitais No bairro do amor cada um tem que tratar Das suas nódoas negras sentimentais Eh, pá, seixa-me abrir contigo Desabafar contigo Falar-te da minha solidão Ah, é bom sorrir um pouco Descontrair um pouco Eu sei que tu compreendes bem

Jorge Palma

Aos meus pais

[3]

Agradecimentos É impossível elaborar um trabalho destes isoladamente. Assim como

é

impossível

expressar

apenas

por

palavras

o

reconhecimento que devo a um conjunto restrito de pessoas pois o

termo

que

me

merecem

pelo

seu

contributo,

directo

ou

indirecto, para este esforço não pode ser apenas gratidão. Concretamente estas pessoas são: - No plano pessoal, distingo a dedicação infinita da minha mãe que, antes de falecer, ainda teve oportunidade de contribuir objectivamente para a elaboração deste trabalho e o esforço da minha

mulher,

Ana

Paula,

na

gestão

familiar

e

doméstica,

apesar desta tese ter atravessado períodos muito complicados na sua vida; - No plano académico, destaco a minha orientadora científica, a

Professora Doutora Margarida Pereira, pois só com muitas

dificuldades conseguiria descrever a forma como conduziu todo este

longo

processo,

naturais

situações

elegante

no

sem

que

trato,

pressões,

surgem

célere

no

compreensiva

durante

quase

tratamento

face

cinco

dos

às

anos,

materiais

e

rigorosa na avaliação da qualidade do trabalho que ia sendo produzido. Merecem-me ainda palavras de agradecimento o Dr. Oliveira das Neves pela compreensão que revelou das minhas involuntárias mas,

por

vezes,

incontornáveis

variações

na

produtividade.

Acresce ainda a sua permanente disponibilidade e até agrado com que discutiu o tema, possibilitando-me ainda o acesso a materiais fundamentais. Agradeço

a

processo

de

Professor

todas

as

pessoas

inquirição

Doutor

João

e

anónimas

de

Ferrão,

que

colaboraram

entrevista, o

em

Professor

especial,

Doutor

no o

Manuel

Teixeira, o Professor Doutor Horácio Bonifácio, o Professor Doutor

Bragança

de

Miranda,

o

Arquitecto

Paisagista

Paulo

Monteiro e o Arquitecto Manuel Salgado. Expresso aqui também

[4]

publicamente

à

colega

Filipa

Lourenço

os

esclarecimentos

prontos que me prestou no sempre difícil campo da análise de conteúdo

das

entrevistas

e

do

tratamento

estatístico

dos

inquéritos. Finalmente, devo uma palavra a todos aqueles que em diversos momentos de elaboração deste trabalho me questionavam sobre o andamento dos trabalhos e revelavam interesse convicto sobre o tema.

[5]

Resumo

[6]

Abstract

[7]

ÍNDICE

INTRODUÇÃO ................................................. 18 1. DISCUSSÃO EM TORNO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS URBANOS (EPU): HIPÓTESES DE PARTIDA E ÁREAS CINZENTAS ..................... 23 1.1. OS EPU COMO METÁFORA DAS TRANSFORMAÇÕES URBANAS ............. 23 1.2. QUESTIONAR OS EPU OU OS MÚLTIPLOS CAMPOS DA URBANIDADE ....... 26 1.3. QUADRO CONCEPTUAL E METODOLÓGICO .......................... 31 1.3.1.

Objectivos ...................................... 31

1.3.2. Defender uma tese ou teses? ...................... 34 1.3.3. Sequência metodológica ........................... 44 2. ELEMENTOS DE UMA CRISE ANUNCIADA ........................ 47 2.1. INTRODUÇÃO ............................................ 47 2.2. AS DINÂMICAS URBANAS RECENTES: EMERGÊNCIA DO HÍBRIDO E DA DESTERRITORIALIZAÇÃO

......................................... 56

2.2.1. A fluidez espacio-temporal da noção de cidade .... 56 2.2.2. Transformações da cidade física ................................................ 57 2.2.3. O estilhaçar da imaterialidade urbana ............ 62 2.3. CONTRIBUTOS PARA UMA TEORIA DOS ESPAÇOS PÚBLICOS URBANOS ...... 63 2.3.1. Espaço Público: crise ou novas lógicas? .......... 63 2.3.2. Estratégias de Substituição e Sedução ............ 70 2.3.3. Dos Espaços Públicos aos Espaços Colectivo: que consequências para as sociedades urbanas? ............... 75 2.4. PROPOSTAS DE TIPOLOGIA .................................. 81 2.4.1. Segmentando a análise ............................ 81 2.4.2. Espaços de recreio e lazer ....................... 82 2.4.3. O espaço público nas cidades portuguesas ......... 84 2.4.4. Ensaio tipológico para os EPU .................... 85 3. NO CAMPO DO ACTOR E DO SEU CENÁRIO ...................... 92 3.1. NOTAS PRELIMINARES ..................................... 92

[8]

3.2. O CRESCENTE INVESTIMENTO NO SELF .......................... 94 3.3. A CIDADE COMO TERRENO NARCÍSSICO ......................... 100 3.4. TRANSFORMAÇÕES E MUTAÇÕES SOCIAIS E URBANAS ................ 104 3.4.1. O paradoxo

urbano-metropolitano ................ 104

3.4.2. Territórios da Alegria .......................... 106 3.4.3. Cidades da Angústia ............................. 109 3.4.4. Cidade dos Extremos ............................. 111 4. OS ESPAÇOS PÚBLICOS URBANOS NA MULTIPLICIDADE DOS OLHARES 112 4.1. CIÊNCIAS SOCIAIS E DA COMUNICAÇÃO ........................ 112 4.2. URBANISMO, ARQUITECTURA E PAISAGISMO ..................... 119 4.3. HISTÓRIA ............................................ 123 4.4. SÍNTESE ............................................. 127 5. O PERCURSO HISTÓRICO DO EPU ............................ 139 5.1. INTRODUÇÃO ........................................... 139 5.2. ATÉ AO PERÍODO ROMANO .................................. 140 5.2.1. Ambiente económico .............................. 141 5.2.1.1. A Cidade Ancestral .......................... 141 5.2.1.2.

Polis grega e cidade romana ................ 146

5.2.2. Política, cultura, e religião ................... 148 5.2.2.1. A cidade ancestral .......................... 148 5.2.2.2. Polis Grega e Roma Imperial ................. 152 5.2.3. Das formas urbanas dos Espaços Públicos ......... 154 5.3.PERÍODO MEDIEVAL ....................................... 160 5.3.1.

Ambiente económico ............................. 160

5.3.2.

Política, cultura, e religião .................. 162

5.3.3.

Das formas urbanas dos Espaços Públicos ........ 164

5.4. PERÍODO RENASCENTISTA – CIDADE CLÁSSICA E BARROCA ........... 168 5.4.1. Ambiente económico .............................. 169 5.4.2. Política, cultura e religião .................... 172 5.4.3. Das formas urbanas dos espaços públicos ......... 177 5.5. CIDADE MODERNA ........................................ 184 5.5.1. Ambiente Económico .............................. 184 5.5.2. Política, cultura e religião .................... 189

[9]

5.5.3. Das Formas Urbanas dos Espaços Públicos ......... 198 5.6. A “HISTÓRIA” QUE SE ESTÁ A ESCREVER ...................... 204 5.6.1. Recomendação do Comité de Ministros dos Estados Membros da Comunidade Económica Europeia ............... 205 5.6.2. A Nova Carta de Atenas .......................... 208 5.6.3. Regulamentos e manuais municipais de utilização dos EPU .................................................... 210 6. AVERIGUAR A PRÁTICA: A OCUPAÇÃO DO TEMPO E A UTILIZAÇÃO DOS EPU ................................................... 220 6.1. O USO DO TEMPO EM PORTUGAL .............................. 222 6.2. UTILIZAR OU NÃO OS ESPAÇOS PÚBLICOS? EIS A QUESTÃO .......... 238 6.2.1. Processo de Inquirição aos Cidadãos de Lisboa ... 238 6.2.1.1. Introdução .................................. 238 6.2.1.2. Processos de inquirição ..................... 253 6.2.1.3. Dimensões e grau de pertinência da amostra .. 254 6.2.1.4. Modelo e estrutura de inquérito ............. 255 6.2.1.5. Caracterização dos inquiridos ............... 258 6.2.2. Das teses à realidade ........................... 269 6.2.3.1. Em busca de um significado para os EPU ...... 269 6.2.3.2. A distância entre a representação e a realidade ..................................................... 315 6.2.3.3. O apagamento dos EPU no Urbanismo Contemporâneo ..................................................... 348 7. CONCLUSÃO .............................................. 365 8. BIBLIOGRAFIA ........................................... 371

[10]

Índice de Quadros

Quadro 1 - Classificação de áreas recreativas .............. 83 Quadro 2 - Especialização funcional dos EPU ................ 85 Quadro 3 - Ensaio de tipificação dos EPU ................... 87 Quadro 4 - Domínios e conceitos fixados para a análise quantitativa das entrevistas ........................... 130 Quadro 5 - Matriz relativa ao domínio Cidadania (‰) ....... 133 Quadro 6 - Matriz relativa ao domínio Comunicação (‰) ..... 134 Quadro 7 - Matriz relativa ao domínio Elementos de Composição ....................................................... 136 Quadro 8 - Matriz relativa ao domínio Complementaridades .. 137 Quadro 9 – Distribuição geográfica da Amostr .............. 225 Quadro 10 - População com mais de 15 anos que efectuou passeios a pé, um dia médio ............................ 228 Quadro 11 - População que efectuou passeios a pé, por grupo etário, num dia médio .................................. 229 Quadro 12 - População que efectuou passeios a pé, por tipologia de família, num dia médio .................... 230 Quadro 13 - População que efectuou passeios a pé, por escalões de rendimento líquido mensal, num dia médio ............ 231 Quadro 14 - Variação na estrutura etária da cidade de Lisboa ....................................................... 242 Quadro 15 - Agrupamentos de Freguesia adoptados ........... 250 Quadro 16 - O género na Amostra ........................... 258 Quadro 17 - Indivíduos com filhos até 10 anos na Amostra .. 260 Quadro 18 - Indivíduos com cão na Amostra ................. 260 Quadro 19 - Nível de Instrução dos Indivíduos na Amostra .. 262

[11]

Quadro 20 - Naturalidade dos inquiridos ................... 263 Quadro 21 - Distribuição das Freguesias do local de trabalho ou Estudo .............................................. 267 Quadro 22 - Principais utilizadores dos EPU (%) ........... 270 Quadro 23 - Modo de deslocação (%) ........................ 292 Quadro 24 - EPU mais importantes para o inquirido ......... 313 Quadro 25 - Importância concedida aos EPU ................. 316 Quadro 26 - Intensidade de uso dos EPU .................... 319 Quadro 27 - EPU mais frequentados ......................... 320 Quadro 28 - Termos de caracterização dos Espaços Públicos de Lisboa(%) .............................................. 326 Quadro 29

- Síntese do posicionamento face à Rua (%) ..... 330

Quadro 30 - Síntese de posicionamento face ao Jardim ...... 331 Quadro 31 - Síntese de posicionamento face ao Parque Verde Urbano ................................................. 332 Quadro 32 - Qualidade da iluminação nos jardins ........... 339 Quadro 33 - Espaço mais utilizado fora do tempo das obrigações ....................................................... 345 Quadro 34 - Aspectos mais negativo nos EPU (%) ............ 350 Quadro 35 - Ver televisão ................................. 352 Quadro 36 - Leitura de jornais, revistas ou livros ........ 353 Quadro 37 - Conversar em família ou com os amigos ......... 353 Quadro 38 - Navegar na Internet ........................... 354 Quadro 39 - Comunicar on-line (chats, e-mail) ............. 355 Quadro 40 - Jogos electrónicos ............................ 355 Quadro 41 - Programas culturais e recreativos ............. 356 Quadro 42 - Praticar desporto ou cultura física ........... 356 Quadro 43 - Ver montras comerciais ........................ 357

[12]

Quadro 44 - Jardins e parques urbanos ..................... 358 Quadro 45 - Cafés / Esplanadas ............................ 359 Quadro 46 - Namorar ....................................... 359 Quadro 47 - Passear ....................................... 360 Quadro 48 - Não tem tempos livres ......................... 360

[13]

Índice de Figuras

Figura 1 - Elemento gráfico de lisboa – Capital do Nada .... 19 Figura 2 - Síntese da estrutura metodológica e conceptual .. 44 Figura 3 - Descodificação do padrão de utilização dos espaços públicos ................................................ 54 Figura 4 - A transição urbana .............................. 58 Figura 5 - O humor nos olhares sobre os EPU ............... 122 Figura 6 – Oposição nas representações dos EPU ........... 123 Figura 7 - Cidade de Nippur: A primeira planta urbana ..... 144 Figura 8 - O Berço da Civilização Urbana .................. 151 Figura 9 - Níveis de conhecimento dos EPU ................. 156 Figura 10 - Planta da Babilónia ........................... 157 Figura 11 - Mileto e a Àgora como charneira urbana ........ 159 Figura 12 - Praça central de Siena ........................ 168 Figura 13 - Monsaraz ...................................... 179 Figura 14 - Exemplo da intervenção de Haussman em Paris ... 194 Figura 15 - Extensão e tipos de intervenção de Haussman e . 194 Figura 16 - Recomendações e princípios constantes na Recomendação NºR(86)11-CEE ............................. 207 Figura 17 - Manual de Utilizador dos Parques de Lisboa .... 214 Figura 18 - Perfil de ocupação da população com mais de 15 anos, num dia médio .................................... 227 Figura 19 - População com 15 ou mais anos que realizou actividades de lazer, dia médio ........................ 232 Figura 20 - População com mais de 15 anosque anda apressada 232 Figura 21 - População empregada que anda apressada, por grupo etário, por percepção do tempo na vida particular ...... 235

[14]

Figura 22 - A Área Metropolitana de Lisboa ................ 240 Figura 23 - Variação da população por concelhos, 91-01 .... 241 Figura 24 - Estrutura etária do Parque Habitacional de Lisboa ....................................................... 244 Figura 25 - As 53 freguesias de Lisboa .................... 248 Figura 26 - Agrupamentos de freguesias de Lisboa .......... 251 Figura 27 - Agrupamentos de Freguesias por população, 2001 252 Figura 28

- Os espaços público/colectivos mais referidos em

Lisboa ................................................. 253 Figura 29 - Distribuição da amostra por grupos de idades .. 259 Figura 30

- Número de Passeios com o cão ................. 261

Figura 31 - Local dos passeios com o cão .................. 261 Figura 32 - Habilitações dos inquiridos ................... 263 Figura 33 - Naturalidade dos inquiridos ................... 264 Figura 34 - Distribuição relativa pelas principais freguesias de residência .......................................... 265 Figura 35 - Freguesias de residência dos inquiridos ....... 266 Figura 36 - Principais freguesias dos locais de trabalho .. 268 Figura 37 - Local de trabalho ou estudo por agrupamentos de freguesia na distribuição da amostra ................... 268 Figura 38 - Utilizadores habituais como perturbadores do uso mais alargado dos EPU .................................. 284 Figura 39 - Limitações a um uso mais frequente dos EPU .... 288 Figura 40 - Deslocações para compras ...................... 298 Figura 41

- Deslocações para obrigações diversas ......... 301

Figura 42 - EPU como modalidade de Ocupação dos Tempos Livres ....................................................... 302 Figura 43 - Utilização dos EPU após as 23h ................ 305

[15]

Figura 44 - Locais mais inseguros de Lisboa ............... 307 Figura 45 - Locais identificados como mais importantes

de

Lisboa ................................................. 311 Figura 46 - Opinião sobre o volume de EPU ................. 318 Figura 47 - Frequência de deslocação aos locais que mais gosta ....................................................... 325 Figura 48 a) b) c) d) - Opinião sobre a iluminação nos EPU 337

[16]

Índice de Fotografias

Fotografia 1 - A altura dos Passeios: baixo num lado e alto no outro (Cruzamento da Av. da República com a Av. de Berna) ........................................................ 35 Fotografia 2 - Campo Pequeno. As novas muralhas da cidade(1) 35 Fotografia 3 - Calçada do Combro.As novas muralhas da cidade(2) ............................................... 36 Fotografia 4 - A Expo’98 .................................. 107 Fotografia 5 - Os Estádios do Euro 2004 ................... 108 Fotografia 6 - Porto - Capital Europeia da Cultura. Casa da Música. ................................................ 108 Fotografia 7 - Chelas ..................................... 108 Fotografia 8 - O Passeio Público: Rua Central e Passeios Laterais ............................................... 246

[17]

Introdução Escrever

uma

tese

significa

defender

e

explicitar

convicções recorrendo a uma metodologia e linguagem aceites pela

comunidade

científica.

Representa

também

caminhar

no

sentido da obtenção de um conhecimento mais aprofundado sobre determinado objecto, recorrendo à reapreciação de reflexões efectuadas em domínios conexos aos Espaços Públicos Urbanos por

outros

autores

e

ainda

a

um

investimento

renovado

na

recolha de novos elementos capazes de trazer um contributo significativo para a compreensão do tema. Este objectivo geral não ajuda a entender as causas mais profundas

que

conduziram

à

adopção

dos

Espaços

Públicos

Urbanos como fundamento de uma tese de doutoramento. Esta é uma das principais preocupações da presente Introdução: Como se seleccionou um tema de natureza geográfica e urbana ao qual um candidato ao grau de doutorado passa a dedicar mais de quatro anos a investigar, a recolher, a apreciar documentação, a entrevistar, a inquirir e, finalmente, a tratar e discutir toda

a

informação

que

lhe

vai

chegando.

A

paixão

sobre

cidades, pessoas e quotidiano foram a matriz inicial dessa motivação

aliás,



reflectida,

num

primeiro

trabalho

académico1, onde o problema da participação pública em matéria de questões territoriais havia sido debatida. Neste caso, o interesse pelo Espaços Públicos para além de se inscreverem na dimensão urbana e social permitiam também uma (re)leitura das formas de utilização quotidiana da Cidade medindo as causas e consequências das suas transformações. A interacção entre estes elementos tinha, desde os finais dos anos 90, vindo a ganhar expressão na literatura científica nacional, em especial no domínio da sociologia, mas também nas páginas

de

jornais

e

ecrãs

de

televisão

onde

apareciam

1

Dissertação de mestrado ReciproCidade: Apropriação e Exclusão em Urbanismo, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1996.

[18]

insistentes

reivindicações

pela

protecção

e

criação

dos

Espaços Públicos Urbanos. Entre os muitos exemplos é incontornável não apresentar aquele

que

questionamento

talvez e

tenha

de

exercido

mobilização

um

para

o

maior estudo

poder do

de

tema:

Projecto Lisboa – Capital do Nada, que decorreu numa freguesia de Lisboa – Marvila - de 1 a 31 de Outubro de 2001. Um conjunto

de

artistas

e

especialistas

de

várias

áreas

disciplinares encarou como uma oportunidade a possibilidade de intervir no espaço urbano da freguesia para o que contou com o apoio dos órgãos autárquicos locais e com as populações. Esta

intervenção

suscitou-nos

múltiplas

interrogações

mas entre as quais ganhou força a que questionava a forma, admitindo a existência de uma crise do espaço público, como operar a sua reanimação ou recentramento no quotidiano dos espaços e comunidades urbanas. Ou seja, como é que espaços onde o vazio e o nada marcam o tempo podem ser revertidos de modo a possibilitar, como afirma Teresa Alves, “(...)a criação de um sentimento de comunidade através da mobilização das populações de forma a que estas reivindiquem o espaço público como um bem colectivo de promoção da qualidade vida” (AAVV:

Figura 1 - Elemento gráfico de lisboa – Capital do Nada

[19]

2002; 12). Estes espaços públicos de Marvila não são mais que uma metáfora de uma qualidade urbana paupérrima e de frágeis dispositivos de promoção da coesão social. Marvila inovadoras propósito

era

assim

formas de

um

de

um

espaço

intervenção

movimento

ideal em

para

desencadear

Espaços

artístico,

novos

Públicos,

a

comportamentos

colectivos, marcados pela participação, pela observação e pelo envolvimento.

Os

seus

organizadores

não

esconderam

estes

propósitos justificando a escolha de Marvila porque “é uma zona mal amada; porque é um conjunto de bairros com muita história mas também muito futuro; porque é um território rico e

variado,

onde



pessoas

e

colectividades

de

grande

dinamismo” (AAVV: 2002; 13). Os objectivos centrais situavamse na mudança da imagem negativa do bairro através da arte e de intervenções várias contando com a participação cidadã. O “Nada”

inscrito

no

título

do

projecto

partida que conduziria à inversão do

seria

a

matéria

de

passado.

O impacte e a visibilidade que este projecto teve junto dos

meios

artísticos

não

encontrou

correspondência

na

realidade local. Todavia, a fugaz intervenção de um mês e a bondade do emprenho colocado no projecto não podem apagar décadas

de

esquecimentos

e

erros

urbanísticos.

Daí

a

importância conferida a este evento pois a sua avaliação exige que se questione sobre as melhores formas de intervir sobre o espaço público, o que exige a explicação para o seu declínio. Como

mérito

participação

e

do

projecto

envolvimento

salientam-se

público

em

as

temáticas

matéria

de

da

Espaços

Públicos Urbanos convencendo-nos em definitivo que esta será uma das matérias cruciais para a sobrevivência da ideia de Cidade sedimentada ao longo de centenas de anos. Se estes acontecimentos ajudaram a consolidar o tema e os conteúdos a tratar as vicissitudes, as limitações de ordem

[20]

diversa e até a incongruência de algumas tarefas concebidas inicialmente não alteraram o rumo traçado mas introduziram novos contornos nos conteúdos face ao esperado. Isto é o que sucede quando o objecto de estudo se refere a mudanças que ainda estão a decorrer, por isso, parte das suas consequências permanecem invisíveis. É o que sucede com os Espaços Públicos Urbanos e a forma como hoje se inscrevem na

cidade

e

no

imaginário

das

suas

comunidades

de

utilizadores. Qualquer uma das dimensões de motivação atrás enunciadas (cidade,

pessoas

e

quotidiano)

estão

especialmente

bem

reflectidas na temática dos EPU: ►

O mundo urbano com as suas infinitas possibilidades

de libertação e de composição dos elementos que os constituem; ►

Os

EPU

na

construção

da

aprendizagem

social

suportada na relação com o espaço e na relação com o outro; ►

O quotidiano feito de mudança e acaso ganha novo

protagonismo nestes tempos de aceleração física e imaterial. Como

interagem,

como

mudam,

como

são

vistos

e

consequências têm estes aspectos tornou-se quase uma obsessão para o que se recorreu a listagens infindáveis de actividades e tarefas. Algumas delas abandonadas, outras começadas sem se prever, um pouco de tudo aconteceu

durante a elaboração da

tese. Dito de outro modo, a estrutura a que se chegou é apenas o resultado de um desbaste muito mais amplo e dispersivo que encontrou finalmente um ponto de equilíbrio sustentado. Dessa estrutura é possível apresentar os seus três pilares maiores: ►

Reflexão conceptual



Dimensão Histórica

[21]



Auscultação do território

A organização formal e sistematizada encontrada para a adequada explicitação destes conteúdos exigiu que fossem elaborados seis capítulos, excluindo a introdução e a conclusão. O primeiro ficou reservado para a discussão dos objectivos e teses em torno dos quais se construirá este trabalho académico. O segundo capítulo detém-se na ideia de crise dos Espaços Públicos Urbanos dado que esse será a sua grande motivação. O protagonismo passa do espaço para o utilizador e os seus comportamento que moldam parte do quotidiano urbano. O capítulo quatro envereda pela exploração das leituras múltiplas que são feitas dos EPU a partir de sensibilidades e preocupações disciplinares diferentes. Pensar o futuro e as tendências significa saber gerir um passado que em matéria de Espaços Públicos é muito rico e diversificado, sendo este o centro de interesse do capítulo 5. Finalmente, no capítulo seis trabalhou-se dados recolhidos no terreno de modo a validar muitos dos aspectos abordados atrás.

[22]

1.

Discussão

em

torno

dos

espaços

públicos

urbanos

(EPU): Hipóteses de partida e áreas cinzentas 1.1. Os EPU como metáfora das transformações urbanas O questionamento da Cidade nem sempre foi uma atitude corrente

na

disciplina

geográfica.

reforçada quando deixamos a ideia Cidade

e

passamos

centrais,

a

equipamentos

a

considerar

demografia sociais,

urbana, entre

Esta

convicção

abstracta aspectos a

outros.

Essa

e genérica de

como

promoção

fica

as

funções

económica,

os

interrogação



surge, em Portugal, de um modo mais evidente e depois de algumas incursões de Orlando Ribeiro2 sobre temas urbanos, com Jorge Gaspar (1968), José Pereira de Oliveira (1973), Teresa B. Salgueiro (1971, 1972) e Paula Bordalo Lema (1972), a que se seguiram outras abordagens geográficas do urbano, marcadas por uma crescente diversidade temática. Pode, assim, afirmar-se que o tratamento da Cidade na análise

geográfica

respectivas

funções

partia centrais

do

interior

(traços

e

urbano,

com

localização)

as para

observar a sua irradiação no território envolvente – área de influência. Conjugando os resultados de estudos sistemáticos realizados em centros urbanos da mesma região era possível obter a correspondente rede urbana, com a sua hierarquização e debilidades. Espaço urbano e área envolvente, cidade e território por ela influenciado eram, deste modo, variações do mesmo tema. A abordagem do urbano em função do urbano e até para intervir no urbano só surge claramente nos anos 70 e 80, relacionada com problemas concretos e colocando em causa valores histórico, sociais e económicos (Mendes, 1979; Gaspar, 1975, 1976, 1977a, 1977b; Fonseca, 1980; Salgueiro, 1984). Nesta aproximação aos

2

Cf. a excelente reunião de textos sobre a matéria, concebida por Suzanne Daveau, em Ribeiro,O. (1994), Opúsculos Geográficos,FCG, Lisboa.

[23]

aspectos

mais

restritos

da

cidade,

visando

a

colecta

de

elementos para uma melhor intervenção, a geografia revelou algum

à

vontade,

desde

que

pudesse

contar

com

bases

de

informação credíveis como as estatísticas, a cartografia e a possibilidade de efectuar levantamentos directos. Conhecer para intervir passou a ser prática recorrente, sendo apenas na última década do século XX que se sentiu o arejamento nas temáticas e até nas escalas onde dominavam a região, os concelhos e as cidades, estas consideradas como um todo ou segmentadas por ruas e bairros. Esta

perspectiva

(implicada

nos

princípios

da

Nova

Geografia) decorria do tipo de representação que os restantes campos disciplinares e políticos possuíam dos geógrafos e que o

geógrafo

tinha

do

espaço

e

da

cidade.

O

modelo,

o

funcionalismo e a lógica mecanicista/racional, imperavam como pano de fundo da análise e explicação do urbano. Nestes atenção

passos

conferida

introdutórios, ao

objecto

de

preocupa-nos estudo

discutir

identificado

a

como

Espaço Público Urbano (EPU) e, ao mesmo tempo, justificar essa escolha na justa medida em que configura ainda uma ruptura com os

temas

clássicos

da

geografia.

O

corte

será

ainda

mais

pronunciado quando se fizer alusão à diversidade de domínios que terão de ser implicados e que são ainda pouco comuns em estudos de natureza geográfica. Todavia, alguns artigos de âmbito geográfico escritos em Portugal, nos anos 90, continham já referências explícitas aos EPU (Gaspar, 1992; Abreu e Fonseca, 1995), mas a lógica sob a qual se abrigavam não permitia desmantelar o quadro social, económico e urbano que suscitou os problemas identificados. Persistia

uma

descrição

dominantemente

geográfica,

com

referências ténues e superficiais a condicionantes sociais, culturais ou ideológicas, resultando num quadro explicativo

[24]

insuficiente e pouco indutor de uma produção científica a jusante. Com idêntico hermetismo o tema é também tratado noutros campos

disciplinares,

Fortuna

(1999a,

Teixeira

autores

1999b),

Arendt

2001)

entre

(1998,

preocupações

que

Urbanos

planos

em

onde

afectam tão

a

como

(2001),

Bassand

outros,

cidade

distintos

e

Habermas

os

como

(1962),

(2001),

demonstraram Espaços a

ou as

Públicos

sociedade,

a

arquitectura, a filosofia, a economia e o direito. A geografia mantém-se

à

margem

desta

discussão,

negligenciando

o

contributo potencial que poderia conceber a partir da sua posição de charneira face às múltiplas dimensões urbanas. No entanto, merecem relevo os trabalhos de Valentine (1995, 1999) e Chintya Gorra-Gobin (2000, 2001), que utilizam os EPU como centro da análise para tratar temas como a insegurança, a política, o consumo e o género. Daí que se considere como uma excelente oportunidade a percepção

de

que

os

EPU

podem

constituir

uma

chave

interessante para decifrar as transformações operadas, e ainda hoje

e

sempre

activas,

nos

contextos

urbanos

ou

metropolitanos. Esta será a matriz de referência, mas alertase para a intensa probabilidade da análise e reflexão nos transportar para universos aparentemente distantes mas sempre, de um modo ou de outro, com ela relacionados. As dimensões tecnológica, social e cultural da concepção urbana afectam o uso e a centralidade tradicional dos EPU, tratando-se agora de medir

as

consequências

múltiplas

também

deste

processo

de

transferência de sociabilidades e, de certo modo, das novas formas de “produzir cidade”3.

3

Não deixa de ser interessante a utilização desta frase que é hoje recorrente dos discursos político e técnico e que remete para conceitos pré-formatados na intervenção urbana almejando com imodéstia oferecer espaços que contém a espessura histórica, cultural e socioeconómica da cidade tradicional. Esta preocupação incide não só sobre as estratégias

[25]

Como

em

todos

os

processos

de

mudança

em

curso,

a

investigação corre sempre o risco de sair prejudicada por ainda não se vislumbrar a estabilização ou o final deste ciclo de

incerteza,

conhecidos

na

com

resultados

íntegra.

Por

desfocados

outro

ou

lado,

ainda

existem

não

também

vantagens a reter, de que sublinhamos a de investigar por antecipação,

juntando

e

trabalhando

as

peças

do

puzzle

disponibilizadas até agora, encontrando a justa posição dos EPU na cidade,não só numa perspectiva física mas igualmente no campo das representações individuais.

1.2. Questionar

os

EPU

ou

os

Múltiplos

Campos

da

Urbanidade O desenvolvimento de uma temática como a dos EPU num documento

académico

sistematizar

os

desta

natureza

resultados

da

obriga

reflexão

a

feita

formular

e

previamente,

formatados de modo a construir interrogações e até algumas hipóteses quadro

provisórias.

conceptual

orientar

as

Torna-se,

sólido

preocupações

e

assim,

satisfatório

iniciais.

Se

possível para já

obter

suportar

eram

um e

sentidas

dificuldades de precisar o campo da geografia por oposição às demais

disciplinas,

proporção

quando

essa

nos

dificuldade

centramos

em

aumenta escalas

em

idêntica

crescentemente

localizadas e até cirúrgicas, sendo, no limite, impossível proceder a essa distinção como, aliás, sucede com as outras disciplinas4.

recentes de estetização da Cidade (PEIXOTO, 1998), como a EXPO’98, EURO2004 ou o programa Pólis, mas também sobre um urbanismo que é reflexo da densificação e da massificação suburbana. 4 Veja-se o caso recente da sociologia espacialista “alimentada” por Isabel Guerra e Vítor Matias Ferreira e da economia do território ou antropologia do espaço, onde se sente intensamente a presença de Filomena Silvano.

[26]

Com esta convicção é possível colocarmos as hipóteses de partida que configuram a presente investigação e as submeter a uma reflexão profunda com uma natureza holística e, por isso, sistémica

e

transversal

a

outras

perspectivas

da

análise

urbana. Apesar

de,

como



foi

salientado,

se

defender

o

carácter total dos EPU não deixa de ser conveniente reportar estas hipóteses a quatro universos de referência procurando tornar mais claro o quadro de partida:

Universo pós-moderno5 ►

A manifestação da sociedade do conhecimento através da desmaterialização dos contactos subtraiu aos EPU mais uma das suas funções centrais: a da comunicação e publicitação da informação;



A

imposição,

pela

competitividade

urbana,

de

uma

paisagem global por oposição à condição urbana local, capaz de seduzir o investimento, tem transformado a Cidade implicando a desvalorização dos traços urbanos tradicionais; ►

O

EPU

passa

a

participar

do

acréscimo

de

competitividade a diferentes escalas, justificando os esforços de higienização em meio urbano6, libertando as áreas disponíveis para o usufruto de utilizadores que sigam códigos precisos e maioritariamente aceites de comportamento e sociabilidade;

5

O termo é substituído por outros consoante a perspectiva dos seus autores: sobremodernidade para Augé (1994), modernismo tardio para Giddens (1994), entre outras propostas. 6 Realojamentos, salas de chuto, casas de prostituição, centros de acolhimento para imigrantes são iniciativas que para além do seu objectivo de conferir maior dignidade à existência de cada um dos segmentos da população a que reportam, não deixam de significar um acantonamento social e urbano, higienizando a Cidade.

[27]



Um

dos

elementos

moderno aliás,

talvez

mais

seja

condicionou

valorizados

a o

no

experiência uso

dos

período

pós-

individual

que,

modelos

de

natureza

mecânica e linear ainda aplicados no campo cientifico. Nessa experiência foi convocada o elemento corporal como

estratégia

central

para

o

uso

do

espaço

(Gonçalves, 2002). Os EPU e a sua utilização estão a sofrer perturbações significativas com as disfunções associadas ao culto do corpo, insegurança, consumo.

Universo do Ambiente Urbano ►

A

qualidade

do

espaço

urbano

tem

caminhado

para

encarar o ambiente urbano como um instrumento eficaz de construção da sempre perseguida sustentabilidade que, segundo Rodrigues (2002;16), corresponde “a um metabolismo linear”,

circular

por

materializada

urbanos

ou

no

ainda,

noutra

oposição

nos

tratamento escala,

grandes

das

zonas

nos

ao

metabolismo

parques

verdes

ribeirinhas

corredores

ou

verdes

metropolitanos. Os grandes projectos, consumidores de investimentos, recursos materiais e humanos, ganham protagonismo

e

são

desvalorizados

os

EPU

de

proximidade, de pequena escala ou, se se quiser, de vizinhança; ►

O

papel

dos

EPU,

apesar

destas

mudanças,

ainda

é

relevante na moldagem do espaço e silhueta urbana, na certeza de que a persistência desse estatuto decorre da presença de utilizadores assíduos e diversificados que vão fomentando as inter-relações; ►

A

natureza

complexa

e

dispersa

dos

EPU

obriga

a

convocar outros olhares disciplinares que, para além da

sua

visão

mais

sectorial,

fornecem

contributos

valiosos, pertinentes e actuais, para formalizar uma

[28]

ideia mais precisa e, em simultâneo, mais próxima dos fundamentos do objecto de análise; ►

A Cidade apresenta uma relação nem sempre pacífica e nem sempre clara com os espaços públicos, pois se em alguns períodos históricos essa presença é valorizada noutros é remetida para posições marginais ou mesmo apagada7. A esta discussão acresce o facto de os EPU persistirem no centro ou em localizações privilegiadas nos

tecidos

concluir

por

política

ou

urbanos,

não

qualquer

forma

económica

permitindo de

ou

directamente

apropriação

por

uma

social,

valorização

8

concretizada no uso ; ►

Os EPU constituem uma razoável síntese da dinâmica socioeconómica

que

afecta

a

Cidade

e,

por

tal,

assumem-se como um barómetro que é importante saber descodificar

na

sua

complexidade

como

metáfora

do

estádio de desenvolvimento de cada comunidade.

Universo da Sociabilidade ►

A

transformação

da

Cidade

como

o

produto

de

um

conjunto alargado de domínios e de relações complexas associadas à globalização e à individualização obrigou

7

Aristóteles (1977) no Tratado da Política deixa clara a importância do arranjo interior da Cidade: “É conveniente que abaixo desta fortaleza haja, como na Tessália, um lugar livre para se poder passear, onde se não efectue nenhum mercado e onde não se admitam nem trabalhadores, nem artistas nem outras pessoas semelhantes, a não ser que sejam chamados pelos magistrados(...). O mercado deve ser separado deste lugar, numa situação cómoda, para que a ele possam chegar com facilidade os produtos provenientes donde quer que seja, por terra e por mar.” (p.71). Distingue-se a praça do mercado em que o primeiro é vazio e livre e o outro é o centro das trocas e transacções. Não deixa de ser curioso a proximidade com o que se verificava ainda no século XX, em Lisboa, em que o Rossio era a praça e a Praça da Figueira o Mercado. O urbanismo dos espaços periféricos, que no caso português podemos exemplificar com as Áreas Urbanas de Génese Ilegal ou as IlhasSubúrbio, faz desaparecer os espaços de encontro e de sociabilidade como resposta a exigências dominantes de rentabilidade do uso do solo. 8 Poderá comprovar-se a partir da relação, p.e., que os lisboetas estabelecem com o Parque Eduardo VII ou Monsanto.

[29]

a repensar os problemas urbanos de modo diverso ao que sucedeu

num

período

anterior

como

foi

a

fase

modernista. Em lugar de destaque surgem as questões do uso e apropriação do espaço público urbano tal como os concebemos hoje; ►

A concepção dos EPU atendendo à alteração estrutural quer

do

clama

urbanismo por

quer

das

diversas

comunidades

culturas

instaladas,

profissionais

e

científicas visando uma reconstrução do espaço público que responda

às exigências e expectativas actuais

mesmo que em condições muito limitadas; ►

A revolução operada nos domínios tecnológicos e da transferência

de

bidireccional,

informação,

permite

criar

dominantemente

espaços

públicos

de

discussão fora do contexto territorial, acessíveis a um

número

crescente

de

utilizadores

até

porque

as

possibilidades de exploração destes novos meios não param de ampliar-se9 e aperfeiçoar-se10.

Universo de Representação ►

Desde sempre as cidades reconhecem e reconhecem-se nos espaços

públicos

que,

no

entanto,

vão

variando

em

função das sociedades em presença (Àgora grega, Fórum romano, Adro da igreja, Largo da feira, Rossio, ...). Num

contexto

utiliza palavras,

o

de crise

EPU como

para

urbana se

conferir

como

redefinir a

estes

é

que

ou,

lugares

a

cidade

por

outras

uma

carga

9

Por exemplo, nos meios escolares ou no plano do “Ele procura Ela” a utilização dos SMS ou do software tipo Messenger que permite a comunicação em tempo real e a baixo custo ganhou uma expressão que impressiona pela sua generalização e facilidade de utilização. Se se pensar como estas vias implicam a substituição dos espaços físicos tradicionalmente utilizados, percebe-se como os EPU estão à margem dos actuais processos de comunicação e socialização. 10 A tecnologia UMTS que permite o uso de telemóveis com câmra instalada e em que os interlocutores se podem ver em tempo real e a utilização das câmaras web no Messenger prolonga a erosão funcional dos EPU simulando os contaftos “olhos nos olhos”.

[30]

simbólica

fundamental

para

a

(re)construção

do

sentimento identitário?; ►

A emergência de novos “sentimentos urbanos colectivos” ou, dito de outro modo, de novas representações da cidade e da vida urbana, tem gerado novas tipologias de EPU que colocam em causa os fundamentos de direito público

em

que

assentavam

os

tradicionais.

Ganham

expressão termos como “não-lugares” no dizer de Augé (1994)

ou

a

privatização

do

espaço

público

como

assinala Lúcio in Moreno (2001); ►

Para além do futuro, mantêm-se as preocupações com a memória,

sendo

esta

o

garante

para

o

reforço

da

identidade urbana e o cimento para as novas formações sociais em desenvolvimento; ►

A possibilidade de uma maior mobilidade de pessoas e ideias

conduz

territórios

a

uma

habitados

acentuada por

fragmentação

minorias

carentes

de de

referências e espaços simbólicos, surgindo os espaços étnicos,

alternativos,

dificuldade

de

conexão

nacionalistas, aos

etc.,

restantes

com

segmentos

urbanos.

1.3. Quadro conceptual e metodológico 1.3.1.

Objectivos

As hipóteses levantadas em 1.2. procedem a um tratamento alargado

das

áreas

complementarmente, realidade

de

são

cidades

em

que

os

consequência, portuguesas,

EPU no

interferem

tempo com

presente,

uma

e, da

expressão

demográfica e económica que as aproximam das dinâmicas nas áreas metropolitanas e sedes de distrito, sem olvidar aquelas que tenham manifestado recentes desenvolvimentos à custa de

[31]

dinâmicas económicas ou outras razões (universidade, saúde, investigação, desporto, ...). Para

além

disso,

as

hipóteses

de

trabalho

permitem

estabelecer o leque das preocupações que, na generalidade, se colocam às cidades, convergindo quase todas para a convicção de que estão a mudar mas cuja forma final ainda se encontra longe de poder ser determinada. Os EPU constituem, assim, uma oportunidade para encontrar novas pistas sobre: ►

O

estado

das

estrutura

cidades,

no

que

respeita

à

sua

física e das realizações materiais. Da

sua concretização

resultam

múltiplos impactes na

estrutura urbana (distribuição das vocações e áreas imprescindíveis protagonismo

ao

ou

funcionamento

desvalorização

da

de

cidade,

determinados

elementos de composição urbana, ...); ►

A

composição

urbanas

e

funcionamento

que,

mais

uma

condicionadas

pela

estrutura

cultural,

diversidade

vez,

das

comunidades

interferem urbana.

e

são

Opulência

étnica-religiosa-cultural,

ampliação da sedução exercida pelo consumo apoiada em mecanismos de pressão social (como tão bem tem sido

tratado

por

Jean

Baudriallard)

explicam

a

densificação e diversidade nos espaços colectivos privados

encontrando

justificação,

a

par

aqui das

parte

razões

da

políticas

sua e

económicas; ►

A dimensão económica e política é ainda hoje um sustentáculo seguro do fenómeno urbano, pelo que muito

do

que

se

passa

na

cidade

deve

ser

interpretado à luz das respectivas estratégias. Da alteração das estruturas urbanas às transformações sociais

e

tecnológicas,

foi

sempre

possível,

ao

[32]

investimento fórmulas próprio,

e

à

intervenção

capazes

de

explorando

as

os

política,

reverter

desejos,

encontrar

em

proveito

expectativas,

as

inseguranças e incertezas. O desenho arquitectónico e urbano pode também ser interpretado à luz destes princípios

bem

como

o

estímulo

do

recurso

às

tecnologias e demais formas de comunicação.

Com estas hipóteses e preocupações parece pertinente tomar os espaços públicos urbanos como indicador credível destas mudanças. A sua leitura deverá ser feita numa perspectiva orientada

para

a

dimensão

urbanística

embora,

como

se

observará adiante, não seja possível dissociá-la de muitos outros campos que se associam directa ou indirectamente à ideia de urbanidade. Os objectivos da tese não se conformam assim com o papel que os EPU têm enquanto chave de leitura das mudanças operadas e

ainda

activas

na

cidade,

procurando

ir

mais

longe

na

identificação do sentido e da justificação dos sentimentos reais dos utilizadores da cidade, desconstruindo convicções que

poderão

apenas

estar

no

plano

das

representações

individuais e não no campo das práticas colectivas. A cidade somos nós, paredes e pessoas, ruas e edifícios, espaços fechados e espaços públicos. Mas a polis, de onde derivam em simultâneo, as palavras política e cidade, livre e democrática, discussão

e

exige a

o

encontro,

celebração.

a

troca,

Questionar

o

a

partilha,

estado

a

destes

princípios fundamentais é um objectivo central desta tese.

[33]

1.3.2.

Defender uma tese ou teses?

Em concreto, tendo presente as hipóteses de partida e os objectivos enunciados, qualquer tese que daqui resulte deve tratar, neste caso, os espaços públicos, a sua ocorrência, distribuição, utilização e papel no funcionamento do organismo urbano. O que é preciso também assegurar é que a consideração de todos estes aspectos permita chegar a conclusões bem mais ricas e distantes do objecto inicial. Talvez não seja descabido explicar esta preocupação a partir de uma metáfora referente a um elemento urbano e, para ser mais preciso, a um traço particular dos espaços públicos urbanos: alguém disse, um dia, que pela altura dos passeios das

vias

urbanas

desenvolvimento comunidade

podia

democrático

urbana.

infelizmente

não

inexistência

de

passeio

se

que

Dizia

se

o

reteve

que

marcava mesmo

o

diferenças

significa

concluir

nome

os

um

grau

nem

de

território

personagem,

altimétricas

ambos

pelo

a

de

origem,

entre

a

utilizadores

ou que

que

rua

se

e

a o

respeitam

mutuamente, conhecendo os limites dos respectivos direitos e deveres, condicionados pelos dos restantes. Assim, para que o sistema funcione basta uma simples demarcação ou a utilização de

texturas

visualmente

ou os

cores dois

que

permitam

territórios.

estabelecer

Porém,

não

táctil

deixa

de

ou ser

interessante olhar de forma invertida para o exemplo acabado de descrever. Mais exactamente para a realidade onde não só o passeio tem um desnivelamento acentuado em relação ao plano da rua como é reforçado através da colocação de barreiras que impeçam,

em

definitivo,

a

invasão

dos

passeios

pelos

automóveis. Não

é,

concerteza,

difícil

de

reconhecer

de

imediato

cidades onde é recorrente esta última imagem. Lisboa, onde nos iremos

deter

sempre

que

possível

é

um

desses

exemplos.

Todavia, tem mais pormenores que interessa recordar, como é o

[34]

caso de diversos obstáculos ao longo destes canais e de muitos atravessamentos para

cidadãos

onde com

não

existem

mobilidade

ainda

reduzida,

desníveis cadeiras

adequados de

rodas,

carrinhos de bebé, etc. Fotografia 1 - A altura dos Passeios: baixo num lado e alto no outro (Cruzamento da Av. da República com a Av. de Berna)

Ao limite dos passeios, já altos, foram acrescentados em muitos locais os célebres “frades” ou pilaretes, que Câmara e freguesias

exibem

com

orgulho

nos

respectivos

boletins

de

imprensa, para balizarem a fronteira das vias de circulação automóvel.

Definitivo?

Não,

pois

outra

das

imagens

do

quotidiano também poderia ser “a queda” destes objectos por automóveis mais possantes ou condutores menos convencidos da sua robustez e eficácia. Fotografia 2 - Campo Pequeno. As novas muralhas da cidade(1)

[35]

Fotografia 3 - Calçada do Combro. As novas muralhas da cidade(2)

Finalmente,

cumpre

ainda

dizer,

antes

de

chegar

ao

corolário desta metáfora, que, mesmo no interior de cada uma das

vias

sinais

(pedonais

da

fraca

e

rodoviárias),

qualidade

de

é

possível

democracia.

identificar

Na

estrada

é

desnecessário relembrar o que se passa, mas nos passeios, a célebre

calçada

portuguesa,

talvez

seja

bom

enumerar

as

questões mais graves: ►

irregularidade

que

características

lhe

está

próprias

paralelepípedos,

desníveis

associada, (ausência

sucessivos,

por de

reduzida

largura) ou introduzidas (pelas permanentes “obras na via pública”); ►

presença

de

elementos

de

mobiliário

urbano

agressivos na ocupação do espaço diminuto (mupis, candeeiros, ecopontos); ►

estacionamento anárquico;

[36]



contentores

de

resíduos

sólidos

urbanos,

em

especial nos edifícios mais antigos, sem condições para os integrar no seu interior; ►

paragens de autocarro predadoras do espaço público.

O conjunto destas realidades traduz-se em dificuldades acrescidas para o cidadão, mas em especial para deficientes e crianças

e

impeditivo

modalidades

de

uso

mais

recreativo/desportivas

generalizado

individuais

para

(patins

em

linha, skate, bicicleta). Esta

reflexão

serve

para

demonstrar

as

implicações,

materiais e imateriais, que um simples facto do quotidiano urbano ajuda a revelar e a descodificar. Para

a

tese

que

aqui

se

apresenta

esta

lógica

é

fundamental, já que é a partir dos Espaços Públicos Urbanos que se pretende fazer, não tanto a sua descrição física mas, sobretudo,

perceber

o

uso

e

as

concepções

sobre

eles

formuladas pelos cidadãos de Lisboa em particular e que se pensa

poder

generalizar

a

outros

casos

da

realidade

portuguesa. Em todo o caso, existem já convicções que podem ser traduzidas

em

teses

e

ajudar,

então,

a

estruturar

todo

o

trabalho que a seguir se apresenta permitindo validá-las (ou não!).

Relembra-se

que

foram

as

hipóteses

de

partida

que

abriram caminho para a reflexão em torno das teses que agora se apresentam.

[37]



Tese 1 – Os Espaços Públicos Urbanos11 não têm o mesmo significado para todos os actores urbanos. Isto é especialmente verdade quando se segmentam por

traços

primeiro

11

individuais

caso,

idosos

ou e

profissionais. crianças,

homens

No e

Apresenta-se, desde já, um pequeno glossário para apoiar o acompanhamento do texto:

Alameda – Canal destinado à circulação, integrando a estrutura verde urbana, coexistindo funções de estar, recreio e lazer. É uma tipologia urbana que, devido ao seu traçado uniforme, à sua extensão e ao seu perfil franco, se destaca da malha urbana onde se insere. Elementos nobres do território, as alamedas combinam. Assim, equilibradamente duas funções distintas: articulação entre áreas urbanas; importantes funções de estadia, recreio e lazer. Avenida – Parecido com a alameda mas com menor destaque para a componente verde, ainda que a contenha. O traçado é uniforme, a sua extensão e perfil francos (ainda que menores que os das alamedas). A avenida poderá reunir maior número e/ou diversidade de funções urbanas que a alameda, tais como comércio e serviços, em detrimento das funções de estadia, recreio e lazer. Rua – Via de circulação pedonal e/ou viária, ladeada por edifícios quando em meio urbano. Poderá apresentar uma estrutura verde, o seu traçado poderá não ser uniforme bem como o seu perfil e poderá incluir no seu percurso outros elementos urbanos de outra ordem – praças, largos, etc. – sem que tal comprometa a sua identidade. Hierarquicamente inferior à avenida, poderá reunir diversas funções. Calçada – Caminho ou rua empedrada geralmente muito inclinada. Ladeira – Caminho ou rua muito inclinada. Azinhaga – Caminho de largura reduzida, aberto entre valados ou muros altos. Tipologia urbana geralmente associada a meios urbanos consolidados, de estrutura orgânica e grande densidade de ocupação do solo. Praça – Espaço público largo e espaçoso de forma regular, confinado por edificações. Em regra as praças constituem centralidades de diversas escalas, concentrando funções de carácter público, comércio e serviços. Podem ter uma componente mais mineralizada ou vegetal.

Praceta – Espaço público com origem num alargamento de via ou resultante de um impasse. Geralmente associado à função habitar, podendo também reunir funções comerciais ou de serviços. Largo – Terreiro ou praça sem forma definida nem rigor de desenho urbano ou que, apesar de possuir estas características, não constitui intensa centralidade, reunindo oucas funções para além da habitação. Os largos são muitas vezes espaços residuais resultantes do encontro de várias malhas urbanas diferentes, de forma irregular, e que não se assumem como elementos estruturantes do espaço. Parque – Espaço verde público, de grande dimensão, destinado ao uso indiferenciado de uma população de um lugar, cidade ou até concelho. Espaço informal com funções de recreio e lazer, podendo ser vedado e preferencialmente fazendo parte de uma estrutura verde mais vasta. Jardim – Espaço verde urbano e público, com funções de recreio e bem-estar das populações residentes nas proximidades. Deve ser facilitado o seu acesso pedonal. Faz parte de uma estrutura verde urbana mais vasta. Rotunda – Praça ou largo de forma circular devido à tipologia da sua estrutura viária – em rotunda. Rótula de articulação das várias estruturas de um lugar, muitas vezes de valor hierárquico diferente, que não apresenta ocupação urbana na sua envolvente imediata. (Adpatado de vários regulamentos toponímicos – Porto, Braga, Guimarães).

[38]

mulheres,

por

exemplo,

diferenciada

sobre

posicionam-se

este

de

objecto

forma

levantando

legítimas dúvidas acerca do real significado das referências

aos

disciplinares

EPU.

Da

referem-se

mesma ao

forma,

tema

os

de

campos

acordo

com

metodologias e abordagens específicas, agravando as condições de análise e sobretudo a qualidade da intervenção

física,

mesmo

quando

se

trata

de

pequenos espaços, ditos de proximidade12;



Tese 2 – No discurso é comum ficar destacada a centralidade dos EPU quer para a cidade quer para a qualidade de vida dos cidadãos. Todavia, os saltos tecnológicos envolvendo novas e inovadoras formas de

comunicar

directo

à

mas,

interacções levantam

distância,

ao e

mesmo

diminuindo

tempo,

prolongando-as

mais

um

desafio

o

contacto

multiplicando por ao

mais

as

tempo,

papel

que

tradiconalemtne era desempenhado pelos EPU. Contra a

convicção

também

um

da

indispensabilidade

leque

tradicionalmente

imenso visto

de como

dos

aspectos

EPU

está

que

são

desagradáveis

ou

desvantajosos e que podem ser, de forma resumida, apresentados como: ●

Higiene (Dejectos, lixos, sujidade, ...);



Segurança (problemas de iluminação, acessos, vegetação densa, qualidade do piso, ...);

12

Na entrevista à responsável dos EPU da Câmara Municipal de Lisboa surgiu uma das muitas histórias centradas nos temas e que respeita a uma pequena intervenção feita num espaço público junto ao Cemitério do Alto de S. João (Rua Morais Soares) ao abrigo da qual foram colocados alguns ciprestes. Dias após a conclusão da obra os ciprestes foram cortados acompanhados de mensagens onde se podiam ler “em espaços de vivos não se colocam árvores de mortos”.

[39]



“Indesejáveis”(sem-abrigo, mendicidade,

toxicodependentes,

prostituição,

grupos

de

jovens

violentos ou mesmo a apropriação do EPU por indivíduos

muito

marcados

numa

perspectiva

cultural, étnica ou religiosa); ●

Comodidade

(mobiliário

sombras,

serviços

urbano,

de

apoio

valências, como

WC

e

bebedouros); ●

Articulação de competências (em alguns espaços são as juntas que procedem à sua manutenção, noutros

é

a

Câmara

Municipal

ou

empresas

contratadas para o efeito, mas já a remoção de

lixos

é

sempre

feita

pela

Câmara

assim

como a iluminação, entre outros aspectos. A má compatibilização destas competências pode fazer

que

um

esforço

de

qualificação

em

qualquer um destes domínios fique diminuída por não ser acompanhada de igual atenção nos outros); ●

Sedução

pelos

Espaços

Colectivos

(multiplicação

dos

espaços

de

vocação

comercial

com

roupagem

de

espaços

públicos

mas –

ruas,

largos

praças,

toponímia,

jogos de água, ...); ●

Ausência (o urbanismo moderno apresenta menor densidade

de

pequenos

espaços

tradicionais

destinados ao usufruto público); ●

Animação (eventos vários que gerem atracção e encontros).

[40]

Fotografia 4 - Ateliê de Olaria no anfiteatro de ar livre da Culturgeste (Maio de 2004, Sábado, 16:00)

Tudo

conjugado

resulta

num

afastamento

entre

a

prática e a representação no que respeita à postura dos cidadãos face à importância dos Espaços Públicos Urbanos.



Tese 3 – O apagamento dos EPU tem sido um facto no urbanismo

contemporâneo,

não



pelas

razões

invocadas nas teses 1 e 2 mas também por acções concertadas visíveis no campo político e técnico. Defende-se que é a elevada frequência dos EPU que estimula

o

diferenças,

uso a

da

cidade,

aprendizagem

a

do

aceitação

viver

social.

das Num

contexto em que é vulgar encontrar jovens e adultos que podem ter quotidianos onde não pisam a rua ou qualquer

outra

forma

de

espaço

público,

era

de

esperar um acréscimo de sedução por estes espaços. O que se verifica é um desinvestimento nos pequenos, jardins,

largos

e

pracetas

e

um

reforço

das

intervenções em parques verdes urbanos ou corredores ecológicos metropolitanos.

[41]

Fotografia 5 - Pequeno jardim, Bairro do Arco do Cego

É

exactamente

aqui

que

as

dimensões

política

e

técnica se encontram. Isto é, os responsáveis pela gestão

urbana

(sobretudo

alguns

técnicos

com

os

políticos

destaque

para

os

mas

também

arquitectos

paisagistas) preferem criar EPU de grande expressão espacial, em localizações privilegiadas, recheados de equipamentos desportivos, ambientais, educativos, etc.,

muitas

vezes

à

sombra

de

componentes urbanísticas (Programa de

Requalificação

de

Áreas

programas

com

Pólis, Programa

Urbanas

Degradadas,

Programa de Requalificação de Áreas Suburbanas da AML

Programa

de

Invariavelmente

Reabilitação

procura-se

que

Urbana, estes

etc.).

novos

EPU

acarretem ganhos de visibilidade para a respectiva acção

política.

predadores

de

remetem

rede

a

Mas

recursos

estes

novos

financeiros

intersticial

dos

espaços e

humanos

Espaços

são que

Públicos

Urbanos para um plano secundário, sem estratégia e sem futuro.

[42]

O

paisagismo,

cujo

protagonismo

na

gestão

dos

espaços naturais em meio urbano tem vindo a ganhar notável reconhecimento, não só pela acção mediática de alguns dos seus técnicos mais carismáticos13 e apoio dos media, como pelo suporte técnico que assim dá

às

estratégias

substancial

das

políticas,

mudanças,

suporta

sobretudo

de

parte escala,

operadas na abordagem aos espaços públicos. Termos como

sistemas

ecológica

corredores

metropolitana,

urbanístico, promoção

naturais,

do

mas

com

quotidiano

urbanos,

entraram

no

rede

léxico

implicações

negativas

na

próximo

contactos,

do

dos

viver a cidade, do conciliar das obrigações diárias com

a

possibilidade

descompressão

de

uso

como

poderiam

teses

que

dos ser

espaços os

de

EPU

de

postura

dos

proximidade.

Este

conjunto

de

combinam

a

cidadãos, responsáveis políticos e técnicos, convergem para a busca do lugar dos Espaços Públicos Urbanos na reconfiguração física e social da cidade. A figura 1 procura resumir e sistematizar a descrição metodológica feita ao longo do capítulo 1.

13

É inevitável sublinhar (como se fosse necessário) o papel do Arquitecto Gonçalo Ribeiro Teles e de uma conjunto de discípulos (Arquitecta Paisagista Manuela Raposo de Magalhães, Prof. Drª Teresa Pinto Correia, Arquitecta Paisagista Graça Saraiva, ...) que não se cansam de repetir, em Conferências, Encontros científicos e em obras consagradas ao tema, as vantagens e a necessidade do planeamento dos espaços naturais em larga escala.

[43]

Figura 2 - Síntese da estrutura metodológica e conceptual

Pós-Moderno

Ambiente Urbano

Sociabilidade

Representação

Estado físico da cidade

Composição e funcionamento das Comunidades Urbanas

Dimensão Económica e Política

Os EPU não são entendidos da mesma forma (gestor, técnico, cidadão)

Distância entre discurso e prática do cidadão comum

Apagamento físico dos EPU no Urbanismo Contemporâneo

Os Espaços Públicos Urbanos na recomposição física e social da Cidade

1.3.3. A

Sequência metodológica

tradução

das

preocupações

acima

expressadas

fica

reflectida na estruturação do corpo principal deste trabalho onde, de forma progressiva, se avança de um tratamento da realidade sociocultural e urbana para um plano que se vai centrando nos Espaços Públicos Urbanos. Essa análise abriga-se no ponto 2 – Elementos de uma crise anunciada-cobrindo uma

[44]

teia de aspectos correlacionados, ainda que indirectamente, com o objecto de estudo. A localização começa a surgir a partir do ponto 3 – No campo

do

actor

e

do

seu

cenário

-

onde

se

descrevem

as

motivações dos utilizadores da cidade e as expectativas que nela depositam. No ponto 4 a concretização torna-se mais fina, de maneira a fixar as especificidades dos campos disciplinares no entendimento e intervenção sobre os EPU. O capítulo 5 faz a abordagem do percurso histórico, tratando as principais etapas do fenómeno urbano cruzadas com as características dos EPU. Como esta história acaba no nosso tempo, joga directamente com os trabalhos de campo e a avaliação da postura do cidadão face à problemática, cuja análise dos resultados surge no capítulo 6. É, finalmente, tempo de conclusões no capítulo 7. Esta sequência metodológica pode sistematizar-se em duas partes complementares: ► Avaliação do estado da arte, onde as leituras, as reflexões

pessoais

e

o

levantamento

empírico

tiveram um papel central e decisivo. Corresponde a uma parte substancial da tese pela necessidade de consolidar ideias e conceitos; ► Averiguação da realidade, onde o recurso ao caso nacional e, em particular, a Lisboa, foi a âncora para a validação da reflexão inicial. Daí que tenha segmentado-se em três partes: ●

Uso do tempo, partindo do princípio que a expansão urbana, as migrações casa-trabalho e casa-escola, as obrigações quotidianas, a sedução deixam

por

múltiplas

grandes

actividades,

oportunidades

não para

frequentar os EPU. A base foi um processo

[45]

de inquirição recente do Instituto Nacional de Estatística à ocupação do tempo; ●

Entrevistas,

realizadas

aproximações

a

indivíduos

diferenciadas

aos

com EPU

resultantes de experiências disciplinares e de

terreno

específicas,

identificar entre

si

as

e

por

permitindo

principais essa

via

divergências

os

respectivos

olhares sobre os EPU; ●

Inquéritos, onde, através de um processo alargado Lisboa, parte

de se

da

inquirição procurou

aos

cidadãos

conhecer

apreciação

feita

e

na

de

validar primeira

dimensão da metodologia com destaque para as teses de trabalho. A selecção de Lisboa como base para o trabalho empírico encontra justificação

no

desenvolvimento considera observar

que com

seu

estádio

urbano,

de

pelo

seria

aqui

que

maior

rigor

e

maior

que se

se

poderia

clareza

os

sinais de mudança bem como os traços mais consolidados de caracterização dos EPU. Mas Lisboa e os seus espaços públicos merecerão um tratamento mais alargado imediatamente antes

da

apresentação

dos

resultados

do

inquérito aos utilizadores da cidade.

[46]

2.

Elementos de uma crise anunciada

2.1. Introdução A cidade vibra e expõe-se pelo que se passa nos espaços exteriores, e não nos interiores, sendo que aqueles estão agregados, no essencial, no que se pode designar por esfera pública14. marcados

As

cidades

por

dispõem

percursos

de

históricos

territórios e

diferentes

culturais

singulares,

reflectindo-se estes trajectos em espaços públicos únicos e com

formas

originais

de

apropriação

e,

finalmente,

por

agregação, em cidades de personalidade vincada. Sinais

dessa

mudança

estão

hoje,

mais

que

nunca,

visíveis nos espaços urbanos deixados livres, voluntária ou involuntariamente,

pela

transformação

urbana.

Desde

a

configuração até às suas formas de utilização, passando pela animação,

mobiliário

e

equipamentos,

muito

tem

mudado

nas

fórmulas de intervenção sobre os espaços públicos urbanos. Mas os

resultados

nem

sempre

têm

sido

concordantes

com

os

objectivos perseguidos, quer porque não se regista uma maior procura daqueles espaços, quer porque existem distorções nos modos

de

apropriação

exibidos

pelos

diferentes

grupos

de

utilizadores. As transformações societárias têm-se revelado como as marcas mais profundas, interessantes e inesperadas ocorridas no

ocidental15.

mundo

Como

propulsores

principais

destas

mudanças (que em determinados casos e momentos se aproximam de verdadeiras radical)

mutações

surge

o

atendendo progresso

ao

seu

carácter

tecnológico,

global

reflectido

e na

14

Na acepção que lhe deu Habermas (1978). Veja-se a título de exemplo, a obra de Giddens (p.e.1992, 1994) no campo da Sociologia ou de Howbsbawm (p.e. 1994) na História. 15

[47]

revolução

operada

nas

comunicações

(rapidez,

qualidade

e

16

versatilidade) e nas alterações ao modelo económico vigente . Os impactes da nova tecnologia e de contextos económicos emergentes fizeram-se sentir não só nos respectivos campos específicos como também introduziram perturbações colaterais, quer na morfologia social quer urbana. Por isso, a cidade nunca deixou de espelhar o estado da sociedade, com a particularidade de ir fixando no tempo esses vários

momentos

históricos.

Como

exemplo

maior

dessa

impregnação histórica surge o centro da cidade - o seu local mais importante nem que seja por ser ainda o centro simbólico -

apresentando

percurso

rico

uma

densidade

por

razões

significativa históricas,

de

marcas

funcionais

e

dum de

acessibilidade. Ora a actual perda de dinamismo do centro urbano,

verificada

designadamente,

em

pela

muitas

cidades,

observação

das

pode

ser

avaliada,

características

dos

espaços públicos aí existentes e dos seus utilizadores, e podem

ser

ensaiadas

leituras

sobre

as

transformações

que

conduziram a um progressivo alheamento da presença de outros utilizadores destes espaços. Nas linhas que se seguem procura fazer-se uma pequena paragem na vertigem de transformação urbana que afecta as cidades europeias (e a cidade de Lisboa com uma intensidade particular)

detendo-se

na

temática

dos

espaços

públicos

enquanto símbolo duma urbanidade de memórias e identidades e, ainda

hoje,

personalidade

instrumento urbana.

territorial

Deixa-se,

para

para

já,

a

construção em

suspenso

da a

consideração relativa aos EPU como instrumentos de promoção urbana e competitividade entre cidades. Perceber

de

que

forma

é

afectada

pelos

processos

em

curso e que estratégias foram sendo encontradas para a criação 16

Cf. Virilio (1993, 1997, 2000), Asher (1998) e Gofman (1993).

[48]

e sobrevivência dos espaços de relação tem sido um objectivo central na política de gestão da Cidade, de modo a evitar uma excessiva perda de animação de rua, consequente interiorização da vida pública e emergência de fenómenos de marginalidade. Os

espaços

públicos

são,

por

definição

teórica,

territórios de partilha colectiva, cuja apropriação não pode ser exercida por ninguém em particular (indivíduos, grupos de indivíduos,

empresas).

tipologia

de

heterogénea, alamedas,

espaços pois

parques

urbanizações, interessa

A

elencagem públicos

inclui

parques

e

neste

e

entre

ponto

duma

extensa

calçadas,

espaços

infantis,

referenciar

elementos

resultaria

jardins

urbanos

dos

largos

residuais outros,

pelo

e

entre

que

seu

e

não

estatuto

crescentemente especializado. Cada um deles possui uma oferta ajustada

a

interesses

específicos

dos

utilizadores,

a

sua

razão de ser fundamental. Estes aão os espaços-problemática, mas a discussão deve sobretudo

centrar-se

na

sua

quantidade,

qualidade,

funcionalidade e ocupação, de modo a identificar os pilares nucleares que expliquem o seu funcionamento e sucesso, ou o inverso. Os espaços públicos urbanos, numa visão de interesse geral, constituem elementos de desenho urbano decisivos para a produção de cidade, na medida em que é aí que se manifesta a vida e animação urbana e onde se processa grande parte da socialização dos utilizadores. A lógica produtivista do espaço urbano, comandada por interesses privados e regulada pela Administração Central e Local, tem progressivamente remetido para segundo plano os espaços de convivialidade e relação, enfatizando os espaços construídos17.

Este

facto,

visível

na

escassez

de

EPU

nas

17

Todavia, os anos 90 vieram mostrar uma nova dinâmica associada aos poderes públicos ao promoverem o imobiliário por via da comemoração de grandes eventos culturais, desportivos, ou outro (Exposições universais, mundiais, Jogos Olímpicos, Campeonatos de Futebol, Taça

[49]

novas realizações urbanas, insere-se um processo mais vasto e complexo de produção de cidade, convivendo de perto com o aumento da velocidade das deslocações (ligadas aos novos eixos viários urbanos), a multiplicação das novas centralidades e a insegurança dos residentes, entre outros traços do quotidiano urbano actual.

Fotografia 6 a, b, c – O cresimento das periferias e EPU

Mas a esta redução, fácil de contabilizar através da quantificação existentes?

de As

áreas,

corresponde

estratégias

uma

adoptadas

qualificação

para

contornar

dos as

crescentes dificuldades na criação de EPU parecem situar-se em planos distintos: ►

Retoma de projectos históricos e contrapartidas pela

realização dos projectos imobiliários permitindo a criação de grandes

espaços

verdes

(parques

verdes

urbanos,

corredores

ecológicos, etc.) com equipamento desportivo e lúdico; ►

Qualificação

dos

espaços

públicos

existentes,

da

responsabilidade directa da Câmara Municipal, das Juntas de Freguesia ou de empresas em troca de outros benefícios; ►

fruição

Criação de novos EPU incaracterísticos e apenas de visual,

como

sejam

as

rotundas

que

a

uma

função

América, ...). Ainda no plano dos EPU devem reter-se as intervenções ao abrigo de programas comunitários ou outros específicos (Urban, PRU,...).

[50]

rodoviária

e

urbana

associam

muitas

vezes

intervenções

artísticas com o emigrante, o soldado, o bombeiro; ►

A

acessibilidade.

Não

podendo

encontrar-se

indiscriminadamente junto às residências, exige deslocações motorizadas,

em

muitos

casos

morosas

e

custosas

e,

por

arrastamento, provoca a selectividade da procura; ►

A

segurança.

apropriação

informal

Estes e

espaços

marginal

por

tendem grupos

a

ter

uma

específicos.

Constroem-se territórios de identidades delimitados por uma semiologia apreendida facilmente, cujos signos se afirmam com maior intensidade quando surgem “intrusos”, criando graduais sentimentos de insegurança e instabilidade psicológica capazes de desmobilizar futuras deslocações. Nascem, então, os espaços repulsivos no mapa mental dos residentes urbanos a partir da experimentação de situações vividas ou relatadas18.

A segunda estratégia, pela sua capilaridade no espaço urbano, apresenta-se muito mais visível aos utilizadores da cidade. No fundamental encara-se estes espaços como locais óptimos para reanimar a vida pública, voltando a protagonizar um papel de socialização. Nesta

linha,

constata-se

que

as

intervenções

para

a

requalificação dos espaços públicos na cidade têm sido uma preocupação e mereceram cuidados que privilegiam: ►

o mobiliário urbano (mesas, cadeiras, iluminação, recipientes

de

resíduos

sólidos,

suportes

publicitários);

18

A este propósito cf. Gonçalves e Magalhães (2001), onde se analisa os domínios espaciais e os protagonistas dos mitos e rumores urbanos.

[51]

o conforto, protecção e segurança (piso, separador



das vias urbanas, natureza dos materiais); o



desenho

urbano

(legibilidade,

visibilidade,

esteticidade); a vegetação (espécies adequadas ao ambiente local e



aos microclimas); o comércio e serviços (uma componente indispensável



para a animação urbana como os cafés, esplanadas, quiosques, lavabos). O balanço sistemático dos resultados deste esforço não foi ainda feito pelo volume de trabalho que tal implica, mas a constatação empírica identificou consequências objectivas e, por extensão, as respectivas vantagens e deficiências. Como se de

um

hipertexto

explorar

outros

problemática

se

tratasse,

temas

central,

na

mas

a

tentação

é

dependência

resta-nos,

por

grande

directa agora,

para desta

focar

no

processo de leitura e intervenção dos EPU (cf. Figura 2). Assim, a utilização de espaços públicos urbanos pode ser lida

ou

descodificada

segundo

dois

sincrónico.

No

fundo,

trata-se

(para

além

de

outras

susceptíveis

entre

o

espaço

e

o

tempo,

de

planos:

diacrónico

e

confirmar

as

de

estabelecidas)

serem

materializadas

na

diferenças ocupação

e

partilha de espaços públicos urbanos: ►

Plano sincrónico – É possível identificar nos mesmos

territórios a constituição de espaços próprios de grupos de indivíduos grosso modo caracterizados por uma afinidade de idades ou interesses. Quando esse espaço é pequeno e o grupo muito

representativo

pode

suceder

que

no

seu

período

de

utilização obrigue à exclusão de outros indivíduos; quando a dimensão o permite delimitam-se territórios distintos;

[52]



Plano diacrónico – Decorre da constatação de que ao

longo do dia existe uma apropriação do tempo, isto é, o mesmo espaço

é

ocupado

por

vagas

sucessivas

de

grupos

de

utilizadores diferentes variando temporalmente (manhã, tarde, noite, hora de almoço, fim de tarde, etc.).

A riqueza de respostas que os EPU têm de garantir está bem expressa no exemplo atrás referido e materializado nas dimensões diacrónica e sincrónica. Devem estar preparados para responder,

em

simultâneo,

à

presença

de

utilizadores

de

características e interesses diferenciados, promovendo a sua coexistência espacial e, por essa via, colorindo e animando o espaço, incentivando à inclusão e à partilha. Por

outro

lado,

os

ritmos

e

os

estilos

de

vida

condicionam também o uso da cidade, não só ao longo do dia como

ao

longo

potenciais

da

semana,

utilizadores

e

pelo

que

garantir

há a

que

identificar

sedução

adequada

os à

manutenção do seu interesse e dos níveis de frequência.

[53]

Figura 3 - Descodificação do padrão de utilização dos espaços públicos

Estes espaços

apontamentos

públicos,

tipologias,

quer

quer no

que

não no se

esgotam referente associa

à

a ao sua

problemática seu

desenho

utilização,

dos e até

porque não se centram no papel dos espaços públicos urbanos na socialização dos indivíduos. Estas

preocupações

não

foram

ainda

convenientemente

traduzidas para a literatura científica. A imagem dominante ainda é a do espaço público como o espaço da inclusão social, apesar de, neste momento, a sua procura ter diminuído bastante a ponto de, em muitos casos, se tornar apenas um espaço urbano

[54]

residual ou de enquadramento visual. Com efeito, a temática dos EPU não tem sido central nas análises da cidade e da sociedade

urbana,

processos

mais

tendo

sido

alargados

do

tratada

como

acessória

conhecimento

urbano

e

em com

referências consensuais mas pouco reflexivas. Os EPU e o seu estudo geográfico remetem-se para o campo duma

geografia

trajectos

da

percepção,

quotidianos,

dos

pequenos

claramente

espaços

inserida

no

e

dos

que

se

convencionou designar por geografias pós-modernas. A vantagem do seu estudo é a de poder abordar um universo de interesses e motivações permitem

cruzadas, conhecer

concorrentes

as

ou

consequências

antagonistas, mais

profundas

que de

transformação urbana e a sua relação com os utilizadores da cidade. Assim, surgem quase naturalmente os temas do género, dos grupos etários, das minorias, entre outros. As geografias do quotidiano estão no centro da problemática. O espaço público constitui-se, assim, como um exercício de reflexão sobre a cidade e o urbano, sobre a tradição e a inovação e, finalmente, sobre o cidadão e o consumidor. Não é deslocado evocar as conclusões gerais obtidas em múltiplos exercícios de planeamento em Portugal (Faro, Castelo Branco, Olhão, ...), em que a esmagadora maioria dos entrevistados aponta os EPU como indispensáveis para a qualidade de vida urbana,

embora

quando

confrontados

sobre

a

frequência

de

utilização desses espaços, menos de um terço aí se desloque e quase ninguém o faça depois das 23 horas19. Estes transição

traços em

que

duais já

não

remetem ocorrem

para os

o

actual

padrões

período

de

clássicos

de

utilização dos espaços públicos, mas que ainda são fulcrais na representação simbólica da cidade. Fazer o balanço actual do estado destes espaços e das formas que têm vindo a assumir, 19

Aliás, no âmbito do trabalho de campo os resultados obtidos corroboram amplamente este comportamento.

[55]

enquanto fórmula para avaliar a própria cidade e a sociedade, é, como já se havia referido em 1.2., a problemática central. Toda a carga histórica inerente aos EPU, que procuraremos também

sublinhar,

decorre,

no

fundo,

do

reconhecimento

do

papel protagonizado no percurso de socialização activa, fruto da

tensão

entre

norma

e

transgressão

ou

apropriação

e

conflito.

2.2. As dinâmicas urbanas recentes: emergência do híbrido e da desterritorialização 2.2.1.

A fluidez espacio-temporal da noção de cidade

Desde há décadas a cidade tem servido como objecto, em particular análises

com de

economia.

o

nascimento

natureza

As

da

diversa,

“várias

sociologia

desde

cidades”

a

deram

urbana,

psicologia origem

ou

para até

à

foram

consequência de transformações mais profundas no plano social, económico e cultural. Essas mudanças, especialmente marcantes na transição para a Cidade Industrial e reforçadas na Cidade Moderna do século XX, resultam em contínuos acrescentos ao existente, sendo o espaço urbano uma justaposição de camadas históricas economia

com e

particularidades cultura

e

nos

domínios

corporizadas

da

em

sociedade,

instituições,

arquitectura e desenho urbano específicos. Alguns destes espaços sobreviveram até hoje atravessando momentos

cíclicos,

veneração.

Centros

monumentais

são

regularmente

ora

ostracismo,

históricos,

alguns

vão

de

áreas

exemplos

assumindo

ora

de

de

repulsa

industriais,

fragmentos

pressões

e

ou

zonas

urbanos

que

protagonismos

diferentes, de acordo com as ideias dominantes na gestão e transformação socio-urbana. Cada cidade, assim, é depositária de

uma

memória

que

lhe

há-de

marcar

indelevelmente

o

seu

futuro: “(...) Poderia dizer-te de quantos degraus são as ruas

[56]

em escadinhas, como são as aberturas dos anos pórticos; mas já sei que seria o mesmo que não te dizer nada. Não é disto que é feita a Cidade, mas sim das relações entre as medidas do seu espaço e os acontecimentos do seu passado (...). Uma descrição de Zaira tal como é hoje deveria conter todo o passado de Zaira. Mas a Cidade não conta o seu passado, contém-no como as linhas da mão, escrito nas esquinas das ruas, nas grades das janelas, nos corrimões das escadas, nas antenas dos páraraios, nos postes das bandeiras, cada segmento marcado por sua vez de arranhões, riscos, cortes e entalhes” (Calvino: 1993; 14-15). Como

construção

humana,

ela

havia

de

continuamente

ajustar-se às exigências do Homem, que por sua vez, permanecem em activa mudança. O rompimento da escala humana da cidade, através da sua horizontalização e verticalização, operadas com o que Virilio (1993) designou de próteses mecânicas como o comboio, o automóvel e o elevador, é talvez um dos melhores exemplos dessa relação intensa e persistente entre pensamento humano e intervenção urbana. Mas a cidade não é fruto só da racionalidade, do ordenamento e planeamento. Ela é, no que é de

mais

intrinsecamente

urbano,

sobretudo

casuística,

inesperada, irracional e emotiva, pois é feita pelo Homem.

2.2.2.

Transformações da cidade física

Chegados a este ponto, é altura de relançar a questão da mudança

que

social,

cultural

economia

tem

afecta e,

o

espaço

urbano

sobretudo,

condicionado

o

associado

económico.

ao

Como

desenvolvimento

dos

contexto sempre

a

vectores

urbanos e até culturais. A transição da cidade fordista/industrial para a Cidade terciária/pós-moderna tem revelado profundas divergências face aos padrões clássicos do fazer e usar a Cidade.

[57]

Estas

novas

formas

urbanas

emergem

de

processos

profundos de reestruturação económica e social a que tem de dar

imperativamente

respostas

objectivas,

resultando

em

diferentes maneiras de pensar o urbanismo. Figura 4 - A transição urbana

As implicações sociais dos processos de reestruturação económica

(como

a

exclusão

social,

a

toxicodependência,

a

criminalidade urbana, os sem abrigo, entre outros) adquiriram especial

relevância

nos

contextos

urbanos

nos

quais

os

problemas de desemprego e da precariedade do emprego cresceram associados:

[58]



à transformação das relações sociais no sentido de uma maior fragilidade e isolamento;



à

redução

da

decorrente

da

protecção contenção

da

social

convencional

despesa

pública

dos

Estados.

Na consideração genérica dos resultados desta transição a metrópole fragmentada (ou as novas formas urbanas) pode caracterizar-se por (Salgueiro, 1998): ►

Estrutura policêntrica devido à perda de hegemonia do centro único e formação de novas centralidades;



Desenvolvimento de complexos comerciais de grandes dimensões,

com

frequência

de

uso

misto

e,

por

vezes, espectaculares; ►

Presença

de

enclaves

dissonantes,

seja

homogéneas, apontando

seja para

socialmente

no em

diferenciados

seio

de

malhas

sítio

de

produção

fenómenos

de

e

antigas nova,

contiguidade

sem

continuidade; ►

Dessolidarização da envolvente porque os indivíduos e actividades participam em redes de relações à distância

e

dependem

menos

de

relações

de

proximidade.

Muda

a

metrópole,

formam-se

novos

profundas

alterações

alteram-se

conglomerados no

campo

os

padrões

sociais. cultural,

Ao

de

consumo,

mesmo

social

tempo, e

mesmo

psicológico levaram ao aprofundamento da fragmentação social.

[59]

O

consumo

substitui

a

produção

na

determinação

e

exibição das diferenças sociais: Eu sou aquilo que mostro e consumo e não aquilo que faço. A identidade, a afirmação e o reconhecimento social constroi-se pelo consumo e pelos sinais adquiridos por essa via20. A

imagem

asséptica

e

de

uma

realidade

perfeita,

urbana

continuamente

mais

terciária,

reconstruída

pelos

veículos modernos de transporte de comunicação e informação é, paradoxalmente, contrariada por um aumento da exposição das situações

de

pobreza

e

de

exclusão

social

que

afectam

indivíduos, empresas e territórios mas que por via do aumento da insensibilidade que atinge o todo, não tem efeito inibidor. A

exclusão

é

um

universo

poliédrico

marcado

pela

desqualificação de saberes, de qualificação e de localizações, a qual arrasta uma desvalorização e, portanto, uma dificuldade maior

de

acesso

a

empregos,

a

clientes,

a

mercados.

Os

excluídos são excedentários, incapazes de uso ou reconversão, produto de uma estratégia que os desvaloriza e torna inúteis. Surge então a marginalização, que pode ser: ►

Económica:

empresas

e

actividades

que

perdem

rendimentos e competitividade; ►

Social: indivíduos que perdem afectos, relações e empregos;



Territórial:

sítios

que

perdem

valor

e

suscitadas

ao

específica

do

investimentos.

Por

outro

transportar-se

lado, a

novas

análise

para

questões a

são

componente

20

Baudrillard (1991, 1995a, 1995b, 1996) não se cansou de demonstrar esta valorização do objecto através da sua reflexão como atributo ideológico e social.

[60]

espaço público, que tradicionalmente propicia o contacto entre a esfera pública e privada e é o catalisador dos processos de sociabilização e de reprodução do sistema social. Longe manifestam,

de

se

homogeneizarem,

nos

locais

públicos

não

os só

comportamentos

a

diversidade

das

origens geográficas e dos grupos sociais, mas também os laços que unem uma mesma classe etária ou género ou etnia. Esta exibição

das

diferenças

produz

ao

mesmo

tempo

permanentes

ajustes entre os grupos que partilham o mesmo território, cujas

identidades

sociais

transportam

os

sinais

destes

compromissos locais. De

uma

forma

mais

generalizada,

os

espaços

públicos

representam uma intromissão na análise destas formas instáveis de interacção que se constroem à parte dos laços duradouros, das

pertenças

definição,

comuns

não

é

e

das

passível

de

identidades ser

partilhadas.

apropriado

por

um

Por grupo

particular que lhe designe um uso privativo. A sua natureza fluida decorre de não poder ser em definitivo traduzida por um qualquer conceito científico, sendo inversamente um objecto em constante

construção,

transformação

e

ajustamento

à

cidade

física, à cidade económica e à cidade cultural. Símbolo

perene

da

urbanidade,

o

espaço

público

é

o

elemento, por excelência, que transforma a cidade no contrário do somatório de bairros e de pequenos universos herméticos. São um espaço de mediação, em permanente reconfiguração e revalorização,

para

os

diferentes

grupos

sociais,

para

os

conjuntos de indivíduos de diferentes idades ou sexo, cujo sucesso tem dependido do discernimento demonstrado em cada momento

pela

consciência

colectiva.

Materializa-se,

assim,

21

numa questão política e de comunicação .

21

Como bem enfatiza Grafmeyer (1994; 113-116).

[61]

2.2.3. Sobre

O estilhaçar da imaterialidade urbana a

cidade

existente,

física

e

material,

começa

agora a sedimentar-se e a depositar-se uma outra que durante bastante tempo apenas se insinuava junto dos utilizadores da cidade. Os telefones, telefaxes e a televisão por satélite anteciparam toscamente o que viria a ser a aceleração da vida urbana e a desterritorialização progressiva de processos que se julgavam consistentemente físicos. Nasce, assim, de acordo com Asher (1998; 58-59), a sobremodernidade aplicada à cidade: “(...)As

dinâmicas

são

sobremodernas

por

duas

razões

principais: pelas evoluções económicas, sociais, políticas e culturais, que determinam largamente a evolução das cidades; pelos discursos produzidos sobre as cidades e pelas práticas urbanísticas,

que

extraem

de

bases

comuns

as

mesmas

referências e ideologias científicas, técnicas, filosóficas, políticas...”. Na

base

destas

mutações

está,

como

se

aludiu,

a

aceleração que, ao assentar na velocidade da luz, produz a desvalorização do espaço e a hipervalorização do tempo, pois gera maior rapidez nas trocas e faz coincidir o ponto de partida com o ponto de chegada “(...) A variação crescente das velocidades reforça cada vez mais a heterogeneidade do espaço. Outrora,

os

homens,

os

bens

e

as

informações

tinham

velocidades quase equivalentes e foi apenas ao longo do século XIX,

com

sobretudo,

a com

especialização as

parcial

telecomunicações,

dos que

as

transportes velocidades

e, se

diferenciaram fortemente. Hoje, a diversidade da velocidade da informação e as de deslocação das pessoas e dos bens induzem no espaço uma heterogeneidade ainda maior e reforçam o peso das estruturas territoriais” (Asher: 1998; 66). Não perdendo de vista a problemática central do nosso trabalho, as práticas de sociabilidade até aqui fortemente ancoradas

no

território

e

nas

suas

estruturas,

como

as

[62]

escolas, as fábricas, os escritórios, não deixaram ainda de constituir componentes nucleares do dispositivo de reprodução social.

Desta

públicos

arquitectura

urbanos

faziam

tradicionais,

ainda

que

não

parte tinham

os

espaços

como

função

esbater as diferenças sociais, antes reproduzi-las pela via da diferente apropriação que deles era feito pelos vários grupos. O forma

estilhaçar as

da

alterações

transferência

para

cidade

imaterial

verificadas

o

plano

na

virtual

acompanhou cidade não

da

real,



de

mesma

pois

a

negócios,

consultas e intercâmbios culturais, mas sobretudo de afectos e de projecção de novas ideias e posturas, enfatizou os novos meios de comunicação como canais privilegiados para uma maior eficácia

no

processo

de

sociabilização.

Passou

a

ser

um

poderoso instrumento orientado para a inclusão social, para revalorização

dos

direitos

das

minorias,

etc.

(Habermas,

1978). Espaço

virtual

e

novos

espaços

urbanos

conjugam-se

então para a emergência de novas práticas e, talvez, para a criação dum novo urbano.

2.3. Contributos para uma teoria dos Espaços Públicos Urbanos 2.3.1.

Espaço Público: crise ou novas lógicas?

A cidade sempre foi definida com dificuldade por quem a queria

explicar.

comprovada encontrar,

pelo

Essa facto

sobretudo,

complexidade do

maior na

de

êxito

definição nesse

intervenção

é,

aliás,

desígnio das

se

artes,

designadamente, a literatura22, a poesia, a fotografia ou a pintura. Não foi, também, por acaso que, em 1994, no Centro de 22

É impossível não referir de imediato as Cidades Invisíveis de Italo Calvino. È também sintomático que seja de leitura obrigatória em muitas escolas de arquitectura.

[63]

Cultura

Contemporânea

de

Barcelona,

esteve

patente

uma

exposição que procurou colocar a par a Cidade do Artista e a Cidade

Arquitecto23,

do

particular

expressividade

decorrendo

desse

das

de

obras

confronto

arte

perante

a o

funcionalismo operatório das propostas de urbanistas. Analisar e discutir o urbano, no entanto, não é pertença exclusiva destas duas esferas- arte e ciência -, pois, pela técnica

hermética

ou

pela

subjectividade

de

expressão

artística, corre-se o risco de marginalizar um amplo universo de utilização quotidiano da cidade que, no fundo, se traduz por aquilo que pode designar-se por experiência da cidade. Esta, vivida por todos e por cada um, faz a verdadeira cidade, desmentindo em toda a dimensão a frase em voga no discurso político e urbanístico do “fazer cidade” como a materialização das

estruturas

físicas.

É

que

a

visão

urbanística

tem

um

carácter redutor, conferido pela ênfase depositada na estética e nos materiais aplicados, desvalorizando ou alheando-se da necessária

reflexão

acerca

do

espaço

idealizado.

“Fazer

cidade” é, portanto, frase eleita no discurso dos técnicos urbanistas e políticos mas, porque se encontra cerceada de múltiplas

visões

complementares

(da

sociologia,

da

comunicação,

etc.),

realidade

de

intervenções

parcelares

urbana

e

é a

retribuição

política.

do

antropologia,

da

que

na

se

visando

Socializar,

trata a

animação

comunicar,

trocar, questionar, contemplar, são algumas práticas que até agora tinham estado, quase em exclusivo, reservadas aos EPU e que, mesmo nestes espaços onde “se faz cidade”, começam a abandoná-los. Mas a valorização social que é conferida aos EPU resulta da interiorização muito forte de imagens de espaços abertos, verdes urbanos, praças, entre outros, que remete para baixas densidades e para a qualidade urbana. Quanto à sua utilização

23

AAVV (1994), Visiones Urbanas, CCCB, Barcelona.

[64]

efectiva assiste-se a algum distanciamento que parece reforçar o estatuto que os técnicos e políticos vêm a conferir aos EPU de meros elementos de composição urbana, apreciados como obras de arquitectura e design urbano. Se hoje, a ideia de espaço público urbano é central no discurso que visa a qualificação do espaço urbano, é porque ele foi posto em causa pelas práticas sociais, urbanísticas e económicas. O desencontro entre o uso e a oferta dos EPU de qualidade

aprofunda-se,

propostos

pelo

sedutores

que

segundo a

na

medida

começam

em

a

potencial

que

ser

os

mecanismos

infinitamente

procura

noutros

menos

espaços

alternativos. Arrastado

para

o

centro

da

análise

urbana,

o

termo

“Espaço Público Urbano” surge, pela primeira vez, nos anos 70, num texto da Administração Francesa. A cidade burguesa nascida da Revolução Francesa, com os célebres ideais, trouxe ainda consigo o passeio público por onde deambulam as novas elites, e

um

leque

vasto

de

outras

modalidades

de

expressão

e

comunicação (cafés, tertúlias, etc.), lançando na cidade um burburinho, discussão, agitação nunca antes conhecida/sentida e transformando-a num palco. Também

aí,

as

movimentações

não

eram

populares

ou

interclassistas, pois tinham um carácter genuinamente burguês, que era quem detinha o tempo, o dinheiro e a informação. O público encontrava-se, uma vez mais, como um conceito limitado e

que

estavam século

não

expressava

então XIX?

as

o

ideal

camadas

Confinavam-se

da

Revolução

populares às

da

esferas

Francesa.

cidade

próximas

Onde

burguesa dos

do

bairros

operários em que residiam – a rua, o beco – e aos espaços de consumo que lhes estavam reservados, como as tabernas, as casas

de

pasto,

as

mercearias,

etc.,

beneficiando

da

proximidade do local de trabalho ou de residência.

[65]

Até aqui, o espaço público funcionou sempre como mais uma instituição disciplinadora da rígida hierarquia social, forte contribuinte para a normalização e cristalização das relações entre os indivíduos e os seus grupos. A prática do urbanismo com os seus jardins românticos ou com os chafarizes para o abastecimento das populações mais simples, ilustra o entendimento que na época se fazia dos EPU, especializando-os socialmente. A comunicação e política são outros dois aspectos da realidade social que encontram ainda base de sustentação em territórios urbanos como os espaços públicos ou colectivos. Na Cidade grega o Àgora cumpria uma função específica no estímulo à reflexão e à troca de ideias, muito embora a democracia grega não incluísse todos os utilizadores da Cidade, pois alguns

(estrangeiros,

escravos)

não

reuniam

todas

as

qualidades políticas para participar na vida pública. Interessa

realçar

que

o

reconhecimento

do

papel

do

espaço público na formação das massas é construído não pelas suas características intrínsecas (físicas ou estéticas) mas pelo

impacte

que

as

ideias



emergentes

tinham

sobre

os

posteriores comportamentos individuais. Aliás, surgem exemplos renovados

no

século

XIX

com

a

animação

social

e

política

sentida na cidade burguesa, onde o café e o passeio público passaram

a

constituir

os

espaços

onde

se

processavam

discussões e até decisões na esfera política. Não é, então, por acaso que as ditaduras do século XX estabelecem

que

uma

das

suas

leis

de

sobrevivência

é

transformar o espaço público e a sua ocupação pelas massas populares numa montra do sucesso e eficácia do poder exercido. Aproveitando as emergentes tecnologias de comunicação (imagem, rádio),

o

palco



dominado

pela

política

foi

sabiamente

utilizado pelas formas autoritárias de poder, correspondendo à

[66]

instrumentalização

das

massas

em

grandes

espectáculos

políticos. De novo, se pressente que este espaço público não adere aos conceitos hoje adoptados para a mesma expressão porque pressupõe

liberdade

coexistência

de

de

grupos

movimentos de

e

estatuto

comunicação social

e

e

a

económico

diferenciado, o que não parece ser o caso pois recusavam-se a assistir a alguns destes ritos. Entretanto, o urbanismo havia, também,

sofrido

reorientações,

sobretudo,

com

a

Carta

de

Atenas (encontros do CIAM), funcionalizando a Cidade e os seus espaços de modo a apresentá-la como um enorme espaço fabril em que os movimentos são previsíveis e as suas consequências conhecidas. Normalização, controle social e vigilância passam a ser exercidos mais facilmente num espaço até então caótico e complexo24. A transversalidade social nos EPU só se conseguiu em pleno em momentos de festa, dos quais não podemos alhear os momentos de comemoração. Embora a palavra crise não seja a mais adequada, é curioso verificar que, com excepção destes momentos, as práticas territoriais incidentes sobre o espaço público quase nunca foram “democráticas”, na medida em que sempre os grupos se auto segregaram ou a isso foram obrigados pela organização urbana. Ora elitista, ora popular, ora marcadamente ideológica, ora

apenas

atingiram forma

espaço

de

intensidade

todos

os da

democratização

iria,

públicos

urbanos.

suficiente

grupos

implementação

contemplação, para

os

democracia também

Essa

que

nunca

ideia

mesmos

espaços. pensar

entranhar-se

veio

motivações

mobilizassem

poder-se-ia ela,

as

a

nos

revelar-se

de

igual

Após

a

que

a

espaços não



deslocada porque a miscigenação social nunca se verificou, 24

Cf. Sobretudo os trabalhos de Foucault sobre o controle , a vigilância e a normalização nas sociedades modernas.

[67]

como o percurso tem sido no sentido do apagamento da própria ideia de espaço público, apoiado em três argumentos: ►

promoção do espaço individual/privado;



emergência dos espaços colectivos;



desvalorização social do usufruto do espaço público.

As diferenças entre estas três dimensões aprofundam-se e, nesse processo, algo acelerado, descortinam-se causas e consequências que interessa pelo menos assinalar, mas que no seu conjunto legitimam o uso do termo “crise” para designar o progressivo esvaziamento do espaço público urbano. No plano das causas podemos encontrar as que se abrigam no acto de planear e desenhar o território urbano, depositando o maior empenho na estética e muito desligado do acto do usufruto dos utilizadores. Da

crise

à

lógica

do

esvaziamento

vai

uma

distância

idêntica à verificada entre o interesse público e o interesse privado. Tomemos como exemplo um dos factores mais delicados e com mais amplos efeitos repulsivos sobre o EPU que é o da insegurança. É como usar o medo e o seu alastramento como catalisador do alargamento do dispositivo repressivo por parte do

Estado.

interferir

Porém, no

modo

ele

pode

como

os

ter

efeitos

cidadãos

mais usam

largos a

ao

cidade,

condicionando-os psicologicamente na apropriação dos EPU ou na escolha de soluções alternativas para a ocupação dos tempos livres. O aprofundamento deste sentimento alimentado pelos meios de comunicação social e amplificado pelas suas notícias, e ainda

mais

desencadeia

distorcidos a

pelos

formalização

rumores de

novas

e

mitos

urbanos,

estratégias

de

[68]

socialização

em

alternativa

às

formulas

convencionais

de

encontro em espaços abertos e de acesso livre. Os espaços públicos têm sido, em simultâneo, alvo de intervenção por parte dos poderes públicos, no sentido da sua (re)qualificação e do renovar do seu histórico protagonismo, mas até agora não têm sido capazes de promover, de forma consolidade largo,

e

generalizada,

caminhando,

estetização

do

pelo

espaço

o

retorno

contrário, (arte

à

rua,

na

pública,

à

praça,

direcção

da

mobiliário,

ao

pura design

urbano), sem consequências efectivas no seu uso. O espaço público permanece (embora no urbanismo moderno e contemporâneo sofra uma contracção apreciável), mas a sua capacidade

de

multiplicar

contactos

interpessoais

ou

constituir matriz de comunicação, mantém idêntica tendência regressiva. Finalmente, fundamentais

aquilo

da

comunicação

e

condenados

à

que

eram

algumas

existência

dos

espaços

sociabilidade



descolam

sobreposição.

Com

o

das

públicos e

deixam

razões

urbanos de

aperfeiçoamento



estar das

tecnologias de comunicação à distância e a constatação da sua eficácia

no

político



transporte e

um

das

receptor

mensagens –

foi

entre

tornando-se

um

emissor



desnecessário

recorrer aos espaços tradicionais. Consequentemente, em comunicação espaço público já não significa

praça,

mas

livre

circulação

de

ideias

entre

múltiplos emissores e múltiplos receptores, o que ampliou o universo

finito

inicial

contido

nos

limites

físicos

dos

espaços públicos urbanos. Esta mudança, que continua activa, é ainda marcada por outros traços particulares associados ao consumo, à fragmentação social (nem sempre numa perspectiva económica, pois os atributos etários, de género ou profissão, são

âncoras

para

a

especialização

dos

novos

espaços),

[69]

conduzindo ao empobrecimento da vida urbana porque encapsula as relações entre indivíduos.

2.3.2.

Estratégias de Substituição e Sedução

Se no tempo da Grécia antiga, a Àgora representava o espaço de excelência de encontro dos cidadãos (embora nem todos tivessem esse título), na polis - à semelhança do Fórum romano -, muitos séculos depois, a ideia de “espaço público” atravessou todo o percurso urbano da humanidade tendo, porém, o

seu

significado

sido

alterado

e,

com

ele,

a

função

do

território no encontro e na comunicação. Todavia, como já referido, a expressão espaço público é bastante mais recente, introduzida em França nos anos 70, demonstrando que só se deu por

este

elemento

urbano

quando

se

verificou

que

as

transformações emergentes no plano social e urbano estavam a afectar a sua configuração e o seu uso e mesmo a imagem da cidade. Teoricamente, o espaço público – uma rua, uma praça, passeios - é percepcionado como um território de todos e de ninguém em particular. Todavia, são muitos os exemplos ao longo dos tempos que mostram que ele tende a ser acessível apenas

a

alguns.

O

seu

elemento

caracterizador

-

o

ser

“aberto” a qualquer indivíduo – foi-se dissipando e fechando e, progressivamente, o espaço público vai-se privatizando e transformando num espaço de acesso condicionado, num espaço semi-público (noutros casos privado), aberto a uns e fechado a outros. Este “fechamento” ou privatização do espaço público pode ter

efeitos

dramáticos

para

a

cidade

e

seus

cidadãos,

na

medida em que a complexidade da organização dos espaços das cidades

está

directamente

associada

à

dinâmica

dos

grupos

sociais que utilizam e gozam esses espaços, ou seja, o que

[70]

caracteriza

uma

cidade

é,

precisamente,

o

facto

de

haver

espaços públicos que permitem o encontro com a diferença e o inesperado.

Simplificar

e

organizar

esta

ordem

desordenada

corresponde sempre à perda de identidade do espaço sobre o qual incide a fúria normalizadora (que apesar de desfocada, se mantém presente desde finais do século XIX). A questão que aqui se levanta é a de saber se existe, ou não,

uma

“crise”

do

espaço

público

e

se

a

essa

crise

corresponde uma ascenção na importância de outros espaços, materiais

ou

imateriais,

mais

sedutores

pela

comodidade

e

pelas possibilidades que estabelecem entre os indivíduos. A resposta não é pacífica, nem unânime. Para essa análise partese

do

princípio

que

a

problemática

do

espaço

público

das

cidades está relacionada com processos de apropriação social e cultural e com a própria degradação do espaço urbano. Se

a

estrutura

configuração social

que

espacial a

da

suporta,

cidade podem-se

reflecte

a

identificar

diferenças espaciais em termos de posição social ou de origem étnica

dos

grupos

que

persistentemente

procedem

à

(re)construção simbólica da cidade. Assim, ao crescimento das cidades, com extensas e complexas aglomerações, junta-se o somatório dos estilos de vida dos grupos que nela habitam, demonstrando a realidade que os indivíduos tendem a organizarse em grupo, em função do meio social, cultural, étnico ou económico

a

que

pertencem,

num

claro

processo

de

neo-

tribalização. Tal

forma

de

organização

parece

principal

marcar

uma

determinada

identidade

inserção

dos

indivíduos,

sociabilidade.

No

através

entanto,

a

da

ter

como e

ampliação

cidade

função

assegurar da

funciona

rede como

a de um

território de contrapartidas, na medida em que, sendo um lugar privilegiado

de

inclusão

social,

as

acções

nesse

domínio

[71]

processam-se de uma forma socialmente discriminada, controlada e condicionada. Esta

situação

territorialmente grupos

de

e

sociais,

segregação

corresponde

resultante

é

a

do

visível

uma

e

perceptível

separação

efeito

das

física

dos

desigualdades

produzidas pela diferenciação social. Os condomínios privados e os bairros sociais, por exemplo, representam territórios de estatutos diferentes, que se podem apelidar de primeira e de segunda

classe,

e

onde

habitam

indivíduos

de

realidades

sociais diferenciadas. Mas, por muito que se pretenda misturar as “tribos”, faz parte da natureza do Homem apropriar-se de espaços com os quais mais se identifica e com os quais consegue manter uma relação,

à

semelhança

do

que

acontece

quando

escolhe

e

selecciona os indivíduos que melhor se encaixam na sua visão do

mundo

e

nas

suas

práticas

do

quotidiano,

relegando

os

restantes para um plano mais afastado. O espaço público, enquanto cenário dos hábitos e cultura da

sociedade

consegue Embora

urbana

anular seja

“aberto” diferentes meramente

a

que

estas

um

vive

“tribos” ou

e

dele

desigualdades

território

todos,

física

o

torna

neutro, sempre

urbanas

e

visual,

apropria,

sociais por

possível

esta

entre

se ser o

e

culturais. teoricamente

encontro

convivência, diferentes

não

ainda

grupos,

de que pode

gerar conflitos e criar situações de insegurança e sintomas de desqualificação do espaço público. Associada implícita

a

a

sentimentos

questão

da

de

qualidade

insegurança, do

espaço

está

também

público.

Na

verdade, a apropriação do espaço público depende, em certa medida, do nível de conforto que este oferece e proporciona aos seus utilizadores, pelo que a degradação da estrutura edificada que o limita e a sua própria degradação, fazem com

[72]

que a vivência urbana desse espaço seja cada vez menor. É, portanto, de extrema relevância que o espaço público seja capaz de transmitir as condições físicas, sociais e ambientais exigidas pelos diferentes grupos que habitam a cidade ou serem eles próprios capazes de se tornarem uma referência para a restante qualidade urbana. Por outro lado, a própria multifuncionalidade do espaço público é determinante, porque permite ao cidadão a realização de um conjunto diversificado de actividades sociais, lúdicas, culturais, desportivas, ..., aumentando o seu grau/nível de utilização e apropriação. A monofuncionalidade dos territórios contribui, pelo contrário, para a desertificação dos espaços ou

para

a

sua

apropriação

por

grupos

marginais

ou

com

motivações específicas. No

fundo,

os

novos

tipos

de

espaços,

que

podemos

apelidar de espaços colectivos e que servem de matriz para a vida social, parecem resultar de uma sensação de insegurança perante espaços demasiado abertos e pouco controlados (jardins e parques das cidades), que leva alguns indivíduos a exigir uma limitação ou um controlo do espaço “totalmente” público25. Este vida

sentimento

social:

as

de

insegurança

relações

sociais

afecta,

sem

diminuem,

os

dúvida,

a

indivíduos

tendem a desenvolver mecanismos gregários, mas fechados, os lugares públicos de encontro perdem-se e a cidade tende ao encapsulamento mantendo as suas evidentes ambições económicas. O problema acentua-se à medida que a segregação numa cidade se agrava e se torna mais visível, até porque uma maior percepção

da

insegurança

nos

espaços

públicos

implica

uma

maior individualização e uma dimuinição drástica na interacção entre habitantes pertencentes a estratos sociais diferentes.

25

Que, no fundo, já se vai verificando com a vigilância mais apertada e com os horários de abertura e fecho de alguns do EPU em Portugal e, em especial, em Lisboa.

[73]

Está-se, então, perante uma cidade mais classista, em que os espaços já não são de todos, mas de grupos e onde o medo funciona

como

catalisador

do

esvaziamento

dos

EPU

com

implicações políticas e económicas. Com efeito, o medo tem vindo a ser instrumentalizado, pois pode permitir e legitimar o reforço do dispositivo do poder e o exercício do controle sobre os cidadãos, ainda por cima com o fervoroso assentimento destes. Contudo, as pessoas (maioritariamente jovens e idosos) que fazem da rua um ponto de encontro e de sociabilidade, parecem

ser

em

número

suficiente

para

justificar

que

se

recupere o sentido público e mesmo educativo (enquanto espaço de

sociabilidade

aprendizagens)

da

recolhimento,

constitui rua,

palco

numa

enclausuramento

e

oportunidade

de

condenação

do

implícita e

filtragem

dos

espaços

privados. Com isto não se exclui a possibilidade de ocorrerem experiências

desagradáveis

durante

a

movimentação

dos

indivíduos nos territórios das cidades, sobretudo, nos espaços públicos totalmente abertos, até porque tais acontecimentos constituem momentos normais na experiência da Cidade. Mas se as preocupações acerca dos riscos nos espaços públicos são compreensíveis (a partir do empolamento mediático de acontecimentos localizados espacial e temporalmente), já as acções indiscriminadas que procuram afastar os indivíduos das ruas e de outros espaços públicos são questionáveis. A solução não parece estar na protecção em relação à rua (aqui entendida como

perversa)

privado

pode

-

até

porque

o

recolhimento

ser

tão

prejudicial

quanto

a

exclusivo exposição

ao aos

perigos das ruas – embora o facto da cidade se tornar violenta faça com que as pessoas prefiram garantir a segurança, em detrimento

da

liberdade.

A

escolha

perversa

é

a

de

que

preferimos não ser cidadãos, no sentido de podermos circular livremente por todo o lado, mas estarmos protegidos, fechados e condicionados no espaço.

[74]

A maior contradição de todas está, porém, no facto de concebermos

e

construirmos

a

cidade

para

que

seja

completamente aberta e depois fechamo-la. São disso exemplo, os condomínios - um simples aglomerado de espaços privados que permitem apenas alguns encontros (os desejados aos detentores dos espaços) e impossibilitam outros - ou mesmo os centros comerciais

(espaços

condicionada

pela

colectivos

vigilância

privados

electrónica

com e

liberdade

pela

presença

física militarizada). Com frequência a sociabilidade pública da rua tende a ser transferida para áreas privadas como centros comerciais, parques

temáticos

habitacionais,

assim

e

de

lazer

como

a

diversos

ocupação

do

e

condomínios

tempo

livre

se

individualiza, cada vez mais, na solidão do espaço doméstico. Estaremos,

então,

perante

a

redefinição

do

espaço

público e privado? A realidade das cidades parece confirmar esse

movimento

quando,

para

além

dos

condomínios

e

das

vedações, outras iniciativas de segurança e controle criam um quadro

de

“prisão

colectiva”

ao

qual

os

habitantes

das

cidades, não só se estão a acostumar, como estão a exigir persistentemente.

2.3.3.

Dos Espaços Públicos aos Espaços Colectivo: que consequências para as sociedades urbanas?

Tucherman (1991) refere que George Simmel salientava que “na Londres ou na Paris antiga, em público, as pessoas tinham a expectativa de abordar e de serem abordadas” (p.81). Hoje, existe

a

convicção

que

a

esfera

individual

não

permite

intrusões dessa natureza, aliás considerando-as como uma grave intromissão no território da intimidade. Do mesmo modo, a proximidade entre os cidadãos num período pré-transporte de massas não era tão reduzida, o que faz com que as pessoas

[75]

tenham de fazer a gestão do olhar e da oralidade, de modo a não entrarem em conflito com o outro. A

grande

dificuldade

de

apreensão

da

totalidade

das

mudanças que ocorrem nos EPU são o produto da sua dimensão heurística, mas que, por facilidade, dele extraímos, sobretudo até

agora,

o

vector

associado

à

insegurança.

Mas

não

é

possível continuar a esconder que a passagem do público ao colectivo só pode ser descodificada se se atender à riqueza multidimensional do processo. Nesse sentido adoptaram-se as quatro dimensões heurísticas propostas por Debarbieux (2000) para os espaços públicos: ►

Capacidade de interpelar todas as ciências sociais. A geografia pela sua materialidade, o direito pelo qualificativo,

a

política,

a

sociologia

ou

a

economia podem trazer novas leituras e contributos para a compreensão da natureza dos EPU. A conversa com

Laborinho

dúvidas

Lúcio

sobre

o

(MORENO,

2001)

envolvimento,

por

não

deixa

exemplo,

do

direito nestas matérias já que está impregnada por questões

de

problema

direito

em

ser

público: vigiado

“Não no

tenho

espaço

nenhum privado

colectivo, no aeroporto, no centro comercial, etc. ... Porque não é o meu espaço de pertença, é onde eu estou mas não onde eu sou. Eu sou no espaço público” (p.25); ►

Relações

dialécticas

sociedade. sempre

entre

Construir

foi

um

intrínsecos

aos

dos

o

indivíduo

normas,

valores

atributos

mais

EPU,

expondo

o

e

e

regras

genuínos

indivíduo

a

a

e um

tecido social que só pode sobreviver através da transmissão

codificada

dessas

balizas.

Entre

os

territórios individuais e as identidades colectivas tudo se pode encontrar nos EPU;

[76]



Intervenção

física

e

semiótica

dos

espaços

públicos. Sendo a cidade eminentemente material, o interesse

simbólico

reproduzido

e

funcional

territorialmente

do

poder

pelos

é

urbanistas

adequando-o ao uso comunitário. O jogo entre forma espacial e forma social/política não se esgota no desenho

ou

nos

elementos



colocados,

acrescentando-se nesse espesso conjunto de relações prévias,

normas

e

condutas

que

também

devem

orientar os indivíduos nesses territórios. Parece ser particularmente útil a ideia de olhar para a relação

entre

colectivo,

indivíduo

como

um

jogo

e

espaço,

público

de

espelhos,

em

e

que

o

utilizador tem de se rever no espaço onde se julga melhor

enquadrado

e

sinta

mais

valorizado

socialmente; ►

Finalmente, a dimensão que distingue o objecto e a análise

que

dele

apesar

dos

movimentos

demonstrarem

a

pode

ser

feita.

e

práticas

importância

dos

Em

Portugal,

quotidianas

novos

espaços

colectivos, a representação dos EPU no imaginário do

indivíduo

mantém-se

como

um

factor

chave

na

qualificação dos espaços urbanos. Assim se explica as

múltiplas

movimentações

em

defesa

ou

em

reivindicação de espaços públicos que desencadeiam genuínas

associações

espontâneas

de

cidadãos

sem

nada em comum até aí (cf. Exemplos 1 e 2)

[77]

Exemplo 1 Moradores da Ajuda conquistaram um Jardim-Miradouro O que começou por ser um jardim-manifesto, erguido pelos moradores contra um projecto do Plano Especial de Realojamento, no Rio Seco, à Ajuda, vai tornar-se um jardim oficial, desenhado pelo punho de técnicos do departamento dos Espaços Verdes da Câmara de Lisboa. Esta foi uma vitória para os habitantes da Rua Glovanni Antinori e das artérias envolventes da Ajuda, já que, em finais do ano passado, o que o futuro lhes reservava era a construção de três blocos de habitação social na escarpa, em vez do jardim prometido há uma década pela autarquia. Quando em Dezembro do ano passado, os moradores conheceram os planos do departamento de Habitação da câmara, que entaipavam o miradouro natural que ali existe, não só protestaram publicamente como lançaram mãos à obra, plantando árvores e arbustos no local onde até ali havia barracas ocupadas por toxicodependentes. Fizeram nova acção de protesto na última reunião do executivo camarário do ano 2000, após a qual o vereador da Habitação e o presidente da câmara lhes prometeram procurar uma alternativa para a construção dos 22 fogos de realojamento. Agora têm razão para estar satisfeitos, como salienta um dos residentes, Manuel Soares, porque lhes foi dada a garantia de que o espaço verde que esboçaram irá tornar-se uma realidade.

Jornal Público, 02-08-2001

[78]

Exemplo 2

Mais Um Apelo Pelas Árvores do Marquês Acção pública no jardim do Porto

Mariana jura que costuma visitar o Jardim do Marquês, no Porto, para brincar "às caçadinhas e ao macaquinho chinês". Ontem, foi escrever uma frase num grande papel estendido em frente ao coreto, a convite da Comissão de Cidadãos em Defesa do Jardim. Desenha as letras devagar e com o cuidado de alguém que ainda faz palavras com pernas e formas redondas. "Não quero que matem as arvores", escreveu a pequena Mariana, com seis anos, corrigida de imediato pela irmã mais velha, Catarina, que lhe colocou o acento nas árvores. "Tenho pena delas e são seres vivos", justifica Mariana Reininho Araújo Toscano que - além do nome completo, dito de forma expedita - também vai adiantando que sabe que "algumas árvores vão morrer por causa do metro que vai passar por ali". "Eu também quero o metro", diz. Então qual a solução, Mariana? "Ele não pode passar um bocadinho ao lado?". Para a recém-formada Comissão de Defesa do Jardim do Marquês, que já se manifestou várias vezes contra o projecto da empresa do Metro do Porto e que ontem voltou a desafiar a população a acender uma vela e a participar numa acção pública, o lema também é: "Metro sim... mas fora do jardim". Jornal Público, 10-03-2002

Exemplo 3

MANIFESTO O Parque da Cidade - maior espaço verde público da cidade do Porto está ameaçado. Sem que as intenções de ali promover "frentes urbanas" e outros empreendimentos imobiliários sejam sequer claras e totalmente assumidas, a verdade é que uma extensa área do parque será destinada a construção. O que constitui um evidente atentado contra aquilo que é, no Porto e na Área Metropolitana, um dos poucos "oásis" disponíveis para o usufruto dos cidadãos, em contacto com a Natureza. O Movimento pelo Parque da Cidade pretende mobilizar os cidadãos em torno de um objectivo claro: recusar novas construções no parque e salvaguardar a integridade da área verde. Para tal, importa esclarecer, com transparência, quais as intenções da Câmara Municipal do Porto em relação a toda esta matéria, porque não seria compreensível que aquilo que a todos diz respeito pudesse ser decidido no segredo dos gabinetes. Em breve, este grupo de cidadãos divulgará uma série de acções que se pretende levar a cabo, tendo em vista a sensibilização pública para a defesa do Parque da Cidade e da sua função única no plano social e ambiental. Fonte: http://parquedacidade.no.sapo.pt/manifesto-pequeno.html

[79]

A

condução

do

público

ao

colectivo



pode

ser

apreendida numa lógica multidimensional como a que atrás se descreveu, pelo que desde já interessa afastar a ideia de crise. Com efeito, avaliando empiricamente para os espaços públicos portugueses e os comportamentos dos seus principais utilizadores

reforça-se

a

ideia

de

inexistência

de

uma

verdadeira crise, salientando-se antes, porém, uma mudança de lógica

e

de

intensidade

de

uso

que

pode

pode

ter

uma

explicação mais complexa que as convencionais razões ligadas à transformação física. A este propósito, ainda que de forma questionável, Carréve, em 1876, afirmava, por exemplo, sobre Lisboa, respectivos quintais e Passeio Público que “... esta espécie de logradouros são inúteis em Lisboa: os portugueses não passeiam e as portuguesas ainda menos... Os portugueses convivem

pouco

uns

com

os

outros

e

menos

ainda

com

os

estrangeiros” (in Barbosa, 1993). A rua direita, o campo da feira, o rossio, entre outros espaços urbanos tiveram sempre um papel muito funcional, que fazia convergir sobre si uma procura interessada em algo mais que

o

próprio

espaço.

À

sua

maneira,



era

colectivo

e

selectivo. As consequências para a cidade e para a sociedade urbana não são, portanto, assim tão dramáticas como algumas análises e comentários deixam antever pois, por um lado, não existe uma ruptura e, por outro, sendo a relação entre o indivíduo e os EPU um jogo de espelhos, ele vai estar onde espera que a sua imagem

ganhe

mais

destaque

socialmente.

O

risco

é

que

o

encapsulamento e confinamento a espaços isolados e herméticos dificultem o encontro, a troca, o convívio com a diferença, a partilha, empobrecendo a ideia de cidade, exercendo-se sobre os cidadãos os efeitos de uma agorafobia generalizada aos espaços públicos convencionais.

[80]

2.4. Propostas de tipologia 2.4.1. Um

Segmentando a análise

dos

sistemática

problemas

mais

incompreensão

de

fortemente que

sentidos

componentes

é

foi

o

da

composto

o

Espaço Público Urbano, com a agravante de que o urbanismo produz hoje espaços com a mesma designação de ontem, mas cujas funções se alteraram de modo significativo. Estão neste caso, por exemplo, a praceta, tradicionalmente vista como uma área livre entre edifícios, podendo registar a presença de algumas vias de acesso e de lugares de estacionamento mas contemplando sempre áreas verdes, de estadia ou apenas de descompressão do edificado. Um simples olhar às áreas de expansão metropolitana ou aos espaços lisboetas sujeitos a regeneração urbana (Páteo Bagatella, Alcântara Rio, ...) permite verificar que a praceta se transformou neste novo desenho urbano num lugar precioso para a circulação local e o estacionamento. Por outro lado, a segmentação tipológica dos EPU foi exigida pela percepção que nem todos manifestam um perfil de ocupação semelhante, gerando níveis de atracção e repulsão diferenciados, de acordo com alguns atributos próprios ou que lhe

são

imputados.

atravessamento, cada

momento,

intensa,

Desporto,

convívio, poderão

consoante

contemplação,

etc.

são

suscitar as

uma

circulação

características procura

actividades

mais

que,

e em

ou

menos

consideradas

mais

socialmente relevantes. Esta preocupação tem tido reflexo em trabalhos de vários autores

sendo,

no

entanto,

afectada

pelos

contornos

dos

objectivos que cada um perseguia. Vale a pena sistematizar as propostas encontradas, de modo a produzir uma tipologia que procure não só incorporar estes contributos mas acrescentarlhes

uma

perspectiva

mais

abrangente

em

resultado

da

fertilização obtida através dos múltiplos olhares.

[81]

2.4.2.

Espaços de recreio e lazer

A primeira referência resulta da proposta apresentada por

SEELEY (1973),

numa

obra

com

três

décadas,

cuja

nota

interessante é também a da ausência do termo Espaço Público, embora seja impossível descolar o conteúdo desta obra pioneira deste conceito. Preocupações ocupam

parte

como

a

distinção

significativa

da

obra

entre

lazer

optando

e

recreio

sobretudo

pelo

segundo, entendido aqui como uma das modalidades de ocupação do

lazer.

Pode

envolver

formas

como

desporto

físico

ou

actividades intelectuais: “(..) Basically, recreation involves activity – be it physical, mental or emotional – and it has no single form, as the range of activities which people enjoy during leisure is almost limitless. Recreation is determined by motivation, is fundamentally an attitude of mind and occurs in “unobligated” time. Engagement in recreational pursuits is entirely

voluntary

as

the

moment

participation

becomes

compulsory the activity ceases to be recreation. Recreation is universally

practised

and

sought

and

can

take

place

in

a

variety of settings, can be organised or unorganised and can be enjoyed alone or in groups. Recreationalists are often quite serious when absorbed in activities from which they secure satisfaction and pleasure. Finally it has by-products in that recreation can reward the participant in terms of intellectual, improved

physical

citizenship;

and and

social in

growth;

better

health;

other

qualities

of

personal

melhor

entender

a

proposta

development(…)” (p.3). Como

estratégia

para

tipológica apresentada por SEELEY, vale a pena identificar o que o autor considera como as vantagens da recreação: ►

Apoiar

o

desenvolvimento,

movimento

e

coordenação

corporal através das actividades físicas;

[82]



Contribuir para a sobrevivência e segurança;



Aprofundar o gosto pela natureza;



Promover a estabilidade mental, descomprimindo do mundo do trabalho. É uma forma de relaxe. Estas

vantagens

podem

ser

encontradas

em

diferentes

espaços, organizados de acordo com o tipo de oferta e com a postura do utilizador, formalizando assim a sua proposta de tipificação: Quadro 1 - Classificação de áreas recreativas Tipos de área recreativa Item

Baseados no Utilizador

Baseados nos Recursos

Intermédios A maioria não estão demasiado afastados dos utilizadores; Estão próximos dos recursos embora tenham como a distância como séria limitação

Localização comum

Próximo dos utilizadores

Onde se encontram os recursos; podem encontrar-se longe de grande parte dos utilizadores

Actividades dominantes

Jogos como ténis, natação, picnics, zoos, etc.

Interesse científico e histórico; pesca e caça; campismo

Utilizados para acampar, pescar, nadar, caçar e pescar.

Período mais intenso de uso

Período póslaboral ou pós-escolar

Férias e finsde-semana alargados

Saídas de dia inteiro e fins-desemana

Dimensões

1-100 Ha

Envolvem milhares hectares

De 50-1000 Ha ou mais

Autarquias, Privados

Parques Nacionais; reservas naturais; Áreas Protegidas

Responsáveis

de

Reservas naturais, etc.

Fonte: Adaptado de Seeley (1973)

[83]

O espaço público nas cidades portuguesas26

2.4.3. Esta

foi

uma

das

obras

percursoras

elaboradas

em

Portugal versando os EPU. Desde logo porque os colocava no centro de uma problemática dominantemente urbana e geográfica, ao sublinhar o seu valor simbólico e referenciador a par das suas funções mais óbvias de organizadores do tecido urbano e de

garantia

das

condições

para

a

circulação

automóvel

e

pedonal (p.60). Garantir ao peão a satisfação das suas necessidades era, assim, a função fundamental que praças, jardins e até ruas deveriam cumprir com eficácia e eficiência. No entender dos autores “a praça pública representa um dos espaços urbanos mais complexos, ao materializar exemplarmente o conceito de coração da urbe (o core) e de pólo cristalizador das vivências urbanas. É através dela que o poder político, religioso ou económico (central ou local) tendem a afirmar-se na Cidade (...). Já os jardins e os parques urbanos, detém uma função ambiental importante: contribuem para a diminuição da poluição atmosférica, fornecem habitats para a sobrevivência de algumas espécies

animais

e

atenuam

a

agressividade

presente

nos

reduz

as

ambientes construídos e edificados (...). A

praça

ajardinada,

por

sua

vez,

potencialidades de utilizações extensivas oferecidas por um espaço amplo e sem barreiras e corresponde a uma situação tipológica de compromisso que procura seduzir para a estada humana” (p.67-68). Perante as referências aos contornos e funções que os

EPU

deveriam

satisfazer,

são

apresentados

ao

longo

do

trabalho um conjunto de sistematizações que se referem ao

26

Este ponto deve muito ao trabalho inovador de SEIXAS, Ana et al. (1997).

[84]

piso, às vias, etc., sempre com o objectivo de o tornar um assunto cada vez mais conhecido mas também cada vez melhor caracterizado. O título da obra, com um carácter romântico e carinhoso, precisão

e

o

depois

o

sentimento

seu de

conteúdo,

nostalgia

antecipam

que

afasta

com

grande

muitos

dos

utilizadores da cidade quando se referem aos EPU. Distinguemse fundamentalmente entre espaços lineares e não lineares, sendo que nestes a praça consegue atrair o maior conjunto de funções

e,

por

isso,

assumindo

uma

maior

capacidade

polarizadora. Quadro 2 - Especialização funcional dos EPU Espaços Lineares Rua

Funções

Circulação Acesso Comércio

Espaços Não Lineares Praça

Jardim

















Recreio Lazer Cultura













Fonte: Adaptado de Seixas (1994)

2.4.4.

Ensaio tipológico para os EPU

Após todas as considerações feitas, opta-se por, neste momento em que se irá averiguar o grau de utilização dos espaços públicos urbanos, proceder a uma análise das propostas identificadas para a segmentação dos EPU e verificar da sua pertinência e validade para sistematizar os resultados dos inquéritos, quer aos utilizadores quer aos cidadãos em geral (utilizadores ou não dos EPU).

[85]

A referência aos espaços deixados livres pela edificação urbana é dominada pela ideia de EPU, mesmo sabendo da enorme disparidade funcional, espacial e simbólica existente entre eles.

Neste

exercício,

para

além

de

desmontar

esta

ideia

geral, será também útil referir as medidas que se adoptam para comparar estes espaços entre cidades (relação entre superfície de EPU por habitante). Finalmente, é fácil perceber, de igual modo, que os trajectos urbano, político e económico seguidos pelas cidades e países se traduziam em EPU diferentes ou, pelo menos, com uma estratificação distinta que torna mais difícil a comparação. Por todos estes motivos, privilegiar-se-ão as abordagens já produzidas sobre o tema versando a realidade nacional não olvidando as relacionadas com outros contextos. De

acordo

com

este

princípio,

adopta-se

a

tipologia

proposta por Brandão Alves (2003), quer por se tratar de uma reflexão recente (finais dos anos 90), quer por se centrar no território

nacional

e,

ainda,

por

se

debruçar

sobre

a

qualidade dos espaços públicos urbanos. A

classificação

tipificação

da

tipológica

informação

contida

de em

base

resultou

cidades

do

da

mundo

ocidental com especial ênfase para as cidades americanas e europeias (Cf. Quadro 3).

[86]

Quadro 3 - Ensaio de tipificação dos EPU Tipo/designação

Descrição

Ruas Ruas pedonais

Dedicadas exclusivamente ao fluxo de peões e, pelas suas implicações no consumo, têm sido criadas sobretudo nas áreas urbano/comerciais a revitalizar. São complementadas com elementos de conforto urbano como o arranjo das fachadas, vegetação, iluminação, segurança, etc.

Percursos/eixos

Troços urbanos de intenso fluxo pedonal

pedonais

aproveitando os maiores níveis de densidade comercial, passeios mais longos e agradáveis, locais de mais fácil acesso em TP ou em TI.

Ruas

Vias de 1º nível, canalizando os

predominantemente

principais fluxos automóvel. Articulando

motorizadas

as partes fundamentais de cidade e da área metropolitana.

Ruas de tráfego

São consideradas espaço público genérico,

condicionado

embora admitindo a presença esporádica de veículos automóveis (P.e., EXPO’98).

Ruas partilhadas

Vias concebidas/utilizadas por modos de transporte “amigáveis”: vias cicláveis, “trans”, ...

[87]

Praças/Largos Praças – Pracetas

Espaço deliberadamente não construído entre edificações, podendo ter funções políticas, simbólicas, sociais, etc. O facto de ser um local tradicionalmente de concentração de pessoas faz com que surjam actividades comerciais e de serviços. A ausência de rentabilidade destes espaços implicam uma menor visibilidade no urbanismo actual.

Largos

Dimensões variáveis, distinguem-se das Praças e Pracetas por serem espaços urbanos mais limitados. Raramente é possível, aí observar a presença de comércio e outras actividades. Nesta categoria encontramos os adros de igreja ou os largos de implantação dos pelourinhos.

Espaços Comerciais Largo de Mercado e Espaços abertos, do tipo praças ou largos Feira

ou respectivos prolongamentos (ruas, jardins, ...) que são ocupados com uma determinada frequência (periódica ou sazonal) por práticas comerciais. Em Portugal, surgem em meios urbanos como sendo mais uma herança da presença de aparelhos comerciais débeis e que são periodicamente colmatados com os mercados.

[88]

Espaços Verdes Parques Urbanos

Também designados por parques verdes urbanos, são espaços arborizados integrados no sistema ecológico urbano. Mesmo os mais antigos apresentam regras de utilização definidos por planos de ordenamento. A sua localização é preferencialmente junto a áreas mais sensíveis na perspectiva ecológica (forte erosão, linhas de água, ...). Recentemente, em Portugal, fazem parte dos espaços indispensáveis à auto-estima dos residentes (e políticos), surgindo um pouco por todas as cidades. A sua crescente dimensão levanta problemas ainda não completamente resolvidos como o de acessibilidade, segurança, manutenção, ...

Jardins

De dimensões mais reduzidas que os parques, não apresentam grande variabilidade quer na área quer na configuração e valências, localizam-se pulverizados pela área urbana, envolvidos ou por edificações ou por vias motorizadas.

Outros Frentes Mar/Rio

Tratamento paisagístico e funcional de áreas adjacentes a planos de água, recentemente valorizados pela sua qualidade paisagística ou amenidade climática. Conjuntamente com os Parques Verdes Urbanos, constituem o âmago dos investimentos municipais mais representativos, actualmente. Aliás, vejase a discriminação das intervenções ao abrigo do Programa Polis.

[89]

Espaços

Áreas limitadas de difícil caracterização

intersticiais

e de uso híbrido, mas permitindo sempre a utilização pública. Servem para resolver problemas de desenho urbano, ou topográfico: escadarias, alargamento de passeios, impasses, ...

Recintos de Lazer, Muitas vezes inscritos noutros espaços, recreio e desporto como jardins e parques, podem surgir com uma autonomia própria, isolados de quaisquer outros equipamentos ou tipo de EPU. São corporizados pelos Polidesportivos, Campos de Ténis, Miradouros, Parques Infantis, ...

Fonte: Adaptado de Brandão Alves (2003)

Pelo dinamismo associado às transformações urbanas que, por seu turno, se alimentam das mudanças societais operadas em espaços globais, nenhuma definição/sistematização de espaço público se pode considerar estabilizada. A adaptação forte à proposta

a

Brandão

Alves,

no

entanto,

faz

uma

leitura

restritiva de espaço público, expurgando-a do que pode ser entendido como o espaço colectivo e por tal, de algum modo, poder filtrar a admissão de cidadãos por qualquer motivo. É, portanto, um princípio de direito que aqui é invocado e que nos

parece

que

tem

vindo

a

ganhar

alguma

pertinência

no

sentido de evitar confusões legitimas entre Espaço Público e Espaço Colectivo. Se



se

registaram

equívocos

com

espaços

comerciais

fechados, agora com os Centros Comerciais, cuja arquitectura contempla confundem

amplos com

espaços o

abertos

verdadeiro

que,

espaço

nalguns público

casos27,

se

através

de

transições subtis, pontuadas pelo aparecimento dos sistemas 27

Veja-se o caso do Fórum Aveiro.

[90]

electrónicos

de

vigilância,

pessoal

de

segurança,

maior

arranjo e limpeza dos canais de circulação. Verifica-se que a cada período histórico correspondem EPU específicos, sendo fácil reconhecer-se a fase do Rossio, Passeios Públicos, dos Jardins, entre outras. O exercício de identificação

dos

actuais

espaços

públicos

pode

ser

feito

através da leitura dos novos espaços urbanos, nascidos quer nas áreas periféricas das cidades quer na reestruturação das áreas consolidadas. A crise do espaço público urbano tradicional encontra na sua expressão física talvez o maior expoente, pois na referida identificação sublinha-se a ausência dos largos e praças, mas com

passeios

obstáculos

para

suficientemente permitir

a

largos

circulação

e

desimpedidos

pedonal

de

desafogada,

espaços verdes utilizáveis junto às áreas residenciais. Por outro lado, ganham ênfase as situações de condomínio fechado onde surgem os “antigos EPU” com jardins e mobiliário urbano adequado

à

sociabilidade28,

os

parques

verdes

situados

no

centro das novas urbanizações mas que, no fundo, representam uma oferta insuficiente quer no rácio espaço verde/hab. quer pelas

condições

locativas

(muitas

vezes

se

acessível

de

automóvel). Levam, ainda, a sentimentos de insegurança pelo excesso de vegetação, deficiência de iluminação e vigilância limitada.

28

Todavia, múltiplas referências indicam-nos a sub-utilização destes espaços, alertando para a possibilidade do afastamento consolidado das pessoas deste tipo de espaço público.

[91]

3.

No campo do actor e do seu cenário

3.1. Notas preliminares Escrever

sobre

cidade

é

abordar

os

seus

espaços

de

troca, de circulação, de estadia mas também, e sobretudo, de negociação da relação com o outro, como sempre sucede quando se

trata

gerir

complexidade discussão

espaços

de

em

no

do

às

espaço

envolvendo

conflitos,

torno

associados

materializados

tempos

interesses,

anterior

composição

e

tensões,

urbano

e

práticas

público,

uma

dos

infinita

paixões.

elementos

A de

socioterritoriais,

pretendia

sublinhar

as

mudanças operadas no plano das sociabilidades e da relação com o outro. As para

fórmulas

optimizar

que

de

foram

modo

sendo

político

historicamente e

económico

adoptadas

a

vida

em

sociedade baseiam-se, no fundamental, no controlo disciplinar que se exerce sobre todos e, muito em particular, sobre os comportamentos. Esta estratégia tem-se assumido como a forma mais

dissimulada,

eficaz

e

até

produtiva,

de

obter

tais

objectivos, com a vantagem de nunca intervir, como não se cansou de sublinhar Foucault (1978) recorrendo ao panoptismo: “(...)permite aperfeiçoar o exercício do poder. E isto de várias

maneiras:

porque

pode

reduzir

o

número

dos

que

o

exercem, ao mesmo tempo em que multiplica o número daqueles sobre os quais é exercido. Porque permite intervir a cada momento e a pressão constante age antes mesmo que as faltas, os erros, os crimes sejam cometidos. Porque, nessas condições, sua força é nunca intervir, é se exercer espontaneamente e sem ruído,

é

constituir

um

mecanismo

de

efeitos

em

cadeia”

(p.170). Hoje pode correr-se o risco de se considerar anacrónica esta

leitura

do

espaço

e

do

controle

social

mais

pelas

dificuldades crescentes de descodificação que afectam as novas

[92]

fórmulas de panoptismo do que pela sua efectiva ausência. Admitindo, sem custo, um aprofundamento e, sem dúvida, um aperfeiçoamento sem precedentes do sistema panóptico, bastanos

observar

em

redor

e

lançar

olhares

avisados

sobre

os

universos onde se exerce esse controle enfatizando não só as instituições onde tradicionalmente se procedia à domesticação do corpo. Com efeito, o empenho na aplicação da disciplina corporal, de acordo com os princípios do panoptismo permite ultrapassar as barreiras tradicionais e lançá-las de maneira difusa, ramificada e polivalente no conjunto da sociedade: “(...) ele programa, ao nível de um mecanismo elementar e facilmente

transferível,

sociedade

toda

o

funcionamento

atravessada

e

de

penetrada

base

por

de

uma

mecanismos

disciplinares(...)” (p.172). Ora a sociedade que assim se constrói, mesmo que de forma pouco assumida ou explícita, é menos uma sociedade do espectáculo

e

mais

uma

sociedade

da

vigilância:

“sob

a

superfície das imagens, investem-se os corpos em profundidade; atrás da grande abstracção da troca, se processa o treinamento minucioso

e

concreto

das

forças

úteis;

os

circuitos

da

comunicação são os suportes de uma acumulação e centralização do saber; o jogo dos sinais define os pontos de apoio do poder; a totalidade do indivíduo não é amputada, reprimida, alterada

por

nossa

ordem

social,

mas

o

indivíduo

é

cuidadosamente fabricado, segundo uma táctica das forças e dos corpos. (...) Não estamos nem nas arquibancadas nem no palco, mas na máquina panóptica, investidos por seus efeitos de poder que

nós

mesmos

renovamos,

pois

somos

suas

engrenagens”

(p.179). O aprofundamento da modernidade, sobremodernidade para Giddens

e

pós-modernidade

desenvolvimentos

para

as

para

outros,

estratégias

de

trouxeram controle

novos social

reforçando ainda mais o protagonismo da cidade e conferindo diferente valorização aos espaços públicos urbanos. De facto,

[93]

os

novos

EPU

apresentam

novos

dispositivos

de

controle

e

vigilância, que seleccionam, protegem e higienizam a par da glorificação do consumo. Opera-se a partir de uma tribalização e especialização dos locais de encontro, normalmente, ligados aos consumo em espaços circunscritos e vigiados.

3.2. O crescente investimento no Self O verdadeiro significado deste investimento nunca será completamente

delimitado

mas,

apesar

de

tudo,

quando

é

detalhadamente observado e descrito por alguém que se encontre na nossa periferia cultural, ou mesmo no seu exterior, a sua análise ganha uma força inigualável: “O Papalagui esforça-se o mais possível por cobrir as suas carnes. O homem só existe realmente como homem acima do pescoço; quanto ao corpo e aos membros,

não

temporalmente

passam estas

de

carne”29.

anotações

Mesmo

verifica-se

contextualizando como

a

evolução

atingiu o corpo e as modalidades da sua afirmação. Acredita-se que o momento actual é mais de ruptura que de

aperfeiçoamento,

económicos,

pois

culturais,

as

diferenças

individuais

se

nos

comportamentos

aproximam

mais

de

mutações que de simples transformações do existente. À quebra de valores tradicionais e à perda de referências até aqui solidamente instaladas como a família, as ideologias ou a religião não se segue forçosamente o vazio. Ou mesmo que ele ocupe um lugar outrora preenchido por matérias substanciais disfarça-se de políticas de ilusão. O hedonismo e o narcisismo fazem parte de um inovador investimento no self, decorrendo até

dum

excessivo

materialismo

do

período

fordista,

que

salvaguardava pouco a diferenciação individual.

29

Tuiavii (1983) O Papalagui, Antígona.

[94]

Uma atitude

outra

leitura

emancipatória

comportamento

de

é

a

face

rebanho

de à

que

pela

via

disciplina,

ao

poderá

com

maior

narcíssica controle, eficácia

a ao

ser

contrariada: “A vaga do potencial humano psíquico e corporal não passa do último momento de uma sociedade que se arranca à ordem

disciplinar

sistemática

e



leva

ao

operada

seu

termo

pela

a

idade

privatização do

consumo”

(Lipovestky:1989;51). Esta mudança operada na importância concedida ao self é ainda mais marcante pelo obscurantismo a que havia estado sujeito

o

corpo

num

passado

não

demasiado

distante.

O

sentimento de culpa em caso de doença afectava mais o seu portador que as próprias consequências físicas da maleita. A transição resulta da percepção ao longo dos séculos XVIII e XIX

por

parte

crescentes

no

industrial

e

dos

poderes

controle da

públicos

social

degradação

da

que

as

dificuldades

correlativo vida

da

pública

expansão

poderiam

ser

contornadas com a imposição de novos valores centrados no corpo regularizando e promovendo novas condutas mais dóceis e mais úteis. Passa-se, assim, de um momento onde o corpo era um objecto

desfocado,

sem

vida

própria,

para

um

momento

de

afirmação de protagonismo. Como

mostra

aleatórias

e

Crespo(1990)

poderão

ser

estas

muito

bem

mudanças

têm

o

de

fruto

pouco

de

concepções

transversais para o desenvolvimento societal: “(..)as práticas do corpo não se podem compreender enquanto realidades simples e homogéneas mas, sim, no cruzamento dos múltiplos elementos económicos, políticos e culturais de uma totalidade. (...) A intervenção do Estado resulta, neste quadro, quase como óbvia e

decisiva

seguindo

três

vectores:

simples

repressão;

fortalecimento da consciência moral individual dos cidadãos e o

exercício

do

auto-controlo;

homogeneização

das

condutas

contando com a mobilização de médicos e educadores” (p.8).

[95]

Este

processo

não

foi,

Portugal. A sua construção

contudo,

fácil

nem

rápido

em

e concretização só foi operada com

maior credibilidade ao longo do século XX e em rigor com o Estado

Novo.

É,

aliás,

sintomático,

que

os

períodos

de

ditadura sejam normalmente momentos de grande valorização da cultura física, denunciando a sua oportunidade na docilidade não só dos corpos como também, e sobretudo, do espírito. Mas o domínio

total

da

preocupação

corporal



sucede

com

o

envolvimento directo do sistema económico que, em conjunto com a intervenção política, permitiu atingir níveis de sucessos desconhecidos anteriormente. Curiosamente, o investimento no corpo foi acompanhado por mudanças de valores que afectavam o universo psicológico: “a explosão psi sobrevém no momento preciso em que todas as figuras da alteridade (perverso, louco, delinquente, mulher, etc.) se veêm contestadas” (Lipovestky:1989;56). Só

à

luz

destas

observações

pode

dar-se

início

à

desmontagem dos princípios que estão na origem do culto do corpo e das acções/preocupações a que se encontra sujeito em permanência como a manutenção da “linha”, o cuidado com o estado de saúde, com o envelhecimento, com a imagem, com o desenvolvimento

da

cultura

física,

com

a

higiene.

A

generalização e a interiorização destes cuidados tem vindo a construir uma normalização do corpo30, num tempo em que se acreditava

exactamente

no

oposto,

isto

é,

na

individualização. O que parece ter-se imposto é uma espécie de massificação individualizada. A tatuagem é uma das formas de 30

Não pode deixar de se sublinhar como os tempos pós-modernos, paradoxalmente, contêm também tanto de massificação, designadamente no perfil corporal e nas práticas que lhes estão associadas. É igualmente claro que as estratégias individuais procuram apagar estas evidências pela via da indumentária, do aspecto exterior do cabelo e barba ou mesmo por marcas provisórias ou definitivas impostas ao corpo. É corrente a tatuagem, com motivos também recorrentes, nos corpos femininos e masculinos. Para ultrapassar a constante banalização das estratégias de diferenciação aprofunda-se até ao limite os modelos anteriores e é neste contexto que surgem por exemplo tatuagens faciais representando enormes cicatrizes.

[96]

individualização identificadas e até uma das que regista um passado mais sólido: “En cierto modo, el tatuage es un modo de expressión. Cada persona busca su manera. No necesariamente tenemos que utilizar las que ya existen, siempre se puede evolucionar e inventar nuevas maneras. Las cosas no se dicen solo

hablando,

no?

También

pueden

decir-se

con

gestos,

mediante la estética o con un grito.... Yo lo uso para vestir la piel.” (Ehrenhaus: 1999; 155). De um tempo em que se pretendeu fazer crer às pessoas que o seu corpo de facto não existia, certeza essa que só era questionada em momentos de doença, passou-se para a sua hiper valorização,

mas

para

leitura

a

sua

cuja

descodificação como

objecto

deste

mas

processo

também

remete

como

matriz

31

cultural . Finalmente, em que estádio nos encontramos? Para onde vamos? É ainda possível encontrar surpresas ou espantarmo-nos face à multiplicidade dos caminhos a seguir? Parece que sim. Os

sinais

emergentes

passíveis

de

serem

recolhidos

hoje

indicam várias orientações para o desenvolvimento das posturas sobre

o

corpo,

Baudrillard

tem

aparentemente insistido

no

numa corpo,

lógica

pós-moderna.

simultaneamente

como

mercadoria e palco de consumo: “Se a redescoberta do corpo é sempre a do corpo/objecto no contexto generalizado dos outros objectos,

percebe-se

como

é

fácil,

lógica

e

necessária

a

transição da apropriação de bens e de objectos de compra. (...) Da higiene à maquilhagem, passando pelo bronzeamento, pelo desporto e múltiplas libertações da moda, a redescoberta do corpo passa antes de mais pelos objectos” (Baudrillard: 1995; 143).

31

Não é o centro deste texto mas é interessante verificar como esta passagem desvalorizaçãovalorização corporal corresponde a sentimentos de maior intolerância e agressividade face a comportamentos divergentes de origem cultural ou política.

[97]

Esta

leitura

ganha

ainda

mais

pertinência

quando

é

orientada para o erotismo e para os efeitos multiplicadores que gera no campo económico ou ainda quando se liga o fenómeno da “libertação do Corpo” à designada força de trabalho. O trabalhador ao se emancipar do patrão ou, dum modo mais lato, duma figura tutelar que coordena objectivamente todos os seus movimentos e pensamentos, pode ser melhor explorado para fins produtivistas32. Uma outra tendência parece emergir da crescente inserção das

novas

tecnologias

no

quotidiano

urbano,

produzindo

a

aceleração dos ritmos de vida e trazendo consequências ainda não amplamente medidas sobre quadro cartesiano espaço-tempo. Virilio, filósofo e urbanista, debruçou-se em particular sobre estas dimensões e identificou a velocidade como um referencial obrigatório

no

tratamento

das

sociabilidades

e

dum,

modo

geral, da vida urbana. A

cidade,

até

às

primeiras

décadas

da

Revolução

Industrial (princípios do século XIX), apresentava uma escala humana pelo atrito gerado pelo espaço às deslocações humanas. Tanto

na

escala

horizontal

como

na

vertical

existia

uma

contenção real, havendo condições para uma grande intensidade de interacções sociais. Com o advento dos transportes mecânicos passou a ser possível o alargamento urbano, através das linhas de caminhode-ferro e do elevador. Pela primeira vez, existia o designado efeito túnel entre a origem e o destino das deslocações. Isto é, o espaço intermédio deixou de constituir uma experiência para quem se desloca apresentando-se desfocado e sem condições

32

O discurso colabora activamente nesta estratégia quando substituiu, por exemplo, o termo empregado por colaborador, dando-lhe a ilusão de um maior envolvimento na vida da empresa e conferindo-lhe, por essa via, maior responsabilidade em termos de horários e maior complacência face ao salário, períodos de férias, feriados, etc.

[98]

para o contacto pessoal. Foi assim despoletado o processo de dessocialização pela via da aceleração. Com a velocidade da luz, imposta pelas tecnologias da comunicação,

a

distância

ficou

em

definitivo

eliminada,

desqualificando o espaço ao fazer coincidir pontos de partida e chegada anulando as deslocações físicas e, em consequência, reduzindo ao mínimo as relações pessoais. Com estas condições, nasce o “ciberespaço e a infoesfera, o mundo tornou-se uma informação a ser tratada por sistemas, a imagem de sínteses, prescindindo agora do observador, ou seja, não há objecto como não



sujeito

processa

e

o

ser

informações,

humano

assim

tornou-se

como

tantos

um

sistema

outros

que

sistemas”

(Virilio:2000;59). O genoma humano é tratado da mesma maneira: como um conjunto de informações até agora à espera de serem descodificadas. Finalmente

uma

outra

orientação

identificada

decorre

também em larga medida da tecnologia mas agora não como um prolongamento

das

capacidades

humanas

mas

como

uma

substituição fisiológica. Frankenstein e os cyborgs de algum modo

evocam

ideias

de

exteriorização,

partilha

e

colectivização dos corpos. Mas a ideia que germina não é só a transformação do corpo humano em andróide como o inverso, resultado

da

tecnológico.

produção O

espaço

ficcional público

ou

e

do

desenvolvimento

reconhece

esta

violenta

sofisticação tecnológica que afecta os corpos, as relações entre eles e as relações entre os corpos e os espaços ou perde em

definitivo

a

sua

capacidade

sedutora

e

de

acolhimento

porque se torna anacrónico face ao estádio de desenvolvimento dos seus utilizadores.

[99]

3.3. A cidade como terreno narcíssico Apesar das práticas corporais (trabalhar, comer, dormir, higiene

e

apresentação)

dominarem

o

nosso

quotidiano,

a

geografia e os estudo urbanos em particular, só recentemente lhe concederam alguma atenção. Era uma presença ausente, na medida em que a sua referência nunca era tomada como central sendo

sempre

instrumental

para

a

compreensão

de

outros

fenómenos. A

reversão

desta

postura

científica

surgiu

quando

se

aludiu ao carácter social do corpo, à semelhança do que sucede com outros espaços (casa, comunidade). O espaço do corpo, sendo

o

produto

natureza

uma

ciências

sociais

de

relações

problemática em

geral.

de O

e

produções

eleição corpo

sociais,

para

como

a

é

por

geografia

fronteira

e

e

como

espaço táctil são algumas das oportunidades que se deparam aos investigadores: “The body is after all, a tactile space – always sensing and actively engaging with itself (the inside) and the world (the outside). Our understandings of our bodies attempts to manage them are therefore predicated not only on visual information – what we look like -

but also on sensual

information about how we feel, about the relationship between the inside and the outside – about our spatiality” (Valentine: 1999; 131). O contacto entre cidade e corpo faz-se assim através da experiência

individual.

As

transformações

urbanas

resultam

muito desta percepção e a história dá exemplos que confirmam esta relação. As intervenções para solucionar os problemas de saúde pública da cidade industrial levaram os construtores e urbanistas a enfatizar na realização urbana a maior largura das ruas e a circulação de ar, facilitando a respiração e melhorando a sua qualidade.

[100]

No século XIX, e na sequência da turbulência induzida pela Revolução Industrial, a cidade organiza-se e transformase de acordo com os princípios higienistas em voga na altura e que perduraram até hoje. Nasce o papel higiénico, a limpeza diária de penicos, novos hábitos de vestuário que aliviavam o corpo de um peso excessivo e mal-são. Com este modelo corporal foi exigido aos espaços urbanos novas práticas de higiene, drenando buracos e depressões alagadas, cheias de urinas e fezes,

para

esgotos

subterrâneos.

As

ruas

tornam-se

mais

limpas e, por baixo delas, os esgotos substituem os canais a céu aberto. A segurança pública justifica, em conjunto com as ideias higienistas, o rasgar de grandes eixos por entre malhas urbanas

antigas

e

densas,

como

sucede

na

Paris

do

barão

Haussman. A

funcionalização

gradualmente

a dos

formalização.

A

concentração

dos

cidade

retira-lhe

espontaneidade

territoriais/sociais, ritualização

da

produzindo

contactos perda

da

locais

obstáculos

sociais rua

de

nas

como

e

a

local

interacção

práticas

que

um

obrigam

maior

de

também

grau

estadia

social

à de

e

a

obrigam

à

reconfiguração das relações individuais e à sua segregação. A Carta

de

Atenas,

encarregou-se

de

documento

magno

do

operacionalizar

urbanismo as

moderno,

preocupações

funcionalistas. Os efeitos de estigmatização gerados pelos sucessivos enclaves instalados no tecido urbano acabaram por provar o insucesso

desta

fórmula

e

indicar

o

caminho

da

multi-

funcionalidade e diversidade de usos evitando a criação de guetos. A promoção dos espaços públicos é uma acção chave para mobilizar as forças no sentido duma partilha da cidade e não de um contínuo afastamento social. Sendo um palco privilegiado para a reprodução dos princípios da hierarquia social, ele foi desde

sempre

acarinhado

por

sucessivas

vagas

de

modelos

urbanísticos. Recorde-se, para Lisboa, o exemplo do Passeio

[101]

Público onde é hoje a Avenida da Liberdade, no século XIX, servindo de palco para a burguesia urbana se poder exibir e mostrar aos demais. As

transformações

societais

têm-se

revelado

como

as

marcas mais profundas, interessantes e inesperadas ocorridas no

mundo

ocidental.

Como

propulsores

principais

destas

mudanças (que em determinados casos e momentos se aproximam mais de verdadeiras mutações atendendo ao seu carácter global e

radical)

melhoria

surge das

o

progresso

tecnológico,

comunicações

traduzido

(rapidez,

na

qualidade

e

versatilidade), e as alterações ao modelo económico vigente. Os impactes da nova tecnologia e de contextos económicos emergentes

fez-se

sentir

não



nos

respectivos

campos

específicos como também introduziram perturbações colaterais quer na morfologia social quer urbana. Não se trata da anulação da relação interpessoal, mas sim

da

sua

propriedades

transferência (jurídicas,

para

limites

outros e

espaços

localização)

cujas

acarretam

consequências sobre a “qualidade” da relação com o outro. Esta transferência ocorre num período em que a Cidade se altera e em que os indivíduos reconstroem a imagem do “eu”, provocando este

duplo

efeito,

original

no

percurso

histórico

das

sociedades urbanas. Centros comerciais, centros de lazer e diversão,

espaços

semi-públicos/semi-privados,

constituem

a

emergência de novas configurações urbanas mas que ainda não foi possível descortinar se se encontram a montante, a jusante ou em paralelo dos processos de revalorização individual. Estes

novos

contextos

do

exercício

das

práticas

de

sociabilidade activa interferem no seu redesenho, lançando a mesma dúvida exposta perante a questão da génese das mudanças verificadas para os espaços públicos.

[102]

Veja-se

como

o

investimento

no

Self,

através

da

reconstrução e manutenção da imagem, a preocupação com a saúde psicológica e física do corpo, visível na insegurança (e não criminalidade), a cultura física, etc., se cruza com os novos espaços de sociabilidade. A

pulverização

de

ginásios,

health

clubs,

piscinas,

institutos de beleza, comercialização de produtos de beleza e de produtos dietéticos, minam a paisagem urbana promovendo novas deslocações e desafiando as ideias clássicas sobre as funções mais banais ou elevadas. Correlativamente,

à

promoção

destes

espaços,

comportamentos e deslocações assiste-se à desvalorização e, mais

grave,

ao

estigma

de

territórios

urbanos

de

que

são

exemplo as áreas desocupadas ou de edifícios abandonados, os grandes

parques

frequentadas,

verdes,

os

áreas

jardins

mal

iluminadas

apropriados

por

e

sem

pouco abrigo,

toxicodependentes, idosos, etc. Num misto de insegurança e de sentimentos de repulsa de um modo consolidado e persistente, verifica-se o declínio do uso social destes espaços. Todavia, não se trata ainda duma desvalorização

física

e

urbana,

pelo

que

nos

programas

urbanísticos e, sobretudo, nos loteamentos onde o interesse colectivo se torna ainda mais desfocado face aos interesses dos particulares, permanecem as referências ao espaço público mesmo que seja para contemplar e não para usar ou que se localize

nos

sítios

menos

interessantes

para

construir,

tirando-lhe o carácter estruturante que é conferido à rua ou ao

estacionamento.

Estes,

sendo

também

espaços

públicos

urbanos, não apresentam condições adequadas para a interacção comunitária de qualidade. A actual relação com o corpo, o endeusamento narcíssico da carne, encontra-se agora a jogar para um campo contrário,

[103]

protegendo-se das condições meteorológicas desfavoráveis, dos problemas de higiene urbana, da insegurança e contacto com grupos desfavorecidos. Aliada à pressão comercial, este quadro urbano alimenta vagas sucessivamente maiores em direcção aos espaços comerciais, criando novos espaços de sociabilidade, envolvendo trocas de informação, contemplação e até espaços de afectos. A hipervalorização do corpo, não só implica a sua defesa como se traduz em mudanças de padrões de consumo que merecem

acolhimento

na

íntegra

nestes

enormes

espaços

de

consumo. Por outro lado, a comunicação virtual substituiu também o espaço público tradicional com consequências drásticas e radicais na experiência corporal dispensando a deslocação e o contacto. Porém, o ciberespaço é também espaço de afectos e de reconfigurações de relações sociais, culturais e ideológicas, faltando ainda conhecer a sua real repercussão sobre a cidade. Espera-se que os EPU, apesar de todas as interferências produzidas por novos padrões de comportamento, continuem a permitir aos utilizadores urbanos beneficiarem de tréguas dum quotidiano natureza

preenchido, e

continuem

de a

se

aproximarem

promover

dum

intensos

pedaço

de

contactos

interpessoais onde o estatuto, o género, a naturalidade e a idade não interessam, glorificando a ideia maior do espírito democrático e, em particular, da Cidade.

3.4. Transformações e mutações sociais e urbanas 3.4.1.

O paradoxo

urbano-metropolitano

Se falamos de Espaços Públicos Urbanos, temos de falar de cidade. Se procuramos conhecer qual o seu estatuto e em que medida é que eles se adequam à cidade emergente então temos de conhecer elementos em torno do qual se fazem as suas mudanças.

[104]

Não

se

trata

tratamento

de

um

ensaio

cirúrgico

sobre

sobre

a

espaços

cidade

mais

ou

sequer

delicados,

um

embora

centrado no caso de Lisboa, recorrendo amiúde aos contributos feitos

por

Salgueiro

(2001),

Ferreira

e

Castro

(2000)

e

Pinheiro, Baptista e Vaz (2001).

das

Olhando para a Áreas Metropolitanas

parece que, apesar

mudanças,

idos

alastramento manchas

nada

em

mudou

dedos

urbanísticas

conteúdo

social;

a

de

desde pata

de

segregadas

os ave;

pela

insuficiência

a

anos

o

persistência

localização

das

70: ou

de

pelo

super-estruturas

que

moldam o quadro de vida (ensino, saúde, acção social, cultura, ...); a crónica deficiência das infra-estruturas (ambientais, transportes e acessibilidades, saneamento, energéticas, ...); a organização casuística e caótica das vocações do espaço urbano. Não

obstante

pacotes

os

legislativos

documentos Regionais

de de

esforços e

na

planeamento Ordenamento

manifestados elaboração

de do

escala

na

produção

generalizada

diferenciada

Território,

Planos

de de

(Planos

Directores

Municipais, Planos Estratégicos Concelhios e de Cidade, Planos de

Acessibilidade,

Mobilidade

e

Estacionamento,

...),

continuam a ser demasiado visíveis os problemas penalizadores do quadro de vida dos cidadãos e da capacidade competitiva das áreas

urbano-metropolitanas.

Parece,

desajustamentos espacio-funcionais

aliás,

que

os

ganharam novo fôlego com a

conclusão de grandes infra-estruturas de transporte, como a ponte Vasco da Gama e os Itinerários Complementares com perfil de auto-estrada que rasgam a AML. Em paralelo com este urbanismo de expansão, próprio de contextos

não

estabilizados

de

desenvolvimento

económico

e

crescimento demográfico, corre um outro, desde finais dos anos 80 e ao longo dos 90, que busca a transformação de áreas incrustadas na Cidade, com escalas que podem ir do lote a

[105]

extensos espaços urbanos. Longe de serem meras operações de cosmética,

este

urbanismo

ameaça

mudar

a

fisionomia

das

cidades desde o seu âmago – bairros históricos – até às áreas ocupadas por espaços industriais da 1º revolução industrial. Este urbanismo, que tanto pode ser de cirurgia (reabilitação arquitectónica,

incorporação

estacionamento regeneração

subterrâneo) urbanística,

de como

novas de

valências

implantes

introdução

de

como

(renovação

novas

o e

funções

urbanas),tem consequências ainda mal avaliadas. Da

ocorrência

diferentes,

simultânea

traduzindo

lógicas

de que

modalidades podem

ser

urbanísticas associadas

a

perfis de desenvolvimento de países do Centro (nobilitação, rurbanização)

e

periurbano),

fica

da a

Periferia ideia

de

(alastramento que

também

suburbano

nestes

e

domínios

Portugal se encontra numa zona de fronteira. Aliás, esse país urbano dual vai voltar a ser visível quando abordarmos mais em detalhe o urbanismo que se faz em espaço consolidado, pois mais uma vez se apresentam em escalas diferenciadas e com preocupações muito distintas.

3.4.2.

Territórios da Alegria

A um urbanismo de alastramento tem vindo a opor-se um urbanismo

de

preenchimento

que,

vulgarmente,

promove

o

ressuscitar de tecidos urbanos votados ao abandono ou a usos marginais. Ganham protagonismo, neste contexto, sobretudo as áreas ribeirinhas, espaços vazios e os que foram sujeitos a processos de desindustrialização. As primeiras porque estavam vetadas

a

um

uso

portuário

relacionado

com

indústrias

de

primeira geração e muito dependentes do transporte marítimo e fluvial e agora são submetidas a uma pressão social no sentido de se tornarem permeáveis segundos,

por

motivos

a um uso público e qualificado. Os muito

diversos

(dificuldades

[106]

morfológicas, de acessibilidades, ...) foram “esquecidos” para agora serem recuperados e integrados na vertigem urbanística. Finalmente, os espaços monofuncionais associados à indústria observam também uma terciarização generalizada, que implica sempre memória

polifuncionalidade do

local

a

e

muitas

partir

da

vezes

a

manutenção

preservação

de

da

elementos

arquitectónicos do passado (a manutenção da chaminé é, talvez, a referência mais óbvia para ilustrar estes esforços). Tendo

presente

estas

questões,

a

preocupação

deve

centrar-se nas modalidades possíveis capazes de proceder à requalificação

destes

territórios

e

de

garantir

o

seu

revertimento para a Cidade em condições ajustadas à melhoria do

quadro

de

vida,

a

par

de

uma

natural

procura

de

rentabilização e retorno do investimento que neles são feitos. A

condução

do

processo

descrito

tem

sido

da

responsabilidade do Estado que, no entanto, procura conjugar essas “obrigações” com a realização de eventos de uma dimensão compatível.

As

intervenções

urbanísticas

estão,

assim,

dependentes das Exposições Mundiais, dos Campeonatos Europeus de Futebol, das Capitais Europeias da Cultura, Taça América, .... Daí a dimensão “Festa e Alegria” que está inevitavelmente ligada a este urbanismo. Fotografia 4 - A Expo’98

[107]

Fotografia 5 - Os Estádios do Euro 2004

Fotografia 6 - Porto - Capital Europeia da Cultura. Casa da Música.

Fotografia 7 - Chelas

A festa, isto é, a realização de eventos de dimensão nacional e supranacional, como motor da transformação urbana e

[108]

garante da sua efectiva concretização pela pressão dos prazos e do controle internacional, é algo que se tem generalizado no mundo ocidental. Por isso, tornou-se acérrima a luta pela atracção destes acontecimentos envolvendo muitas vezes não só as Cidades e os seus órgãos autárquicos como outras instâncias de poder (presidentes da república, governos e parlamentos). O contributo da iniciativa pública para o arranque da Cidade da Festa é aqui uma alavanca essencial, podendo contar com

a

parceria

de

entidades

privadas

ou

para-estatais.

A

cidade ainda é, portanto, fruto da capacidade de realização do poder político continuando, por isso, a envolver uma forte carga

ideológica.

poder,

para

o

Servirá

de

matriz

desenvolvimento

para

a

económico

propaganda e

para

do o

reconhecimento social da ideologia que lhe está subjacente.

3.4.3.

Cidades da Angústia

Pós-modernidade contradições,

urbana

alimentado

é

um

pela

terreno

crescente

minado

fragilização

por do

Estado-Providência, a economia ultra-liberal, a globalização e os localismos, a terciarização e a concretização da livre circulação de pessoas, bens e capitais no seio da UE. Todavia, para a Cidade continuam a convergir todos os olhares e sonhos, o que se tem traduzido numa combinação com repercussões autofágicas



que

espacial)

ameaçam

objectivos

da

as

exclusões

minar,

pela

(social, dimensão

competitividade

étnica-religiosa, que

urbana,

atingiram,

os

assentes

no

desenvolvimento, coesão social e territorial. Os problemas são múltiplos e a sua terapia envolve o enfrentamento dos sintomas e das causas. Estas normalmente mais complexas que as primeiras. A fórmula encontrada foi a concepção de programas dirigidos para a solução dos problemas

[109]

específicos.

A

síntese

seguinte

é

apenas

uma

das

que

é

possível apresentar: ►

Programa Polis



PER - Programa Especial de Realojamento



PROQUAL - Programa Integrado de Qualificação das Áreas Suburbanas da Área Metropolitana de Lisboa



Urban II



PRU - Programa de Reabilitação Urbana



Recria, Recriph, Rehabita



UrbCom – Urbanismo Comercial



PRAT

-

Programa

de

Requalificação

de

Áreas

Turísticas ►

PRAUD - Programa de Requalificação de Áreas Urbanas Degradadas



AUGI – Áreas Urbanas de Génese Ilegal

Mais uma vez é ao Estado que compete corrigir estes desvios do desenvolvimento urbano. A sua actuação

e função de

regulação

acaba

intervenção

dirigidos

para

também

de

por o

condicionar

ataque

causas,

aos

visando

processos

sintomas uma

mas,

solução

de

nalguns

mais

casos,

profunda

e

sustentável dos desajustamentos encontrados.

Alguns destes

programas

e

reanimação,

caíram

num

outros

esquecimento

continuam

oportuno

activos

mas

sem

esperam

a

recursos

financeiros adequados. Estes programas têm, na generalidade dos casos, um campo de acção restrito quer espacial quer sectorialmente, mas o

[110]

carácter

inovador

que

alguns

demonstram

problemas urbanos é uma das suas

no

enfrentar

dos

vantagens mais evidentes

enquanto que o seu carácter muito específico coloca riscos de alheamento face ao conjunto das dinâmicas urbanas. Aparentando enfrentamento

deter

das

apenas

uma

marginalizações

importância urbanas,

limitada

no

Cidade

da

a

Angústia reveste-se de uma importância extrema na procura de equilíbrios delicados e no evitar de rupturas socioeconómicas. Mas esta acção sobre o fio da navalha não pode ser mais que um paliativo

ou

um

estádio

intermédio

no

percurso

urbano

em

direcção a uma cidade da inclusão, entendida aqui não apenas no sentido social e económico mas, sobretudo, individual.

3.4.4.

Cidade dos Extremos

A cidade faz-se hoje por impulsos, grandes e pequenos: os

primeiros

quando

decorrem

da

localização

de

eventos

importantes e que servem de alavanca para grandes operações de transformação urbana muitas vezes adiadas; os segundos quando se trata da aplicação de Programas específicos, que visam a resolução de problemas concretos dos espaços urbanos e que têm um papel de intervenção em muitos casos cirúrgico pelo seu efeito localizado. Chegados

a

uma

encruzilhada

em

que

apenas

os

dois

caminhos descritos estão visíveis, não se acredita que seja possível percorrê-los em simultâneo a não ser que, algures, eles

se

encontrem,

fundindo-se

numa

forma

original,

socialmente mais justa, de produzir Cidade. É esta convicção que nos permite suportar as feridas, sangrentas e dolorosas, provocadas pela Cidade dos Extremos.

[111]

4.

Os Espaços Públicos Urbanos na multiplicidade dos olhares

4.1. Ciências Sociais e da Comunicação O

espaço

público

está

no

coração

do

funcionamento

democrático. Habermas (1978) tomou a palavra de Emanuel Kant que foi, provavelmente, o seu autor, e popularizou o seu uso na análise política a partir dos anos 70. Define-o como a esfera intermédia que se constituiu historicamente, no período das Luzes, entre a sociedade civil e o Estado. É o lugar, acessível a todos os cidadãos, onde um público se reúne para formular

uma

opinião

pública.

O

intercâmbio

discursivo

de

posições racionais sobre problemas de interesse geral permite identificar uma opinião pública. Esta «publicidade» é um meio de pressão à disposição dos cidadãos para conter o poder do Estado. Mas Habermas considera que o aparecimento do EstadoProvidência

perverteu

esse

mecanismo

de

concertação

democrática. Para a filosofia da comunicação e do poder trata-se de um espaço simbólico onde se opõem e se dirimem discursos, emanados dos agentes políticos, sociais, religiosos, culturais e

intelectuais

antes

de

formar,

mais, tempo,

reconhecimento

que um

constituem espaço

um

uma

simbólico,

vocabulário

mútuo

sociedade.

das

que

e

É,

portanto,

requer,

valores

para

comuns,

legitimidades;

uma

se um

visão

suficientemente próxima das coisas para discutir, contrapor, deliberar. Não se decreta a existência de um espaço público da mesma maneira que se organizam eleições. Constata-se a sua existência. É o espaço da comunicação que durante muito tempo coexistiu com o outro – o espaço público urbano. O uso e a criação do espaço público não é da ordem da vontade. democracia

Simboliza, a

simplesmente,

funcionar

de

a

verdade,

realidade ou

a

de

uma

expressão

[112]

contraditória das informações, das opiniões, dos interesses e das ideologias. Constitui o laço político que liga milhões de cidadãos

anónimos,

dando-lhes

a

sensação

de

participar

efectivamente na política. É preciso recordar que o modelo democrático pluralista que, desde os anos 1980, é objecto de um

consenso

na

Europa

como

nunca

antes

o

havia

sido

na

História, foi considerado entre 1930 e hoje, e sobretudo entre 1947 e 1977, devido ao peso do marxismo, a Guerra Fria e às oposições

ideológicas,

Opunha-se

a

como

democracia

um

conceito

«formal»,

«direita»33.

de

burguesa,

à

democracia

«real», mais ou menos socialista. E nesta batalha ideológica amarga,

ninguém

dominantes

do

falava

de

vocabulário

espaço

político

público. eram:

As

poder,

palavras conflitos.

contradição, interesses de classe, alienação, ideologia. O espaço público pressupõe, pelo contrário, a existência de indivíduos mais ou menos autónomos, capazes de formar a sua própria

opinião,

acreditando

nas

não

«alienados

ideias

e

na

aos

discursos

argumentação

e

dominantes»,

não

apenas

no

confronto físico. Esta ideia de formação de opiniões através das informações e dos valores e, em seguida, da sua discussão, pressupõe

também

autónomos

em

que

relação

os aos

indivíduos partidos

sejam

políticos

relativamente para

poderem

formar a sua própria opinião. Numa palavra, com o conceito de espaço público é a legitimidade das palavras que se impõe sobre

a

dos

sujeitos

da

História.

É

a

ideia

de

um

reconhecimento do outro e não a sua redução ao estatuto de «sujeito alienado». Mas o espaço público tornou-se uma palavra da moda por uma outra razão, menos política que sociológica, reforçando-se ambas e tendo ligações uma com a outra. O espaço público também é o resultado do movimento de emancipação que consistiu em valorizar a liberdade individual e tudo o que é público,

33

Veja-se a este propósito Howbsbawm (1997).

[113]

sobre o «privado», identificado com o domínio dos interditos de antigamente e com as tradições, ancorada na ideia de pósmoderno. Defender o privado era, afinal, defender as regras, as convenções, as tradições; era ser conservador. E deu-se, assim,

um

encontro

entre

dois

movimentos

relativamente

diferentes: um a favor da liberdade individual, logo de uma certa capacidade para mostrar publicamente aquilo que se é, e o

movimento

publicidade

democrático, contra

a

de

que

favorecia

segredo

e

também de

a

ideia

interdito.

de Foi

valorizado, de ambos os lados, o que era «público». Levanta-se aqui, a propósito, a necessidade da distinção de lugar comum, espaço público e espaço político. Um espaço comum é simultaneamente físico, definido por um território, e simbólico, definido por redes de solidariedade. O espaço público é, à partida, um espaço físico; o da rua, da praça, do comércio e das trocas embora a sua dimensão simbólica já fosse visível nos espaços envolventes às igrejas e aos edifícios que representavam o poder militar e político. Só a partir dos séculos XVI e XVII este espaço físico se tornou

simbólico,

com

a

separação

entre

o

sagrado

e

o

temporal, e o progressivo reconhecimento do estatuto da pessoa e do indivíduo face à monarquia e ao clero. Este movimento abrange facilmente dois séculos. É, com efeito, a redefinição do privado que permite, em contraponto, ao espaço público, desenhar-se e afirmar-se. A palavra público aparece no século XIV, do latim publicus; o que diz respeito a «todos». Público remete

para

«tornar

público»,

para

publicar,

do

latim

publicare. Isto pressupõe um alargamento do espaço comum e a atribuição de um valor normativo àquilo que é acessível a todos. A passagem do que é comum ao que é público, tornou-se, mais

tarde,

uma

característica

da

democracia,

ligada

ao

princípio da liberdade.

[114]

O espaço público é, evidentemente, a condição para o nascimento do espaço político, que é o mais «pequeno» dos três34 espaços no sentido daquilo que circula. Não se trata, neste espaço, nem de discutir nem de deliberar mas, sim, de decidir

e

de

agir.

Sempre

houve

um

espaço

político.

Simplesmente, a especificidade da política democrática moderna reside

no

alargamento

do

espaço

político,

à

medida

do

movimento de democratização. A palavra emerge entre o século XIII e o século XIV, vinda do latim politicus, e tomando da palavra grega politik a ideia essencial da arte de gerir os assuntos

da

cidade.

Existe

então,

não

apenas

um

desafio

suplementar em relação ao espaço público, que é o poder mas, também, um princípio de fechamento mais estrito, ligado aos limites territoriais sobre os quais se exercem a soberania e a autoridade. Para

simplificar:

o

espaço

comum

diz

respeito

à

circulação e à sociabilidade; o espaço público, a discussão; o espaço político, à decisão. Como se vê a relação da comunicação, com a política e a cidade

é,

neste

contexto,

extremamente

forte

ao

ponto

de

tornar credível este olhar sobre o Espaço Público. Hannah Arendt

(2001)

prolongou

estas

reflexões

de

Habermas

introduzindo a ideia de esfera pública colada à de polis: “O termo público denota dois fenómenos intimamente relacionados mas não completamente idênticos. Significa, em primeiro lugar, que tudo o que vem a público pode ser visto e ouvido por todos e tem maior divulgação possível. (...) Em segundo lugar, o termo «público» significa o próprio mundo, na medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele” (pp. 64-66). Adoptando esta visão de Espaço Público como espaço da comunicação, levanta-se a questão da relação dos indivíduos 34

Espaço comum, Espaço público e Espaço político.

[115]

com os outros e mais especificamente com quem quer ou não estabelecer a comunicação. Isto força ao desenvolvimento de um conjunto

de

estratégias

comunicacionais

inevitáveis

também

hoje na fruição dos espaços públicos. Erving Goffman (1993) discute

aprofundadamente

enquanto

obrigação

sensíveis

e

a

social,

penetrantes

encenação em

da

função

sobre

a

das

vida

quotidiana

suas

observações

estruturação

das

relações

comunicação

que

poderia

humanas. A

ênfase

finalmente

depositada

na

desterritorializar-se

a

partir

das

novas

modalidades de generalização e divulgação da informação, com uma

ou

duas

vias,

encontrou

um

poderoso

aliado

quando

Le

Corbusier, em 1929, declarou a morte da rua como metáfora para uma nova cidade na qual não poderia coexistir a promiscuidade de usos e vocações que desde sempre parecia marcar todos os espaços

urbanos.

cidade

social

e

O

empobrecimento

politicamente

das

sociabilidades,

normalizada

e

uma

controlada,

a

menor densidade dos contactos pessoais e a multiplicação de novos

dispositivos,

colectivos

privados,

que

propiciam

a

tribalização da fruição da cidade foi a consequência, que hoje sofre contestação mas que ainda continua a aprofundar-se. Na mesma linha, surge com especial relevância para o caso

em

análise

a

disciplina

do

Direito.

Sendo

o

EPU

do

domínio público como o próprio nome já parece adiantar, ele não é possível de apropriação/delimitação definitiva pelo que a regulação do seu uso é enquadrada pelas leis gerais. A aplicação destas regras não tem sido de molde a garantir o seu respeito e dignidade, multiplicando-se as situações em que a presença

de

frequentadores

dos

EPU

gera

o

afastamento

de

outros potenciais utilizadores, remetendo-os progressivamente para os espaços colectivos privados, higienizados e sobretudo controlados. Há uma questão de direito que se coloca quando foi

posta

em

causa

a

capacidade

do

Estado

em

garantir

o

exercício da norma, mesmo considerando que se está perante um

[116]

momento

de

desocupação

dos

EPU

por

parte

dos

antigos

frequentadores. Como afirmou Laborinho Lúcio: “A questão está em saber se o que faltou foi a cultura da norma ou se, pelo contrário, a cultura da norma acabou por falhar e deixar livre o espaço para uma cultura da não-norma, do desvio” (Moreno: 2001; 25). A disciplina do Direito está aqui envolvida de uma forma inesperada. Ou melhor, de formas inesperadas, já que os planos de análise podem incidir

quer sobre a propriedade do

espaço colectivo e, portanto, sobre as regras a aplicar aos utilizadores. Também são estas que questionam a pertinência da multiplicação dos dispositivos de vigilância electrónica, já que o quadro legal em vigor considera que tal significa uma violação

das

estabelecidas

liberdades em

individuais

Portugal,

inibindo

constitucionalmente o

usufruto

livre

e

desinibido do EPU. As questões que se levantam são inúmeras, mas não deixa de ser verdade que a sua ocorrência nos espaços colectivos privados satisfaz

os seus utilizadores e até cativa uma maior

procura. Mas o âmago do problema situa-se no campo da pertença e da cidadania e isso só é possível de se sentir e exercer num espaço neutro e imparcial, não controlado de modo algum. O

ambiente

de

crise

simultâneo

pela

filosofia

Sociologia

completando

urbana

foi

política

esta

e

análise

pressentido

quase

da

comunicação

de

Hanna

em

e

a

Arendt

e

Habermas, consolidando as implicações das transformações do espaço

público

na

óptica

habermasiana

sobre

as

sociedade

urbanas e até, nalguns casos, sobre os seus prolongamentos espaciais na ausência de um espaço de reflexão oriundo da Ciências Geográficas. São clássicas as análises de Isaac Joseph em o “Passant considerable – Ensaio sobre a Dispersão do Espaço Público” (1984), de Chyntia Gorra-Gobin, Richard Sennet, Erving Gofman, mas em Portugal foi um terreno fértil primeiro para a Escola

[117]

de Sociologia de Coimbra, onde se destaca Carlos Fortuna com obras

como

“Cidades,

cultura

e

globalização”

ou

ainda

“Identidades, Percursos e Paisagens Culturais” e depois com Vítor Matias Ferreira no âmbito do Projecto Observa com ganhos de visibilidade a partir da publicação da revista Cidades do Centro de Estudos Territoriais (CET). No caso de Coimbra a preocupação ainda se situa no espaço abstracto da comunicação enquanto que para os investigadores do ISCTE o objecto da pesquisa

aproxima-se

claramente

da

Cidade

e

dos

Espaços

Públicos, fazendo-se a propósito uma oportuna distinção entre espaço isto

público é,

(asserção

sublinhando

a

habermasiana) separação

e

espaços

entre

o

públicos,

exercício

da

comunicação e o tradicional espaço da comunicação. Aliás, a percepção de sentidos diversos para o singular e plural da expressão Espaço Público já tinha sido também referida por Claval (in Gorra-Gobin: 2001). De facto o grande problema que a crise comunicacional implicou (já que a explosão da comunicação não corresponde a melhor comunicação) situa-se nas dificuldades levantadas às práticas de sociabilidade e à experiência do espaço. Todos estes trabalhos, que têm que acentuado a ruptura passível de ser reconhecida na quebra de valores tradicionais do

meio

urbano,

têm

manifestado

claras

dificuldades

na

percepção do momento seguinte e na construção de cenários prospectivos

onde

a

comunicação

em

espaço

público

se

vai

tornando residual, interiorizando-se e desterritorializandose. Por outro lado, o estudo das representações, que aparenta ser

um

outro

campo,

é

contributivo

para

a

constatação

da

sensação de perda de qualidade de vida urbana alicerçada no crescente afastamento entre o que se entende como padrões de vida urbanos adequados e os que são vivenciados de facto. É flagrante a referência aos espaços públicos em geral e aos espaços verdes urbanos em particular, como sinal de qualidade, mas também a sua baixa frequência no quotidiano.

[118]

Talvez o verdadeiro percursor dos estudos sociológicos sobre

Espaços

Públicos,

e

numa

lógica

muito

próxima

da

adoptada nesta tese tenha sido WHYTE que, em 1980, elaborou a obra “The Social Life of Small Urban Spaces” e que foi também produzido contido

em

documentário.

nestas

linhas

O

espírito

iniciais:

deste

“This

book

trabalho is

about

está city

spaces, why some work for people, and some do not, and what the practical lessons may be. It is a by-product of first-hand observation” (p.10). O cruzamento entre os elementos físicos e humanos foram centrais

nesta

abordagem,

que

aponta

resultados

concretos

sobre os efeitos das características do mobiliário urbano, designadamente cadeiras e mesas, das sombras, de elementos de composição diversas, como muros e escadas, a presença dos “indesejáveis” etc., sobre a frequência e o tipo de uso que é feito dos pequenos espaços públicos urbanos.

4.2. Urbanismo, arquitectura e paisagismo Construir

e

transformar

espaços

foi

e

será

sempre

a

preocupação central da arquitectura, tratem-se eles de uma habitação ou de uma cidade. Todavia, não o fazem, de modo independente político

e

concreto

ao

cidadania,

mas

em

cultural espaço mas

concordância dominante. público

também

de

com

o

Quando

estão

em

meio

nos

referimos

em

valores

de

financeira

do

causa

rentabilidade

económico,

território ou ainda de afirmação política. Daí que perante estas “balizas” o arquitecto pode ser afectado por uma dupla personalidade que decorre, por um lado, da

auto-representação

dos

EPU,

enquanto

um

conjunto

de

princípios, imagens e valores e, por outro, da imposição dos programas

de

trabalho

feitas

por

entidades

públicas

e

privadas.

[119]

As reflexões sobre a arquitectura dos Espaços Públicos têm vindo a multiplicar-se, à semelhança, aliás, do que sucede noutros campos do conhecimento. Umas vezes mais próximas da globalidade dos actores, outras mais narcísicas e orientadas para

a

produção

de

espaços

singulares

e

objectos

de

contemplação. No campo do urbanismo, interessa não esquecer o papel central na crítica à cidade moderna e ao empobrecimento da vida na cidade por efeito do esvaziamento da vida pública, interiorização das práticas sociais, aumento do sentimento de insegurança que foi protagonizado por Jane Jacobs (1961) na célebrizada obra Live and Death of Great Americans Cities. As referências generalizadas ao New Urbanism nos EUA e emergentes na Europa decorrem da reacção concreta a essas críticas. No fundo trata-se de um velho Novo Urbanismo, de retorno aos valores

tradicionais

defende

esta

manutenção

e

postura,

dos

à se

valores

cidade

plurifuncional.



assim,

garantirá

a

animação

urbana

essenciais

à

cidade

assentes

e

a em

intensas práticas de sociabilidade, de encontro e de aceitação da diferença. Mais

que

retratar

dinamismos,

interessa

conhecer

as

formas de intervenção na actualidade, já que se tornou clara a mudança

verificada

na

concepção

dos

EPU.

Com

efeito,

das

soluções tipificadas e estereotipadas da cidade moderna passase progressivamente para espaços concebidos de acordo com as circunstâncias

do

tempo

e

modo

associadas

ao

lugar

da

intervenção. Esta mudança no tratamento dos espaços privados tornou-se

mais

aliciante

para

os

urbanista,

arquitectos,

paisagistas, permitindo a estes profissionais pensar a cidade na perspectiva de “fora para dentro”, isto é, do exterior (EPU)

para

alguns Teixeira

dos

o

interior

resultados

refere

fragmentação

que

(fachada, das

entrevistas

“depois

generalizada

edifício).

do

das espaço

Utilizando

efectuadas,

periferias, torna-se



Manuel

subúrbios, fundamental

voltarmos a dar muita atenção aos espaços públicos e torná-los

[120]

pontos

de

ancoragem

da

vida

em

comum

que

é

a

cidade”

(entrevista, 2002). Para Manuel Salgado este novo momento corresponde a uma reconquista

que

intervenções

de



teve

escala

visibilidade

porque

significativa,

se

tratou

designadamente

de

com

a

requalificação que tem vindo a afectar a zona ribeirinha de Lisboa (Docas, Expo). Intervenções como a Praça das Flores, Jardim da Parada são também relevantes, mas não apresentam a escala da reconquista e, por isso, não lhe parece exercer impactes tão claros sobre as transformações dos EPU. Não deixa também, por outro lado, de ser interessante verificar que a ênfase, quando se trata de responder às razões da propalada crise do Espaço Público Urbano, vai na íntegra para

os

problemas

físicos

relacionados

com

a

difícil

coexistência entre automóvel e peão. Como diz Manuel Salgado “As

dinâmicas

das

intervenções,

cada

vez

mais

pesadas

de

recuperação dos EPU e, principalmente, de procurar resolução para

as

dificuldades,

resultam,

no

fundo,

do

conflito

automóvel/peão, que está na base do que foi a destruição do espaço público desde o início deste século, século passado e que está na base também do que é a reconquista do espaço público” (entrevista, 2002). A

todo

junta-se

a

este

movimento

arquitectura

pressentido

paisagista,

em

que

torno

tem

dos

vindo

EPU

a

ser

responsabilizada de modo crescente pela concepção dos EPU, atendendo componente

à

valorização mineral.

sustentabilidade

da

Os

obrigam

componente

paradigmas à

vegetal

ecológicos

transplantação

da

face

à

e

de

natureza

na

Cidade, privilegiando os EPU como locais centrais para esse exercício. Para esta mudança contribui também, mais uma vez, as escalas de intervenção, já que os parques verdes urbanos, frentes de água, frentes marítimas, estruturas verdes urbanas

[121]

e metropolitanas, corredores verdes constituem amplitudes de intervenção mais adequadas à acção do paisagismo. A maior dificuldade que esta disciplina parece revelar é a aproximação aos desejos dos utilizadores dos espaços embora também

estes

profissionais

cumpram

programas,

por

vezes

apertados e cheios de constrangimentos, impostos por entidades públicas e privadas. Os trabalhos produzidos vão, de alguma forma, no mesmo sentido que o da arquitectura strictu sensu valorizando crescentemente a componente estética e de desenho urbano,

marginalizando

os

elementos

que

podem

promover

a

atracção e a estadia de um maior número de utilizadores de condição

social

baixa

ou

média.

O

esvaziamento

de

muitos

destes equipamentos constitui uma ilustração dolorosa destes insucessos. Figura 5 - O humor nos olhares sobre os EPU

Fonte: Recipiente de E-mail

[122]

As

representações

que

cada

um

dos

actores

faz

dos

Espaços Públicos são marcadas por várias oposições entre as quais

surgem

com

maior

destaque

as

concepções

estéticas/artísticas face às funcionais e de uso, implicando consequências

no

conforto,

funcionalidade

do

mobiliário

urbano, etc. Bassand (2001) vê nestas oposições uma demarcação sustentada entre o utilizador e o profissional esquematizada da seguinte forma: Figura 6 – Oposição nas representações dos EPU

Habitantes/ utilizadores

Arquitectos/ Designers

Actores

Termos da representação

Estética e artística

Funcional

Estética contemporânea

Património

Mineral

Vegetal Dedicada aos cidadãos/ utilizsdores/ Residentes

Orientada para os turistas

4.3. História O

campo

da

História,

mesmo

quando

se

trata

da

problemática do Espaço Público Urbano, é difuso e gerador de enormes

dificuldades

clarificadores

do

em

olhar

encontrar da

pontos

disciplina

de

sobre

ancoragem o

tema.

A

sistematização possível remete os contributos desta ciência para

dois

domínios:

História

do

Urbanismo

e

História

das

Sociabilidades (ou se se quiser do Quotidiano). Esta distinção

[123]

não é inibidora, todavia, de situações de maior indefinição como

as

que

mentalidades

sucedem e

das

quando

ideias

se

trata

políticas

ou

da

evolução

ainda

da

das

História

Económica. Atendendo

a

que

o

urbanismo

permite

integrar

ainda

outros olhares, opta-se neste caso pelo centramento na ideia de História como descritora e bengala para a compreensão das práticas dos espaços públicos nas sociedades urbanas, fixando as suas maiores preocupações sobretudo na Cidade pós-revolução industrial. A contaminação a que se aludiu entre a política e EPU fica expressa nas abordagens clássicas às Cidade Grega e Romana

onde

pontificam

a

Àgora

e

o

Forum

como

pontos

aglutinadores da vida política e social já retratadas nos pontos anteriores. Fixando-nos, em definitivo, no que a História nos pode revelar sobre a evolução das práticas de sociabilidade, as referências encontradas andam na órbita da ocupação dos tempos livres,

na

inovação

tecnológica

associada

à

Cidade,

dos

processos de comunicação, da afirmação política e dos usos dos espaços públicos. Por

várias

vezes

iremos

aludir

à

importância

da

disponibilidade de tempo livre para poder usufruir da Cidade e dos seus espaços de uso colectivo. A revolução industrial iniciou também desenvolvimentos sentidos nesta área onde a pouco a pouco, depois de algumas lutas e muitos insucessos, foi surgindo um tempo vazio na vida dos operários em lugar da clássica flexibilidade que marcava o tempo dos artesãos e camponeses, em função da sua lentidão, imprevisibilidade e maleabilidade. A exigência da produtividade foi substituindo este tempo por um outro, ordenado, calculado, medido, sem margem para incertezas.

[124]

Com esta reformulação dos ritmos e da segmentação dos tempos de trabalho ganha corpo uma nova forma de uso da cidade e dos seus espaços, mas também de outros espaços valorizados para

a

prática

do

lazer.

A

par

desta

realidade

surgem

iniciativas visando reprimir o que se entendia como formas abusivas

e

imorais

da

utilização

do

tempo,

impondo-se

um

controle e repressão de actividades anárquicas e impregnadas pela ociosidade: “A regulamentação das praças, dos parques e outros

espaços

públicos,

a

proibição

dos

combates

entre

animais, a vigilância do boxe, a da venda de bebidas andam então a par da multiplicação dos campos de jogos destinados a moralizar os bandos juvenis. Nesses meios manifestam-se, em simultâneo, uma viva antipatia pela ociosidade e um forte desejo de modelar o lazer do outro, considerado inferior, naturalmente sujeito à imoralidade, à desordem dos instintos, à pulsão imediata e ao risco da miséria” (Corbin: 2001; 9). Aliás,

a

obsessão

normalizadora

e

disciplinadora

do

período moderno iniciado com a expansão da cidade industrial teve um tratamento adequado por Foucault35, quando se referia às inovadoras formas de vigilância dos condenados, recorrendo ao panoptismo36, e à dissimulação dos doentes psiquiátricos em instituições

especializadas,

subtraindo-os

ao

convívio

da

“normalidade” exterior.

35

Ver, por exemplo, as suas obras Vigiar e Punir (ed. Original, 1975) e Microfísica do Poder (ed. Original, 1979) 36 O panóptico gera o efeito supremo de criar um estado consciente e permanente de visibilidade do poder, exercido por uma vigilância permanente que é, como afirma, Foucault, ao mesmo tempo excessiva e limitada, pois o essencial é que o indivíduo se saiba vigiado e limitado porque pode não estar a sê-lo. O inventor do panoptismo foi, de facto, Bentham com a revolucionária e metafórica arquitectura prisional: Sendo que o poder deve ser visível e inverificável, o visível deve resultar do prisioneiro ter diante dos olhos a alta silhueta da torre central de onde é observado e inverificável porque nunca poderá saber se está ou não de facto a ser observado. Cria-se, assim, um dispositivo poderoso de normalização dos comportamentos que condiciona a nossa vida também no espaço público. Aliás, as câmaras de vigilância electrónica, ligadas ou desligadas, exercem exactamente o mesmo efeito.

[125]

É inevitável a transposição destas teses quer para a cidade moderna quer para a cidade que continua a ser feita, onde se multiplicam e sofisticam os dispositivos de controle e vigilância em nome da segurança pública e do Estado. Hannah Arendt é clara a este respeito quando afirma: “Em vez de acção, a sociedade espera de cada um dos seus membros um certo tipo de comportamento, impondo inúmeras e variadas regras, todas tendentes a «normalizar» os seus membros, a fazê-los «comportarem-se», a abolir a acção espontânea ou a reacção inusitada. Regressando também

ao

grande

Espaço

sedução

Público,

pela

a

História

descrição

do

demonstrou terreno

da

comunicação, dado que esta era matriz fundamental das relações de sociabilidade que se iam construindo. Eram aliás vitais para a partilha de informações de natureza social, política, económica, cultural, etc., só possível de compreender pelas tiragens limitadas dos jornais e pela inexistência de outros meio

de

veicular

verdadeira

a

opinião

informação.

pública

para

A

uma

transferência opinião

desta

crescentemente

publicada haveria de ser criticada por Habermas, que também procurou

tecer

as

consequências

e

efeitos

dessas

transformações na mudança das modalidades de manipulação das massas. Neste contexto, a praça e a rua são, de longe, os EPU de referência Bonifácio

da

cidade

(2002)

obviamente.

“A

Porque

moderna Praça



como é

vários

o

não

deixou

espaço

tipos

por

de

de

referir

excelência,

praças.

Se

nós

remontarmos à cidade grega ou romana, que no fundo é aquela que

influencia

a

nossa

cidade,

a

Praça

é

a

Pólis

grega,

fundamentalmente, que é a praça política, onde as pessoas se reúnem

para

fazer

política,

a

assembleia

popular,

nalguns

casos, noutros não tem é a própria área onde se faz tudo e que pode servir, simultaneamente, até como praça comercial. Em Roma é um pouco a mesma coisa, o Fórum é também de algum modo

[126]

a praça que junta tudo é a praça principal da cidade. Tem a actividade política, religiosa, onde há o convívio social, até cultural”. Todavia,

esta

simples

constatação

implicava

também

crescentes inovações técnicas no ambiente urbano propiciadoras de uma melhor fruição da cidade. Entre elas destaca-se, com pertinência, a conquista da noite pela iluminação urbana. Em primeiro

lugar,

esta

conquista

associa-se

à

lógica



sistematizada por Foucault no sentido da procura da ordem e transparência agora aplicada à noite que sempre escapou a esta fúria normalizadora. Depois depara-se uma transmutação da vida apelando e seduzindo apara viver a noite e o privado. Com o advento

da

electricidade

os

espectáculos

interiores

vão

ganhando espaço e sedução subtraindo cada vez mais adeptos ao espaço público (teatro, café-concerto, cinema). Com

a

alfabetização

progressiva

os

tempos

livres

vão

também caminhando para a individualização em torno de novos objectos agora tornados mais populares como os livros. O

esvaziamento

destas

práticas

de

sociabilidade

encontram justificação nos avanços da técnica que sobretudo modificaram

as

práticas

de

sociabilização

e

tornaram

desnecessário os contactos e a proximidade entre indivíduos para comunicar e para informar. O advento de inovadoras formas de divulgação da informação esvaziou de sentido muitas das práticas anteriores. 4.4. Síntese Em

jeito

referências especialistas profissional

de

conclusão,

anteriores, do a

espaço

uma

foram público

prática

e

para

aferir

efectuadas e

que

académica,

as

breves

entrevistas

acumulam

a

a

prática

procurando-se

assim

garantir que nos entrevistados se possa reconhecer uma ponte

[127]

entre a reflexão e a prática. Serviram também para confirmar os olhares diferentes sobre os EPU. As áreas privilegiadas foram: ►

Arquitectura,

com

entrevistas

a

Manuel

Teixeira,

professor responsável pelo curso de arquitectura do ISCTE e a Manuel Salgado, arquitecto responsável pelo

Atelier

RISCO

e

docente

do

curso

de

arquitectura do IST; ►

História,

com

professor

entrevista

Catedrático

na

a

Horácio

Universidade

Bonifácio, Lusíada

em

História Urbana e História de Arte; ►

Arquitectura

Paisagista,

com

entrevista

a

Paulo

Monteiro, profissional do paisagismo e docente na Universidade de Évora; ►

Geografia,

com

entrevista

a

João

Ferrão,

Investigador no ICS, docente em diversos cursos de Mestrado

e

consultor

em

equipas

de

planeamento

urbano, estratégico e sectorial.

As

entrevistas,

que

se

apresentam

em

anexo,

serão

tratadas no seu conteúdo de acordo com duas preocupações: ►

quantitativa, medindo a ocorrência de determinados conceitos em cada uma das entrevistas e, por essa via, acentuar o olhar de cada disciplina sobre os EPU;



qualitativa,

sublinhando

e

comparando

ideias

fundamentais de cada entrevistado e estabelecendo pontes ou rupturas entre si.

[128]

Este trabalho é possível por duas ordens de razão: o guião

utilizado

embora

a

foi

idêntico

para

todos

pudesse

por

vezes

conversa

os

entrevistados,

tomar

rumos

de

oportunidade de acordo com as considerações do entrevistado; as

entrevistas

transcritas. reprodução

foram

Este

fiel

gravadas

processo

das

para

garantiu

opiniões

posteriormente que

recolhidas

e

fosse que

serem

feita

se

a

pudesse

tratar quantitativamente o seu conteúdo. Atendendo à dimensão diferenciada de cada entrevista, não era possível basear esta análise no registo absoluto dos termos que nos pareciam pertinentes para os vários domínios (cidadania,

comunicação,

complementaridades),

pois

elementos que

a

de

ocorrência

de

composição, determinadas

ideias num universo de palavras menor terá certamente mais relevância que noutro com mais palavras. Daí que se tenha optado por criar a relação palavra submetida a análise por cada 1000 palavras. Os

domínios

e

os

conceitos

inicialmente

considerados

tiveram após a avaliação quantitativa um reajuste eliminando os

que

nunca

foram

referidos.

A

matriz

considerada

foi

a

apresentada no quadro seguinte.

[129]

Quadro 4 - Domínios e conceitos fixados para a análise quantitativa das entrevistas Elementos de

Cidadania

Comunicação

Cidadania

Comunicação

Alameda

Acessibilidade

Diferença

Conversa

Arquitectura

Acessibilidades

Diferente

Democracia

Arte

Acessos

Encontro

Diálogo

Bancos

Automóveis

EPU

Opinião

Calçada

Automóvel

Espaço Público

Jornais

Cidade

Cães

Espaços Públicos

Partilha

Desenho

Câmaras

Exclusão

Poder

Design

Cão

Gente

Política

Equipamentos

Centro Comercial

Idosos

Políticos

Espaços Verdes

Controle

Imigrantes

Rádio

Iluminação

Degradação

Indivíduo

Televisão

Jardins

Estacionamento

Indivíduos

Troca

Jardim

Fórum

Integração

Largo

Gestão

Jovens

Miradouro

Graffiti

Mulheres

Mobiliário

Higiene

Passear

Parque

Insegurança

Práticas

Parques

Limpeza

Prostituição

Passeios

Manutenção

Sem-abrigo

Piso

Porcaria

Sociabilidade

Praças

Segurança

Social

Praça

Sujidade

Toxicodependência

Praceta

Transportes

Toxicodependentes

Rossio

Vigilância

Composição

Complementaridades

Rua Ruas Urbanismo

[130]

Numa análise por domínios constata-se uma diferenciação nas

ocorrências

dos

conceitos

por

entrevistado,

ilustrando

desde logo a perspectiva especializada que leva à valorização e

desvalorização

de

determinadas

referências.

Nas

diversas

hipóteses e abordagem seleccionou-se a que põe em confronto todos

os

entrevistados

perante

cada

um

dos

conceitos

permitindo desde logo estabelecer de modo directo valorações diferenciadas. Alguns termos que podem ser associados a cidadania e considerados

na

matriz

original,

foram

deixados

cair

no

tratamento das entrevistas dada a sua ausência no discurso dos entrevistados.

Assim,

mulheres,

prostituição,

imigrantes,

exclusão, inclusão, nomeadamente, foram preteridos por outros (cf. Quadro 5). Restaram

onze

palavras

que

foram

avaliadas

na

sua

ocorrência por permilagem no texto discursivo da entrevista. Arquitectura

e

Geografia

registaram

a

maior

densidade

de

referências se atendermos que Espaços Públicos teve um peso muito

elevado

na

entrevista

ao

paisagista,

mas

sem

correspondência com outros termos do mesmo domínio. Mais

de

26

referências

por

cada

mil

ocorreram

no

discurso de Manuel Salgado e quase 17 por mil na entrevista de João

Ferrão,

relativos

à

revelando cidadania

clara na

sua

preocupação articulação

com com

os os

temas espaços

públicos urbanos. A determinado passo da entrevista refere SALGADO, sublinhando a necessidade e a actualidade do Espaço Público na Cidade: “(...)O que eu penso é que os conceitos de espaço público vão evoluindo, e acho que as pessoas utilizam mais o espaço público agora. Eu não sei quantificar isto, mas tenho a noção que quando eu tinha 20 anos se utilizava menos o espaço público do que se utiliza agora. Hoje, há muitas formas de se utilizar o espaço público. Por exemplo, a rua por trás da minha, onde há duas Associações populares, está pejada de

[131]

gente, novos, velhos, uns sentados no chão, encostados aos carros, a beber cerveja, a conversar, a discutir futebol, isto é uma clara utilização do espaço público. A Madragoa está cheia de gente a qualquer hora do dia, as vizinhas a falarem, isso não é utilização do espaço público?(...)”. Como ilustração da valorização atribuída por João Ferrão e pela Geografia à dimensão cidadania é pertinente extrair o excerto seguinte da sua entrevista: “(...)A sociabilidade é que

marca

a

diferença

entre

o

género

humano

e

os

outros

géneros todos, também tem as suas sociabilidades mas nós temos formas de sociabilidade muito mais complexas. Ora, as cidades em

geral

sempre

foram

e

particularmente favorável à

serão

com

certeza

um

contexto

complexidade e à diversidade das

sociabilidades e ao longo da história isso verificou-se muito bem a visão moderna, digamos, que tinha por grande objectivo democratizar aquilo que durante muito tempo estava acessível a um grupo muito pequeno”. Aliás foi este entrevistado o único a fazer alusão clara ao termo cidadania. Não

deixa

de

ser

importante

assinalar

que

o

Horácio

Bonifácio (historiador) foi não só o que menos valorizou este domínio em termos de densidade (menor repetição destes termos) como

em

diversidade

estender

as

admissível

e

objectivo

era

(apenas

4

conclusões

destes

reconhecer

as

apenas

termos

11).

resultados

suas

discutir

em

para

limitações,

os

EPU

de

Convirá

não

além

do

visto

que

o

acordo

com

a

experiência profissional e académica do entrevistado. Como se verá

adiante,

Horácio

Bonifácio

dará

destaque

sobretudo

a

outras áreas mais próximas dos seus centros de interesse.

[132]

Quadro 5 - Matriz relativa ao domínio Cidadania (‰) Domínio

Conceitos

Manuel Salgado

Manuel

Horácio

Paulo

João

Teixeira Bonifácio Monteiro Ferrão

Cidadania

0,00

0,00

0,00

0,00

0,44

Diferença

4,15

2,19

1,69

0,00

3,80

Encontro

0,00

0,00

0,00

0,00

0,44

Públicos

18,85

7,46

0,00

15,29

8,48

Gente

1,88

3,51

3,66

0,00

2,63

Idosos

0,00

0,00

0,00

0,00

0,44

Integração

0,38

0,00

0,00

0,00

0,15

Jovens

0,00

0,00

0,00

1,27

0,15

Passear

0,38

0,66

1,97

1,27

0,00

Sem-abrigo

0,00

0,00

0,28

0,00

0,00

Social

0,38

0,44

2,53

1,27

0,44

26,02

14,26

10,13

19,1

16,97

Espaços

Cidadania

Total

Fonte: Análise de conteúdo de entrevistas

Este antever

primeiro o

quadro

carácter

permite

igualmente

“globalizante”

ou

e

desde



abrangente

das

disciplinas de Arquitectura e Geografia sobre a História e o Paisagismo. Com excepção de dois termos em Geografia e cinco em

Arquitectura

existe

uma

fraca

aderência

disciplinar

ao

domínio da cidadania.

[133]

Quadro 6 - Matriz relativa ao domínio Comunicação (‰) Domínio

Manuel Salgado 0,00 0,38 0,38 0,00 0,00 0,00 0,38 0,00 0,00 1,14

Conceitos Comunicação Conversa Opinião Jornais Partilha Poder Política Rádio Troca

Comunicação

Total

Manuel Horácio Paulo João Teixeira Bonifácio Monteiro Ferrão 0,00 0,00 0,00 1,32 0,00 2,53 0,00 0,00 0,00 0,28 0,00 0,00 0,22 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00 0,88 0,22 0,00 0,00 0,29 0,00 2,81 0,00 0,15 0,00 0,00 0,00 0,15 0,00 0,28 0,00 0,00 0,44 5,9 0,0 2,79

Fonte: Análise de conteúdo de entrevistas

Em

paralelo

generalizada continuam

o

a

com

a

cidadania,

protagonismo

fazê-lo

(embora

que

é

os

menos

aceite

EPU

de

forma

desempenharam

eficazmente)

comunicacional. Na ausência dos dispositivos

no

e

campo

eléctricos e

electrónicos, da generalização da imprensa, rádio e televisão, o contacto interpessoal era incontornável para a satisfação das necessidades informativas, para os exercícios de reflexão política e cultural para estabelecer a discussão e troca de ideias.

O

esvaziamento

dos

EPU

destas

funções

por

transferência para outros meios não significa que não continua associado ao contacto e à partilha. Os

termos

comunicacional

seleccionados através

de

pretendem

ideias

com

acentuar

o

comunicação,

domínio opinião,

política e partilha. De modo geral, este domínio foi o menos referenciado, consolidando

a

ideia

de

progressivo

abandono

desta

função

original desde a Àgora Grega e demonstrando que ele agora se encontra noutras instâncias. É na História que se observa maior preocupação em assinalar a vertente comunicacional nos EPU, com um total de quase 6‰ de referências, sobretudo devido ao

emprego

(2,81‰)

das

talvez

palavras os

pilares

“conversa”

(2,53‰)

estruturantes

e

neste

“política” vector

de

[134]

especialização dos EPU. Os restantes entrevistados apenas se referiram

residualmente

às

palavras

conotadas

com

o

acto

comunicativo. Como afirmou Bonifácio: “(...) A rua não é só um local de passagem, as pessoas vão de um sítio ao outro através da rua, também é um local de paragem. Tem uma função social, política, porque estamos a falar da cidade política que mantém até hoje as suas características, quando as pessoas na rua se reúnem para discutir os seus problemas(...)”. A arquitectura e o paisagismo, sobretudo este, passaram ao

lado

da

comunicação

nos

EPU,

levantando-se

a

legítima

questão quanto à primeira se é possível encarar pacificamente posturas

diferenciadas

sobre

Cidadania

e

Comunicação.

Por

outras palavras, os resultados inversos não poderiam indiciar a falência desta proposta metodológica? A comunicação social é,

a

nosso

ver,

fornecedora

de

informação

política,

não

facilitando a interacção entre o emissor e o receptor, mas cumpre papel fundamental para o funcionamento da sociedade e sobretudo

contribui

para

a

sua

coesão

ao

tornar

comuns

determinadas preocupações e ajudar na fiscalização da acção política.

Se

ela

não

se

verificar

nos

EPU

dificilmente

encontra outro terreno ajustado à satisfação desta função. Pelo

contrário,

sentido

lato,

a

comunicação

pode

ser

que

envolva

encontrada

e

a

política,

ampliada

em

noutros

contextos. Centrando

agora

a

nossa

atenção

noutra

vertente

da

análise do conteúdo das entrevistas (cf. Quadro ....), os elementos de composição pretendem reunir as referências quer às designações mais específicas dos EPU quer a elementos que deles

fazem

parte.

Surgem

assim,

lado

a

lado,

praças

e

mobiliário, ruas e desenho, por exemplo. A sua vastidão torna impossível a sua não referência, pelo que é o domínio onde se regista um maior equilíbrio. Por outro

lado,

mesmo

neste

quadro

de

equilíbrio

é

possível

[135]

destacar o paisagismo pelo dobro da densidade de arquitectura e de quase cinco vezes mais que a Geografia. Percebe-se também que no seu interior tenham sido ideias como Desenho, Cidade, Praças e Ruas a concentrar o fôlego discursivo. Quadro 7 - Matriz relativa ao domínio Elementos de Composição Domínio

Conceitos Arquitectura Arte Cidade Desenho Espaços Verdes Jardins Largo Mobiliário Parques Passeios Praças Rossio Ruas Urbanismo

Elementos de composição

Total

Manuel Salgado 1,13 2,26 4,90 5,28

Manuel Horácio Paulo João Teixeira Bonifácio Monteiro Ferrão 0,66 0,56 0,00 0,00 1,76 0,28 1,27 1,02 8,56 12,95 6,37 5,12 0,88 0,00 7,64 1,02

0,00 3,02 0,00 0,38 0,00 0,38 3,39 0,00 4,15 0,38 25,27

0,00 0,66 0,00 0,44 1,10 0,00 4,39 1,97 4,83 0,00 25,25

0,00 0,56 0,28 0,56 0,00 0,00 13,51 0,00 9,57 0,00 38,27

0,00 5,10 6,37 0,00 5,10 0,00 6,37 0,00 10,19 0,00 48,41

0,15 1,90 0,00 0,29 0,15 0,00 0,58 0,00 0,88 0,00 11,11

Fonte: Análise de conteúdo de entrevistas

Já para João Ferrão a conclusão deve ser inversa. Com 11,11‰

não deixa de ser reveladora a frase em que este

investigador enuncia que “(...)o grande objectivo dos espaços públicos é estimular as sociabilidades, ou seja, ouvir a troca de

informação,

partilha,

a

a

comunicação,

criatividade,

o

conhecimento

tudo

quanto

recíproco, é

a

colectivo”

(Entrevista, 2002). Finalmente, no último domínio considerado e que trazem elementos relevantes para o capítulo das amenidades dos EPU ou para os seus problemas, é o paisagismo que se destaca na sua denúncia seguida à distância pela Arquitectura e Geografia.

[136]

Quadro 8 - Matriz relativa ao domínio Complementaridades Domínio

Conceitos Acessibilidade Automóveis Centro Comercial Gestão Higiene Manutenção Segurança Vigilância

Complementaridades

Total

Manuel Salgado 1,13 1,13 0,38 0,00 0,00 0,00 0,00 0,38 3,02

Manuel Teixeira 0,00 0,44 0,66 0,22 0,44 0,00 0,88 0,22 2,86

Horácio Bonifácio 0,00 0,00 1,97 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00 1,97

Paulo Monteiro 0,00 1,27 1,27 0,00 2,55 2,55 0,00 1,27 8,91

João Ferrão 0,29 0,15 0,88 1,46 0,00 0,00 0,15 0,00 2,93

Fonte: Análise de conteúdo de entrevistas

O canibalismo praticado pelo automóvel sobre os EPU e os problemas suscitados pela higiene e segurança são centrais no discurso da Arquitectura Paisagista, discutidos na perspectiva das limitações que afectam o acesso e usufruto destes espaços. Basicamente são também estes os termos em que os Arquitectos entrevistados se referem às complementaridades que envolvem a utilização

e

concepção

dos

EPU.

Nas

palavras

de

Manuel

Teixeira: “(...)é óbvio que as pessoas não gostam de estar em sítios sujos, é óbvio que as pessoas gostam de estar em sítios aprazíveis e um espaço público onde não se passa nada à volta e estão uns tipos a dormir lá num canto não é muito agradável. É preciso que as pessoas vão para um espaço onde haja alguma coisa

para

fazer,

que

tenha

um

mínimo

de

limpeza,

a

tal

segurança que tenho a impressão que é mais ilusória do que real”. João Ferrão faz uma incursão ligeiramente distinta ao valorizar

a

necessidade

de

uma

maior

atenção

à

gestão

da

animação e da ocupação dos EPU: “(...)Com certeza um centro comercial está todo ele pensado, um espaço como a EXPO, está todo ele pensado. Entre estas duas situações que são extremas e um outro extremo clássico como um jardim normal e quem quiser

que



vá.



uma

margem

enorme

entre

situações

intermédias em que eu posso organizar, como se diz hoje gerir

[137]

a procura. Essa é a questão fundamental, como gerir a procura de espaços públicos? Porque a diferença entre espaços públicos públicos,

espaços

que

utilidade

pública

e

são

para

espaços

o

público

públicos

e

que

privados.

são

de

Espaços

públicos privados, se não ganharem dinheiro, paciência é o projecto

que

tinham,

faliu,

vão

para

outro.

Nos

Espaços

Públicos estão recursos públicos envolvidos e, portanto, para não haver má utilização dos recursos públicos, o mínimo que eu tenho de fazer é quando eu tenho que tornar o processo no projecto

conceber

e

depois

garantir

a

própria

gestão

da

procura. E aí é que é completamente novo(...)” (entrevista, 2002). Acreditamos que tenha ficado comprovado a diversidade dos

olhares

e

preocupações

que

formações

e

percursos

profissionais singulares estabelecem face ao entendimento e à intervenção nos EPU. Para a sua reanimação e inclusão adequada na reconfiguração física e social da cidade, são necessários múltiplas intervenções mas é

importante que de todos estes

esforços contem com uma âncora, que pode ser uma nova ideia de cidade ou de sociedade urbana, capaz de fixar e articular todas estas visões para que não resulte num mero somatório de idiossincrasias sem relação com o utilizador e a cidade. Este justificar

trabalho melhor

de o

auscultação que

se

contribuiu

pretende

ainda

demonstrar

para

com

a

enunciação da Tese 1 relativa às diferenças de significado atribuído aos EPU (mais à frente tratar-se-á dos utilizadores em geral da cidade) e com a Tese 3 que remte para o apagamento dos EPU na cidade, que o renovado interesse por esta temática, exemplificado pelo discurso dos interlocutores, pode também ajudar a explicar.

[138]

5.

O percurso histórico do EPU

5.1. Introdução O protagonismo dos EPU no discurso urbanístico e até no universo

das

ciências

sociais

(comunicação,

sociologia,

filosofia), bem como a sensação da necessidade de proceder a múltiplos desdobramentos para os entender, remete-nos para uma oportuna actualidade do nosso sujeito de estudo mas é forçoso reconhecer que o papel simbólico e de representação política e cultural não tem um carácter contemporâneo, antes associandose ao que de mais intrínseco existe no processo milenar de construção urbana. Daí ser indispensável a apresentação de uma leitura diacrónica dos EPU, apoiada nas múltiplas análises do urbano feitas até hoje apesar de, nestas, os Espaços Públicos apenas mereceram breves alusões, com excepção à Àgora grega ou, por vezes, ao Fórum romano. Para além da dimensão urbana e simbólica que remete para a

intervenção

política,

acrescentam-se

ainda

algumas

notas

relativas à mentalidade e economia, verdadeiros motores das transformações societárias com implicações físicas, urbanas e de sociabilidade. A estrutura desta grelha de descrição ficará completa com os períodos históricos retidos para a análise, tentando descortinar,

em

mundos

vida

da

cada

um,

as

articulações

quotidiana

e,

entre

objectivo

os

vários

fundamental,

demonstrando a capacidade de ajustamento do urbano e das suas formas

a

toda

respectiva

a

carga

dinâmica

que

política, afecta

a

económica cidade.

e

Esses

social

e

momentos

coincidem, naturalmente, com aqueles que marcaram a Humanidade pela carga cultural carreada para o mundo urbano. Estas notas não permitem, todavia, que se conclua que os EPU são apenas função das actividades humanas que neles se desenvolvem,

pois

isso

seria

admitir

que

se

assumem

como

[139]

matriz neutra e imparcial, incapaz de condicionar o rumo do quotidiano

dos

seus

utilizadores.

Ao

inverso,

as

formas

urbanas, onde se incluem aquelas que mais enfaticamente têm merecido a nossa atenção, não sendo inventados, apagados ou reestruturados a partir dos poderes instituídos na cidade ora para lhe conferir maior funcionalidade – garante do exercício cabal das actividades aí sedeadas – ora para possibilitar com maior

segurança,

a

aplicação

das

regras

e

condutas

mais

ajustadas seguida pelo poder político vigente. A construção de uma ideia dinâmica dos EPU obtida a partir do diacronismo tem a vantagem de demonstrar a coerência histórica das preocupações actuais e de contrariar a ideia feita de que os EPU só entraram no discurso dos anos 70 confundindo

o

significante

com

o

seu

significado

ou,

por

outras palavras, a designação pelo conceito. Aquele podia não existir, mas este era o centro das preocupações para muitos.

5.2. Até ao período Romano Correndo-se histórico

o

demasiado

risco

de

este

exagerado,

constituir

não



em

um

tempo

intervalo como

em

conteúdos políticos e sociais, entre outros, não pode deixarse de lhe conferir uma certa unicidade. Os valores herdados pelos romanos aos gregos, sobretudo no plano da cultura, permitem esta opção com as implicações que ela tem na Cidade e no modo de a usufruir.

[140]

5.2.1.

Ambiente económico

5.2.1.1. A Cidade Ancestral Construir

uma

cidade

significa,

em

primeiro

lugar,

garantir um território com capacidade de produção alimentar; a presença de elites capazes de gerir a sobreprodução agrícola e pecuária;

criar

condições

para

a

sua

distribuição

e

comercialização; promover os apetrechos primários e acessórios à actividade primária mas também àqueles que a garantiam; convocarem

para

si

próprias

níveis

crescentes

de

poder

e

influência medidos pela posse da terra e por outras condições materiais. Obrigatório é também assegurar a emergência de um sistema

de

valores

ajustado

a

uma

maior

densidade

e

confinamento dos indivíduos que não conflitua com o sistema anterior, nómada ou aldeão, mas que os amplie e aprofunde. Mumford (1998; 38-39) regista assim estas mudanças: “(...) Quando aconteceu tudo isso, a arcaica cultura de aldeia cedeu lugar

à

civilização

urbana,

essa

peculiar

combinação

de

criatividade e controle, de expressão e repressão, de tensão e libertação, cuja manifestação exterior foi a cidade histórica. Em verdade, a partir das suas origens, a cidade pode ser descrita

como

armazenar

e

uma

estrutura

transmitir

os

especialmente bens

da

equipada

para

civilização

e

suficientemente condensada para admitir a quantidade máxima de facilidades

num

mínimo

de

espaço,

mas

também

capaz

de

um

alargamento estrutural que lhe permite encontrar um lugar que sirva de abrigo às necessidades mutáveis e às formas mais complexas de uma sociedade crescente e de sua herança social acumulada”. A

inicial

transição

do

contexto

camponês,

rural

ou

naturalizado para um ambiente urbano não poderia, contudo, deixar

de

reflectir

a

importação

de

valores

e

regras

de

funcionamento comunitários e, com isso, conferir um ambiente campestre ao espaço artificializado da Cidade.

[141]

Esta

segmentação

da

abordagem

histórica,

da

qual

se

pretende realçar a importância fulcral dos EPU em todos os momentos urbanos, não como uma forma casuística ou desenhada ao

sabor

dos

urbanismo,

conceitos

mas

como

a

sempre

dinâmicos

emergência

da

urbana

arte

de

e

do

formas

de

funcionamento da economia e da sociedade, pode conduzir a erros de interpretação os quais desde já se devem acautelar: não

é

pacífico

separar

a

economia

de

outras

dinâmicas

societárias designadamente o poder político (rei) e religioso, embora muitas vezes andem de mãos dadas. Só o desígnio acima repetido parece reforçar esta opção. Para

assentar

algumas

das

premissas

de

que

não

nos

poderemos afastar, recorre-mos à autoridade, mais uma vez, de Mumford37 e fica clara a sobreposição dos universos económicos e políticos: “(...) Na medida em que teve utilização quase militar,

a

armazenagem,

cidadela onde

o

primitiva produto

foi das

antes

um

pilhagens

ponto do

de

chefe,

principalmente cereais e possivelmente mulheres, estaria em segurança contra depredações puramente locais – em segurança, vale dizer, contra ataques por parte dos aldeões ressentidos. Aquele

que

controlasse

os

excedentes

agrícolas

anuais

exerceria poderes de vida e morte sobre seus vizinhos. Essa criação artificial de escassez em meio à crescente abundância natural

foi

um

primeiros

trunfos

característicos

da

nova

economia da exploração civilizada: uma economia profundamente contrária aos costumes da aldeia” (pp.44-45). A

distinção

cidade-campo

era

sublinhada,

em

primeiro

lugar, visualmente, através de um recinto muralhado onde as trocas interior-exterior se faziam com algum controlo, de modo a assegurar que os contactos se cingiam ao essencial e não se verificassem contaminações desnecessárias (entrada exagerada de novos residentes na urbe).

37

Idem, Ibidem, p. 44-45.

[142]

O celeiro, lugar de acumulação dos excedentes agrícolas e

a

área

que

lhe

servia

de

apoio,

constitui

a

primeira

demonstração da interferência do comércio na criação urbana e do seu papel estruturante no moldar da cidade física e da própria sociedade ao permitir ou desmobilizar os contactos interpessoais, as trocas de informação, a manifestação das classes mais importantes, etc. Outro espaço obrigatório era o mercado

(cf.

Figura

5)

que

poderia

não

coincidir

com

o

primeiro, de forma a garantir a menor perturbação entre os dois modos de vida crescentemente opostos – campo e cidade – que

haveria

de

chegar

por

vezes

ao

extremo

de

forçar

a

existência do Mercado no exterior de recinto muralhado: “(...) As aberturas na muralha da cidade eram tão cuidadosamente controladas como as comportas de um sistema de irrigação; e é conveniente lembrar que, excepto pela passagem diária, indo e voltando dos campos circundantes, apenas uma pequena parcela das

pessoas

entrava

na

cidade

por

barco

ou

caravana.

Na

verdade, até que a cidade afinal alcançou as dimensões de uma metrópole, não houve qualquer problema de congestionamento ao redor

dos

seus

comerciante

se

portões,

detivesse

fazendo ali,

com

com

que

estalagem,

a

população

estábulos

e

armazéns próprios, para constituir um bairro de mercadores e entreposto ou porto. Encontraremos as mesmas formações de novo na Idade Média.” (Mumford: 1998; 79). A dificuldade de destrinçar nos grandes marcos urbanos como foram Ur, Nippur, Uruk, Tebas, Heliopolis ou Assun toda a expressão

da

economia

e

os

seus

prolongamentos

na

cidade

decorre do afastamento temporal a que estamos obrigados e de onde

apenas

retivemos

poucos

documentos

avulsos

e

algumas

ruínas.

[143]

Figura 7 - Cidade de Nippur: A primeira planta urbana

Fonte:http://www.usc.edu/dept/LAS/religion/arcproj/war/MapAncientmapofNippur.jpg

Mas também não deixa de ser ilustrativo reconhecer que o berço da civilização urbana apresenta vincados laços com o campo e a sua produtividade ou com as acessibilidades que desde a invenção do barco assentavam nos rios que permitiam a navegabilidade (ao todo eram 1000 Km no Egipto e 1600 Km no vale

do

cidades

Indo) na

como

Palestina

resulta no

da

localização

interior

do

que

se

das

primeiras

convencionou

designar por Crescente Fértil (cujos limites se situam no Nilo Superior e no Eufrates Inferior). Finalmente, conclusivo

a

ainda

importância

fixados do

na

Mercado

cidade cuja

ancestral,

palavra

é

confunde

[144]

lugar

e

conceito,

situação

repetida

noutros

momentos

históricos: “Nas cidades onde temos os mais antigos registos, verificamos

que

as

funções

do

mercado



fornecimento,

armazenagem e distribuição – eram desempenhadas pelo templo. (...) Mais importante, afinal de contas, que a distribuição mais ampla dos produtos no mercado foi o desenvolvimento do sistema de comunicação que cresceu ao lado dele: o registo permanente

parece

ser,

a

princípio,

um

sub-produto

das

transações de mercado e a maior invenção, após as notações linguísticas

e

numéricas,

foi

a

invenção

do

alfabeto”

(Mumford: 1998; 84-85). A

especialização

dos

espaços,

de

acordo

não

com

a

transação mas com a produção, era também característica da cidade.

A

segmentação

do

trabalho

e

a

sua

divisão

urbana

aparecem recorrentemente nos textos legados pela história: “Na chamada Sátira das Profissões, que talvez remonte ao segundo milénio a.C. no Egipto, o autor menciona cerca de dezoito profissões, além da sua própria, a de escriba – mas omite as mais elevadas, o sacerdote, o soldado, o médico, o arquitecto, que devem ter sido respeitosamente encaradas como acima da crítica ou do denegrimento; pois, na verdade, era, em parte, para ter o privilégio de ver tais augustas figuras que dava valor

à

profissão

que

ele

próprio

seguia.

As

profissões

mencionadas variam do barbeiro ao embalsamador, do carpinteiro ao remendão e ao curtidor de couro; e, em cada caso, acentua suas

dificuldades,

suas

inabilidades

ocupacionais

e

deformidades, comparando-as com as oportunidades oferecidas pela

profissão

do

escriba,

que

vivia

tranquilamente

e

se

misturava com os grandes” (ibidem: idem; 119). Deveriam então surgir

ruas

e

eixos

de

circulação

especializados

em

determinadas actividades, no fundo, situação idêntica à que encontrámos

nas

nossas

cidades

e

que

ainda

hoje

estão

inscritos na toponímia (antiquários, douradores, sapateiros, etc.).

[145]

5.2.1.2.

Polis grega e cidade romana

A economia muda porque muda a envolvente e o quadro natural. Esta mudança compreende-se melhor quando se verifica que a civilização urbana se transfere dos vales e rios da Palestina para as margens acidentadas e rochosas da margem norte e ocidental do Mar Mediterrâneo, sublinhados por um clima

agreste

(seco

e

com

distribuição

assimétrica

da

precipitação). A centralidade do incontornável cereal perde-se e ganha protagonismo a oliveira, a vinha e o castanheiro, com prolongamentos

na

pecuária.

E

se

as

funções

urbanas

não

sofreram uma transição brusca de início, a organização da cidade

grega

comércio

e

“(...)

deve-se,

economia

Esses

fabricantes cidade;

e

fundamentalmente,

monetária.

comerciantes artífices,

depois

do

Retomando

e

os

VI,

novos

incremento

Mumford

banqueiros,

foram

século

ao

do

(ibidem)

apoiados

por

organizadores

ameaçaram

o

da

poder

dos

aristocratas originais e dos guerreiros. Contudo, o problema de incorporar esses novos grupos comerciais na comunidade, introduzindo-os activamente aos grandes espíritos da Grécia. A própria constituição de cidades comerciais tratava o comércio como se fosse inexistente. Um cidadão, por definição, não podia ter parte no comércio. Se queria seguir tal carreira, era

necessário

que

migrasse,

como

estrangeiro,

para

outra

cidade” (p.149). O

burburinho

e

o

encontro

entre

gente

de

múltiplas

proveniências teve uma clara expansão e visibilidade na cidade grega potenciada pelas incursões dos gregos, sobretudo, no Norte

de

África.

A

àgora

era

um

espaço

aberto,

cumprindo

funções de mercado ainda no século V a.C., o que não significa apenas um espaço de troca de mercadorias, transações diversas mas,

sobretudo,

um

ponto

de

encontro

que

permitiria

o

exercício da troca de informação e notícias. De facto são

[146]

várias as indicações que a Àgora se preencheu em demasia de funções,

a

tal

ponto

que

“tornou-se

um

recipiente

indiscriminado. (...) Ali, um templo ou santuário teria o seu lugar num amontoado de oficinas e o camponês podia, com o seu burrico, gozar a pausa de um filósofo, como Platão (...) para ver um oleiro ou carpinteiro a trabalhar diante da sua loja aberta” (p.168). Não é por acaso que se verificou que muitos dos aristocratas deixaram de o frequentar, evitando contactos demasiado próximos com grupos sociais inferiores quedando-se pelo ginásio onde apenas se juntavam indivíduos de idêntico estatuto. O problema hoje sentido de dificuldade de conjugar as diferenças ou a utopia que vai emergindo no discurso político e social da necessidade de salvar o Espaço Público como matriz de

aprendizagem

da

cidadania

carece,

assim,

de

alguma

confirmação não só a partir das análises do presente como, designadamente, destas fortes referências históricas. Para

além

desconfiança

da

aos

promiscuidade grupos

mais

funcional

influentes,

que

suscitava

mantinha-se

a

histórica distância e até desprezo face ao comércio como é compreensível numa sociedade em que a ênfase era depositada na discussão política e filosófica, praticada em público, e que não deveria ser perturbada ou contaminada por outro tipo de exercícios económicos ou profissionais. Daí que a sobreposição de funções na àgora com destaque para as relacionadas com a economia e o comércio à cabeça não era bem aceite surgindo até a proposta veiculada por Aristóteles de criar a Àgora-Mercado fisicamente distanciada da Àgora-Forum político, onde apenas se

concentrariam

comércio

ou

os

homens

actividade

definitivamente

adoptado

livres,

manual. e

o

desprovida

Esse

comércio

de

desejo persistiu

qualquer

nunca como

foi uma

função que se colou à cidade sendo responsável por muito do seu capital não só financeiro como cultural possibilitando e

[147]

estimulando os contactos interpessoais cujas consequências iam muito para além dos puramente económicos. Este problema sério de (in)compatibilização no espaço público estendeu-se até à cidade romana que ganhava cada vez mais corpo económico e, por isso, mais comerciantes, até pelo estatuto de império comandado por Roma. A rua direita, tão comum

na

cidade

portuguesa

e

tão

amplamente

descrita

por

Orlando Ribeiro (cf. 1994, por exemplo), faz a sua aparição sob o império romano, aliás como sucedeu com outras cidades (por

exemplo,

Damasco

na

descrição

dos

Actos

dos

Novos

Testamentos).

5.2.2.

Política, cultura, e religião

Reafirmando a dificuldade de proceder à separação das diversas componentes da realidade, julga-se conveniente, ainda assim, para cada momento histórico, distinguir a economia da vida imaterial feita de novas hierarquias e adorações. Estas referências servem “apenas” para justificar a necessidade de maior ou menor interacção social, culminando no final com a espacialização destes contactos.

5.2.2.1. A cidade ancestral Não deixa de surpreender a importância das componentes não económicas, imateriais, na formação e desenvolvimento da cidade pré-helénica, até porque o urbanismo e a sua história assentou no excelente trabalho de historiadores como Henri Pirenne que não se cansou de repetir que “a cidade é filha do comércio”. Reafirma-se, nestas páginas, a intersecção entre o poder económico

e

o

poder

político,

militar

e

religioso,

[148]

condicionando na sua essência os modos de vida, os tempos de vida e, para o que mais nos interessa, os espaços e a natureza das interacções entre indivíduos na cidade. A conjugação destas forças e poderes conduz a economia à dependência passiva e alimentada dos restantes poderes, não deixando, todavia, de os enformar. Com efeito, a materialidade dos

EPU,

consubstanciada

nos

seus

aspectos

estéticos,

constitutivos ou funcionais, foi sempre vista como um fim em si mesmo por muitas disciplinas – urbanismo, arquitectura, economia

-,

mas

a

sua

imaterialidade

que

os

desligava

de

qualquer território em concreto, transferindo-os para os meios de

comunicação

espaços

de

social

consumo

ou,

na

melhor

privados,

das

embora

hipóteses,

passíveis

para

de

uso

colectivo, passou a determinar consequências importantes na vida da cidade. Disciplinas,

como

a

sociologia,

a

antropologia,

a

política ou a filosofia tiveram um forte impulso inicial com o trabalho de Jurgen Habermas, que explicou o esvaziamento de sentido

ocorrido

na

cidade

com

a

passagem

da

discussão

política e quotidiana do tradicional EPU para a publicidade e mass-media. Desde

cedo

se

percebe

que

os

indivíduos

que

mais

e

melhor aproveitaram da emergência da cidade foram os que já detinham algum poder, sobretudo religioso, agora potenciado com o aparecimento dos excedentes agrícolas. Estes exigiam não só conceber o seu destino como organizar o trabalho no campo e a relação com as actividades urbanas, garantindo a manutenção do poder das elites. Como afirma Mumford “o chefe local passou a ser o rei dominante, tornando-se ao mesmo tempo o principal guardião sacerdotal do santuário, agora dotado de atributos divinos reduzidos

ou a

quase

divinos.

súbditos,

cujas

Os

vizinhos

vidas

eram

iguais,

viram-se

supervisionadas

e

dirigidas por funcionários militares e civis, governadores,

[149]

vizires,

colectores

de

responsáveis

perante

transferência

do

impostos,

o

poder

rei” da

soldados,

(p.38).

aldeia

A

directamente acompanhar

tradicional,

em

que

a a

sabedoria dos mais velhos cedeu lugar ao dinamismo dos mais jovens,

em

que

nasceu

um

espaço

capaz

de

perpetuar

e

enriquecer a ideia de civilização, surgem novos instrumentos e entidades como a escrita, a escola, a biblioteca ou o arquivo. O simples domínio ou poder sobre eles conferia poder singular e esmagador sobre a comunidade urbana. Estamos sensivelmente a 3.000 anos a.C. e, como tal, é difícil reconstituir com certeza a vida nas primeiras cidades, mas desde o inicio podemos conceber a sociedade urbana como uma estrutura complexa e híbrida, decorrente da presença de tecidos

socio-profissionais

atomizados,

e

com

um

núcleo

organizador investido de poder religioso e político, capaz de lhe dar unidade e, sobretudo, futuro. Assim, motivação ambiente

um

novo

mundo

específicas, rural

e

surgiu,

afastando-o

das

suas

com

carga

simbólica

irremediavelmente

estruturas

tradicionais

e do de

organização social. Um território assim transformado, sofrerá mudanças de relacionamento quer no plano horizontal, i.e., entre grupos socio-profissionais de natureza diferente, quer no

plano

vertical,

subordinação,

ordem

i.e., e

nas

relações

hierarquia.

A

que

cidade

implicam vai

então

reconstruindo a matriz espacial capaz de acolher as novas interacções

e

abrindo

caminho

à

invenção

das

marcas

mais

características da urbanidade. Esta relevância do sagrado e do simbólico contém em si elementos permanentes em muitas das civilizações urbanas ou sem o serem. O caso dos Bororós, descrito por Claude Lévy Strauss, ilustra as polaridades simbólicas de que o espaço parece ter sempre precisado para ser reconhecido como central ou organizador. Também as primeiras cidades sumérias nascidas

[150]

entre o Tigres e o Eufrates (cf. Figura 6), apresentam uma organização

comandada

pelo

cosmos,

sendo

então

o

espaço

público submetido a essa lógica perfeitamente implacável e incontornável onde não havia possibilidade de outra qualquer afirmação de espaço de encontro ou de reunião: “(...) l’espace public se reduit à l’espace sacré du palais oú l’on progresse par

un

l’endroit

jeur oú

de

seuils

apparait

et à

de temps

cours

sucessives,

régulier

le

jusqu’á

roi.

Une

bureaucratie nombreuse et minutieuse, entièrement dévouée au pouvoir

divin

du

roi-prêtre,

assure

la

continuité

de

l’administration du corps social dans les villes-etat. Chacune se définit comme le centre du monde. Cela rend leur existence exclusive

et

les

pousse

à

la

conquête

des

autres

cités :

conquête qui se solde par l’arasement des cités vaincues et le massacre de leur population” (Toussaint (dir.): 2001; 35). Figura 8 - O Berço da Civilização Urbana

Fonte: http://images.google.pt/imgres?imgurl=www.bible-history.com/babylonia

[151]

5.2.2.2. Polis Grega e Roma Imperial A

mudança

alteração

de

profunda

registo

é

verificada

mais na

que

justificada

importância

pela

depositada

no

sagrado da polis grega. Não é que ele tenha deixado de marcar presença

etérea,

pelo

contrário,

um

dos

elementos

chave

continua a ser a acrópole – lugar dos deuses e de identidade. Mas a civilização grega dá, em larga medida, a cidade aos indivíduos, retirando-lhe muito da carga simbólica e sagrada que até então marcaram os espaços e as elites. A base para um entendimento singular no tempo e que se assumiu como a base da cidade moderna foi apresentada por Aristóteles: “(...) se todas as associações tendem para algum bem, com muito maior razão deve tender a mais soberana de todas, e compreende todas as outras: aquela a que chamamos cidade

e

associação

política

[...].

Em

primeiro

lugar,

é

necessário que se associem os seres que foram feitos para viverem juntos, ou seja, o homem e a mulher para garantirem a descendência, e o patrão e o servo para as tarefas materiais. Dessa associação para as necessidades fundamentais da vida nasce

a

família.

A

associação

de

várias

famílias,

para

a

consecução de uma utilidade mais ampla e mais complexa é a aldeia. A associação de várias aldeias é a cidade, que se basta a si própria, formando-se para conservar a existência, e depois de ter alcançado esse objectivo, para atingir a sua perfeição. A cidade existe por natureza, como existem por natureza as associações mais simples, porque a cidade é a ambição

final

para

que

tendem

todas

as

outras.

De

facto,

chamamos "natureza" de uma coisa à sua condição na última fase do seu desenvolvimento”. Aristóteles ganhou em proceder à construção da ideia e natureza da cidade recorrendo à família: “(...) Portanto, a cidade é um facto natural, e o homem é, por natureza, um animal político. Mas o homem é um animal político por motivos

[152]

diversos e mais fortes do que os das abelhas ou de qualquer animal que vive em rebanho. O homem é o único animal que possui o dom da palavra; a voz pode exprimir dor ou prazer, e os outros animais também a possuem; mas a palavra serve para exprimir o que é útil e prejudicial, justo ou injusto. É esse, com efeito, o carácter do homem: ter a noção do bem e do mal, do correcto e do incorrecto, e das outras distinções morais. A associação dos seres que possuem essas noções cria a família e a cidade. Por conseguinte, a cidade é a condição da família e do

indivíduo.

De

facto,

se

ninguém

se

basta

a

si

mesmo,

estará, em relação à cidade, na mesma situação da parte em relação

ao

citadina,

todo. ou

propriamente

Quem

não um

não

é

necessita homem,

capaz disso,

mas

sim

de

participar

não um

pode

animal

na

dizer ou

vida

que

um

é

deus”

(Benevolo: 1995; 20-21). Abandonada a acrópole é a Àgora que se assume como o elemento sustentador desta nova forma de uso da cidade. Ao contrário dos anteriores espaços de poder religioso ou

monárquico,

onde

o

controle,

condicionamento no encontro entre os

a

filtragem

e

o

residentes eram atitudes

centrais como forma de garantir a permanência e a perpetuação do poder, a àgora passa a ser um espaço de liberdade aberto aos cidadãos, mesmo que estes não representem todos aqueles que

povoam

as

cidades.

É

o

espaço

de

governação

e

de

deliberação mas, pelas causas apontadas, também de subtracção e exclusão. A dissociação dos espaços religiosos dos espaços de

diálogo,

Àgora,

iniciada

prosseguiu

ambiente

por

pela

quase

outras

de

praças

separação

entre

imediato e

ruas,

com o

a a

que

acrópole difusão foi

e

a

deste

amplamente

descrito na literatura e em peças de teatro onde o ideal de democracia do debate e da liberdade se encontravam sempre presentes.

Para

o

que

nos

interessa

“os

edifícios

e

os

ambientes públicos que predominam sobre os privados conferem

[153]

ao

cenário

urbano

o

carácter

perfeito

e

acabado

que

a

definição aristotélica exige” (p.21). A

Roma

Imperial

parece

mais

interessante

vista

do

território conquistado e das intervenções aí efectuadas, no sentido de garantir a sua coerência face aos interesses do colonizador, percebendo-se assim melhor algumas das alterações introduzidas nos espaços urbanos. A reprodução de fórmulas de concepção e gestão da cidade, passíveis de serem observadas em múltiplos locais do Império, são a ilustração mais óbvia deste imperativo

de

sobrevivência,

mas

na

Roma

Imperial

também

existiam modificações, ao ponto de transformar a Àgora, o que foi justificado, mais uma vez, pela mudança operada nas formas de viver a cidade, o espaço público e os tempos livres. E é assim que, ganhando um protagonismo renovado e afirmativo o desporto

e

a

animação

urbana,

o

Fórum

perde

o

carácter

simbólico da democracia e do debate (como seria de esperar num império) e passa a ser marcado pelo espectáculo e, em menor medida,

pela

presença

dos

templos

dedicados

aos

deuses

romanos. A cidade “se transforme en un espace d’ostentation dominé par les temples et relié aux lieux de spectacle : les cirques,

les

amphithéatres,

les

odéons“

(Toussaint

(dir.):

2001; 37). Mas

este

espaço

tradicional,

com

o

progressivo

fechamento de muitas das actividades urbanas de recreio, lazer e convívio, vai tornando-se passivo e monótono. Aqui passam a destacar-se os edifícios públicos e religiosos, atraindo uma maior presença e densidade de funcionários, mas lhe confere a chama que teve noutros períodos.

5.2.3. A

Das formas urbanas dos Espaços Públicos

apresentação

dos

EPU

é

fácil

bastando

recorrer

às

ilustrações disponibilizadas em obras de carácter histórico e

[154]

com preocupações urbanísticas. Todavia, o percurso efectuado de discussão dos contextos económicos e religioso-político e social

ajuda

a

interpretar

de

um

modo

mais

rico

os

seus

contornos, dimensões e funções. Para

este

período

as

formas

urbanas

permanecem

desfocadas até pelo menos ao período helénico, sendo apenas reconhecidos pelos documentos recuperados por arqueólogos e decifrados por historiadores, o que limita a sua descrição. Esta descrição é o reflexo, como se defende desde o início,

não

estéticas,

de

mas

intervenções

considerando

arquitectónicas

estas

subordinadas

puras ao

ou

contexto

económico e social da cidade e do momento histórico. De modo a manter

a

análise diversos

coerência geográfica campos

do das

princípio formas

disciplinares

enunciado urbanas

em

jogo

e

a

efectuar



articulando



justifica-se

a os a

aplicação da fórmula já adoptada por Orlando Ribeiro onde se jogam os conceitos de sítio e posição. Com efeito, sempre que possível descriminar-se-á para cada forma urbana do Espaços Públicos a sua localização no seio da Cidade (posição) e a sua descrição

mais

detalhada

(dimensão,

forma

e

funções

associadas) – sítio.

[155]

Figura 9 - Níveis de conhecimento dos EPU

Recuando

às

cidades

da

Mesopotâmia

cuja

vitalidade

resultava naturalmente da concentração de excedentes agrícolas e, em especial, do poder religioso, Mumford por várias vezes se refere às tabuínhas de Nippur que remetem para a forma circular da cidade, o que carrega consigo também uma forte carga simbólica. Apenas se distinguem espaços de afirmação do poder religioso e do celeiro. Nas cidades do antigo Egipto permanece, e até se reforça, a importância da religião, agora cruzada

com

o

poder

monárquico

(representante

divino

na

Terra). A

cidade

vive,

assim,

do

e

para

o

seu

soberano

e

orienta-se urbanisticamente para ele na justa medida em que é a

sua

residência

estrutura

a

ou

entidade

o

local

urbana.

de O

exercício

espaço

do

público

poder

que

convoca

a

importância relativa destes poderes através da sua dimensão e características físicas. Todavia, como é próprio de contextos político-religiosos desta natureza, a função dos EPU esgota-se nesse papel de aprofundamento simbólico do poder, dado que os registos

históricos

apontam

sempre

para

uma

vida

pública

[156]

limitada, em que a necessidade do livre encontro e troca de ideias era desconhecida, pois tal implicava o exercício da cidadania que só mais tarde foi possível. A dependência à vida religiosa ou a subordinação aos monarcas, muitas vezes acumulando o poder terreno e o poder divino, era uma obrigação que se projectava sobre todos os comportamentos,

quotidianos

e

espaços

dos

habitantes.

A

monumentalidade que se encontra na cidade ancestral deriva do poder simbólico associado aos monarcas ou a outras elites e não

concebida

para

a

manifestação

da

expressão

colectiva:

“(...) No século VI a.C., Babilónia era uma grande cidade, atravessada

pelo

rio

Eufrates

e

bem

guarnecida

de

lances

rectilíneos de fortes muralhas, por sua vez defendidas por um fosso. Ao princípio, devia ser uma cidade de ruas irregulares e tortuosas, mas, quando começou a engrandecer-se, à medida que os imperadores iam erguendo novas e sumptuosas construções (...)

foram

abertas

novas

vias,

como

a

grande

avenida

processional, que ligava a principal porta monumental (a porta de Istar ou Astarte) com os palácios e templos”

(Goitia:

1982; 45) (cf. Fig. 8). O isolamento do templo ou do palácio face ao restante tecido

urbano

superioridade arrastamento,

era face os

também às

espaços

um

formas que

modo de

lhe

de

vida estão

manifestação terrena associados

e,

de por

apenas

admitem manifestações religiosas ou de celebração do poder. Recorde-se, a propósito, o facto já descrito da incipiente ou mesmo inexistente actividade económica pela gestão autocrática do soberano dos bens essenciais à vida das populações.

Figura 10 - Planta da Babilónia

[157]

Fonte: http://www.angelfire.com/tx/tintirbabylon/map.html

Com as cidades-estado do Mar Egeu (séc. IV a. C.) surgem também as comunidades mais livres, muito por causa da mudança de

estatuto

dos

soberanos

que

passaram

a

governar

sem

se

atribuir a natureza omnipotente e divina. As modificações são óbvias com base no maior exercício de

cidadania

e

de

uma

maior

actividade

comercial,

o

que

implica maiores fluxos de circulação interna e de entrada e saída,

para

além

dos

inevitáveis

acréscimos

dos

contactos

inter-pessoais. A pluralidade dos espaços consagrados quer a outras funções públicas (mercado, lazer, desporto) justifica a designação encontrada de centro cívico para este conjunto. Mas a referência de EPU é a àgora que, para além da função social, política e económica, cumpria um papel na estrutura urbana articulando sectores da cidade (cf. Fig. 9) de modo a dar

[158]

maior harmonia ao quadro construído como também conferir-lhe um maior rigor estético. Figura 11 - Mileto e a Àgora como charneira urbana

Fonte: http://www.webdianoia.com/presocrat/mileto.htm

A teoria racional de Cidade onde se inscrevem os espaços públicos modernos foi inaugurada na Grécia muito pelas novas condições

societais

e

políticas.

A

enriquecer

este

espaço

surgem “o ecclesiasteron (sala para assembleias públicas), o bouleuterion (sala para assembleias municipais), o prytaneion (onde se reunia a câmara municipal). Aí estava situada a stoa, construção alargada que formava por vezes um dos lados da àgora, com pórticos de uma ou duas formas, que serviam para a vida da relação e para o comércio” (Goitia: 1982: 48).

[159]

5.3. Período medieval Neste percurso introduz-se um hiato assumido que contempla o período entre o fim do Império Romano e o ressurgimento urbano na Europa, consubstanciado pelas invasões bárbaras e pela presença da civilização muçulmana na Península Ibérica quer pelo seu contributo menor para a vida urbana na Europa38 quer pela reduzida expressividade que aportam para o objecto de estudo.

5.3.1.

Ambiente económico

Todo o trabalho de Henri Pirenne em torno das cidades da Idade Média, renascidas a partir do século X, deixa antever um protagonismo da economia urbana que não foi corrente noutros momentos

da

vida

urbana.

Aliás,

desde

os

fenícios

que

a

actividade comercial não assumia este destaque na cena urbana, isto após as cidades sumérias, egípcias, gregas e romanas onde surgia

sempre

ou

desprezada

(Grécia),

anulada

(Suméria)

e

ofuscada por outras formas dominantes de usar a cidade (Roma). O

comércio

designadamente,

o

e

as

actividades

artesanato,

que

possuíram

na

o

suportavam,

Idade

Média

um

brilho ainda mais forte pelo período de quase 5 séculos (entre a

queda

do

império

romano

do

ocidente

e

o

abandono

dos

muçulmanos da península ibérica) em que a Europa observou um assinalável recuo urbano. Muitas cidades deixam de existir e outras vêem reduzidas o seu potencial humano. Os antigos castros renascem dando 38

Embora não em Portugal e Espanha, pois enquanto se assistia ao designado renascimento Carolíngio na Europa central, no sul do continente o espaço urbano sofria transformações significativas quer na textura do tecido urbano quer na ampliação do domínio privado face ao espaço colectivo próprio das sociedades islâmicas. Orlando Ribeiro não se cansou de descrever as influências da ocupação árabe no sul de Portugal, visíveis na urbanização, na arquitectura e nas práticas agrícolas.

[160]

suporte a uma vida rural mais intensa e que viria a ser um dos aspectos mais estruturantes da Idade Média, ficando conhecido como Feudalismo39. Com efeito, só o entendimento de uma nova sociedade assente sobre uma nova base económica e política permitirá

construir

cidades.

A

base

uma

de

nova

partida

cidade não

e

um

podia,

novo

sistema

assim,

ser

de

mais

diferente do que até aí a História tinha revelado: “(...)esta situação implicava um contraste e diferença notáveis com o que tinha

sucedido

no

mundo

antigo

e

islâmico,

onde

a

função

orientadora da sociedade tinha pertencido às cidades, tendo-se a

população

concentrado

nalgumas

destas

particularmente

desenvolvidas e de grandes dimensões” (Goitia: 1982; 82). Na

génese

da

reconfiguração

urbana

ocorrida

está

a

agricultura, muito mais que o comércio: Em primeiro lugar tendo

permitido

corporizados comerciais

a

pela que

sobrevivência vida

de

monástica;

suscitava

junto

pequenos em

às

focos

segundo portas

urbanos

pelas

destes

trocas espaços

religiosos; finalmente, porque constituíram uma matriz para o nascimento

de

um

poder

político

essencial

para

o

desenvolvimento de uma nova sociedade. Numa perspectiva económica é fácil perceber que a base do tecido produtivo continua marcada pelo sector primário e que a cidade cumpre a função de redistribuir os excedentes pela via comercial e até apoiá-lo pelo apetrecho em utensílios e bens complementares à vida rural. É curioso, no entanto, sublinhar que a cidade e a sociedade feudal são duas faces da mesma moeda, pois à primeira não era permitido o fácil acesso dos camponeses garantindo a sobrevivência da segunda. Habitar a cidade corresponde ao estatuto de homem-livre, o que era contraditório com a condição dos servos da gleba. A este facto também não é alheio, num número significativo de casos, o 39

O Feudalismo dá, de facto, origem a uma nova sociedade assente na terra e com uma estrutura de poder senhorial, que exerce entre outros poderes o legislativo e o político, embora na dependência hierárquica do monarca.

[161]

comércio

e

as

trocas

se

processarem

junto

às

portas

da

cidade, mantendo o seu miolo à distância dos mais pobres, doentes e estrangeiros. O século XI vê despontar no interior da cidade uma nova classe - a burguesia – que com a expansão do comércio e indústria, ganha visibilidade através dos numerosos grupos que encerra

(viajantes

mercadores,

artesãos,

banqueiros,

comerciantes). As cidades também se diferenciam de acordo com a

intensidade

e

o

tipo

de

tráfico

que

registam:

portos,

cidades-feira, cidades de fronteira, cidades de passagem. A economia gera uma tensão crescente com o meio envolvente, marcado pela vassalagem e condições de vida precárias, através de exigências de maiores facilidades para o exercício das trocas comerciais e de um mais amplo e profundo estatuto de espaço livre dos constrangimentos sociais e políticos feudais.

5.3.2. Política, cultura, e religião O período pós-romano observou profundas alterações nos modos de vida comunitários, exigindo a partir de certa altura uma

reaprendizagem

da

vida

urbana

no

que

respeita

à

organização do espaço, ao estatuto político da cidade e dos seus residentes ou à coexistência dos poderes emergentes. A Idade Média é um longo período em que a dificuldade de análise surge desde logo quando se pretende tomá-la como uma unidade. De facto existe um percurso, uma construção e um enriquecimento, indispensável

dos face

sistemas ao

político,

estado

social

desorganizado

e em

cultural, que

se

encontrava a Europa desde o apogeu do Império Romano e as posteriores vagas de ocupações episódicas e por isso mesmo instáveis de povos e comandantes, sem grandes preocupações de estabelecer sistemas territoriais organizados e complexos.

[162]

Não

se

tratando

de

produzir

monografias

exaustivas

acerca dos desenvolvimentos políticos e religiosos observados na cidade medieval é, no entanto, exigível que se entenda a sua organização e a sua potencial importância na demarcação do espaço urbano. Se, como vimos no ponto anterior, o ambiente económico ganhou uma dimensão incomparável com outros períodos históricos,

a

cidade

veio

juntar

a

classe

social

que

lhe

estava associada – a burguesia- às restantes que estruturavam a sociedade medieval – clero e nobreza. O

clero

foi

um

desaparecimento

da

turbulentos

que

se

inseguras,

pois

pilar

fundamental

civilização seguiram.

eram

as

As

visível

desde

romana

e

momentos

cidades

tinham-se

mais

procuradas

nos pelo

o

tornado produto

proporcionado às pilhagens e os vestígios urbanos eram afinal apenas

centros

de

administração

religiosa.

A

civitas

parisiensis, por exemplo, servia para intitular quer a cidade quer

a

diocese

de

Paris.

Justamente

a

propósito

deste

destaque da Igreja na cidade medieval, Henri Pirenne assinala que

“Quando

o

desaparecimento

do

comércio

no

século

IX

aniquilou os últimos vestígios da vida urbana e pôs fim ao que ainda

subsistia

da

população

municipal,

a

influência

dos

bispos, já tão extensa, tornou-se sem rival” (Pirenne: 1989; 61). É assim que o bispo exerce um direito de polícia na base do qual administrava o mercado, regulava o recebimento do imposto, vigiava a cunhagem da moeda, assegurava a manutenção das pontes e entradas. Um

regime

teocrático

ganhava

legitimidade

face

às

estruturas municipais antigas, já que não havia domínio na administração da cidade em que o bispo não manifestasse a sua autoridade no sentido de garantir a paz, a ordem e o bem comum, quer pelo direito quer pela ordem pública (p.63). A

partir

de

1000

verifica-se

um

aprofundamento

das

estruturas urbanas e uma maior visibilidade da sua capacidade

[163]

de se distinguir dos meios rurais por via das liberdades e do protagonismo económico40. Neste reforço identitário da cidade, há ainda espaço para referir um outro grupo que nasce nesta altura e que recebe o nome de burguesia, dos seus membros serem

exclusivamente

habitantes

do

novo

burgo,

vocacionado

para as trocas. Daí que a ideia de população urbana que “deve ser procurada não entre a população das primitivas fortalezas, mas na população imigrada que o comércio fez afluir à sua volta e que, a partir do século XI, começou a absorver os antigos

habitantes”

(Pirenne:

1989;

125).

Com

o

poder

eclesiástico, herança de períodos de resistência urbana, o poder da nobreza que não deixou de se exibir nos meios rurais e insinuar a sua importância na cidade41 e ainda o poder de uma

sociedade

civil

constituída

pelos

seus

próprios

habitantes, os burgueses, se construía o tecido socio-político da cidade medieval e que obrigava esta a reflectir, como se de um espelho se tratasse, esta heterogeneidade.

5.3.3.

Das formas urbanas dos Espaços Públicos

A organização dos sistemas económicos e sociais

produz

a emergência de espaços urbanos ajustados ao seu funcionamento e à importância relativa de cada segmento. Daí que a forma urbana não seja o fruto de um desenvolvimento aleatório da cidade e de jogos imobiliários casuísticos, mas uma tomada de decisão

consciente

no

sentido

de

responder

às

tensões

existentes.

40

A própria construção de recintos muralhados contribui para aumentar a clivagem entre o meio urbano e rural, ao tornar mais eficiente a recolha de impostos. 41 É necessário sublinhar que se a Igreja conferia protecção e permitiu a resistência do facto urbano também é verdade que só a produção de excedentes alimentares no campo a partir dos senhores feudais gerou as condições para a criação de bens e de população fundamentais para o exercício das trocas comerciais (Lewis Mumford, op. cit., p.277).

[164]

A forma urbana é, em primeiro lugar, condicionada pela própria localização da cidade que, pelo ambiente de incerteza e de volatilidade dos interesses, deve atender antes de mais ao primado da segurança

e da defesa. É comum a implantação em

colinas e ilhas, sendo que esta escolha determina a ocorrência de uma organização urbana irregular e até original. As ruas serviam não só para tornar permeável a cidade mas também para articular espaços separados por desníveis significativos. Estas particularidades contribuíram para que

Benévolo

(1995)

designou

como

conformar o

quatro

inovações

privados,

combinados

constitutivas: ►

Os

edifícios

públicos

e

livremente formam um aglomerado individualizado

que,

global fortemente

contemplando

do

exterior,

oferece uma visão de conjunto bem legível. Todavia, este não deriva do brilho das plantas urbanas ou das

actividades



desenvolvidas,

mas

do

espaço

exterior construído pelas fachadas, pelas ruas e pelas praças. Estes elementos são o espelho de cada actor urbano e daí o investimento que cada grupo faz na promoção e qualificação do seu espaço. As praças são apenas maiores aberturas urbanas que as ruas

mas

não

comportam

diferenças

funcionais

substantivas entre si. A delimitá-los estão sempre os

edifícios

intra-muros

que

pela

assim

o

sua

altura

exige)

(a

confere

densidade

ainda

mais

protagonismo ao espaço livre na cidade. Estamos na interface

entre

o

público

importância

acaba

por

regulamentos

medievais,

e

ser

o

privado,

cuja

reconhecido

nos

dispondo

cirurgicamente

sobre estes interesses (pórticos, escadas, etc.); ►

O aumento da complexidade do espaço urbano está em proporcionalidade directa com o corpo social e o

[165]

cenário físico. O espaço público procura encontrar o equilíbrio entre os três tipos de poderes que coexistem na cidade medieval e que se materializam no

episcopado,

corporações,

governo

classes.

civil,

Uma

ordens

cidade

religiosas,

bastante

grande

nunca tem um único centro: tem um centro religioso, um centro civil e um ou vários centros comerciais, muitas vezes contíguos; ►

As muralhas, o carácter fechado do sistema social e económico

e

favorece

a

o

especial

concentração.

estatuto O

dos

centro

burgueses é

o

mais

procurado e, logo, o mais valorizado. Crescem os edifícios

e

a

densificação

e

ganham

crescente

visibilidade nesta área os edifícios públicos como os palácios e as igrejas como forma de afirmar o seu poder; ►

A outra face deste destaque urbano é a volatilidade das estruturas e formas urbanas. A cidade é, entre os

séculos

X

e

XV,

um

espaço

persistentemente

inacabados que faz com que os limites urbano sejam colocados em causa, os edifícios como as igrejas e palácios apresentam-se como inacabados envolvidos de andaimes, as casas refazem-se num processo de crescente densificação. A unidade segundo Benévolo é apenas conseguida pela generalização do estilo gótico – A arquitectura da luz.

Deslocando a discussão para as formas mais concretas dos espaços públicos, agora é mais fácil entender que se está perante um retorno ao espaço exterior após o período romano que

viu

nascer

o

espectador

e

o

espectáculo

em

recintos

fechados ou, pelo menos, bem delimitados. Mas agora o povo

[166]

medieval

estava

habituado

a

quotidianos

dominados

pela

liberdade do espaço público e que quando por qualquer razão se enchiam logo outros se criavam em condições de acessibilidade adequadas ao usufruto dos indivíduos. Afirma Mumford: “(...)no que diz respeito aos espaços abertos utilizáveis, a cidade medieval típica teve, no seu início e através da maior porção de sua existência, um padrão muito mais elevado para a massa da população do que qualquer outra forma posterior de cidade, até os primeiros subúrbios românticos do século XIX” (Mumford: 1998; 315). Pegando nas funções das portas da cidade verificar-se-á como a complexidade afecta os espaços das cidades medievais. Neste caso estamos na presença de uma fronteira que ora separa ora mete em contacto dois universos (rural e urbano) e um conjunto heterogéneo de visitantes habitualmente ligados ao comércio, fazendo despertar nas suas imediações uma dinâmica de apoio visível nas estalagens, lojas, etc.. Nos

espaços

mais

convencionais

surge

a

catedral,

buscando o lugar central e exigindo um largo fronteiro capaz de responder aos fluxos de fiéis que ali acorrem diariamente em volume significativo. Esta romaria quotidiana justificava os imponentes espaços dianteiros aos espaços religiosos e que muitas vezes era aproveitada por outras funções como o mercado e os festejos. O vezes,

mercado

tende

denunciando

a

a

procurar

a

dependência

centralidade face

a

e,

outros

muitas

poderes,

encosta-se aos locais de intensa procura como as igrejas. Mas nas cidades mais associadas ao comércio a praça do mercado era não



onde

praticava

a

as

guildas42

justiça,

o

se

exibiam,

desporto

e

os

mas

também

festejos

onde

se

populares.

Voisin (in Toussaint : 2001) escreve que « Les marchés sont sans doute les premiers espaces à se constituer en espaces 42

Associações corporativas medievais.

[167]

publics. Ils mettent en scéne tout à la fois les échanges et les

objects

échangés.

Dans

les

villes

italiennes

et

germaniques, les grandes halles fonctionelles qui abritent les activités

du

marché

accueillement

aussi

les

cérémonies

publiques ainsi que les activités de la justice bourgeoise ou princière» (p.39). Figura 12 - Praça central de Siena

5.4. Período renascentista – Cidade clássica e barroca O período fixado para a análise decorre entre o século XV e o século XVIII apesar da polémica ainda concluída quanto ao fim da Idade Média e início do Renascimento, resulta da convicção de que se encontram nesse período os fundamentos para

muito

do

que

se

seguiria,

nomeadamente,

no

plano

demográfico, económico e político. A

esta

nota

acresce

uma

outra,

não

menos

oportuna,

relativa à heterogeneidade que este período encerra, em que

[168]

pelo menos se distingue o período de transição com a Idade Média, os Descobrimentos e colonização e o período Barroco.

5.4.1. Ambiente económico Nasce o capitalismo mercantilista. É um nascimento que não foi fácil nem rápido e que surge na sequência de uma crise europeia de múltiplas faces, observada entre os últimos anos do

século

XIV

e

o

século

XV.

Nestas

faces

destaca-se

a

regressão demográfica registada como consequência da epidemia de

1347-1348,

residentes

subtraindo

à

cidade,

recursos

levando

à

humanos

à

emergência

agricultura de

uma

e

crise

económica e uma estagnação urbana. No meio destas perturbações surgem também derivações no campo social: “Os altos e baixos da economia avivam os conflitos sociais e as revoltas das camadas subalternas – os artesãos de Nuremberga, em 1348, os cardadores de lã de Florença, em 1378, os tecelões flamengos, em

1379,

os

tuchins

do

Languedoc,

em

1380,

os

camponeses

ingleses de Mile’s End, em 1381, o povo de Paris, em 1382 – resolvem-se

com

vantagem

para

as

classes

dominantes,

as

senhorias ou os reinos nacionais, que limitam as liberdades citadinas.

As

cidades

embora

continuem

a

ser

importantes

passam a ficar sob tutela”43. Todas

as

crises

implicam

um

desafio

que

visam

uma

solução que impeça a sua repetição e esta também despertou um conjunto de reacções no universo económico alertando para a emergência de novas condições e oportunidades. Funcionam como boas

ilustrações

os

desenvolvimentos

na

circulação

de

informação a partir de novas vias de comunicação e da melhoria do

serviço

regulador

de

correio;

na

inovação

no

campo

financeiro, com as lojas de câmbio; na relação laboral, a

43

F. Braudel in Benevolo, L., op. cit., p. 93

[169]

partir

da

centralização

na

contratação

de

mercadores;

no

progresso da técnica, com as comportas, relógios, etc. Parece, assim, poder afirmar-se com alguma segurança que muito

do

renascimento

fertilização

do

da

tecido

Europa

está

económico.

A

enraizado

este

nesta

propósito

é

especialmente claro Fernand Braudel(1992; 29): “O século XV vai assistir, sobretudo após 1450, a um relançamento geral da economia,

orientado

em

benefício

das

cidades.

E

estas,

favorecidas pela subida dos preços industriais, enquanto, por outro lado, os preços agrícolas estagnam ou baixam, arrancam mais rapidamente do que o campo. Sem qualquer margem de erro podemos dizer que, nesse momento, o papel de motor cabe às lojas de artesãos, ou mais precisamente, aos mercados urbanos. Estes mercados ditam as suas leis. O relançamento inscreve-se, assim, na base da vida económica”. Estas

mudanças,

porém,

exigiram

oxigénio

para

que

pudessem singrar e ele veio em larga medida da empresa dos Descobrimentos. Entre os extremos corporizados por uma herança pesada

da

entender

Idade este

Média

período

e

a

Revolução

renascentista

e

Industrial

é

fácil

barroco

como

uma

modernização das estruturas sociais e urbanas mas, sobretudo, como um indispensável momento de acumulação e reorganização capitalista. O mercado passou a ser espacio e temporalmente limitado, enquanto a loja sempre de portas abertas fixa o mérito de estar sempre disponível e, assim, manter a continuidade das trocas

e

a

animação

urbana.

Mas

como

afirma

Braudel

“a

economia de mercado encontra-se em fase de progresso e põe em contacto um número suficiente de burgos e de cidades, para iniciar já a organização da produção e orientar e comandar o consumo. Para isso vão ser precisos séculos, sem dúvida, e entre estes dois universos – a produção em que tudo nasce e consumo em que tudo se destrói – a economia de mercado

surge-

[170]

nos como a ligação, o motor, zona apertada, mas viva, de onde brotam

os

estímulos,

as

forças

vivas,

as

novidades,

as

iniciativas, as múltiplas tomadas de consciência, os fenómenos de crescimento e, até, o progresso”44. A alavanca para o desenvolvimento económico marcante, agora não só a uma escala urbana mas planetária, verifica-se simbolicamente em 1434 quando Gil Eanes dobra o Cabo Bojador e deixa antever o comércio com outras regiões do planeta e a futura colonização. Benevolo é claro quando afirma “Portugal, que durante todo um século comanda as explorações oceânicas, é um

país

povoado

pequeno para

e

periférico,

conquistar

não

vastos

suficientemente

territórios,

mas

rico

que

e

visa

implantar uma rede de bases comerciais na rota das Índias Orientais para controlar a oferta das especiarias que deverão chegar

a

Antuérpia

e

ao

mercado

europeu.

(...)

A

cultura

esquemática e utilitária dos aglomerados populacionais é a que domina, na primeira metade do século XVI, as sedes do poder económico e militar [como foi o caso do Bairro Alto de Lisboa - 1513]”45. Assim, configura-se um renovado ambiente económico que implica novos espaços de consumo e troca: os portos passaram a deter

os

marítimo

maiores é

financeiros,

de

níveis

tal

modo

actividades

de

centralidade

mobilizador

que

indiferenciadas,

pois atrai

o

comércio lojistas,

esvaziando

as

antigas praças dos mercados medievais e outros espaços livres. A consideração das mudanças económicas e o alargamento dos seus interesses para além-mar foram motores fundamentais para as transformações quer dos espaços urbanos existentes quer daqueles que foram necessários criar para apoiar a exploração dos novos territórios ultramarinos.

44 45

Idem, Ibidem, p.24 Benevolo, L., op. cit., p.123.

[171]

5.4.2. Política, cultura e religião Também domínio

do

aqui

as

poder

mudanças

(com

a

foram

violentas,

transferência

do

operadas

poder

no

feudal

ou

urbano para uma ideia de estado-nação), na religião subtraindo algum

fulgor

à

Igreja

cultural/artístico permitiu

em

dissociar

Católica

que

o

a

e,

forma

momento

de

finalmente, de

no

intervir

reflexão

da

na

plano cidade

execução

do

projecto. Em primeiro lugar a política. Surgem as raízes do Estado central.

Recorde-se

que

a

Europa

sofreu

uma

sangria

demográfica ao longo do século XIV que lhe subtraiu, na pior das

hipóteses,

quase

50%

da

população

com

o

que

de

desorganização e desvitalização tal implica. Tornou-se, para os

que

controlam

o

comércio

e

os

exércitos

mais

fácil

o

reforço do poder, anulando até a segmentação municipal até aí verificada. Recorremos uma vez mais a Mumford para ilustrar a transferência do poder municipal e a emergência de um poder mais

generalizado

assente

nas

forças

das

armas

e

com

aspirações absolutistas: “O Estado crescia à custa das partes componentes; a capital crescia fora de toda a proporção com as cidades provinciais, e, em medida não pequena, à custa delas. Quando as municipalidades se tornaram importantes, o controle local precisou ser complementado pela legislação nacional e, finalmente,

nada

pôde

ser

feito

sem

a

ajuda

e

sanção

da

autoridade central. Embora as capitais naturais fossem, em geral, situadas em pontos de especial vantagem para o comércio e

a

defesa

militar

originariamente

na

sua





que

escolha

-,

tais os

elementos

entraram

governantes

barrocos

lançaram mão de todos os poderes do Estado para confirmar essas vantagens”46. O reforço das cidades e sobretudo das capitais resulta do desenvolvimento e ampliação deste novo poder absoluto que, 46

Mumford, L., Op. Cit., p. 387

[172]

para

garantir

exércitos

a

mas

chancelarias,

sua

eficiência,

também

uma

tribunais

não

burocracia

que

renegara

a

assente

em

necessitavam

de

força

um

dos

arquivos, património

imobiliário significativo e de um batalhão de funcionários que dava visibilidade permanente ao poder do monarca absolutista. De algum modo a cidade servia para plasmar o poder real e assim servir como instrumento político e de dominação. A sofisticação a que se assiste entra, pois, em ruptura com o que era prática anteriormente como seria de esperar com a ampliação dos exércitos, a instauração de uma burocracia, surgimento do capitalismo mercantilista e o desenvolvimento de uma

teia

que

abafava

os

anteriores

poderes

religiosos

e

municipais e que tinha no centro a capital e o rei. O

poder

foi,

durante

segmentado

como

o

reflectir

nos

edifícios

arquitectónicos

e

a

demonstra

Idade

o e

urbanísticos

Média,

próprio nos a

repartido

espaço

urbano

restantes importância

e ao

elementos dos

vários

actores: sacerdote, mercador, artesão, senhor feudal, etc.. “O príncipe” de Nicolau Maquiavel é um claro sinal como neste período se regista uma concentração de poderes em torno do governante e um alargamento desse poder não a uma cidade ou município mas a todo um Estado compreendido na sua dimensão metropolitana e colonial. Esta concentração do poder unipessoal faz-se à custa da força e da lei marcial. Os exércitos aumentam o número de efectivos mesmo em tempo de paz e sobretudo aumentam o seu poder bélico agora com um novo e revolucionário trunfo: a pólvora.

Desde

o

urbanismo

à

arquitectura

quase

todas

as

estruturas territoriais se renderam a esta inovação empregada no exercício da repressão e da guerra. Reproduzindo Mumford “(...) os tiros simplificaram a arte de governar: eram um meio rápido de pôr fim a uma discussão embaraçosa. (...) O rifle, o canhão, o exército regular ajudaram a produzir uma raça de

[173]

governantes

que

não

reconhecia

outra

lei

senão

a

de

sua

47

própria vontade e capricho” . A par da reconfiguração do sistema de forças presentes na cidade e a recolocação hierárquica dos vários actores surge uma

outra

transformação

relacionada

com

uma

em

dimensão

parte

complementar

artística

e

daquela,

cultural.

Arte,

cidade e política conjugam-se sempre que possível sendo que essa

possibilidade

há-de

ser

maior

nos

territórios

recentemente descobertos e colonizados e menor ou, pelo menos, mais complexo nas cidades herdadas da Idade Média. Um

dos

instrumentos

mais

eficientes

adoptados

na

renovação cultural foi a pintura onde os mestres de Florença e Siena propuseram, com sucesso, renovadas modalidades de olhar o mundo, desde finais do século XIII. É neste quadro que são elaboradas as primeiras plantas urbanas; pela primeira vez não impregnada pelos valores religiosos48. Pode afirmar-se que se operou neste início do século XV uma revolução visual que havia de atingir não só a arte como aspectos materiais da coexistência

humana,

como

as

cidades,

sendo

a

principal

49

impulsionadora das suas transformações . Finalmente, para entender o que mudou e porque mudou é imprescindível

apresentar

a

chave

dessa

mudança:

a

perspectiva. Esta, por seu turno, reenvia à ideia, também nova, de tridimensionalidade. Como Benevolo notou “A tendência

47

Idem, Ibidem, p.393. A planta urbana de Veneza, datada de 1348, e as tabuinhas de Siena são exemplos clássicos. 49 Leonardo Benevolo recorda oportunamente que “(...)se até meados do século XV, os pintores e os escultores trabalham integrados nas instituições corporativas – em Florença, os pintores estão inscritos na corporação dos médicos e boticários, a quem compram as cores, os escultores em pedra estão inscritos na corporação dos mestres pedreiros e carpinteiros, e os escultores em metal e os ourives estão inscritos na corporação da seda, que reagrupa vários ofícios dedicados ao fabrico dos objectos de luxo -, a sua competência não se considera limitada a uma determinada laboração material: trata-se de um magistério geral no domínio das formas visíveis e habilita-os mesmo a dar conselhos no campo da arquitectura e do projecto urbano.” (op. cit., p.99) 48

[174]

para

compreender

e

controlar

o

mundo

das

formas

visíveis

encontra uma resposta científica e definitiva: a perspectiva linear, que estabelece uma correspondência precisa entre a reprodução

artística,

tridimensional

dos

esculpida

objectos

ou

pintada,

reproduzidos.

e

A

a

forma

perspectiva

selecciona o mundo das imagens de acordo com uma hierarquia de valores – em primeiro lugar, as relações proporcionais, em seguida, as dimensões e as características físicas, o grão e a cor – de que derivam as regras de projecção das obras de todos os géneros, desde os edifícios até às paisagens urbanas”50. Para

o

conduziram

que

a

nos

um

interessa

urbanismo

todas

apoiado

em

estas

inovações

três

princípios

fundamentais: ►

Linha recta



Perspectiva monumental



Programa

Se visual

os a

projecto

dois

primeiros

última

dissocia,

da

fase

de

revolucionaram pela

execução,

primeira ou

por

a

nova

vez,

outras

a

paisagem ideia

palavras,

do a

reflexão sobre o espaço e a sua construção. Pode, económica

assim, e

ser

traduzida

construída

uma

espacialmente

de

mensagem modo

política,

premeditado

e

estudado. É evidente que as cidades medievas são um palco de grande

constrangimento

e,

por

isso,

nelas

encontramos

os

exemplos mais minimalistas enquanto que nas cidades novas ou os arredores ou ainda as cidades construídas nos territórios colonizados, a perspectiva, a linha recta e os novos espaços urbanos surgem com grande vigor. 50

Benevolo, L, Op. Cit., p. 101

[175]

A dificuldade inicial em exprimir estas regras estimulou ainda o aparecimento de variados tratados51 que procuravam, simultaneamente, descrever cidades imaginárias e os sistemas económicos, políticos e sociais que lhe estavam associados com o grave inconveniente de um afastamento cada vez maior com a realidade.

Torna-se,

porém,

importante

sublinhar

o

entendimento de cidades como espaços completos, coerente e, sobretudo, indispensável ao exercício do poder, agora não só local como nacional. A colonização no nosso mundo é a rara oportunidade que se depara ao urbanismo de pôr em prática algumas das novas ideias

sem

constrangimentos

prévios.

Benevolo

refere-se

ao

“primeiro concílio da Igreja mexicana, em 1555, exige que os indígenas sejam convencidos – ou obrigados, se for necessário, mas

com

a

menor

violência

possível



a

morar

em

locais

convenientes e em cidades razoáveis, onde possam viver de uma forma política e cristã”52. Chegados aos séculos finais do período em análise (XVII e XVIII) estamos em pleno período barroco sendo este marcado pela

exuberância

das

formas

quer

em

extensão

(avenidas,

passeios públicos) quer em volumes (estatuária, edifícios). A cidade

fica

marcada

pela

abertura

de

enormes

vias

de

circulação que convergem para um centro carregado de um enorme significado político. Esta evolução linear teve também como causa as exigências numa melhor mobilidade intra-urbana, dado que já

se haviam verificado progressos técnicos interessantes

nas formas de mobilidade (as rodas deixaram de ser maciças para

se

ligarem

ao

eixo

por

raios

de

madeira,

com

as

extremidades a terminarem no arco e, no centro, no cubo). O aumento

da

velocidade

exigia

novas

condições

das

infra-

estruturas de suporte e até de organização das próprias vias 51

São vários os tratados mas destacam-se o de Filarete, Tomás Campanela (cidade do sol) e Tomas Morus (Utopia). 52 Benevolo, L., op. cit., p.132

[176]

dado que há que garantir a separação clara entre quem circula (os

ricos)

e

quem

se

queda

pela

calçada.

Mumford

é

especialmente duro com estas mudanças: “Para eles foi feita a avenida, aplainou-se o calçamento e se acrescentaram molas e almofadas ao veículo de rodas: era para protegê-los que os soldados se punham em marcha. Possuir cavalo e carruagem era sinal de êxito comercial e social; possuir um estábulo inteiro era

sinal

de

fartura.

No

século

XVIII,

os

estábulos

e

cocheiras invadiram os bairros menos requintados das capitais, por trás das largas avenidas e praças sumptuosas, levando para ali o odor débil e sadio de palha e esterco. Se não havia mais galos a cantar na aurora, o patear incansável de um cavalo de alta linhagem podia ser ouvido à noite pela janela dos fundos; o homem a cavalo tinha tomado posse da cidade”53.

5.4.3. Das formas urbanas dos espaços públicos Como se verificou o ambiente económico, político e até tecnológico sofreu mudanças que se repercutiram sobre a cidade e respectivos conteúdos. Desde a gradual passagem do comércio para espaços fechados e reservados como as lojas, deixando as feiras e mercados, até às necessidades de manifestação do poder

simbólico

e

efectivo

por

parte

dos

monarcas

absolutistas, tudo conduziu a uma oferta de espaços públicos urbanos francamente singulares e de concepção reflectida de modo a impregna-los de determinados significados. É, nesta perspectiva,

possível

esboçar

uma

semiologia

dos

espaços

públicos urbanos. Fixaremos

para

análise

alguns

dos

elementos

mais

relevantes onde se destacam o Jardim, a Avenida e a Praça, embora esta apresente diferentes configurações e sentidos, de

53

Mumford. L., op. cit., p. 403

[177]

acordo com a sua posição na cidade ou com a função dominante que é suposto garantir. Perspectiva,

racionalidade,

plano,

projecto,

geometrização, são conceitos que ganham expressão, sobretudo quando aplicados à expansão urbana e reforçados quando se reportam aos espaços públicos. O período da colonização, a emergência

do

militar

ainda

e

poder a

absolutista,

o

reconfiguração

protagonismo do

ambiente

do

poder

económico

permitiram, no domínio do conteúdo funcional, que os espaços públicos passassem a incorporar outros significados que não os que até aí lhes tinham sido conferidos pelo mercado, pela igreja ou pelo palácio. Surgem então novas formas e renovados usos nos espaços urbanos como resultado das múltiplas mudanças ocorridas entre os séculos XV e XVIII e como instrumentos de instauração

de

uma

singular

ordem

espacial

de

uma

também

original ordem sociopolítica54. Em primeiro lugar impõe-se a descrição da praça pois pela sua dimensão, forma e significado, coloca-se em lugar destacado

na

estrutura

da

cidade.

Se,

enquanto

na

cidade

medieva a praça não apresentava qualquer traço regular, pois o espaço aberto que ela exigia era obtida casuísticamente pelo desaparecimento de uma construção ou pela área conquistada a uma rua, a imposição de um olhar geométrico e racional sobre a cidade impediu a continuidade deste modo de produzir espaço público.

54

Embora este ponto se pretenda deliberadamente sumário, não é possível contornar o autor que maior impulso concedeu à revolução das formas urbanas – Leon Battista Alberti. A sua importância, consubstanciada num tratado que renova a forma de olhar para a cidade e arquitectura, vem concretizar a separação entre projecto (lineamenta) e a sua execução (strucutra).

[178]

Figura 13 - Monsaraz

Fonte: Carvalho (2003)

Por outro lado, a praça renascentista ganhou expressão também porque se multiplicou no tecido urbano. Com efeito ocorreu

um

natural

desdobramento

das

funções

que

a

praça

medieval acumulava (religiosa, judicial, municipal, económica) fazendo emergir uma especialização no domínio destes espaços públicos: a praça de armas, a praça real, a praça dos paços do concelho, o adro da Igreja, etc.. Neste

processo

esvaziamento

das



praças

que

entender

medievais

o

pelos

progressivo mercadores

e

consumidores em direcção a espaços novos: a rua e os portos fluviais e marítimos, onde chegava o comércio de paragens mais ou menos distantes mas que a partir do século XVI se foram reforçando com a chegada de produtos das paragens entretanto “descobertas”

e 55

André Sauvage du

Roi,

son

colonizadas

pelos

europeus.

Como

salienta

as praças “manifestent la puissance militaire régne

et

la

subordination

des

institutions

municipales. Elles sont des ruptures dans la ville féodale organique. Elles changent le statut des délaissés des anciens faubourgs. Ainsi, le Champ de Mars à Paris, la place Bellecour 55

In Toussaint, Jean-Yves (Dir.), op. cit., p.41

[179]

à Lyon, ou la place Stanislas à Nancy, sont autant de places royales qui bordent le noyau ancien de la ville et qui, ce faisant, articulent de nouveaux quartiers. D’abord champs de manoeuvre

pour

les

armées,

l’urbanisme

les

transforme

en

espaces de représentation centrés sur la statue royale ou princière.

Ces

places

deviennent

l’espace

privilégié

des

manifestations de la puissance de l’Etat. Elles accuillent les défilés militaires. Les prises d’armes y sont magnifiée”. Talvez a melhor prova de que estas praças eram sobretudo criadas para celebração do poder, quer através da concentração massas

populares,

estrutura

quer

urbana,

quer

pela

sua

ainda

imponência para

campo

e

destaque

de

na

exercícios

militares, e só lateralmente cumpriam as funções que hoje atribuímos constatação “Toutefois,

aos

espaços

também

apresentada

entre

surdimensionnées

públicos

deux

sont

contemporâneos,

por

Toussaint

(2001;

manifestations,

abandonnées

à

la

está

ces

sociabilité

na 41):

places et

aux

espaços

são

loisirs populaires”. Para

além

do

carácter

real,

estes

novos

marcados por um carácter militar a que já se referiu Sauvage. Com a pólvora e o violento aumento do número de efectivos do exército por motivos de sustentação do poder absolutistas foi terreno

aberto

para

a

almejada

geometrização

dos

espaços

urbanos agora aplicada às cidades fortificadas militares. Os planos Vauban são os mais conhecidos, dado que incorporou, de um modo inovador, a arquitectura e o urbanismo

adequados à

guerra e à defesa contra artilharia. Não só as muralhas passam a deter um inesperada configuração, necessária para resistir mais eficazmente aos tiros de canhão, mas também a organização geométrica e racional do tecido urbano passa a deter uma praça de armas ao centro que pode chegar a um hectare. Entretanto

uma

grande

oportunidade

se

abria

para

a

concretização de muitas das reflexões com a cidade por pano de

[180]

fundo relacionada com a ocupação das terras colonizadas. Se as cidades

medievas

apresentavam

constrangimentos

arreliantes

estas permitiam fazer cidade na verdadeira acepção do termo até suscitando a criação de leis urbanísticas56.

Uma das leis das índias, produzida por Filipe II, ordena «que se leve sempre já feita a planta do lugar que irá ser fundado». No que se refere ao traçado, a planta dividir-se-ia em praças, ruas e terrenos de construção «a régua e cordel», «começando na Praça Maior e fazendo sair dela as ruas em direcção às portas e caminhos principais e deixando tantos espaços abertos que mesmo que a população tenha um grande crescimento, se possa sempre prosseguir e dilatar sehuindo sempre a mesma forma» (Goitia, p.120). Ainda no sentido de aclarar as implicações da racionalidade na forma urbana, interessa reproduzir algumas das referências estruturais para a criação de novas cidades: «Ao chegar ao local onde a nova cidade irá ser fundada (por nossa vontade, deve ser um lugar vago, que possa ser ocupado sem causar aborrecimentos aos índios ou com o seu consentimento), o plano, com as praças, as ruas e os lotes para construção, deve ser traçado no terreno com cordas e piquetes, começando pela praça principal [...] e deixando suficiente espaço livre, de modo que a cidade, ao crescer, se possa estender sempre do mesmo modo [...]. A praça central, de forma oblonga, com um comprimento pelo menos igual a vez e meia a sua largura, porque esta proporção é a melhor para as festas onde se utilizam cavalos e para as outras celebrações, deve ficar no centro da cidade [...]. A praça deve ser projectada tendo em conta o possível crescimento da cidade. Não deve ter menos de 200 pés de largura e 300 de comprimento, nem ter mais de 500 pés de largura e 800 de comprimento. Uma praça bem proporcionada, de média grandeza, terá 400 pés de largura e 600 pés de comprimento. «Quatro ruas principais devem sair do ponto médio de cada lado e duas de cada um dos ângulos. Os ângulos devem ser voltados para os pontos cardeais, para as ruas não ficarem directamente expostas aos quatro ventos principais. A praça e as ruas principais serão providas de pórticos [...]. As oito ruas que convergem para os ângulos devem desembocar na praça sem serem obstruídas pelos pórticos [...]. As ruas serão largas, nas regiões frias, e estreitas, nas regiões quentes; todavia, para fins defensivos, nos locais onde se utilizam cavalos, convirá que sejam largas. «Nas cidades do interior, a igreja não deve ser construída no perímetro da praça, mas a uma distância tal que fique separada dos edifícios e o acesso seja feito por uma série de degraus [...]. O hospício para os doentes não contagiosos será construído no lado norte, para ficar exposto ao sul [...]. Os lotes para construção em volta da praça não devem ser entregues aos particulares, mas reservados para a igreja, as casas rurales, os edifícios municipais, as lojas e casas dos mercadores [...]. Os lotes remanescentes serão distribuídos à sorte pêlos colonos que estiverem habilitados a construir. Os lotes não entregues serão guardados para os colonos que vierem depois, ou para se dispor deles a nosso bel-prazer [...].Os lotes e os edifícios devem estar dispostos de modo que as casas recebam ar do Sul e do Norte [.. J. Todos os edifícios devem, tanto quanto possível, ser uniformes, tendo em vista a beleza da cidade.» (Benevolo, p.135). 56

[181]

A

partir

dos

estudos

promovidos

por

Teixeira57

foi

possível aprofundar os traços dos espaços públicos portugueses sublinhando-se particularidades como a diversidade das praças: “Uma característica importante da tradição urbana portuguesa é a multiplicidade de praças dentro de um mesmo núcleo urbano. É habitual

encontrarem-se

nas

cidades

portuguesas

diferentes

praças para diferentes funções: funções de mercado, em espaços que muitas vezes tinham a sua origem em campos e em terreiros localizados à margem das malhas urbanas e que posteriormente se

transformavam

nomeadamente

os

medievais

as

políticas

e e

em

praças

campos

urbanas;

associados

praças

de

às

armas

administrativas,

em

funções

que

torres

militares, de

menagem

seiscentistas;

funções

se

incluem

as

praças

associadas ao poder municipal, onde se localizavam a Casa de Câmara e o pelourinho; funções religiosas, associadas à origem de alguns destes espaços como adros de igreja, terreiros de igrejas matrizes ou de conventos. Esta multiplicidade de praças associadas a diferentes funções, que encontramos inscrita nas cidades portuguesas de diferentes períodos, é rigorosamente formalizada nos traçados urbanos setecentistas, em que habitualmente encontramos pelo menos duas praças: uma associada ao poder político, outra ao poder religioso. A forma das praças surge inevitavelmente associada ao processo que lhes deu origem. Existem praças geradas a partir da

íntima

aparentemente

relação não

dos

traçados

planeados,

com

a

urbanos estrutura

vernáculos, física

do

território em que se implantam e praças que resultam de acções de planeamento inspiradas em modelos eruditos. No primeiro caso, estes espaços resultam habitualmente do cruzamento ou do entroncamento de caminhos e são bastante ricos do ponto de 57

Director da licenciatura em Arquitectura e do Centro de Estudos de Urbanismo e de Arquitectura do Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa e entrevistado no âmbito dos trabalhos desta dissertação.

[182]

vista morfológico, apresentando uma grande variedade de formas resultantes das situações topográficas em que se situam e dos tipos

de

confluências

de

caminhos

a

partir

dos

quais

se

geraram. Estas praças são normalmente pontuadas por edifícios de natureza religiosa e são muitas vezes geradoras dos tecidos urbanos que em torno delas se desenvolvem. No segundo caso, as praças que resultam de acções de planeamento, embora variando na sua forma e na sua relação com a malha urbana envolvente, de acordo com as épocas da sua construção e as respectivas culturas

arquitectónicas,

ortogonal.

O

portuguesas, adicionando,

adoptam

processo

habitual

através

de

gera

ainda

de

malhas outras

geralmente

uma

crescimento sucessivas

situações

das que

forma cidades se

vão

potenciadoras

de

futuras praças. É assim que no encontro de malhas urbanas construídas em momentos diferentes restavam por vezes espaços residuais, que em tempo se viriam a estruturar como praças urbanas” (Teixeira: 2001; 11). Os primeiros jardins e parques urbanos surgem ao longo do século XVI em Paris como elementos de enquadramento dos palácios

e

edifícios

reais

mas

também

como

lugares

de

sociabilidade para os grupos que viram na segregação social uma

modalidade

natureza,

a

de

elitização

tranquilidade

são

e

destaque. valores

A

harmonia,

assumidos

e

a que

encaixavam muito bem nos novos espaços de expansão, através da composição

das

ruas

e

eixos

rectos

traçados.

Criavam-se

ambientes de descoberta, aventura, inesperados e de intimidade que

deliciavam

as

elites

e

as

faziam

dispensar

as

outras

realidades urbanas. Os jardins e parques urbanos tiveram um enorme sucesso e reproduziram-se até ao século XVIII até sob a forma de Passeios Públicos, como sucedeu em Lisboa em 1764.

[183]

5.5. Cidade moderna Mais

uma

vez,

apela-se

para

a

compreensão

da

complexidade de um período que em termos gerais se estende desde os finais do século XVIII até meados do século XX. As guerras mundiais, as revoluções industriais e culturais entre outras

são

os

desenvolvimento

exemplos dos

mais

óbvios

transportes

com

dessa

complexidade.

O

grandes

implicações

na

vida económica e social foram responsáveis pelo crescimento horizontal das cidades enquanto outros artifícios mecânicos e técnicos

se

responsabilizaram

pelo

seu

crescimento

na

vertical.

5.5.1. Ambiente Económico Já tinham ocorrido muitas revoluções desde o início da Humanidade, mas nenhuma teve a capacidade de aceleração das sociedades no sentido da mudança como a revolução industrial. A

Revolução

Industrial,

ocorrida

inicialmente

na

Inglaterra, integra o conjunto das “Revoluções Burguesas” do século XVIII, responsáveis pela crise do Antigo Regime, na passagem do capitalismo comercial para o industrial58. No seu sentido mais pragmático, a Revolução Industrial significou

a

substituição

da

ferramenta

pela

máquina

e

contribuiu para consolidar o capitalismo como modo de produção dominante. Esse momento revolucionário, de passagem da energia humana

para

motriz,

é

o

ponto

culminante

de

uma

evolução

tecnológica, social e económica, que vinha a processar-se na Europa desde a Baixa Idade Média.

Os outros dois movimentos que a acompanham são a Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa. 58

[184]

Nessa

evolução,

industrial

conheceu

a

produção

duas

etapas

manual bem

que

antecede

definidas,

a

dentro

do

processo de desenvolvimento do capitalismo: ►

O artesanato foi a forma de produção característica da Baixa Idade Média, durante o renascimento urbano e comercial, sendo representado por uma produção de carácter familiar, na qual o produtor (artesão), possuía os meios de produção (era o proprietário da oficina

e

das

ferramentas)

e

trabalhava

com

a

família na sua própria casa, realizando todas as etapas da produção, desde o arranjo da matériaprima, até o acabamento final; ou seja, não havia qualquer divisão do trabalho ou especialização. Em algumas situações o artesão tinha junto a si um ajudante, porém não assalariado, dado que realizava o mesmo trabalho pagando uma quantia determinada pela utilização das ferramentas. ►

É

importante

produção

lembrarmos

artesanal

que

estava

nesse sob

período

controle

a das

corporações de ofícioe o comércio encontrava-se sob controle

de

associações,

limitando

o

desenvolvimento da produção; ►

A manufactura predominou ao longo da Idade Moderna, resultando da ampliação do mercado consumidor com o desenvolvimento do comércio monetário e financeiro. Nesse

momento,



ocorre

um

aumento

na

produtividade do trabalho, devido à divisão social da produção, onde cada trabalhador realizava uma etapa na confecção de um produto. A ampliação do mercado

consumidor

alargamento

do

relaciona-se

comércio,

tanto

directamente

ao

em

ao

direcção

oriente como em direcção à América, permanecendo o lucro

nas

mãos

dos

grandes

mercadores.

Outra

[185]

característica desse período foi a interferência do capitalista

no

processo

produtivo,

passando

a

comprar a matéria prima e a determinar o ritmo de produção,

uma

vez

que

controlava

os

principais

mercados consumidores.

A

partir

da

máquina59,

fala-se

numa

primeira,

numa

segunda e até numa terceira e quarta Revolução Industrial. Porém, se concebermos a industrialização como um processo, seria mais coerente falar-se num primeiro momento (energia a vapor no século XVIII), num segundo momento (energia eléctrica no século XIX) e num terceiro e quarto momentos representados, respectivamente,

pela

energia

nuclear

e

pelo

avanço

da

informática, da robótica e do sector de comunicações ao longo dos séculos XX e XXI. A Inglaterra industrializou-se cerca de um século antes de

outras

nações,

por

possuir

uma

série

de

condições

históricas favoráveis entre as quais se destacam: o capital acumulado durante a fase do mercantilismo; o vasto império colonial

consumidor

e

fornecedor

de

matérias-primas,

especialmente o algodão; a mudança na organização fundiária, com a aprovação dos enclausures responsável por um grande êxodo no campo, e consequentemente pela disponibilidade de mão-de-obra abundante e barata nas cidades.

A máquina e a sua invenção abriu as portas a outros desenvolvimentos estruturalmente relacionados com a expansão da actividade industrial: 1733, John Kay inventa a lançadeira volante. 1767, James Hargreaves inventa a “spinning janny”, que permitia a um só artesão fiar 80 fios de uma única vez. 1768, James Watt inventa a máquina a vapor. 1769, Richard Arkwright inventa a “water frame”. 1779, Samuel Crompton inventa a “mule”, uma combinação da “water frame” com a “spinning jenny” com fios finos e resistentes. 1785, Edmond Cartwright inventa o tear mecânico.

59

[186]

Outro factor determinante, foi a existência de um Estado liberal na Inglaterra desde 1688, surgido com a Revolução Gloriosa. Essa revolução que se seguiu à Revolução Puritana (1649),

transformou

a

Monarquia

Absolutista

inglesa

em

Monarquia Parlamentar, libertando a burguesia de um Estado centralizado e intervencionista, que dará lugar a um Estado Liberal Burguês na Inglaterra um século antes da Revolução Francesa. Este período que nos transporta até meados do século XX observa

ainda

um

outro

momento

fundamental



a

grande

depressão de 1929. A crise económica desencadeada a partir deste

ano,

quando

da

quebra

da

Bolsa

de

Valores

de

Nova

Iorque, reflecte a crise mais geral do capitalismo liberal e da democracia liberal. No período entre guerras (1919 – 39), a economia procurou encontrar caminhos para a recuperação, a partir

do

liberalismo

de

Estado,

ao

mesmo

tempo

que

se

consolidava o capitalismo monopolista. Mesmo nos EUA, as leis anti-monopólio

perdiam

o

efeito

e

grandes

empresas



industriais e bancárias – tomavam conta do cenário económico, protegidas

pela

política

não

intervencionista

adoptada

principalmente a partir de 1921. Convirá americano.

tratar

Com

com

um

efeito,

pouco

desde

o

mais

de

detalhe

o

caso

final

do

século

XIX,

a

indústria norte americana conheceu um grande crescimento, no quadro da Segunda Revolução Industrial. Em

1912

foi

eleito

o

presidente

Woodrow

Wilson,

do

Partido Democrata, a partir da defesa da Nova Liberdade, que começou a ser aplicada com a criação de leis trabalhistas específicas

a

marinheiros

e

privilégios

de

algumas de

leis

pequenos

categorias que

profissionais

pretendiam

grupos,

eliminar

através

de

os

como

os

grandes

mecanismos

que

coibiam o controle de mercado, aperfeiçoando a Lei Anti trust.

[187]

No

entanto,

política

e

a

o

início

economia

da

passou

Primeira a

ser

Guerra

anulou

dominada

por

essa

Trusts,

Holdings e Cartéis. A produção norte americana deu um salto gigantesco em vários sectores, destacando-se a indústria bélica, de material de campanha, de alimentos e mesmo de sectores destinados ao consumo interno, uma vez que o potencial de consumo no país aumentou com a elevação do nível de emprego; ou ainda para a exportação, principalmente para a América Latina, tomando o lugar que tradicionalmente coube à Inglaterra. Terminada a Guerra, realizou-se a Conferência de Paris, onde

os

três

grandes

tomaram

as

principais

decisões

e

impuseram os tratados aos países vencidos. No entanto, apesar da

participação

do

presidente

Wilson,

os

EUA

não

criaram

mecanismos que garantissem a sua participação nas reparações de guerra ou o pagamento dos empréstimos e das vendas aos países aliados, ao mesmo tempo que não reivindicaram nenhum território colonial. A

partir

de

1922

a

França

e

a

Inglaterra

processo de recuperação e passam a saldar

começam

o

as suas dívidas com

os EUA: porém, esse procedimento só será colocado em prática, na medida em que os alemães pagarem as reparações de guerra. A partir de 1924, os EUA passam a colaborar com a recuperação da economia

alemã,

assim

pagamento

o

fazendo das

investimentos

no

reparações

consequentemente

e

país,

garantindo das

dívidas da época da Guerra esse período, após o ano de 1921, até

a

crise

de

29

ficou

conhecido

como

Big

Bussines,

caracterizado por grande desenvolvimento tecnológico, grande aumento da produção em novas áreas como a automobilística, geração de emprego e elevação do nível de consumo das camadas médias

urbanas.

Os

edifícios

tornaram-se

os

símbolos

da

prosperidade norte americana. A política económica adoptada pelos republicanos estimulava o desenvolvimento industrial em

[188]

sectores variados e a concentração de capitais ao mesmo tempo que inibia as importações; essa política, caracterizada pelo nacionalismo,

traduziu-se

em

preconceito

e

intolerância

do

ponto de vista social A primeira expressão da crise ocorre no campo, na medida em que as exportações diminuíam, os grandes proprietários não conseguiam saldar as dívidas realizadas no período da euforia, além disso eram forçados a pagar altas taxas para armazenar os cereais,

acumulando

dívidas

que

os

levou,

em

massa,

à

falência. As dificuldades sentidas no campo reflectiram-se nas cidades com a crise no consumo pois o poder de compra diminuía na medida em que a mecanização da indústria passou a gerar mais

desemprego;

ao

mesmo

tempo,

promoveu

a

quebra

de

instituições bancárias, que confiscavam as terras e ao mesmo tempo não recebiam os pagamentos dos industriais que passavam a não vender sua produção. A

crise

espalhou-se

rapidamente

pelo

mundo,

devido

a

interdependência do sistema capitalista. Os EUA eram o maior credor dos países europeus e latinos e passaram a exercer forte pressão no sentido de receber o capital em falta.

5.5.2. Política, cultura e religião A condições

Revolução de

Industrial

vida

do

alterou

trabalhador

profundamente braçal,

as

provocando

inicialmente um intenso deslocamento da população rural para as cidades, com enormes concentrações urbanas. A produção em larga escala e dividida em etapas irá distanciar cada vez mais o

trabalhador

do

produto

final,



que

cada

grupo

de

trabalhadores irá dominar apenas uma etapa da produção. Na esfera social, o principal desdobramento da revolução foi o

[189]

surgimento classe

do

social

proletariado definida.

urbano

Vivendo

(classe

em

operária),

condições

como

deploráveis,

tendo o cortiço como moradia e submetido a salários miseráveis com longas jornadas de trabalho, o operariado nascente era facilmente

explorado,

devido,

à

inexistência

de

leis

protectoras. O desenvolvimento das ferrovias absorveu grande parte da mão-de-obra masculina adulta, provocando em escala crescente a utilização de mulheres a e crianças como trabalhadores nas fábricas têxteis e nas minas. O agravamento dos problemas socioeconómicos com o desemprego e a fome, foram acompanhados de outros problemas, como a prostituição e o alcoolismo. Os

trabalhadores

destacando-se Ludlan),

o

reagiam

movimento

caracterizado

operários,

e

o

das

mais

“ludista”

pela

diferentes

(o

nome

destruição

movimento

das

“cartista”,

vem

formas, de

Ned

máquinas

por

organizado

pela

“Associação dos Operários”, que exigia melhores condições de trabalho

e

o

fim

do

formação

de

evoluíram

lentamente

voto

associações em

censitário. denominadas

suas

Destaca-se

ainda

“trade-unions”,

reivindicações,

a

que

originando

os

resultante

da

primeiros sindicatos modernos” (Hobsbawm: 1994) O

divórcio

Revolução

entre

Industrial,

capital é

e

trabalho

representado

polarização entre burguesia

socialmente

pela

e proletariado. Esse antagonismo

define a luta de classes típica do capitalismo, consolidando esse sistema no contexto da crise do Antigo Regime. Neste período das revoluções (Rev. francesa, americana, industrial, ...) é enganador que as cidades sofreram também uma revolução do mesmo tipo ou ainda que só se deu a expansão urbana

onde

industriais.

se

assiste

Sennett

à

presença

considera

até

das que

grandes “(...)

unidades

parler

de

«révolution urbaine» et de «cité industrielle» est une maniére

[190]

trop rapide – et presque trompeuse- de décrire les changements qui se sont produits il y a un siécle. La premiére expression égare, car elle suggére que la croissance des villes du XIX siécle a été si importante que ces derniéres n’avaient plus aucun rapport avec les villes qui existaient auparavant. La seconde tromphe également, en suggérant que cette croissance s’est surtout manifesté dans les villes oú la population se consacrait à la production dans des usines géants. En réalité, le plus fort acroissement démographique a eu lieu dans des villes oú il existaient peu de grandes industries- il s’est produit dans les capitales“ (Sennett: 1979; 109). Isto significa que o aumento de permeabilidade urbana ocorrido do século XV ao século XVIII (praças, avenidas, ruas de grande extensão), num contexto de uma fraca dinâmica de crescimento político

urbano

vai

e

acolher

como

significado

uma

nova

de

cidade

um

que

novo

se

poder

densifica

económica e demograficamente e que torna mais complexas as relações de sociabilidade à escala inter-classista. A rua e o bairro, mais do que a cidade, passaram a ser os locais mais privilegiados

para

concentrar

grande

parte

da

população

trabalhadora, com custos pesados no direito à Cidade, sendo mais uma nova forma de dominação. Para camadas

além

mais

desta

humildes,

contracção outro

na

processo

territorialidade de

das

concentração

se

verifica no comércio a retalho em Paris e Londres, com a introdução

dos

experimentar

“grandes

sem

armazéns”.

obrigação

de

Estes

comprar

permitiam

ver

desenvolvendo

e a

possibilidade de promover a imagem pública dos indivíduos sem exigir

o

desenvolvimento

de

sociabilidades

dos

espaços

abertos. Todavia, o incremento e o aparecimento do significado do objecto (semiologia) aprofunda-se e faz com o novo comércio a

retalho

estimule

a

permanência

da

exposição

pública,

designadamente, através do vestuário sobretudo a partir de meados do século XIX.

[191]

A

dinâmica

cultural

constituindo-se intelectuais, entre

em

objecto

reunindo

outros.

afecta

Por

fortemente

favorito

escritores,

isso,

a

a

das

discussões

filantropos,

par

do

cidade,

políticos,

desenvolvimento

e

estruturação dos princípios e técnicas que virão a constituir as raízes do planeamento moderno e que têm como principais impulsionadores

as

reflexões

dos

três

séculos

anteriores,

surgem críticas contundentes, ainda marcadas pelo moralismo, sobre as características emergentes da cidade industrial. A obra de Engels sobre a Situação da Classe Trabalhadora em Inglaterra,

publicada

em

1845,

no

capítulo

referente

às

grandes cidades descreve enfaticamente as condições miseráveis dos bairros, casas, alimentação e vestuário das classes mais modestas. A par destas críticas, surgem as propostas sociourbanísticas

onde

as

comunidades

autosuficientes

eram

a

hipotética alternativa ao mundo capitalista60. Em síntese, na primeira metade do século XIX sublinha-se um esforço de denúncia e de medidas correctoras de carácter higienista e reformistas observáveis em intervenções como: ►

Pavimentação

de

ruas,

controle

higiénico

e

distribuição de água; ►

Controle

sobre

edificações

privadas

para

que

cumpram as disposições de higiene e segurança; ►

Instrumentos

de

apoio

e

promoção

da

habitação

social; ►

Reforço

da

capacidade

das

autoridades

para

expropriar o solo destinada ao caminho-de-ferro ou ao saneamento;

60

Cf. Françoise Choay, L’Urbanisme, utopies et réalités, 1965, em que é feita uma exaustiva análise dos exercícios teóricos saídos do desafio que foi lançado pela Revolução Industrial e correspondente explosão urbana.

[192]

Reestruturação



modo

a

das

autoridade

impulsionarem

disposições

e

higiénicas

de

acção

local

de

a

coordenarem

todas

as

e

de

fiscalização

de

edificação, actividades, entre outras.

Política e Igreja são entidades que foram anuladas em função do todo poderoso mundo capitalista, perdendo aquelas momentaneamente a capacidade de afirmação neste período de vertigem industrial e explosão urbana. De facto, continua a impôr-se a ideia de tornar a cidade uma máquina de produção eficiente à imagem e semelhança de qualquer outra unidade industrial. A lógica produtivista imposta à cidade obriga-a a ter uma atenção especial aos seus factores produtivos e, em particular,

ao

controle

social

de

uma

mole

imensa

de

indivíduos afectados por condições de vida paupérrimas. A aqui

raiz uma

pragmática-técnica justificação

decisivamente

o

mundo

para

da

urbanística

se

moderna

generalizar,

político-económico

tem

apoiando

emergente

com

a

revolução industrial. A organização racional concebida para satisfazer

as

necessidades

do

sistema

produtivo,

quer

no

âmbito da reforma e actualização da cidade existente quer no das

novas

cidades,

apresenta

como

objectivos

gerais

os

seguintes:

Garantir a reserva das áreas necessárias para a criação de novas unidades industriais e de armazenagem, infra-estruturas de transportes e interfaces (Portos, Estações, eixos viários); Promover o transporte de pessoas e bens na cidade e na sua envolvente, obrigando a romper com estruturas urbanas antigas e simbólica importantes (muralhas, cercas, etc.) e criando em seu lugar as circulares (rondas em castelhano) e avenidas; Facilitar as ligações entre pontos fundamentais do sistema como a articulação entre indústrias, portos e actividades económicas, ligações casa-trabalho, centralidades urbanas, etc.; Assegurar o controle social através da acção policial e militar e até informal num espaço em violenta dinâmica de crescimento, onde desapareceram as

[193]

tradicionais formas de relação interpessoal, controle informal da cidade medieval e renascentista; Organizar a produção de um novo espaço social (dominantemente residencial e comercial) representativo de uma nova sociedade e classes em ascensão (burguesia industrial, funcionalismo, técnicos, etc.).

Figura 14 - Exemplo da intervenção de Haussman em Paris

Figura 15 - Extensão e tipos de intervenção de Haussman e Paris

[194]

Fonte:http://images.google.pt/imgres?imgurl=www.scottf.com/ACityFractured/UrbanApproaches/haussman

Como actuações mais marcantes desta segunda metade do século XIX, e das quais resultaram por mimetismo dezenas de outras intervenções, merecem destaque: ►

a

imensa

reforma

desenvolvida Haussmann, estrutura

intra-urbana

entre a

de

1853

partir avenidas

da e

e

de

1869,

qual

se

praças

Paris,

pelo

Barão

constituiu

hoje

a

facilmente

reconhecível no tecido urbano pelo seu protagonismo comercial e cultural; ►

os

“ensanches”

concebidos

por

de

Barcelona

Castro

e

e

Cerdá,

Madrid

de

1860

respectivamente,

representam exemplos próximos do furor normativo e regulamentar, de acordo com rígidos projectos de conjunto. Finalmente, impõe-se uma abordagem à dimensão imaterial da cidade enquanto matriz de sociabilidades e de comunicação. O esforço actual tem sido orientado para a distinção do espaço

[195]

público - terreno da comunicação - e política dos espaços públicos - formas urbanas (Habermas, 1978; Ferreira, 2000; Claval, 2001), dado que até ao século XIX os dois conceitos se encontravam sobrepostos. Com efeito, os espaços urbanos livres destinados

ao

mercado,

às

armas

ou

ao

lazer

cumpriam

um

fundamental papel de inclusão e fortalecimento comunitário, construindo um sentimento de pertença só possível através de um conhecimento actualizado e pormenorizado do quotidiano. Habermas identifica a burguesia e o seu protagonismo do século XIX como responsável maior pela transformação que irá afectar

o

espaço

público

iniciando

e

fortalecendo

uma

descolagem que irá esvaziando funcionalmente a cidade e os seus espaços subtraídos à apropriação exclusiva. Passar da oralidade

dominante

na

comunicação,

que

exige

a

devida

espacialização, para a mensagem escrita (e mais tarde mensagem visual) que não é tão exigente em território, ou seja, é mais portátil, é uma transferência

que teria de ter implicações

inovadoras entre as quais a crescente “reclusão” doméstica ou a procura de espaços especializados (cafés, clubes, ...) que são

correlativos

urbanos.

Aliás

é

de nos

um

menor

cafés

afluxo

que

são

aos

espaços

concebidos

públicos

artigos

de

jornal61 relacionados com a política, artes ou filosofia. É esta imprensa que, no século XIX, se transforma em imprensa de opinião e em magazine literário e artístico (Rodrigues: 1985; 77) O público torna-se, assim, uma instância de decisão e legitimidade, na medida em que se arroga o direito e o dever de informar e de ser informado, situando para isso a sua legitimidade sob o modo do «saber», em oposição à modalidade da legitimidade do soberano. A opinião pública aparece assim como a instância do saber, dos factos, da honestidade, da 61

A imprensa periódica, aproveitando os avanços na tipografia, instala-se nos inícios do século XVIII, cativando mais leitores à medida que se vai generalizando a capacidade de leitura por parte da população.

[196]

razão, em luta contra o querer, associado à corrupção, ao obscurantismo despótico do soberano. Neste contexto surge a reivindicação da transparência dos actos do poder perante o julgamento

da

opinião

pública

instituída

como

tribunal

de

recurso. Constituída pelos proprietários de bens e/ou de saber, isto

é,

pelos

detentores

de

um

capital

económico

e/ou

simbólico, segundo a ordem social burguesa, a sociedade civil surge como uma nova leitura de esfera pública da democracia grega, na medida em que, aos espaços concretos da notoriedade, à agora,, lhes substitui um espaço abstracto, separado, cada vez mais autónomo, condição indispensável à instauração de uma publicidade

circulante,

regida

pelas

leis

modernas

da

mercadoria. É assim que a mercadoria, reduzida à sua mera componente formal de objecto de troca, subordina a si todas as restantes dimensões sociais, impondo campo económico a sua legitimidade aos

restantes

campos

sociais,

nomeadamente

o

político,

o

religioso, o familiar, o lúdico: todos os campos regidos pelas regras

de

subordinam

reprodução, ao

campo

tanto

da

biológica

produção

como

económica,

social,

ajustando

se aos

valores deste campo os seus próprios interesses e projectos. É neste contexto que o próprio espaço público se autonomiza e transforma em objecto de troca, numa pura forma abstracta de publicidade,

na

forma

jornalística.

De

veículo

da

opinião

publicamente produzida nos espaços de convivência que eram as sociedades, os clubes e os cafés, onde o cidadão, o honnète homme, o proprietário, o notável se confundiam no sujeito de um

saber

esclarecido

que,

na

argumentação

pública,

se

elaborava e se tomava visível, a imprensa toma-se, a pouco e pouco, fazedora de opinião, substituindo-se ao trabalho de elaboração

colectiva,

reservando

esse

trabalho

a

uma

nova

classe profissional anónima, os jornalistas.

[197]

As

funções

transferidas

conviviais

quer

para

o

do

espaço

domínio

público

privado,

são,

cada

então,

vez

mais

intimista, ao abrigo do olhar e da intrusão de estranhos, quer para a escrita jornalística, convertendo-se o espaço público num território anónimo, num espaço de circulação e passagem. Por isso, Sennett afirma que “plus la communauté formée par une personnalité collective est limitée, plus l’expérience des sentiments fraternels devient destructrice“ (Sennette: 1992; 203). Esvaziando assim toda a sociabilidade concreta, o espaço público desmaterializa-se e torna-se sem rosto, repercutindo ao nível da privacidade uma nova forma de visibilidade social, espécie de miragem espectacular de todas as modalidades de convivência, feita de desnudamento e mascaramento sem limite dos indivíduos. A fuga ao controlo, à vigilância, ao olhar dos outros, formas

de

que

se

reveste

o

projecto

de

preservação

da

autonomia individual no seio do espaço público e a natureza absoluta

da

individual, notoriedade

realização cortada do

nome,

do

«eu»,

de

toda

às

regras

e

a

busca

qualquer

arcaicas

de

da

identidade

referência filiação

e

à de

aliança, corresponde ao voyeurismo do espectáculo intimista dos media. São exemplos eloquentes da mesma lógica da morte do público

e

do

desnudamento

do

privado,

de

desorganização

burguesa do espaço social.

5.5.3. Das Formas Urbanas dos Espaços Públicos A herança do Renascimento é ainda muito visível neste período por responsabilidade sobretudo dos espaços públicos. Interessa notar que os espaços estão lá, mas os seus usos e práticas

(ritmos,

modalidades,

necessidades,

...)

são

diferentes. A Avenida vê os transportes mecânicos ganharam

[198]

espaço às deslocações pedonais e as praças cedem importância à rua e a espaços colectivos mas de natureza privada. A

rarefacção

do

encontro

e

da

vivência

dos

espaços

abertos é compensado pela agradabilidade da oferta privada (clubes, cafés, ...) e pela circulação de informação através da

imprensa

desvinculando

os

acontecimentos

ou

o

seu

conhecimento à co-presença nos espaços públicos urbanos. O

debate

iniciado

nos

Estado

Unidos,

muito

afectados

pela industrialização e por um crescimento urbano demográfico violento obrigou-se a reflectir a cidade e os seus espaços públicos desde muito cedo. Por razões de comodidade, os historiadores situam este debate à volta de 1820, com a morte de Thomas Jefferson, amplamente hostil à industrialização e à cidade. A fuga destes modelos conduziram à conhecida valorização do modelo da casa e do

jardim,

afastados

da

cidade

e

próximos

da

natureza,

buscando o ideal do campo e dos seus valores e referências, através de três tipos de defensores: ►

Os

transcendalistas

ruralidade

como

que

defendiam

fonte

o

campo

indentitária

do

e

a

povo

americano; ►

Os

reverendos

promovendo

a

ideia

de

família

enquanto célula privilegiada para a cristalização e perpetuação dos valores que afectam a comunidade; ►

As

feministas

domésticas

valorizando

a

esfera

familiar e a organização da casa.

Sendo

o

universo

doméstico

o

mais

procurado,

os

arquitectos desenham desde o século XIX os primeiros subúrbios românticos

para

as

famílias

típicas

americanas.

A

cidade

[199]

confina

a

sua

acção

à

aculturação

dos

imigrantes

e

à

actividade económica, enquanto o subúrbio se afirma como o exemplo

perfeito

da

qualidade

de

vida.

Acresce

a

esta

deambulação americana que o mundo doméstico passa a ser o centro das sociabilidades como também pode ser aferido através de

cidades

abertos

como



Los

pode

Angeles ser

onde

a

ausência

descodificada

a

dos

espaços

partir

destes

pressupostos. Diminuindo os contactos heterogéneos, ao mesmo tempo que cresce

a

diversidade

na

população

americana,

o

papel

dos

espaços públicos é minimizado de modo a evitar os contactos anónimos e imprevisíveis. Pelo contrário, ao longo do século XX são inventadas novas formas de sociabilidade através dos espaços privados abertos ao

público de vocação económica. É

aí, por isso, que nascem os centros comerciais e os parques temáticos. Na Europa, por outro lado, é evidente a presença das ruas, avenidas, mercados, praças ou jardins que, no seu todo, assumem uma categoria espacial bem vincada na cidade. A essa categoria espacial sobrepõe-se-lhe uma outra, relacionada com as práticas aí desenvolvidas, derivando assim para a dimensão social e política. Viver em conjunto e aceitar a diferença é um exercício de que os espaços públicos urbanos são a matriz mas que as orientações culturais e morais condicionam. Há, assim,

uma

integração

dos

espaços

públicos

no

contexto

político elevando-os para um plano que não se detém apenas no desenho

da

cidade

para

evoluir

para

a

realidade

social,

cultural e política. No período que estamos a tratar, marcado pela emergência do

modernismo

arquitectura

e

e

funcionalismo

urbanismo

na

abordagem

alhearam-se

dos

ao

espaços

urbano,

a

públicos,

excluindo aqueles que eram imprescindíveis para o ordenamento

[200]

e racionalidade do funcionamento urbano, designadamente, os que prestam serviço à mobilidade. Isso traduz

mesmo

a

percebeu

realidade

Ghorra-Gobin

da

primeira

quando

metade

incisivamente

do

século

XX

considerando que “(...) les grandes théories architecturales du mouvement moderne ont accordé peu d'importance au thème des espaces

publics.

Aussi

toute

la

logique

qui

prévalait

à

l'institutionnalisation et à l'avènement des espaces publics, en tant que mise en scène de la société civile, a disparu au profit

des

politiques

publiques

limitées

à

des

objectifs

essentiellement fonctionnalistes. L'aménagement urbain s'est pratiquement enfermé dans une logique d'équipements dont tous les

éléments

étaient

prescris

et

fixés

par

des

normes

administratives“. Insiste a mesma autora na ideia que “(…) Face à cette tendance

forte

ingénieres)

d'autres

influencés

par

professionnels les

courants

(architectes en

faveur

et

de

la

protection des quartiers historiques et la prise en compte de la valeur patrimoniale de la ville, ont choisi de préserver certains

espaces

publics.

Ces

derniers

le

plus

souvent

localisés dans des quartiers historique sont été l'objet d'une certaine muséification. Certains espaces publics ont ainsi été transformés touristes

en et

zones à

la

piétonnes clientèle

réservées des

exclusivement

commerces

de

luxe

aux des

quartiers centraux “62. Contudo,

o

desinvestimento

correlativo aumento

em

espaços

públicos

com

o

da administração autárquica e central na

preocupação com a mobilidade entre os territórios urbanos63,

Cynthia Ghorra-Gobin, L’utopie de la ville au 21 ème siécle : entre nouvelle donne politique et mythes fondateurs, 2000. 62

63

É hoje possível que nas deslocações urbanas nunca se aflore à superfície da cidade, pois desde a garagem de casa à garagem do local de trabalho, passando pelo crescente fechamento em recintos comerciais, o indivíduo pode passar todo o tempo em espaços colectivos mas

[201]

abriu espaço para a oportunidade do sector público intervir sobre

a

produção

de

espaços

de

utilização

colectiva

mas,

naturalmente, orientados para a promoção económica, ou por outras palavras, para o consumo. Estes novos espaços públicos, que

reproduzem

espaços

cada

públicos

vez

mais

urbanos,

intensamente

sem

os

automóveis,

tradicionais

com

toponímia

adequada, segurança máxima, riscos mínimos, iluminação natural e com formas urbanas decalcadas da cidade tradicional, podem ser

centros

comerciais,

parques

temáticos

ou

galerias

comerciais e que atendendo aos resultados tiveram um enorme êxito. O problema reside não na forma mas no conteúdo dos novos espaços. Cynthia Ghorra-Gobin é clara quando escreve: “Les Espaces Publics sont offerts ou encore ouverts à tout individu quel que soit sa culture, sa religion ou encore son statut social. Ils sont, de ce fait, des espaces de la rencontre et de la promiscuité sociale dans un contexte d'anonymat. Mais en mettant

en

scène

la

société

civile

et

sa

diversité,

les

espaces publics mettent en scène les inégalités sociales tout en

offrant

le

territoires

de

privilège la

ville,

de les

relier riches

entre et

eux

les

différents

pauvres.

Ils

deviennent des espaces communs aux différents quartiers et groupes sociaux. D'où leur caractère et leur légitimité en tant qu'espaces de médiation. Les Espaces Publics participent des luttes sociales et jouent ce rôle d'espaces de médiation symbolique entre classes sociales: on manifeste dans la rue pour

faire

entendre

sa

voix

et

négocier

dans

seguiu

as

recomendações

la

sphère

politique“ (2000 ; 88). A

cidade

moderna

precisas

e

oportunas da Carta de Atenas (1933), elaborada no âmbito do IV Congresso do CIAM, ficando assim definido que a forma seguirá a função e que esta será sempre menos rica que qualquer espaço

privados. A inibição é completa quanto À possibilidade da cidade cumprir o seu tradicional papel de integração social e cultural.

[202]

em que a flexibilidade e a polivalência sejam possíveis. As praças, os rossios ou os largos desaparecem definitivamente. Na base deste documento esteve a análise de 33 cidades e respectivos problemas, sublinhando-se a necessidade de lhes conferir

ordem

sobrevivência.

e As

funcionalidade orientações

para

centrais

garantir

da

Carta

a

de

sua

Atenas

podem, assim, ser definidas como:



Necessidade

de

regional,

modo

de

crescimento

planeamento a

nas

supramunicipal

integrar

a

cidade

potencialidade

e

e

o

seu

naturais

e

recreativas dos territórios envolventes; ►

Crítica ao modelo de cidade até aí desenvolvido pela sua escassez em áreas verdes ou de referências à natureza, de equipamentos, pela promiscuidade de usos, etc.;



Promoção de um urbanismo higienista e moralista em que



tem

desportivas

cabimento ou

as

ligadas

actividades à

cultura

quotidianas física

e

actividades culturais; ►

Preocupação com o tecido suburbano povoado por uma população desnidade limites



de

baixa

condição

populacional,

social,

chegando

as

com

elevada

tensões

a

preocupantes;

Crítica da cidade jardim de Ebenezer Howard apontase para a habitação colectiva pois acredita-se que esta

evitará

a

generalização

do

individualismo

escravizante; ►

Classificação funcional da cidade em 4 dimensões fundamentais:

habitar,

trabalhar,

recrear

e

[203]

circular. Só o zonamento do espaço urbano poderá traduzir na prática este princípio; ►

Os

vários

elementos

urbanos

devem

estar

hierarquizados e distribuírem-se de acordo coma sua posição no sistema e subsistema; ►

Consciência do valor estratégico do solo.

5.6. A “História” que se está a escrever O distanciamento histórico é fundamental para reconhecer e distinguir os traços estruturantes de realidades passadas de traços meramente conjunturais ou dependentes dos primeiros. Desde o início desta investigação que se sublinha a ingratidão do momento em ocorre, já que apenas se apenas se reconhecem sinais de mudança, na forma, localização e uso dos espaços públicos urbanos, com implicações nas análises que deles se podem

fazer,

resultando

conclusões

também

desfocadas.

Em

paralelo está a inexistência desse afastamento temporal face aos acontecimentos que se pretendem descrever ou estudar. As referências aos espaços públicos e à sua importância vital para a cidade e para as respectivas comunidades,feitas em

documentos

urbanística, caracterização

de

referência

devem dos

ser EPU.

para

convocados

Aliás,

a

a

prática para

crise,

ou

e

gestão

esta

breve

pelo

menos

o

reconhecimento do seu protagonismo, surge amplamente referida na bibliografia (cuja parte substancial se encontrará

decerto

no respectivo capítulo desta tese), pelo que não se estranha a progressiva reacção das entidades com competências reguladoras ou

orientadoras

no

sentido

de

inverterem

as

tendências

observadas. Mas o que fica é que se pressente a agonia dos espaços

públicos

e,

por

isso,

eles

foram

puxados

para

a

ribalta e tornados o centro de discussões e intervenções.

[204]

Resta saber se os esforços de reanimação dos EPU são convergentes ou coerentes entre si. Veremos que, entre lógicas mais abrangente e globais (Conselho europeu de urbanistas, União

Europeia)

e

outras

de

carácter

localista

(Gestão

autárquica), existem mais barreiras que pontes, inviabilizando efeitos mais interessantes no futuro. O distanciamento histórico é fundamental para reconhecer e distinguir os traços estruturantes de realidades passadas de traços meramente conjunturais ou dependentes dos primeiros. Desde

o

início

deste

empreendimento

que

se

sublinha

a

ingratidão do momento em que nos encontramos a realizá-lo já que

apenas

se

apenas

se

reconhecem

forma, localização e uso dos espaços

sinais

de

mudança,

na

públicos urbanos, com

implicações nas análises que deles se podem fazer resultando em conclusões da mesma forma desfocadas. Em paralelo está a inexistência

desse

afastamento

temporal

face

aos

acontecimentos que se pretendem descrever ou estudar. Utilizaremos três tipos de documentos para este efeito: ► Recomendação nº R (86) do Comité de Ministros dos Estados Membros da Comunidade Económica Europeia; ► A Nova Carta de Atenas (2003); ► Regulamento e Manual de uso de Espaço Público.

5.6.1. Recomendação do Comité de Ministros dos Estados Membros da Comunidade Económica Europeia O primeiro sinal público e sonante da agonia sentida nos EPU foi lançado, na Europa, em meados da década de 80, pela

[205]

recomendação NºR(86)11-CEE dedicada à denúncia e a formas de intervenção sobre o problema. Não é só do seu relevo político ou da capacidade de antecipação que resulta o brilho desta recomendação comunitária, mas também do exercício heurístico e delicado que foi capaz de cerzir. É, de longe, o documento que mais

cedo

e

objectivo,

a

melhor

soube

realidade

descrever,

destes

de

espaços

modo em

sucinto

meio

e

urbano,

identificando as maiores ameaças e os mais urgentes desafios. Foi, por tal, seleccionado para servir de entrada a este novo período da História urbana (embora o presente não tenha ainda História...) que sucede ao urbanismo moderno, grosso modo, concluído até aos anos 60 em muitos países do Centro mas prolongando-se pelos 70 em Portugal.

[206]

Figura 16 - Recomendações e princípios constantes na Recomendação NºR(86)11-CEE

A aplicação no terreno dos princípios de valorização dos EPU não é sempre feita de igual forma nem com os efeitos positivos desejados. Relembra-se o destaque dado à acção local por

esta

Recomendação,

designadamente,

de

onde

se

regulamentação

sublinha excessiva,

o

risco,

localização

medíocre, concepção e escolha de detalhes desadequados. Surge ainda

o

privados

apelo e

à

sector

criação

de

associativo

parcerias ou

e

envolvimento

solidário.

Com

de

efeito,

História recente é, então, também marcada por esta sugestão já que de modo crescente, se vai verificando a participação de outras esferas da sociedade no domínio dos espaços públicos. Desde a Administração Central, passando pelas autarquias locais até aos cidadãos organizados em movimentos mais ou

[207]

menos

espontâneos

e

formalizados,

é

possível

encontrar

um

conjunto expressivo de modalidades de intervenção neste campo.

5.6.2. A Nova Carta de Atenas Em documento aprovado em 1998, o Conselho Europeu de Urbanistas, na sua Conferência Internacional, estabelece um conjunto de preocupações, desafios e objectivos que incidem sobre o mundo urbano europeu. Foi, então, adoptada a Nova Carta de Atenas. Na altura ficou definido um ritmo de quatro anos para o seu processo de revisão. Assim, o resultado do primeiro momento de revisão foi aprovado em 20 de Novembro de 2003, onde o Conselho Europeu de Urbanistas, através do grupo de trabalho encarregado de redigir o documento, apresenta uma visão sobre o futuro urbano europeu. Esta visão contempla o desejo que a rede de cidades europeias: Preserve a sua riqueza cultural e a diversidade



como resultado de uma grande espessura histórica; Estabeleça ligações a partir de uma multitude de



redes

temáticas;

Permaneça



criativas

e

competitivas,

mas

busquem

igualmente, a complementaridade e a cooperação; Contribua de maneira decisiva para o bem-estar dos



seus

habitantes

e,

de

modo

mais

geral,

mais

agradável para todos os que a utilizam.

Estas cidades

aspirações,

europeias,

património transversal,

urbano

que

estão

ancoram

visão

impregnados

identitário,

compreendendo

a

a

de

entendido

sua

dimensão

do

futuro

respeito numa

das pelo

perspectiva

física,

social,

[208]

económica e ambiental. Por outro lado, com o quadro colocado fica

também

explícita

a

importância

conferida

ao

aproveitamento e compatibilização destes desejos com a mutação tecnológica e comunicacional em curso. Ou seja, utilizando o léxico da Nova Carta de Atenas - A Cidade Coerente. É ao abrigo desta coerência que as referências aos EPU se

tornam

evidentes,

apresentadas

dado

situam-se

em

que

muitas

rótulas

que

das

dimensões

articulam

aqui

espaços,

pessoas e equipamentos. Torna-se perceptível, então, a sua integração, por exemplo, nas esferas da coerência social, em particular, no quadro das relações entre gerações. Como se pode

ler

na

Nova

Carta

de

Atenas:

“o

objectivo

é

o

de

considerar as necessidades da vida social de todas as idades assim como de ter em conta as reacções e os ritmos específicos das pessoas na reforma

e daqueles mais idosos, nomeadamente

na concepção, uso e localização dos espaços públicos; e de coerência

ambiental

intervenções

a

(acepção

adoptar

pelos

lata)

onde

urbanistas

algumas serão

medidas

e

fundamentais

para que a arte pública e a composição urbana possam alavancar o renascimento das cidades”. Entre estas destacam-se: ►

Relançar a arte urbana e a composição urbana afim de proteger e valorizar as ruas, praças, caminhos pedonais e outros percursos como instrumentos de elo social e de continuidade do quadro urbano;



Promover

as

transformações

necessárias

para

facilitar

os contactos entre pessoas e para multiplicar os locais de paragem e lazer; ►

Favorecer

a

protecção

sistemática

dos

elementos

de

património natural e cultural assim como a protecção e extensão das redes de espaços abertos urbanos de acordo com regras e disposições urbanísticas.

[209]

Alguns aqui

a

dos

ganhar

sinais



tratados

neste

ênfase,

em

especial

a

documento

ideia

de

voltam

património

natural e redes de espaços abertos, remetendo para dimensões nem

sempre

concordantes

com

a

ideia

de

proximidade

ou

vizinhança, em consonância com as actuais políticas urbanas. Todavia,

reconhecendo

o

prolongamento

actual

verifica-se

a

preocupação de reanimar os espaços tradicionais quer pelos efeitos positivos gerados sobre o território urbano quer pelo favorecimento

da

integração

de

comunidades

urbanas

crescentemente multilíngues e multiculturais.

5.6.3. Regulamentos e manuais municipais de utilização dos EPU O Regulamento dos Espaços Verdes Municipais do concelho de

Oeiras

rigidez

é

com

aqui que,

convocado neste

como

caso

em

um

exemplo

Portugal,

da

excessiva

por

vezes

são

tratados os EPU, demonstrando um rigor normatico que não tem correspondência

na

sensibilidade

para

contrariar

a

lenta

agonia a que vão sendo condenados quase sem se dar por isso. Mas, de acordo com a pesquisa efectuada, regras semelhantes são possíveis de encontrar em muitas outras Câmaras Municipais como o Porto, Braga, Loures, etc. Recorde-se como a Recomendação NºR(86)11 do Comité de Ministros dos Estados Membros já criticava este excesso de zelo visando a preservação dos espaços (recomendando, como solução, a concepção ou o rearranjo adequado destes espaços). Acresce que Oeiras necessita de encontrar dispositivos que estimulem

coesão

social

e

territorial

face

à

pressão

demográfica e à diversidade étnica, cultural e económica. Em

Fevereiro

de

2002,

a

Câmara

Municipal

de

Oeiras

aprovou o Regulamento dos Espaços Verdes Municipais (Edital 292/2002) cujas linhas estruturantes são:

[210]



Estabeler princípios e definir regras que assegurem não só uma correcta utilização destes espaços pelas populações, como também a sua preservação e conservação;



Contemplar e tipificar novas infracções que ocorrem com certa frequência nestes espaços, relacionadas com atitudes e comportamentos menos correctos por parte dos munícipes e utentes;



Actualizar coimas que sancionam as infracções estipuladas no actual Regulamento;



Definir

a

possibilidade

de

intervenção

da

Câmara

Municipal de Oeiras em terrenos e propriedades privadas sempre

que

o

interesse

público

esteja

em

causa

(Preâmbulo).

Como se pode ler nestas linhas estruturantes, a ênfase está, sobretudo, na penalização dos utilizadores e não numa postura

de

sedução

convencionalidade

dos

que

potenciais

remete

para

utentes.

os

É

princípios

de da

uma

cidade

racionalista esquecendo a flexibilização capaz de gerar novos usos, eventos, etc. Vejamos

em

detalhe

as

principais

disposições.

No

Preâmbulo surge desde logo a postura repressiva exercida por via

da

explícita

responsabilização

(formatada

através

de

normas e regras) dos utilizadores: (...)Também não se pode descurar a conservação, manutenção e protecção de todo este património

que

é

utilização

através

pertença de

um

de

todos,

corpo

de

e

a

normas

sua

correcta

e

regras

que

é

aplicado

responsabilizem (...) os munícipes e utentes”. O

Artigo

regulamento: parques,

“O



apresenta

presente

jardins,

espaços

os

espaços

Regulamento verdes

onde

aplica-se

municipais,

às

a

o

todos

os

árvores

e

[211]

arbustos neles existentes ou situados em arruamentos, praças e logradouros designadas

públicos, de

bem

interesse

como

público

à

protecção

municipal

das

ou

espécies

classificadas

pelo Instituto Florestal, situadas em terrenos urbanizáveis, públicos ou privados”. O ímpeto das regras proibitivas corre sempre o risco de deixar

algo

de

fora

bem

mais

importante

que

os

aspectos

enunciados fica completamente exposta no artigo 3º que se transcreve na íntegra:

ARTIGO 3º Parques, Jardins e Espaços Verdes 1. Nos parques, permitido:

jardins

e

espaços

verdes

municipais

não

é

a. Entrar e circular com qualquer tipo de veículo motorizado; b. Passear com animais, à excepção de devidamente presos por corrente ou trela;

animais

domésticos

c. Colher, danificar ou mutilar, relva, plantas, flores, ou frutos em canteiros, bordaduras ou simplesmente transitar por esses espaços ou fora dos locais ou passadeiras próprias; d. Retirar água ou utilizar os lagos para banhos ou pesca ou danificar fauna ou flora existentes nestes, bem como arremessar para dentro destes quaisquer objectos líquidos ou detritos de outra natureza; e. Caçar, perturbar ou molestar os animais parques, jardins e espaços verdes municipais;

existentes

nos

f. Fazer fogueiras ou acender braseiras; g. Lançar detritos, entulhos, águas poluídas provenientes de limpezas domésticas ou de qualquer outra natureza poluente que possa causar prejuízo ou morte a qualquer tipo de vegetação; h. Matar, ferir, furtar ou apanhar quaisquer animais que tenham, nestas zonas verdes, o seu habitat natural ou que se encontrem habitualmente a deambular por estes locais, nomeadamente, patos, cisnes e outros que ali foram colocados pela Câmara Municipal; i. Utilizar bebedouros para fins expressamente se destinam;

diferentes daqueles

para

que

j. Destruir, danificar ou fazer uso indevido de peças constituintes de sistemas de rega, nomeadamente, aspersores, pulverizadores, micro-jets, gotejadores, bocas de rega, válvulas, torneiras, filtros ou programadores; k. Abrir as caixas dos sistemas implantados, nomeadamente das válvulas do sistema de rega, nos sistemas de accionamento, quer sejam manuais ou automáticos, nos contadores de água,

[212]

electricidade, etc. ou equipamentos da rede telefónica, TV, gás, e saneamento; l. Retirar, alterar ou mudar placas ou tabuletas com indicações para o público ou com informações úteis, nomeadamente, a designação científica de plantas, orientação ou referências para conhecimento dos frequentadores; m. Prender nas grades ou vedações quaisquer animais, objectos ou veículos; n. Destruir ou danificar qualquer estrutura, equipamento ou mobiliário, nomeadamente, instalações, construções, bancas, vedações, grades, canteiros, estufas, pérgolas, bancos, escoras, esteios, vasos e papeleiras; o. Destruir ou danificar monumentos, estátuas, fontes, esculturas, escadarias ou pontes, que se encontram localizadas naqueles espaços; p. Destruir, danificar ou fazer uso de forma menos cuidadosa ou correcta, inclusive por adultos a quem são vedados, dos brinquedos, aparelhos ou equipamentos destinados às crianças com idade igual ou inferior a 12 anos, bem como de qualquer tipo de equipamento desportivo ali construído ou instalado; q. Destruir, danificar ou simplesmente utilizar, sem autorização dos responsáveis, objectos, ferramentas, utensílios ou peças afectas aos serviços municipais bem como fazer uso, sem prévia autorização, da água destinada a rega ou limpeza; r. Praticar jogos, divertimentos, actividades desportivas ou de outra natureza fora dos locais destinados a esse fim ou em desrespeito das condições estabelecidas para aqueles locais, ou ainda que pela sua natureza possam causar prejuízos ao Património Municipal; s. Urinar ou defecar; t. Acampar ou instalar acampamento em qualquer daquelas zonas; u. Confeccionar ou tomar refeições, salvo em locais para esse efeito (exceptuam-se as refeições ligeiras, nomeadamente sanduíches e similares); v. A utilização de brinquedos, aparelhos ou outro equipamento nos parques e jardins municipais, em desrespeito pelos limites etários previstos nas placas instaladas no local; w. A utilização dos espaços verdes para quaisquer fins carácter comercial sem autorização escrita e pagamento taxas de acordo com o regulamento de taxas em vigor município.

de de no

A bondade destes princípios e até a sua existência, não estão, obviamente, em causa mas quando os EPU estão demasiado expostos

a

uma

aguda

normalização

têm

tendência

para

a

desvitalização porque lhes foi sugado o seu dinamismo próprio, a possibilidade do inesperado, o interesse pelo diferente.

[213]

Acresce que, de acordo com esta postura municipal, fica sempre a sensação que se existir uma utilização desadequada dos

espaço

ela

será

sempre

da

responsabilidade

de

quem

o

utiliza e não de quem escolhe a sua localização, o concebe e o gere, produzindo uma assimetria insustentável na distribuição das

responsabilidades.

Este

aspecto

fica,

sobretudo,

bem

focado no Artigo 4º (Prática de jogos organizados) do Edital 292/2002 da Câmara Municipal de Oeiras: “1. Apenas é permitida a prática de jogos organizados, fora dos locais previstos para esse fim com autorização escrita para o efeito”. Fica a faltar um documento que incentive, apesar desta regulamentação, ao usufruto

dos

espaços

públicos

urbanos

e

a

uma

criativa

ocupação por parte dos indivíduos e das famílias. A Autarquia de Lisboa, em 1995, optou por uma estratégia distinta, mais próxima do espírito da recomendação de 1986, produzindo para além de um regulamento municipal, um “Manual do Utilizador dos Parques de Lisboa”. Figura 17 - Manual de Utilizador dos Parques de Lisboa

Este

visa

igualmente

“(...)

sensibilizar

a

população

para a sua adequada utilização” mas evitando a formalização

[214]

uma vez mais deste objectivo em edital ou regulamento. Sendo um livro de instruções, assume um carácter propositivo e até mobilizador

de

boas

práticas,

não

deixando

de

apresentar

noções de educação ambiental e de localização. O Índice tornase

aqui

um

instrumento

indispensável

para

se

entender

a

filosofia do documento:

SENSIBILIZAÇÃO AMBIENTAL INFORMAÇÕES

1.

Parques de Lisboa

PARQUE CENTRAL DE CHELAS PARQUE DO VALE FUNDÃO PARQUE FLORESTAL DE MONSANTO PARQUES RECREATIVOS DO ALVITO E ALTO DA SERAFINA PARQUE ECOLÓGICO PARQUE DO CALHAU MATA DE SÃO DOMINGOS DE BENFICA MOINHOS/CONJUNTO MOAGEIRO DE SANTANAJAJUDA MIRADOUROS PARQUE ORIENTAL DE LISBOA PARQUE PERIFÉRICO DE LISBOA JARDINS DA TAPADA DAS NECESSIDADES JARDIM DO PALÁCIO VENTURA TERRA ESTRUTURA DE DEFESA MILITAR PERCURSOS PEDESTRES

2.

Vida nos Parques

MAMÍFEROS AVES RÉPTEIS INSECTOS ÁRVORES ARBUSTOS HERBÁCEAS SCIURUS VULGARIS INFUSCATUS: 0 ESQUILO

3.

Parques em Lisboa: Onde ir?

PARQUE RECREATIVO DO ALTO DA SERAFINA PARQUE INFANTIL DO ALVITO PARQUE DO CALHAU PARQUE ECOLÓGICO MATA DE SÃO DOMINGOS DE BENFICA CONJUNTO MOAJEIRO DE SANTANA/AJUDA COMPLEXO DO GRUPO DESPORTIVO DE DIREITO

[215]

GARDEN CENTER DO ALVITO PARQUE DA BELA-VISTA PARQUE CENTRAL DE CHELAS PARQUE DO VALE FUNDÃO PARQUE DA MADRE DE DEUS PARQUE DE ALVALADE PARQUE PERIFÉRICO DE LISBOA JARDINS DA TAPADA DAS NECESSIDADES JARDIM DO PALÁCIO VENTURA TERRA

4.

Que fazer nos parques de Lisboa

A PROCURA DO TESOURO 0 JOGO DE “APILHAR” JOGAR AO BERLINDE AO GATO E AO RATO AO ESCONDER A MARCHA UM ANIVERSÁRIO MEMORAVEL ORGANIZAR UM LIVRO DE CAMPO SOBRE A NATUREZA HERBÁRIOS UM RELÓGIO SOLAR UM BARÓMETRO NATURAL AS FORMIGAS O CARACOL OS INSECTOS MÚSICOS ORIENTAÇÃO PELO SOL BORDA D'ÁGUA AS ESTAÇÕES ASTRONOMIA E METEOROLOGIA POPULAR JARDINS TODO O ANO PROVÉRBIOS RECICLAR PAPEL ENDEREÇOS ÚTEIS O QUE NÃO SE DEVE FAZER NOS PARQUES

5.6.4. A entrada em campo da cidadania Os movimentos de cidadãos agregados em torno da defesa de valores urbanos são comuns na Europa desde os anos 70 (muito

pelas

consequências

socais

do

Maio

de

68)

onde

o

exercício da cidadania passou a ser uma prática considerada pelos

sistemas

político

e

sociais

europeus.

Nos

Estados

Unidos, o funcionamento da cidadania, apoiado por um sistema jurídico eficaz e célere, conferia também aos cidadãos um protagonismo activo.

[216]

Todo este processo foi muito mais lento em Portugal em função das limitações impostas pelo Estado Novo à liberdade de opinião. Mas, mesmo após a euforia da Revolução de Abril de 74, a participação pública em planeamento e ordenamento do território foi sempre enquadrada de modo paternalista pela legislação (Gonçalves, 1996), envolvendo apenas os cidadãos nos últimos estádios dos trabalhos. Só a partir dos finais dos anos 80 as formações espontâneas, e mesmo o quadro legal se ajustou a formas de exercício de cidadania mais activas. É preciso

também

assinalar

que

a

amplitude

dos

problemas

a

resolver de âmbito territorial escapavam muito às questões relativas ao Espaço Público, já que havia ainda muito por fazer

em

matéria

superestruturas. opiniões

a

A

partir

de

habitação,

inversão de

começou

canais

infra-estruturas pelo

informais64

e

despertar de

das

denúncia

e

reivindicação dos problemas espaciais de escala local, cujo impacto

e

estratégias

cénicas

encontradas65

passaram

a

substituir com eficácia os pedidos às Câmaras Municipais ou a entidades públicas. Os motivos giravam muitas vezes em torno de arranjos de via e passeios, construção ou reparação de pontes e passagens, etc.. Gradualmente, a capacidade de mobilização e envolvimento dos grupos de cidadãos tem vindo a aumentar, suscitando na Administração

uma

sensibilização

lenta

e

até

a

posturas

convictas de defesa de espaço público. Não deixa, aliás, de ser curioso a contradição que ainda hoje se observa entre um discurso político que sempre apela à participação pública, à aplicação dos princípios da democracia directa e ao exercício da cidadania, com a dificuldade de gerir os movimentos de reivindicação popular de jardins, de manutenção de espaços de lazer, entre outros.

64

Quem não se recorda, por exemplo, do programa Praça Pública do canal televisivo SIC? Os pneus a arder, as palavras de ordem, os cartazes, etc. (mas só enquanto as câmaras gravavam). 65

[217]

O grau de desenvolvimento observado noutros países no domínio da participação e qualificação dos Espaços Públicos encontra a sua maior referência no PPS – Project for Public Spaces66,

organização

americana,

não

lucrativa,

dedicada

à

criação e organização de espaços públicos de raiz comunitária. Criada em 1975, já interviu em mais de 1000 comunidades em todo o mundo, de modo a qualificar os respectivos espaços públicos

e

torná-los

lugares

comunitários

assistência

técnica,

apoiam

programas

investigação,

realizam

parques, praças, etc.

workshops

sobre

vitais.

de

Fornecem

educação

a

e

de

dinamização

de

As suas publicações, acções de formação

e exemplos de boas práticas correm mundo através de várias formas de divulgação, onde surgem como as mais eficazes as que se suportam na Internet (site e mailling). É do trabalho da PPS que foram criados os 11 princípios para transformar os Espaços Públicos em lugares comunitários fundamentais: 1.

A

comunidade

é

o especialista

(ela

é

que identifica

as

suas

necessidades e expectativas) 2.

Criar um Espaço e não Design (estetizar um espaço pode não ser suficiente)

3.

Procurar Parcerias (o envolvimento dos actores locais significa uma sociedade local mais integrada e solidária)

4.

Pode ver-se mais apenas observando (pode aprender-se olhando para os

comportamentos,

para

o

que

tem

sucesso

ou

o

que

não

tem

funcionado) 5.

Ter uma visão (ajuda a tornar único cada espaço, definindo que actividades e valências podem coexistir)

6.

Começar

como

Petúnias:

Experimentar...

Experimentar...

Experimentar (nem tudo ficará bem inicialmente) 7.

66

Triangulação (o espaço mediará a relação entre os interlocutores)

http://www.pps.org

[218]

8.

Dizem sempre “não pode ser feito” (vencer resistências e inércias instaladas é um dos maiores desafios)

9.

A forma suporta a função (a visão precisa de encontrar uma forma atraente mas que responda às necessidades de uso)

10. Dinheiro não é o fundamental (organizar e gerir equipamentos, infra-estruturas,

comércios,

etc.

é

tão

importante

como

a

construção e concepção) 11. O trabalho nunca está acabado (as comunidades mudam ou até os seus desejos e expectativas pelo que é necessário monitorizar as evoluções de modo a ajustar os espaços a estas mudanças)

É este o caminho que pode vir a generalizar-se para o futuro a partir dos sinais de alarme que têm vindo a ser lançados um pouco de todo o lado, embora sem consistência ou sem

capacidade

de

serem

operacionalizados.

O

exercício

da

cidadania parece ser também aqui a resposta mais segura para a sobrevivência e reanimação dos espaços públicos urbanos e, assim, da cidade.

[219]

6.

Averiguar

a

prática:

A

ocupação

do

Tempo

e

a

utilizaçãods dos EPU Reconhecendo-se espaços

públicos,

e

aceitando-se

ela

tem

de

a

ser

crise

no

validada

a

uso

dos

partir

do

comportamento dos cidadãos em geral e não dos utilizadores dos EPU. Estes, apesar de não gostar das condições oferecidas, encontram-se aí. Interessa perceber: qual é o peso dos que vão e dos que não vão? O que preferem fazer? Quando o preferem? Porque o fazem? etc. As

discussões

atingiram

níveis

de

abstracção

67

exagerados , sem reconhecerem a postura dos indivíduos que no quotidiano

constroem

excessivamente

no

e

transformam

campo

reflexivo,

a

Cidade,

sem

o

vagueando

devido

suporte

documental e informativo. A sensação de crise que se vive no Espaço

Público

acontecimentos instâncias

da

Urbano, e

alimentada

transformações

realidade

(desde

e

aprofundada

operadas logo

em

por

múltiplas

urbanísticas

com

as

mudanças no tipo de espaços criados, mas também sociais com o acréscimo da imigração, o aumento da insegurança, a atracção por novos espaços de uso colectivo e, finalmente, políticas com a opinião pública a passar para os média) tem de ser validada

a

partir

de

elementos

mais

sólidos,

actuais

e

compreensíveis, de modo a conhecer a verdadeira extensão do fenómeno, a sua explicação e até desenhar estratégias que propiciem a reversibilidade desta tendência. Nesta dissertação, não era possível contornar o espaço e o seu conteúdo humano ao contrário do que é observável noutras disciplinas. É evidente (seria um contra-senso com a postura deliberadamente

ecuménica

(holística)

aqui

assumida)

que

a

Geografia não é a única disciplina capaz de resolver esta equação,

mas

será

um

contributo

liquido

para

aclarar

o

Ver trabalhos da esfera sociológica produzida pela Universidade de Coimbra em diversos documentos coordenados por Carlos Fortuna. 67

[220]

problema.

Estando

interesses

e

os

EPU

na

preocupações,

intersecção

a

Geografia

de

múltiplos

assumindo

o

seu

estatuto de charneira, poderá articular os diversos discursos e produzir respostas e entendimentos novos e úteis. Para este espaço de desenho de qual o posicionamento do utilizador do espaço (seja a Cidade no seu todo, seja o espaço público) optou-se por avançar com quatro frentes de recolha de informação: ►

Estatísticas

da

sublinhando-se

o

realizado

em

responsabilidade Inquérito

1999.

à

Ocupação

Pela

sua

do

INE,

do

Tempo,

actualidade,

características e credibilidade, oferece um campo de análise até aqui impossível de encontrar. Para aferir a qualidade das amostras recorreu-se, ainda, ao

XIV

Recenseamento

Geral

da

População,

em

especial aos quadros para o Concelho de Lisboa que reflectem a estrutura etária, género, habilitações e nacionalidade/naturalidade. ►

Entrevistas realizadas ao longo de 2001 a vários autores

que,

profissional

pela e

sua

diversificada

académica,

concorrem

condição para

uma

leitura mais rica das características actuais do EPU. Dos resultados conjuntos é possível encontrar divergências e visões particulares deste objecto de estudo. ►

Inquéritos aos cidadãos de Lisboa, sejam ou não utilizadores do EPU. Este é, seguramente, a fonte vertebradora da análise presente nesta dissertação, quer pela extensão do inquérito quer pela dimensão da

amostra.

A

sua

realização

apoiou-se

em

duas

modalidades: uma em que foi distribuído sob a forma física

(papel)

e

a

outra

em

que

se

procurou

[221]

pulverizá-lo via internet (E-mail). O conjunto de respostas atingiu os 600 exemplares.

6.1. O uso do tempo em Portugal Para

garantir

a

frequência

dos

EPU

têm

de

ser

verificadas algumas condições e, uma delas, relaciona-se com a forma como cada indivíduo gere o seu tempo. A utilização das “quatro categorias do tempo”68 é uma boa base de comparação: ►

Tempo

de

satisfação

das

necessidades

pessoais,

envolvendo os cuidados com o corpo; ►

Tempo contratual, relacionado como trabalho pago e a educação;



Tempo do empenhamento, ligado às tarefas domésticas e cuidados aos membros da família;



Tempo de lazer, associado a actividades sociais, práticas

de

desporto,

lazer

passivo,

actividades

cívicas e religiosas.

Assumindo que a frequência dos EPU se faz na parcela de tempo

remanescente

de

outras,

como

a

das

obrigações

profissionais, familiares e domésticas, essa frequência tem ainda que competir com outras ofertas sedutoras para esse tempo sobrante. É com esta população que prosseguiremos a análise do uso do tempo utilizando para isso o Inquérito à Ocupação do Tempo69.

68

LOPES, Maria Guilhermina Calado; COELHO, Edviges (2002), “Diferenças e semelhanças entre o uso do tempo das crianças e dos adultos em Portugal”, Comunicação apresentada na International Association of Times Use Researchers Conference, Lisboa. 69 INE, Inquérito à Ocupação do Tempo, 1999, ano de edição 2001.

[222]

Para

entender

melhor

os

resultados

obtidos,

impõe-se

proceder a uma prévia apresentação desta operação estatística. Sendo um inquérito já executado noutros países e noutros contextos, as suas origens remontam ao inicio do século XX, onde surge um estudo sobre a ocupação do tempo no trabalho, da responsabilidade de Frederic Taylor. De forma comparativa e sistemática esta averiguação à ocupação do tempo aparece em 1964,

onde,

amostras

com

a

participação

representativas

de

de

12

países,

populações

se

urbanas.

adoptam Com

a

consolidação da União Europeia e o aumento da harmonização estatística

coordenada

pelo

Eurostat,

estas

operações

estatísticas tendem a generalizar-se. Em Portugal apenas em 1999 foi realizado um inquérito à ocupação do tempo. Pretendia conhecer a forma de uso do tempo de todos os indivíduos residentes no país com 6 ou mais anos de idade, embora o conteúdo do volume publicado apenas se centre na população com quinze ou mais anos. Esta populaçãoalvo torna-se, assim, mais coerente com a que foi retida para estudo

e

inquérito

noutros

instrumentos

de

recolha

de

informação considerados no âmbito desta dissertação. O (cerca

contacto de

entrevista

com

10.000

os

indivíduos

indivíduos)

directa,

envolvendo

que

foi o

compõem

a

realizada

amostra

através

preenchimento

de

de

um

questionário de família e um questionário individual a que se acrescentou o registo num diário das actividades realizadas a cada 10 minutos de um dia (24 horas) escolhido pelo INE para todos os inquiridos, desagregados pela actividade principal e secundária, e local. A

recolha

do

conjunto

de

dados

decorreu

entre

1

de

Outubro e 15 de Dezembro de 1999 (com as implicações que daqui poderão

ocorrer,

quer

com

o

agravamento

das

condições

meteorológicas quer com a duração mais limitada do dia).

[223]

Para proceder à sistematização da informação recolhida criaram-se três grandes áreas: ►

A ocupação do Tempo: descreve-se “a forma como a população ocupa o seu tempo – o que faz, qual a duração dessas actividades e o ritmo com que as executa,

passando-se

alguns

depois

subgrupos,

para

tendo

uma

em

análise conta

de os

condicionalismos subjacentes à respectiva estrutura de ocupação do tempo”70. ►

Trabalho

e

Família:

relaciona

a

distribuição

do

tempo entre as actividades remuneradas a as que decorrem

de

familiar

e

responsabilidades noutros

assumidas

contextos

no

seio

(voluntariado,

71

movimentos associativos, ...) . ►

Lazer: aborda-se o tempo que resta das actividades incontornáveis (família, profissão, estudo) e das formas

de

participação

cívica

ou,

por

outras

palavras, o tempo livre. Neste domínio fixam-se “as práticas culturais domésticas e de saída, bem como outras actividades socioculturais de caracter mais genérico”72.

Os

10.000

indivíduos

distribuição

espacial

objectivos

fundamentais:

representativos

(cf.

da Quadro que

amostra

apresentam

uma

9)

garante

dos

os

que

resultados

um

sejam

ao nível de NUTS I e NUTS II e das Áreas

Metropolitanas de Lisboa e Porto.

70

Idem, Ibidem, p.5 Idem, Ibidem, p.5 72 Idem, Ibidem, p.5 71

[224]

Quadro 9 – Distribuição geográfica da Amostra Total Geral

10.013

Total (Continente)

8.304

Norte (Sem AMP)

1.727

Centro

1.409

LVT (sem AML)

1.854

Alentejo

878

Algarve

772

R.A. Açores

916

R.A. Madeira

748

Área Metropolitana

1.817

Porto Área Metropolitana

1.841

Lisboa Fonte: INE, Inquérito à Ocupação do Tempo, 2001

Desde já deve referir-se que algumas limitações poderão impedir um maior alcance das conclusões desta sistematização com destaque para: a insuficiente desagregação (pelo menos nos dados publicados) das actividades, o que dificulta/prejudica uma análise mais incisiva centrada nos espaços públicos; a consideração

de

valores

médios

deixa

também

desfocada

as

diferenças entre áreas metropolitanas e outras situadas em áreas ruralizadas. Certamente, que as práticas quotidianas são afectadas práticas

pelas d

possibilidades

enatureza

diversa

que

se

abrem

(desporto,

na

cultura,

oferta

de

recreio,

etc.). Assim, o recurso ao item dos passeios a pé será a opção que se julga mais próxima da utilização dos EPU em termos de frequência e tempo de utilização, atendendo ao leque dos itens disponibilizados nesta publicação do Inquérito à Ocupação do Tempo. Ao mesmo tempo tem-se consciência das limitações que encerra.

[225]

População com 15 ou mais anos Nem sempre é correcto tomar como objecto de descrição a população em geral, dado que ela na verdade não existe. O indivíduo médio ou a população média é uma abstracção a que se recorre visando a sistematização da informação recolhida e poder avaliar desvios face a comportamentos assumidos por esta via como típicos. Todavia, proceder-se-á à descrição de alguns dos

segmentos

mais

significativos,

capazes

de

explicar

comportamentos quotidianos diferenciados. A ocupação

do tempo é, como já se referiu, determinante

nas formas e nos períodos de utilização dos EPU. Para esta população se o dia começa à meia noite

então cerca de 80% dos

indivíduos estão a dormir, sendo que dos restantes 15% estão em frente à televisão, 3% a trabalhar e 1,3% em actividades dedicadas à família. Duas horas depois apenas resistem 2,3% por força da TV. O verdadeiro dia começa às sete horas, momento em que um terço da população com mais de quinze anos está acordada e a tratar da higiene pessoal, ocupados em tarefas domésticas ou já em deslocação para o local de trabalho/estudo. Passadas duas horas ainda estão na cama 18%. Se 36%

da população está a trabalhar durante a manhã,

31% está ocupada em trabalhos domésticos e 10% que desde as 10:20 até às 12:00 estão disponíveis

para práticas de lazer.

A hora de almoço decorre entre as 12:00 e as 14:00, embora as 13:00 sejam o momento mais generalizado de paragem, já que metade da população está a almoçar. O regresso ao trabalho e aos trabalhos domésticos

das

14:00 às 17:30 ocupa metade da população. A tarde, aliás, vê reforçada

a

presença

de

indivíduos

com

práticas

de

lazer

[226]

(18%), designadamente, passear, ler, ouvir música , ir ao cinema.

A

omnipresente

TV

atrai

6%

às

13:30,

evoluindo

acentuadamente para 12% às 18:00. O final do dia chega e às 19:30 já há famílias a jantar, actividade que se estende até cerca das 21:00. Para o serão as opções vão, na maioria dos casos (um terço), para a TV. Figura 18 - Perfil de ocupação da população com mais de 15 anos, num dia médio 15% 41% 15%

29%

Trabalho doméstico e cuidados à família Lazer Trabalho profissional e estudo Cuidados pessoais

Fonte: INE, Inquérito à Ocupação do Tempo, 2001

O dia médio, que conjuga os resultados dos dias úteis com os fins-de-semana, revela-nos que a população com mais de 15 anos que efectuou passeios a pé gastou, em média, 1 horas e 33 minutos nessa actividade, gastando os homens cerca de meia hora mais que as mulheres. A diferenciação por género continua a fazer-se sentir e a reforçar a ideia de que os Espaços Públicos Urbanos têm sexo. Como

seria

actividade cai

de

esperar,

o

tempo

médio

de

duração

da

mais ou menos fortemente quando a população

tem uma ocupação profissional ou “para-profissional” como os estudantes

e

a

população

doméstica.

A

população

empregada

[227]

afirma ocupar 1 hora e 10 minutos com passeios a pé com uma diferença de cerca de 15 minutos a mais para os homens. A leitura desta informação deve ser feita com cuidado atendendo

a

que

poderá

incluir

(embora

incorrectamente)

trajectos para o trabalho ou para a escola, para a aquisição de bens e serviços (p.e. jornais) ou para levar as crianças à escola. O período de almoço, a meio da jornada de trabalho poderá também contribuir para estes valores muito generosos no que toca a passeios a pé para a população empregada. Quadro 10 - População com mais de 15 anos que efectuou passeios a pé, um dia médio (hh:mm) Total

H

M

Pop. com mais de 15 anos

1:33

1:43 1:17

Pop. Empregada

1:10

1:16 1:02

Estudantes

1:24

1:31 1:13

Reformados

1:49

1:59 1:14

Pop. Doméstica

1:19

-

1:19

Fonte: INE, Inquérito à Ocupação do Tempo, 2001

A população que se apresenta como reformada é a que mais valoriza

o

passeio

a



na

sua

ocupação

do

tempo,

mesmo

sabendo que tal possa corresponder igualmente à estada nos jardins e largos das cidades, vilas e aldeias de Portugal, onde

toda

a

gente

se

habituou

a

ver

neles

o

verdadeiro

oxigénio dos EPU nos centros urbanos. A hora e 49 minutos que os reformados (que manifestaram ter essa prática) dedicam, em média, aos passeios a pé é, por via da inexistência de ocupação profissional, muito estável face

aos

dias

úteis

e

fins-de-semana.

A

estabilidade

é

diferente quando nos reportamos à distinção por género, onde é exactamente nos Reformados que a distância temporal no uso do

[228]

espaço público é maior. Com efeito, os cerca de 45 minutos que num dia separam os homens das mulheres demonstram, uma vez mais,

e

agora

categoricamente,

as

dificuldades

e

constrangimentos sentidos pelas mulheres no uso dos EPU e que tanto poderão ser sociais como de incompatibilidade com outras tarefas (refeições, crianças, ...). A

desagregação

revelações,

apenas

potencialmente idosos)

não

apresentam

por

grupos

confirma têm maior

etários, que

ocupações

os

longe

novas

indivíduos

profissionais

disponibilidade

de

para

que

(jovens

e

usufruir

do

espaço urbano, designadamente o público. A hora e 36 minutos e hora e 47 minutos, para jovens

e idosos respectivamente,

contrastam com a hora e 9 minutos para a população dos 25 aos 54 anos. Quadro 11 - População que efectuou passeios a pé, por grupo etário, num dia médio (hh:mm) Total Pop. 15 aos 24 anos

1:36

Pop. 25 aos 54 anos

1:09

Pop. 55 ou mais anos

1:47

Fonte: INE, Inquérito à Ocupação do Tempo, 2001

Caracterizando

os

indivíduos

que

declararam

ter

efectuados passeios a pé por tipologia de família, verifica-se que a existência de filhos parece limitar as saídas e passeios a pé. Também é verdade que noutras instâncias foi referido que são as crianças um dos principais motivos para as saídas. Em todo o caso, dado o carácter extensivo e de qualidade desta recolha deve ser sublinhado que este resultado pode ser também descrito de uma outra forma, isto é, quem está mais liberto de responsabilidades familiares pode dar um outro uso ao tempo.

[229]

Resta

ainda

face

à

desagregação

por

tipologia

de

família, que os valores para as famílias monoparentais e de outro tipo são bastante elevados mas a sua qualidade (medida pelo coeficiente de variação) aconselha a ter reservas na sua interpretação, pelo

que se optou por não os utilizar de modo

a não introduzir ruído na informação disponibilizada. Quadro 12 - População que efectuou passeios a pé, por tipologia de família, num dia médio (hh:mm) Total Indivíduo sozinho

1:39

Casal sem filhos

1:46

Casal com filhos

1:23

Monoparental

-

Outro tipo

-

Fonte: INE, Inquérito à Ocupação do Tempo, 2001

Uma outra leitura que interessa fazer relaciona-se com os níveis de rendimento dos que referiram passear a pé e entendidos

como

uma

forma

grosseira

de

estabelecer

uma

hierarquia social. Se esta perspectiva estiver correcta, é possível afirmar, então, que os grupos socioeconómicos com rendimentos menores despendem mais tempo no passeio a pé, numa lógica de impossibilidade de recurso a outras alternativas. Aliás, uma das lacunas deste Inquérito à Ocupação do Tempo é a incapacidade de incorporar as compras e visitas a locais de consumo como uma prática activa de usufruto do tempo livre, e como tal, uma modalidade de lazer. Disponibilizar

uma

hora

e

48

minutos

para

os

que

apresentam rendimentos inferiores a 120 contos quando os que auferem entre 180 a 230 contos registam menos meia hora de passeio a pé comprova uma relação inversamente proporcional

[230]

entre

rendimento

elevados

e

padecem

tipologia

usufruto

do

mesmo

familiar,

isto

de

EPU.

problema, é,

a

Os

rendimentos



comentado

confiança

dos

mais

para

a

valores

apresentados baixa de tal modo que se tornam dispensáveis.

Quadro 13 - População que efectuou passeios a pé, por escalões de rendimento líquido mensal, num dia médio (hh:mm) Total
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