Os Estados Limítrofes e seus Traços de Personalidade Psicótica: Analisando os sintomas em um estudo de caso

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Os Estados Limítrofes e seus Traços de Personalidade Psicótica: Analisando os sintomas em um estudo de caso Lucas Tadeu Rezende [email protected]

Resumo - Os estados limítrofes se acham circunscritos economicamente como organizações autônomas e distintas, ao mesmo tempo das neuroses e das psicoses. Os pacientes com transtorno de personalidade Borderline se caracterizam por afetos, humor, comportamento, relações objetais e auto-imagem extraordinariamente instáveis. Eles podem ser querelantes em um momento, depressivos no seguinte e mais tarde se queixar de que não têm sentimentos. Podem ter episódios psicóticos de curta duração, em vez de surtos plenos, e os sintomas psicóticos são quase sempre circunscritos, fugazes e duvidosos. Possibilitou-se uma visão panorâmica acerca dos traços psicóticos existentes no Transtorno de Personalidade Borderline; Aparentam ser de certa maneira aquilo que o Jung nos ensinou sobre os estados alucinatórios, onde o indivíduo concentra sua atenção em um “elemento atormentador externo” e não somente em uma realidade complexa em que somente o paciente vê, onde o delírio possibilita essa fuga a aquele acometido pela doença. Palavras-chave: Paciente Borderline, Psicose e Borderline, Psicanálise e Borderline, Sofrimento psíquico e Manejo Clínico. Área do Conhecimento: Psicologia Introdução Os estados limítrofes se acham circunscritos economicamente como organizações autônomas e distintas, ao mesmo tempo das neuroses e das psicoses (BERGERET, 2006). O autor enfatiza que Freud ao introduzir o conceito de narcisismo, destacando o papel do Ideal do Ego, feito a descrição da escolha anaclítica de objeto e a descoberta do papel desempenhado pelas frustrações afetivas da criança, reconhece a existência de um tipo libidinal “narcisista” sem um Superego completamente constituído, onde o essencial do conflito pós-edipiano não se situa em uma oposição entre o ego e o superego, uma fragmentação do ego se apresenta como intermediária, justamente entre a fragmentação psicótica e o conflito neurótico. Os pacientes com transtorno de personalidade Borderline se situam no limite entre a neurose e a psicose e se caracterizam por afetos, humor, comportamento, relações objetais e auto-imagem extraordinariamente instáveis. O transtorno tem sido denominado também esquizofrenia ambulatória (termo criado por Helene Deutsch), esquizofrenia pseudoneurótica (descrita por Paul Hoch e Phillip Politan) e transtorno psicótico do caráter (descrito por John Frosch). A CID-10 utiliza o termo transtorno de personalidade emocionalmente instável (KAPLAN; SADOCK, 2007). Ainda segundo os autores, os indivíduos afetados quase sempre parecem estar em estado de crise. São comuns as oscilações de humor. Eles podem ser querelantes em um momento, depressivos no seguinte e mais tarde se queixar de que não têm sentimentos. Podem ter episódios psicóticos de curta duração (assim denominados episódios micropsicóticos), em vez de surtos plenos, e os sintomas psicóticos são quase sempre circunscritos, fugazes e duvidosos. O comportamento de pacientes com transtorno de personalidade borderline é altamente imprevisível e suas realizações raramente estão ao nível de suas habilidades (ZARIN DA; EARLS F, 1993). A natureza dolorosa de suas vidas se reflete em atos autodestrutivos recorrentes. Tais pacientes costumam cortar os pulsos e realizar outras automutilações para conseguir o auxílio de outros, para expressar raiva ou se afastar de afetos muito opressivos (NEMIAH, 1981). Esse trabalho propõe uma análise qualitativa do estado psicótico em uma paciente com Transtorno de Personalidade Borderline por meio de seu discurso.

Metodologia Este trabalho baseia-se em um estudo de caso de uma paciente com Transtorno de Personalidade Borderline (CID F 60.3) de 54 anos, casada, católica, com três filhos, vendedora

autônoma e possui ensino fundamental incompleto. Por ter seus direitos preservados, será denominado como Senhora E durante todo o artigo. O embasamento teórico utilizado foi através de livros-texto e levantamento de artigos científicos na base de dados: SCIELO, MEDLINE, CAPES, LILACS e DEDALUS. Para a localização dos artigos foram utilizadas as seguintes palavras: Transtorno de Personalidade Borderline, Transtorno de Personalidade Limítrofe, Sintomas Psicóticos no Borderline, Psicanálise e Borderline, Borderline e o Traços de Personalidade Psicótica no paciente Borderline. Os mesmos termos em inglês. Foram incluídos os artigos dos últimos 35 anos. A técnica utilizada é a análise da bibliografia encontrada, que compreende leitura, seleção, fichamento e arquivo dos tópicos de interesse para estudo. Resultados O trabalho desenvolvido possibilitou uma visão panorâmica acerca dos traços psicóticos existentes no Transtorno de Personalidade Borderline; Diferente do que ocorre naturalmente com as psicoses mais graves, tais como os quadros esquizoides, os traços psicóticos do Borderline aparentam ser de certa maneira aquilo que o Jung nos ensinou sobre os estados alucinatórios, onde o indivíduo concentra sua atenção em um “elemento atormentador externo” e não somente em uma realidade complexa em que somente o paciente vê, onde o delírio possibilita essa fuga a aquele acometido pela doença. Tais observações mostram-se esclarecedoras para o entendimento do mecanismo da psicose no paciente Borderline; no caso da paciente estudada, desde sua infância possui contato com uma elaboração psíquica que chama de “amiga”, o que pode ser justificado pelos casos de fantasia infantil; não obstante, essa fantasia que antes era fruto de uma psique em formação, com o passar da idade (e consequente ocorrência do quadro psicopatológico), transformou-se em um elemento de suas alucinações, conforme citado acima sobre a contribuição de Jung para o entendimento de tais quadros alucinatórios. Todas as partes inerentes a parte psicótica da personalidade estão presentes, em algum grau e forma, nesses pacientes fronteiriços, mas conservam um juízo crítico e senso de realidade. A raiz do estado psicótico borderline reside nas faltas e falhas ocorridas durante o desenvolvimento emocional primitivo, com a consequente formação de vazios (ZIMERMAN, 2004). Discussão A discussão consiste na análise do conteúdo do discurso da paciente. (...) Analista: O que seu marido costuma perguntar que te deixa nervosa? Sra. E: Ele fala assim: “Sra. E sua amiga não veio hoje?” É porque tenho uma amiga, minha amiga, então eu converso com muito com ela, ai eu tenho uma amiga imaginária. Então eu converso com ela aqui dentro de casa, no meu serviço, em tudo qualquer lugar. Então eles [Família] falam demais, ai eu levantei cinco horas da manhã e ninguém mais dormiu, ai eu já começo falar daqui, dali, não consigo ter controle disso... Analista: Você consegue ver essa sua amiga? Sra. E: Escuto, mas não vejo, é lógico que é da minha cabeça, eu falo, ela responde. A gente conversa, só eu no meu íntimo. Analista: E quando essa sua “amiga“ apareceu? Sra. E: Desde criança, eu tenho minha amiga, só que eu sei que é fruto de minha imaginação, ela não existe, mas só que não consigo. Analista: Essa sua “amiga“ te ajuda? Sra. E: Bem em termos, as vezes sim. Certas coisas que a gente conversa, ai to com vontade de me matar, vontade de sumir, ai ela fala: “vai mesmo, larga tudo, vai abandona todo mundo”. Eu falo falta

coragem, ai ela fala você não vai ter coragem. Hora da vontade, você conversa com ela e ela manda você fazer, depois ela fala assim, ai não sei explicar, ela é boazinha sim, as vezes não. Analista: Isso depende do seu humor? Sra. E: É depende de mim, se eu “tô“ bem alegre, ela também está, se eu “to“ conversando coisas ruins, ela “ta“ ruim. Freud (1914 [2010]) em seu texto “Sobre o Narcisismo: Uma introdução”, aborda o tema da psicose baseando-se nas relações anaclíticas e narcísicas, onde são elucidadas as relações eu com objeto e eu com o eu. A psicose se dá quando todo investimento libidinal está sendo investido de eu para eu, não existe relação objetal, somente libido sexual investido contra o Ideal do Ego numa relação homossexual. Quando se dá esse investimento, o Ideal do Ego responde agressivamente, projetando esse investimento libidinal para o meio externo, onde se dá o fenômeno do delírio; delírio é a visão de realidade que só o próprio indivíduo vê. Como exemplo disto, pode se citar o famoso “Caso Schreber”, onde o paciente tem delírios de que “Deus o escolheu para copular e a partir desta cópula, surgiria uma nova raça humana que deveria povoar o mundo”. Observa-se uma visão particular do indivíduo que ninguém mais é capaz de ver. O mesmo ocorre com a Sra. E e seu amigo imaginário. É o aspecto psicótico de sua personalidade, pois, relembrando o transtorno Borderline situa-se entre a neurose e a psicose. O delírio da Sra. E é apenas auditivo como a mesma refere, mas o que é interessante em sua psicopatologia é que mantém a consciência crítica que é comumente ausente no psicótico, percebe-se quando a Sra. E refere “consciência” de que “é fruto de sua imaginação”, sabendo que a amiga de fato não existe. Outro aspecto interessante de seu delírio é que quando a Sra. E está com ideação suicida; a “amiga imaginária” a incentiva a cometer o ato suicida, o que enfatiza a questão dos mecanismos primitivos de defesa da mente e a influência do Id, semelhante com o que ocorre com a criança, quando ainda seu Superego ainda não foi estabelecido pelo processo de “introjeção parental”. O superego da Sra. E é assunto bem interessante a se discutir, pois o processo de introjeção parental não parece ter ocorrido devidamente, tanto por sua história familiar, quanto pelo desenvolvimento de sua psicopatologia. A introjeção parental consiste no estabelecimento dos valores do pais no interior do indivíduo ao final do Édipo e começo do período de latência, que irão constituir a estrutura do superego. Outra questão é a indecisão da Sra. E em afirmar se a amiga imaginária é “boa” ou “má”, variando de opinião em seu discurso, relevando mais um aspecto da percepção ambivalente do Borderline. É importante ressaltar que a amiga imaginária da Sra. E “aparece” e se comporta de acordo com sua questão de humor, pois a mesma refere que: “(...) se eu to bem alegre, ela também está. Se eu to conversando coisas ruins, ela ta ruim. Analista: Sra. E existe algum sentimento interior maior que a incomoda, ao ponto de deixá-la perturbada? Sra. E: Não, ele chega do nada [sentimento incomodo]. Não sei porquê que vem essa mudança de personalidade, eu não entendo. Sinto muito raiva. Nossa senhora, é como eu falo, eu gosto de uma “Sra. E”, que é a outra “Sra. E”, ai essa “Sra. E” quando chega é como eu disse pro meu marido, eu sentindo seguro lá na Laudicéia [Elemento desconhecido], se eu não tivesse compromisso de “tá“ olhando aquelas duas meninas e tomando conta da casa. Eu não sei expressar, vem do nada, sem motivo; ora tem motivo, ora vem do nada. É isso que eu tenho raiva, porque uma coisa que você não quer, não aceita, você luta e você continua sempre do mesmo jeito. Medicamento você toma, toma, você toma, “tá“ controlada, se você não toma, a não sei explicar.

Analista: E quando a Sra. sente essa raiva de si mesma, que sente vontade de se bater, o que a Sra. faz para amenizar? Sra. E: Ai eu faço, vou ao banheiro me bato, puxo meu cabelo, me mordo, me arranho. O Borderline expressa uma “erro de sistema” referente a agressividade sob a forma de crise que desempenha várias funções psicodinâmicas, como por exemplo, aliviar o excedente de tensão interna, impedir maior conflito e frustração (BALLONE; MOURA, 2008). Segundo os autores, ressaltar a presença do paciente, ainda que de forma desagradável e ineficaz, melhorar a auto-afirmação, obrigar o ambiente a reconhecer sua importância, ainda que para se lhe opor ou confrontar, são altamente benéficos para o paciente.

Segundo Ballone e Moura (2008), as pessoas com Transtorno da Personalidade Borderline podem apresentar comportamento, gestos ou ameaças suicidas ou comportamentos auto-mutilante. Esses atos autodestrutivos geralmente são precipitados por ameaças de separação ou rejeição, por expectativas de que assumam maiores responsabilidades ou mesmo por frustrações banais. Esta instabilidade de emoções é reconhecida pelo paciente, contudo, eles justificam-nas geralmente com argumentos implausíveis (MAROT, 2011). Na agressividade auto-inflingida pode ocorrer a prática de auto-mutilação (se machucar, se cortar, se queimar) ou tentativa de suicídio. Pacientes com transtornos de personalidade Borderline afirmam que se machucam para satisfazer uma necessidade irresistível de sentir dor ou porque a dor no corpo “é melhor do que a dor na alma”. Freud(1930[2010]) em seu texto “O mal estar na civilização”, enfatiza a questão dos aspectos autodestrutivos e destrutivos, antissociais e anticulturais que são consequência da vida em sociedade. A cultura produz esse mal-estar nas pessoas, assim pelo bem da sociedade o indivíduo é sacrificado; para que a civilização possa se desenvolver o homem precisa pagar o preço da renúncia da satisfação pulsional (a vida sexual e sua agressividade são severamente prejudicadas). Desta maneira, o sofrimento humano provém de três fontes principais: do corpo, do mundo externo e dos relacionamentos. Freud trata de três aspectos fundamentais que estão entrelaçados à noção de civilização: a angústia, a agressividade e o sentimento de culpa. Estes três aspectos aparecem no decorrer de todo discurso da Sra. E. A Sra. E apresenta uma enorme falta de entendimento do seu processo psicopatológico quando se fala de como se origina toda a agressividade que apresenta. Perde-se em diversas personalidades que ela costuma chamar de outras “Sras. E.” O discurso é repleto de interpretações que levam a entender que a Sra. E procura justificar seus sintomas e suas ações passando o sentimento de culpa para outras personalidades, como se fossem pessoas diferentes e distantes a ela. Quando cita a questão medicamentosa, nem consegue explicar o que acontece quando está na ausência dos mesmos, apresentando uma conformidade no uso destes psicotrópicos. É apenas um inibidor sintomático o medicamento, pois o conflito interno continua o mesmo e a não aceitação de suas “diversas” personalidades continua a mesma. É mais do que uma questão sintomática, mas sim um conflito existencial. Quando questionada sobre se sente raiva de si mesma, refere que quando isso acontece parte para ações autodestrutivas, com agressividade contra si mesma. Este acontecimento enfatiza a visão apresentada por Freud sobre o mal-estar advindo da civilização. Como existe uma restrição pulsional, onde a Sra. E não pode realizar a descarga de sua excitação psíquica no outro, projeta toda raiva, ira e agressividade contra seu próprio eu, procurando minimizar o sofrimento psíquico pela descarga destes sentimentos em seu corpo. Toda excitação psíquica necessita de um mecanismo de descarga. Nessa caso, a auto-destrutividade é posta como prioridade. Conclusão Conseguir manter um paciente com o diagnóstico de Borderline em atendimento é um grande desafio e pode ser uma enorme possibilidade de se aumentar a compreensão de seu quadro psicopatológico, possibilitando assim uma melhor abordagem clínica. Apesar de possuírem uma grande desesperança em relação aos tratamentos, pois podem ser longos; geralmente tais pacientes costumar se irritar e abandonar a análise, mostrando nisto que o analista deve realizar uma abordagem adequada para este tipo de psicopatologia, objetivando não permitir que os pacientes abandonem o tratamento. Muitas vezes, o discurso desses pacientes pode parecer confuso e desconexo, pois a labilidade emocional faz com que o paciente demonstre inúmeros sentimentos distintos em uma mesma sessão ou pode acontecer que comecem a verbalizar sobre questões que em nenhum momento anterior na sessão tenha aparecido e podem vir como uma “bomba emocional” que desestabiliza tudo aquilo que até então o analista pensava estar totalmente dentro de “um ambiente controlado” Lidar com tal transtorno requer uma capacidade de adequação clínica exímia por parte do analista para que os objetivos propostos de possibilitar alguma melhora ou uma remissão do quadro sejam satisfatórios. É importante ressaltar a necessidade de mais estudos sobre as condições do paciente com Transtorno de Personalidade Borderline, pois é um campo muito rico para a psicanálise concentrar seus estudos, pois se lida ao mesmo tempo, tanto com os quadros neuróticos quanto com a psicose.

Referências

BERGERET J. Os estados-limítrofes e seus arranjos. In: Bergeret, J et al. Psicopatologia: teoria e clínica. Porto Alegre: Artmed, 2006. FREUD S. Introdução ao Narcisismo, Ensaios de Metapsicologia e outros textos (1914-1916). In:Obras Completas. São Paulo: COMPANHIA DAS LETRAS, 2010. FREUD S. O mal estar na civilização; Novas conferências introdutórias a psicanálise (19301936). In: Obras Completas. V. 18. São Paulo: COMPANHIA DAS LETRAS, 2010. KAPLAN, SADOCK. Compêndio de psiquiatria. 9 ed. Porto Alegre: Artmed, 2007 MAROT R. Transtorno de Personalidade Borderline (Limítrofe) – In: Psicosite, Internet, Disponível em:http://www.blogger.com/postedit.g?blogID=1269113186038467812&postID=72023566786625900 805. Acesso em 07 mai 2016. NEMIAH JC. Fundamentos da psicopatologia. 3a ed. Rio de Janeiro (RJ): Zahar Ed, 1981. ZARIN DA; EARLS F. Diagnostic decision making in psychiatry. Am J Psychiatry, 1993; 150: 197. ZIMERMAN DE. Manual de Técnica Psicanalítica: uma re-visão. Porto Alegre: Artmed, 2004.

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