Os estudos sobre a etiologia do cancer na virada do seculo XX

May 20, 2017 | Autor: R. de Oliveira An... | Categoria: History of Science, History of Library Science in Brazil
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Rodrigo de Oliveira Andrade

Os estudos sobre a etiologia do câncer na virada do século XX e o médico brasileiro Alfredo Leal Pimenta Bueno

Mestrado em História da Ciência

São Paulo 2016

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Rodrigo de Oliveira Andrade

Os estudos sobre a etiologia do câncer na virada do século XX e o médico brasileiro Alfredo Leal Pimenta Bueno

Mestrado em História da Ciência

Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em História da Ciência, sob orientação da Profa. Dra. Ana Maria AlfonsoGoldfarb.

São Paulo 2016

Banca Examinadora ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________

AGRADECIMENTOS

Este trabalho não teria sido possível sem o apoio incondicional dos meus pais, cujo carinho e afeto me ajudaram a chegar até aqui. Minha dívida de gratidão também se estende à minha companheira Gisele Frederico, por sempre acreditar em mim, me motivar e amenizar minhas inseguranças; a Carlos Fioravanti, pelas palavras de conforto e incentivo nos momentos de angústia e incerteza, por me apresentar parte do material de pesquisa e por me colocar na rota das pesquisas sobre o câncer; à Ana Maria Alfonso-Goldfarb, orientadora de notável grandeza intelectual; a todas os professores do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência da PUC-SP, pelos valiosos ensinamentos ao longo do curso; aos amigos Angelo Stefanovits, Rodrigo Trevisan Braga, Shirley Silva, Maria Alice Gonçalves, Lucas Pessoa e Joana Asseff, pelas agradáveis conversas à mesa do bar; a Guilherme Diniz e André Julião, pela amizade e também pela leitura cuidadosa do texto, com sugestões preciosas; a Edjan Santos, pela antiga camaradagem; aos colegas e amigos da Pesquisa FAPESP; e à CAPES, pela bolsa que custeou este trabalho.

RESUMO O século XIX constitui um período de forte incidência de pesquisas no campo da biologia celular. Com o advento de novas técnicas de microscopia, o estudo detalhado do comportamento das células possibilitou um melhor entendimento das condições que favorecem ou determinam o surgimento dos tumores. A partir de então, diversos cientistas propuseram caminhos conceituais, médicos ou institucionais de pesquisa e tratamento para a enfermidade. O objetivo deste trabalho é analisar o panorama de estudos e teorias sobre a etiologia do câncer em fins do século XIX e início do século XX. Pretendemos compreender como os conceitos relacionados aos mecanismos da doença foram construídos e reinterpretados ao longo daquelas décadas e como esse conhecimento chegou ao Brasil. Para isso, usaremos como estudo de caso os trabalhos do médico mineiro Alfredo Leal Pimenta Bueno, que apresentou suas ideias sobre os fenômenos bioquímicos que desencadeariam o câncer em uma série de artigos na revista O Brasil Médico entre 1926 e 1928. Nesta dissertação, mostramos que o câncer se transformou durante o século XIX em uma entidade cada vez mais discutida e estudada na Europa, e que sua construção como problema médico no Brasil nas primeiras décadas do século XX se deu em meio a um cenário em que a preocupação maior ainda se centrava em doenças de maior impacto social, como a tuberculose. Ao mesmo tempo, verificamos que Pimenta Bueno foi um dos poucos cientistas brasileiros a investigar a etiologia do câncer, construindo seu discurso a partir dos escritos de diversos cientistas, recorrendo a esses autores sempre que preciso a fim de justificar seus pontos de vista. Pimenta Bueno conclui que o câncer teria as mais variadas causas, todas idênticas pelo só fato de que agiam produzindo uma irritação, de que resultaria uma super hidratação celular, sua volta ao estágio embrionário, e, finalmente, o reestabelecimento de sua capacidade de proliferação. Palavras-chave: História da Ciência, História da Medicina, Brasil, Etiologia do Câncer, Alfredo Leal Pimenta Bueno.

ABSTRACT The 19th century constitutes a period of strong incidence of researches on cell biology. With the advent of new microscopy techniques, a more comprehensive study of cells behaviour has allowed a better understanding of the conditions that could favour or even determine the appearance of tumours. From then on, several scientists have proposed conceptual, medical and institutional pathways of research and treatment against the disease. The aim of this work is to analyse the panorama of studies and theories on cancer etiology proposed between the latest decades of 19th century and the first two decades of 20th century. We intend to understand how the concepts related to cancer mechanisms have been built and reinterpreted over those decades, and how has this knowledge arrived in Brazil. In this regard, Brazilian doctor Alfredo Leal Pimenta Bueno’s work is going to be used as a case study. Pimenta Bueno presented his ideas on the biochemical phenomena that could trigger cancer in a series of scientific articles published in the Brazilian scientific journal O Brasil Médico between 1926 and 1928. In this dissertation, we show that cancer has transformed into an entity that was more and more discussed and studied in the Europe over the 19th century, and that its construction as a medical problem in Brazil during the first two decades of the 20th century occurred in a scenario in which the attention was still focused on diseases with a greater social impact, such as tuberculosis. At the same time, we have verified that Pimenta Bueno was one of the few Brazilian scientists who investigated cancer etiology, constructing his theory based on the writings of several scientists, appealing to them whenever necessary in order to justify his points of view. In his articles, Pimenta Bueno concludes that cancer could be caused by different agents — all of them would act in the way of causing an irritation, resulting in an over hydration inside cells, which would return to their embryonic stage and, finally, reacquire their proliferation capacity. Keywords: History of Science, History of Medicine, Brazil, Cancer Etiology, Alfredo Leal Pimenta Bueno.

SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................................... 1 Capítulo 1 Um flagelo dos tempos modernos ......................................................................... 3



A teoria cromossômica do câncer ......................................................................... 6 A cromatina de Flemming ....................................................................................... 8 Sobre a hereditariedade do câncer ..................................................................... 10 O vírus do sarcoma de Rous................................................................................ 15 O bacilo do cancro................................................................................................. 20

Capítulo 2 Um inimigo a ser combatido ................................................................................. 27 De pais para filhos ................................................................................................ 41 O rádio contra o câncer ........................................................................................ 42 A luta contra o câncer no Brasil .......................................................................... 45 Capítulo 3 O câncer sob uma nova abordagem ..................................................................... 50



A trajetória de Pimenta Bueno ............................................................................ 51 Princípios gerais da Trophodynamica funccional ................................................. 58 Da catarata aos tumores ....................................................................................... 69

Considerações Finais ............................................................................................... 79 Bibliografia ............................................................................................................... 83

“Para produzir e trazer ao seio da Sciencia as migalhas de nosso saber e as menores parcelas de nossa intellegencia é necessário inicialmente uma grande independencia de espirito e crer em que também os outros podem cair em erro...”

Alfredo Leal Pimenta Bueno

1 INTRODUÇÃO

O câncer em meados século XIX era considerado uma doença de reduzida dimensão no campo médico quando comparada a patologias de maior impacto social, como sífilis e tuberculose, ao passo que suas possíveis causas, como a fuligem das chaminés e microrganismos como vírus e bactérias, então começavam a ser melhor discutidas. O conhecimento médico daquela época frequentemente o aproximava da lepra no que diz respeito ao contágio, uma vez que se julgava que ambas as enfermidades tinham formas de transmissão semelhantes, tendo como consequência a necessidade de um acompanhamento maior de sua incidência e a formulação de estratégias que evitassem sua disseminação. Ao mesmo tempo, nesse mesmo período, os avanços técnicos da microscopia, o desenvolvimento do campo da patologia e a ampliação do conhecimento sobre o funcionamento das células e suas funções possibilitaram uma compreensão mais ampla da doença, de modo que muitos médicos e pesquisadores a partir de então propuseram novas ideias sobre os mecanismos que conduziriam os tecidos ao câncer. Dessa forma, pretendemos analisar o panorama de estudos e teorias sobre a origem, ou a etiologia, do câncer em fins do século XIX e início do século XX. Nosso objetivo é compreender como os conceitos relacionados aos mecanismos do processo cancerígeno foram construídos e reinterpretados ao longo daquelas décadas, inclusive no Brasil. Para isso, usaremos como estudo de caso os trabalhos do médico mineiro Alfredo Leal Pimenta Bueno, que entre

2 os anos de 1926 e 1928 apresentou suas ideias sobre os fenômenos bioquímicos que desencadeariam os tumores em uma série de artigos publicados na revista científica O Brasil Médico.1 Com o propósito de melhor especificar o encadeamento desse processo histórico, esta dissertação está dividida em três capítulos. No primeiro, apresentaremos o cenário internacional de pesquisas sobre o câncer no século XIX, discutindo-o à luz de um contexto mais amplo de estudos no campo da biologia celular. No segundo, vamos discutir como o conhecimento científico sobre a etiologia da doença chegou ao Brasil, e como o câncer no início do século XX, aos poucos, transformou-se em uma enfermidade cada vez mais estudada por médicos e pesquisadores brasileiros. Por fim, no terceiro capítulo, analisaremos os artigos de Pimenta Bueno publicados na revista O Brasil Médico para verificar como o médico construiu e defendeu seu discurso sobre a origem das células cancerígenas à luz de uma abordagem ampla, a partir da qual procurou integrar áreas como bioquímica, biofísica, fisiologia, patologia e citologia, entre outras. Nessa parte do trabalho, explicitaremos as fontes de informação usadas pelo médico para justificar seus argumentos e reforçar seu ponto de vista sobre os mecanismos da doença.



Os artigos de Pimenta Bueno publicados na Brasil Médico foram gentilmente cedidos por Carlos Henrique Fioravanti para o autor deste trabalho. 1

3 CAPÍTULO 1

UM FLAGELO DOS TEMPOS MODERNOS

O século XIX constitui um período de forte incidência de pesquisas no campo da biologia celular. Com o advento de novas técnicas de microscopia, o estudo detalhado do comportamento das células possibilitou um melhor entendimento das condições que favorecem ou determinam o surgimento dos tumores. A partir de então, diversos médicos e pesquisadores, cada um a seu modo e com os instrumentos materiais e conceituais de sua época, propuseram caminhos conceituais, médicos ou institucionais de pesquisa e tratamento para a enfermidade. Nesse sentido, o objetivo deste capítulo será apresentar o cenário internacional de pesquisa sobre o câncer no século XIX, discutindo-o à luz de um contexto mais amplo de estudos no campo da biologia celular. Um aspecto importante relacionado à etiologia do câncer diz respeito à concepção de que os tumores se originariam, em última análise, das células. Como as células normais, as células cancerosas dependeriam do crescimento no sentido mais básico e elementar, a saber, a divisão celular. É possível dizer que essa concepção sobre a doença começou a ganhar forma a partir dos trabalhos do patologista alemão Johannes Müller (1801-1858) e a publicação de seu livro Über den feineren Bau und die Formen der krankhaften Geschwülste, em 1838.2 O advento de novas técnicas de microscopia foi determinante para que Müller pudesse observar em detalhes amostras de tecidos cancerígenos, inferindo que o câncer surgiria de células, e não da linfa coagulada, como se acreditava até 2

Wagener, The history of oncology, 25.

4 então.3 Para Müller, contudo, os tumores não se originariam de células de tecidos sadios, mas do que ele chamou de blastemas, amontoados de células indiferenciadas esparsas por entre os tecidos normais. As ideias de Müller foram fundamentais para que, mais tarde, seu exaluno, o médico polonês Rudolf Virchow (1821-1902), fosse além e refutasse a então chamada Teoria dos Blastemas, demonstrando que as células cancerígenas poderiam se originar de células normais.4 As considerações de Virchow sobre a etiologia do câncer se baseiam em dois princípios básicos, postulados por ele próprio em 1855, a saber, os seres vivos são constituídos de células e as células só poderiam surgir de outras células. Com isso em mente, Virchow propôs que se as células só nasciam de outras células, então, o desenvolvimento dos tecidos só se daria pelo aumento do número ou do tamanho das mesmas. A esses dois mecanismos ele atribuiu os termos hiperplasia e hipertrofia.5 Essa explicação o ajudou a dar forma a uma nova compreensão dos crescimentos normal e patológico das células. Virchow identificou a capacidade de proliferação das células em 1858, ao analisar amostras de tecidos cancerígenos com o microscópio. Tratava-se de uma hiperplasia celular, ou seja, de uma condição de crescimento anárquico das células. Apesar de ter verificado e descrito essa anormalidade, o médico identificou sua causa sustentando que a inflamação, isto é, a reação do corpo a um dano perigoso por meio da ativação do sistema imunológico, acionaria a proliferação das células, favorecendo o surgimento de células malignas que Ibid., 26. Lew, The Truth about Cancer, 18. 5 Mukherjee, O imperador de todos os males, 19. 3 4

5 dariam origem a outras células com as mesmas características. Dessa forma, o médico inferiu que o câncer resultaria de um ambiente fisiologicamente perturbado ao redor das células sadias.6 As ideias propostas pelo patologista alemão ampliaram a compreensão sobre os desenvolvimentos normal e patológico dos tecidos, possibilitando que muitos cientistas avançassem na elaboração de uma teoria mais sofisticada sobre a doença após sua morte, aos 80 anos, em 1902. O também patologista alemão Julius Cohnheim (1839-1884), por exemplo, defendeu que os tumores seriam determinados pelo crescimento de células embrionárias esparsas pelo organismo.7 Portanto, não seria exagero dizer que o câncer em fins da segunda metade do século XIX já era explicado com base em definições mais precisas: uma doença de hiperplasia patológica, na qual as células adquiriam uma vontade autônoma de dividir-se. Essa divisão celular descontrolada resultaria em massas de tecidos, os tumores, que invadiam órgãos e destruíam tecidos normais, podendo se espalhar de um lugar para outro, espalhando a doença por outros tecidos. Em última análise, quase todos os tipos de câncer nasceriam de células ancestrais que, tendo adquirido a capacidade ilimitada de divisão, dariam origem a um número ilimitado de descendentes. Logo, de acordo com Virchow, a omnis cellula e cellula e cellula...



6 Prudente, O cancer precisa ser combatido, 21. Como veremos mais adiante, a concepção de que inflamações crônicas, ardendo por décadas, conduziriam as células ao câncer será um ponto importante na teoria do médico mineiro Alfredo Leal Pimenta Bueno sobre a etiologia da doença. 7 Ibid., 23.

6 A teoria cromossômica do câncer Um dos muitos cientistas que se beneficiou das ideias propostas por Müller e Virchow foi o zoólogo alemão Theodor Heinrich Boveri (1862-1915). Como eles, Boveri explorou as possíveis causas do câncer ao estudar os mecanismos de divisão celular de ovos de ouriço-do-mar em 1902.8 Como a maioria dos ovos do reino animal, o do ouriço-do-mar, quando fecundado, cria uma barreira praticamente instantânea que impede a entrada de outros espermatozoides. Uma vez fertilizado, o ovo inicia o processo de divisão celular — a mitose —, pelo qual uma célula “mãe” se divide para dar origem a uma célula “filha”. A cada mitose, duplicam-se também os cromossomos, as estruturas no interior das células que contêm os genes. Durante a mitose, os cromossomos são duplicados e divididos igualmente entre as células-filhas. Para melhor estudar o processo de divisão dos cromossomos, Boveri, então professor de zoologia e anatomia comparada na Universidade de Würzburgo, Alemanha, elaborou um experimento em que eliminou a membrana que impedia que os espermatozoides invadissem o ovo de ouriçodo-mar, induzindo uma dupla fertilização. Fazendo isso, Boveri provocou um caos cromossômico. O ovo não conseguia mais dividir os cromossomos adequadamente entre as células-filhas, que não obtinham a combinação correta de 36 cromossomos.9 As células, então, em um movimento semelhante ao de

8 Boveri, “Concerning the origin of Malignant Tumours”, 4. As informações sobre o trabalho de Theodor Boveri foram obtidas de uma versão de seu artigo traduzida para o inglês por Henry Harris, editor da revista científica Journal of Cell Science. 9 Na espécie usada por Boveri, o número de cromossomos era 36. Em um zigoto monoespermático normal, os 36 cromossomos duplicam-se antes da primeira divisão para formar 72 cromossomos e estes são distribuídos equitativamente na primeira divisão mitótica, indo 36 para cada célula-filha.

7 uma supernova, voltavam-se para dentro de si e morriam. A constatação permitiu a Boveri inferir que os cromossomos desempenhavam um papel importante, talvez fundamental, na divisão e no desenvolvimento adequado das células e que mitoses aberrantes poderiam levar à sua distribuição desigual entre as células, o que seria prejudicial na maioria dos casos. Boveri apresentou suas ideias em três artigos, Zellenstudien I, II e III, publicados em 1887, 1888 e 1890. O interesse de Boveri pelo processo de divisão cromossômica começou a se desenhar em 1885, quando ele começou a trabalhar no laboratório do zoólogo alemão Richard Hertwig (1850-1937), cujas pesquisas o haviam permitido concluir que o núcleo celular seria o responsável por carregar as bases físicas da hereditariedade e que o fenômeno da fecundação normal seria resultado da união de um núcleo de esperma com um núcleo do óvulo.10 As contribuições de Hertwig foram importantes para que Boveri, mais tarde, pudesse elaborar seus experimentos; também foram igualmente importantes para o patologista alemão David Paul von Hansemann (1858-1920), que foi além e investigou como os cromossomos se comportavam durante o processo de divisão das células cancerígenas. Em 1890, ao examinar células cancerosas manchadas com corantes de anilina, Von Hansemann observou que seus cromossomos estavam partidos, desgastados, quebrados e, em alguns casos, rejuntados; uma constatação importante, uma vez que representava um primeiro indício de que a divisão descontrolada dessas células poderia se dar a partir de um defeito cromossômico. No entanto, é importante ressaltar que as pesquisas sobre os 10

Manchester, “The origin of malignant tumours”, 384.

8 mecanismos de divisão celular vinham sendo feitas, pelo menos, desde a década de 1850, sobretudo com os estudos de Virchow e do biólogo alemão Walther Flemming (1843-1905), que analisou o processo de proliferação das células usando ovos de salamandra. Tendo em conta a relevância de suas ideias para os estudos de Boveri e Von Hansemann, faremos um breve desvio para tratar de suas pesquisas.

A cromatina de Flemming O período em que Flemming iniciou seus estudos sobre o processo de divisão celular constitui uma época de forte incidência de pesquisas no campo da biologia celular. Sendo assim, é importante destacar que o botânico Matthias Schleiden (1804-1881) e o psicólogo Theodor Schwann (1810-1882), ambos alemães, haviam há alguns anos proposto a teoria celular segundo a qual os seres vivos seriam formados por minúsculas porções de matéria viva, chamadas células. Por sua vez, o botânico belga Barthélemy Charles Joseph Dumortier (1797-1878), em 1832, observou em plantas a divisão de uma célula em duas, fenômeno por ele chamado de fissão binária. Um ano mais tarde, em 1833, o também botânico, mas escocês, Robert Brown (1773-1858) descreveu uma estrutura de aspecto semelhante ao de um ovo no interior das células, a qual mais tarde atribuiu o termo núcleo11, ao passo que o fisiologista polonês Robert Remak (1815-1865), em 1855, fez descrições importantes relacionadas aos processos que se desencadeavam no núcleo das células durante a divisão. Com 11

Brown, “Mode of fecundation in Orchidae and Asclepiadeae”, 685.

9 este breve resumo do contexto científico no campo das pesquisas em biologia celular, pretendemos pôr em evidência o fato de as pesquisas sobre o processo de divisão celular estarem em curso há quase meio século quando Flemming passou a se interessar pelo comportamento individual das células. Dentre as pesquisas em desenvolvimento à época, uma merece destaque. Em 1873, o zoólogo alemão Anton Friedrich Schneider (1831-1890), estudando o mecanismo de divisão celular, observou que durante o processo o núcleo das células transformava-se em uma estrutura semelhante ao de uma haste, que se condensava no centro das células. Esse fenômeno levou Schneider a sugerir que o núcleo das células se deformava durante a divisão. Walther Flemming decidiu investigar esse processo e nos anos seguintes se propôs descrevê-lo em detalhes. Em seus estudos, ele verificou que a rede e as armações no interior do núcleo das células se transformavam em minúsculos filamentos que, em seguida, dividiam-se em dois grupos. Estes, por sua vez, formavam meadas, a partir das quais as estruturas do núcleo reapareciam.12 Flemming, então, desenvolveu um experimento em que manchou células de salamandra com o corante de anilina. As manchas realçavam uma substância azul, fina como um fio, no interior do núcleo das células, que condensava e se iluminava pouco antes do início da divisão. Em 1879, Flemming cunhou a essas estruturas o termo cromatina.13 Anos depois, em 1888, o anatomista alemão Heinrich Wilhelm Waldeyer (1836-1921) atribuiu o termo cromossomo aos filamentos identificados por Flemming. 12 13

Paweletz, “Walther Flemming”, 74. Ibid.

10 Theodor Boveri certamente conhecia esses trabalhos, sobretudo os de Von Hansemann, de modo que com base em seu experimento com ovos de ouriço-do-mar, e com o conhecimento que havia adquirido no laboratório dos irmãos Hertwig, concluiu que anormalidades cromossômicas desencadeadas por mitoses aberrantes poderiam ser a causa do crescimento patológico característico do câncer.14 Para ele, a combinação incorreta dos cromossomos geraria uma célula maligna dotada de uma capacidade incomum de crescer e se multiplicar de modo descontrolado.15 Essa característica, por sua vez, era transmitida para as células descendentes.16 Em última análise, a propriedade essencial das células tumorais, para Boveri, não era a doença em seu sentido estrito e tradicional, mas no sentido de as células tomarem a direção errada.17 Ao propor sua teoria cromossômica para a origem do câncer, Boveri ajudou a estabelecer as bases para a concepção da doença como uma enfermidade genética.18

Sobre a hereditariedade do câncer Em 1866, a relação entre câncer e hereditariedade começou a emergir na Europa, sobretudo com os trabalhos do médico francês Pierre Paul Broca (18241880) e a publicação de seu livro Traité dês Tumeurs.19 A obra, publicada em dois volumes, apresentava uma revisão ampla e histórica das ideias sobre os

Boveri, 7. Marte, “Cancer as a genetic disease”, 8. 16 Balmain, “From Boveri and Mendel to microarrays”, 79. 17 Manchester, “The origin of malignant tumours”, 385. 18 Boveri, 10. 19 O trabalho de Paul Broca foi previamente examinado em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 233-34. 14 15

11 tumores, além de discussões sobre classificações mais recentes da doença e de seus meios de propagação e formas de tratamento paliativas ou cirúrgicas. Em seu livro, o médico francês estabelece, ainda, a diferença entre cancros primários e secundários, e apresenta suas ideias sobre as possíveis origens dos tumores.20 Pierre Paul Broca nasceu em Sainte Foy-la-Grande, França, em junho de 1824. Começou o curso de medicina na Universidade de Paris, em 1841, aos 17 anos. Formou-se três anos mais tarde, em 1844, tornando-se professor assistente na Faculdade de Medicina em 1853 e de clínica cirúrgica, na mesma instituição, em 1868.21 O médico francês é recorrentemente lembrado por suas contribuições no campo da neurociência. No ano de 1861, ao identificar um paciente quase incapaz de falar devido a uma lesão nos lobos frontais, questionou-se sobre a possível existência de um centro dedicado à linguagem no cérebro. Como os casos de pessoas cuja linguagem havia sido comprometida em decorrência de lesões na região do lobo frontal do hemisfério esquerdo tornaram-se cada vez mais frequentes, Broca inferiu que a expressão da linguagem seria controlada por apenas um dos hemisférios, quase sempre o esquerdo. A área do lobo frontal esquerdo identificada pelo médico francês como sendo determinante para a articulação da fala ficou conhecida como a Área de Broca.22 No entanto, Broca também estudou e escreveu bastante sobre o câncer, fazendo contribuições importantes sobre a etiologia da doença, sendo talvez um dos primeiros a Krush, “Contributions of Pierre Paul Broca”, 126. Ibid. 22 Gusmão, Silveira & Cabral Filho, “O nascimento da moderna neurocirurgia”, 1150. 20 21

12 descrever o caso de uma mesma família com alta prevalência de casos de câncer de mama. Para ele, os mecanismos que desencadeariam a formação dos tumores poderiam variar; os tumores, argumentava, surgiam de uma ação local, como inflamações ou contusões, ou geral. As ações gerais se desenhavam quando novos canceres se desenvolviam, a partir do primeiro, em outros órgãos do organismo. O médico não considerava os tumores uma consequência de um problema de nutrição local, mas ao que ele chamou de diátese. Vejamos como o médico francês a define em seu livro Traité dês Tumeurs: A diátese não é uma doença, mas apenas a causa da doença; não é nem mesmo uma suposta causa, porque não se enquadra no âmbito dos sentidos; esta é uma visão teórica do espírito, não um fenômeno observado ou observável; emerge do raciocínio; como o raciocínio que admitimos para explicar a hereditariedade.23 Segundo o médico francês, a diátese produziria o primeiro câncer, que produziria uma infecção. Esta, por sua vez, produziria o que ele julgava serem os tumores secundários, a caquexia e, por fim, a morte. Essa predisposição, para Broca, era transmitida de modo hereditário, como ele mesmo ressalta: Esta predisposição mortal, impossível de se escapar, inacessível à cirurgia, e até mesmo ao tratamento médico ou interno, é uma indicação de um estado geral que precede cada manifestação local, a qual persiste depois da cirurgia, e que determina a reincidência da mesma forma 23

Broca, 333.

13 que produz o primeiro tumor. Quando olhamos além, em certos casos, essa predisposição é transmitida de modo hereditário por várias gerações.24 Sua mulher havia sido diagnosticada com câncer de mama há alguns anos, de modo que o médico decidiu reconstituir o pedigree de sua família para tentar demostrar que o câncer poderia ser transmitido em uma mesma família, um fenômeno que muitos médicos consideravam apenas coincidência. Broca listou as mortes causadas por câncer de mama em cinco gerações da família de sua esposa entre os anos de 1788 e 1856 a partir da Sra. Z, que havia morrido em decorrência de um câncer de mama em 1788, aos 60 anos.25 Muitos de seus filhos também tinham morrido em decorrência de diferentes tipos de canceres, incluindo quatro filhas, que se casaram, tiveram filhos e, assim como a Sra. Z, morreram por causa da doença, duas de câncer de mama e duas de câncer no fígado. Broca continuou a monitorar os filhos dos filhos das filhas da Sra. Z até a quinta geração. Ao todo, o médico registrou 16 mortes causadas pelo câncer nas gerações estudadas da família da Sra. Z.26 Àquela época, na França, a incidência de câncer em pessoas acima dos 30 anos era de 30 para cada 1.000 habitantes, ou 3 para cada 100 habitantes. Broca, então, concluiu que a influência da hereditariedade havia aumentado o risco do desenvolvimento de câncer na família da Sra. Z 15 vezes a média da população geral da França, fazendo com que a relação para os homens fosse de 1 para 7, e

Ibid., 331. Ibid., 151. 26 Ibid. 24 25

14 de 14 em 19, para as mulheres.27 Dessa forma, Broca sugeriu que os tumores poderiam se formar anos, mesmo décadas, antes da manifestação dos primeiros sintomas, e que o câncer, ou o mecanismo primeiro que o desencadearia, poderia permanecer “adormecido” por muitos anos até manifestar-se, devastando os tecidos em meses, em alguns casos. Eis o que ele diz sobre isso: Um indivíduo em que estão reunidas as condições desconhecidas que o expõe e mais tarde se tornam cancerígenas pode transmitir à sua posterioridade este grupo de condições antes mesmo que elas tenham se manifestado nele próprio. Além disso, tendo recebido a diátese de um de seus antepassados, esse indivíduo pode escapar, por toda sua vida, longa e saudável, das consequências

desse

estado

hereditário,

podendo

transmitir para um de seus filhos a doença da qual foi poupado.28 A hereditariedade normal e a hereditariedade do câncer constituíram o que Broca definiu como atavismo, o reaparecimento de certa característica no organismo após várias gerações de ausência. Diante disso, ele inferiu que a hereditariedade do câncer poderia permitir que muitas pessoas vivessem uma vida saudável, mesmo carregando a diátese da doença.29 Vejamos o que ele diz: Um fato notável sobre minhas observações relacionadas à hereditariedade do câncer diz respeito à saúde perfeita



Ibid., 152. Ibid., 154. 29 Como veremos mais adiante, alguns anos após a publicação de Traité dês Tumeurs, o oftalmologista brasileiro Hilário Soares de Gouvêa ofereceu novas evidências de uma causa genética hereditária do câncer, tornando-se talvez um dos que melhor documentaram a capacidade de alterações genéticas gerarem células anormais e serem transmitidas de pais para filhos. Vide página 44. 27 28

15 apreciada por longos anos pela maioria das pessoas que trazem consigo ao nascer o germe desta doença.30

O vírus do sarcoma de Rous Após vários médicos e pesquisadores terem demonstrado que doenças infecciosas como a tuberculose, a sífilis e a lepra poderiam ser causadas por microrganismos, a hipótese de que o câncer também poderia ser causado por bactérias ou vírus ganhou força na Europa, atravessando o oceano Atlântico. Nos laboratórios do Instituto Rockefeller de Pesquisa Médica, em Nova York, Estados Unidos, um jovem virologista chamado Francis Peyton Rous (18791970) afirmava ter identificado em uma galinha um sarcoma transmissível, maligno e capaz de se espalhar por todo o organismo.31 No ano de 1909, Peyton Rous recebeu em seu laboratório no Instituto Rockefeller uma galinha com um tumor grande na região do peito. O inchaço, largo e irregular, havia se desenvolvido sem comprometer a saúde do animal. Após observá-lo, Rous desenvolveu um experimento em que transplantou o tumor para uma galinha saudável. Para isso, inoculou no peito e na cavidade peritoneal do animal pedaços do sarcoma, verificando, mais tarde, que pedaços do tumor voltavam a crescer quando inoculados em outras galinhas da mesma raça, a Plymouth Rocks.32 Peyton Rous descreveu seus resultados em um artigo publicado no ano de 1910 no Journal of Experimental Medicine.

Broca, 153. O trabalho de Peyton Rous foi previamente examinado em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 238. 32 Rous, “A transmissible avian neoplasm”, 697. 30 31

16 Neste momento, portanto, a descoberta e o estudo de tumores transmissíveis em novas espécies ou tipos de animais têm um valor excepcional. E é por essa razão que um sarcoma de uma galinha — o primeiro tumor aviário que se provou poder ser transplantado para outro individuo — será tratado com algum detalhe.33 No entanto, ainda que importantes, suas conclusões não foram recebidas com bons olhos por outros estudiosos da mesma época. O câncer àquela época já era considerado uma doença de origem celular, de modo que, segundo eles, era de se esperar que ao transferir as células de um organismo para o outro se transferisse também as células cancerígenas. Rous, então, foi além e, no ano de 1911, publicou na mesma revista científica outro artigo descrevendo resultados ainda mais instigantes. Ao transferir tumores de uma ave para outra, ele filtrou as células em crivos celulares cada vez mais finos, até que as células e bactérias fossem eliminadas da mistura e só restasse o líquido filtrado derivado delas.34 Rous esperava que a transmissão tumoral parasse, mas os tumores continuaram a se propagar com eficácia, às vezes até aumentando sua transmissibilidade à medida que as células desapareciam da mistura. Vejamos o que ele escreveu: Para os primeiros experimentos neste ponto, filtros de papel comuns foram usados e o tumor foi suspenso em solução de Ringer. Era esperado que a fina barreira de papel, que permite a passagem de algumas células vermelhas do sangue e os linfócitos, fosse suficiente para conter o tumor e tornar inócuo o que foi filtrado. Essa tem sido 33 34

Ibid., 696. Marte, 8.

a

experiência

de

outros

pesquisadores

em

17 experimentos com tumores em camundongos e cães. Mas no

presente

exemplo,

crescimentos

característicos

seguiram a inoculação de pequenas quantidades do aguado filtrado, ou do fluido sobrenadante obtido após centrifugação de uma emulsão do tumor.35 Rous concluiu que tumores malignos seriam causados, portanto, por um minúsculo parasita não observável pelo mais potente microscópio e que, por isso, era capaz de passar sem grandes dificuldades pelos filtros. A primeira tendência aqui será a de se considerar o agente autoperpetuador nesse sarcoma de galinha como um organismo parasitário. A analogia com várias doenças infecciosas do homem e dos animais inferiores, causadas por organismos ultramicroscópicos, dá suporte a este ponto de vista acerca dos resultados, os quais estão sendo direcionados à sua verificação experimental no presente trabalho.36 Este agente foi mais tarde demonstrado ser um vírus, sendo nomeado como Vírus do Sarcoma de Rous (RSV, na sigla em inglês). A importância do achado foi prontamente reconhecida. Em sua edição de 14 de fevereiro de 1912, o jornal The New York Times publicou uma pequena reportagem sobre os resultados obtidos pelo virologista norte-americano, destacando logo no início do texto que Rous havia encontrado evidência de que doença não era orgânica, como se acreditava até aquele momento. Aos poucos, as descobertas apresentadas por Rous ganharam mais visibilidade, ajudando a ampliar o então

35 36

Rous, “A sarcoma of the fowl”, 397. Ibid.

18 emergente campo da virologia tumoral.37 Em 1966, então com 87 anos de idade, o virologista norte-americano foi laureado com o Prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia pelas suas contribuições. Antes de continuarmos, convém lembrar que Peyton Rous não foi o primeiro a afirmar ter identificado um agente capaz de desencadear a formação de tumores, como a reportagem publicada no jornal New York Times faz questão de destacar. O próprio virologista, ao receber o Prêmio Nobel, lembrou que outros pesquisadores haviam igualmente encontrado evidencias de vírus capazes de induzir a formação de tumores38, entre eles Oluf Bang (1881–1937) e Vilhelm Ellerman (1871–1924), ambos pesquisadores da Universidade de Copenhague, Dinamarca.39 Ademais, quase uma década antes, em 1901, o médico francês EugèneLouis Doyen (1859-1916) anunciava à Academia de Medicina de Paris que havia isolado o microrganismo responsável por pelo câncer, então chamado ele de Micrococcus neoformans40.41 Doyen escreveu bastante sobre o câncer, fazendo uma série de experimentos que lhe permitiram inferir algumas ideias sobre a origem, o desenvolvimento e as possíveis formas de regressão de tumores, os quais, segundo ele, se originavam todos do mesmo micróbio da neoplasia.42



Weiss & Vogt. “100 years of Rous sarcoma virus”, 2354. O episódio foi citado em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 238. 39 Van Epps. “Father of the tumor virus”, 320. 40 O trabalho de Eugène Doyen sobre possíveis origens e tratamento de câncer foi apresentado e previamente examinado em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 236-40. 41 Doyen, Étiologie et traitement du cancer, 20. 42 O termo neoplasia, como vimos, foi cunhado por Rudolf Virchow em referência ao crescimento novo e inexplicável das células, as quais pareciam possuídas por um ímpeto de crescer e se multiplicar. 37 38

19 Para Doyen, o Micrococcus neoformans provocaria uma inflamação nas células com as quais entrava em contato, fazendo com que começassem a se proliferar descontroladamente.43 O médico francês também escreveu sobre imunologia, examinando as formas pelas quais o organismo se defendia das bactérias que poderiam causar câncer. Em seu livro, Le Cancer, publicado em 1909, ele escreve: O problema do câncer, há muito tão complexo, tornou-se muito mais simples desde as descobertas recentes no campo da imunidade, uma vez que o processo canceroso aproxima-se sensivelmente da maior parte dos processos infecciosos crônicos, especialmente da tuberculose.44 Em sua obra, Doyen apresenta o câncer como uma doença infecciosa crônica, que poderia ser induzida por meio da injeção de microrganismos, e que se desenvolvia mais facilmente em células que já haviam sido irritadas por infecções anteriores. Em 1910, Doyen descreveu vários casos de cura de diversos tipos de câncer, apresentando duas conclusões importantes. Uma delas era que o câncer poderia a partir daquele momento ser considerado uma doença curável.45 A outra é que os resultados obtidos por ele com uma vacina que havia concebido apenas para os casos de câncer confirmados sugeriam a possibilidade de obter imunidade preventiva, sob o argumento de que “a



Doyen, Étiologie et traitement du cancer, 20. Doyen, Le Cancer, 1. 45 Ibid., 358. 43 44

20 vacinação antineoplásica seria o único tratamento geral capaz de lutar contra a extensão profunda do câncer”.46 Os primeiros resultados obtidos do uso de injeções de microrganismos

em

várias

doenças

infecciosas

me

empenharam a combinar a injeção desses líquidos e de duas vacinas, compostas uma de toxinas e a outra de toxinas e micróbios mortos, que emprego no câncer desde 1901.47 No entanto, os casos de sucesso começaram a se tornar cada vez mais raros, uma vez que os médicos a quem ele havia doado algumas ampolas de seu medicamento verificaram que o microrganismo isolado pelo médico era, na verdade, um organismo saprófito comum em qualquer pessoa, sadia ou doente.48

O bacilo do cancro De fato, desde o advento da bacteriologia, muitos cientistas passaram a buscar um possível agente microbiano ou parasitário como responsável por desencadear o câncer. Desse modo, vários agentes vivos foram apresentados. Também no Brasil a ideia de uma teoria parasitária do câncer ganhou força nos meios científicos. Em fins do século XIX, o médico brasileiro Domingo Freire (1843-1899), professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, tentou



Ibid., 371. Doyen, Traitement des maladies, 31. 48 Androutsos, Diamantis & Vladimiros. “Eugène Doyen”, 445-53. 46 47

21 demonstrar que os tumores poderiam ser desencadeados por microrganismos.49 Em sua obra Premières études expérimentales sur la nature du cancer, publicada em 1887, o médico afirma ter encontrado bacilos de extremidades arredondadas parecidos com os da febre tifoide no sangue de um indivíduo com câncer.50 Microrganismos iguais haviam sido detectados também no suco canceroso do tumor, segundo ele. Alguns anos mais tarde, em 1892, Domingos Freire publicou outra obra importante, intitulada Novas investigações sobre o micróbio do câncer. Nela, ele argumentava ser possível curar o câncer por meio da inoculação do soro de animais previamente imunizados com culturas do bacilo que ele julgava ser o responsável pela doença.51 O principal ingrediente para a cura da doença, segundo

Domingos

Freire,

era

a

toxina

alcaloide,

produzida

pelo

microrganismo isolado por ele em 1887. No mesmo ano, contudo, o médico alemão Ernst Scheurlen apresentou resultados bem semelhantes ao do médico carioca à Sociedade de Medicina Interna de Berlim. Para além do impacto desse trabalho em revistas médicas internacionais, instalou-se na comunidade científica a dissensão entre Freire e Scheurlen, fruto da primazia da descoberta do cobiçado agente patogênico. Pouco tempo depois, surgiram vários outros pretendentes à descoberta do suposto micróbio do câncer, entre eles o italiano radicado uruguaio Giuseppe



49 O trabalho de Freire sobre a possível origem do câncer foi previamente examinado em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 234-36. 50 Costa, “Entre a teoria parasitária e a oncologia experimental”, 413. 51 Benchimol, Dos Micróbios aos Mosquitos, 245.

22 Sanarelli (1864-1940)52, que alguns anos mais tarde também disputaria com Domingos Freire a prioridade pela identificação do agente responsável pela febre amarela.53 Freire, à época professor de química orgânica e biológica na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, reivindicou a prioridade da descoberta do bacilo do câncer em um artigo publicado em janeiro de 1888 na revista Gazeta Médica da Bahia. Vejamos o que o médico brasileiro escreveu após ter lido na Semana Medica de Pariz do dia 30 de novembro de 1887 o comentário de Scheurlen, intitulado O bacillo da carcinoma: N’ella o autor declara que ninguem

antes d’elle tinha

conseguido demonstrar a natureza do agente etiologico do cancro. Peço, pois permissão para observar perante essa associação que, no principio d’este mesmo anno, publiquei uma Memoria denominada – Prémiéres études expérimentales sur la nature du cancer – na qual chego ás mesmas conclusões que o Sr. Scheurlen.54 Mais adiante, no mesmo artigo, Domingos Freire aproveita para apresentar outras publicações que ele havia publicado na França e no Rio de Janeiro e que, de acordo com ele, atestavam seu pioneirismo:



52 A disputa de Freire com Sanarelli e com os europeus a respeito da descoberta do agente causador do câncer foi previamente descrita em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 235. 53 Lódola & Góis Junior, “Teorias sobre a propagação da febre amarela”, 690. Na década de 1880, Domingos Freire defendeu a propagação da febre amarela por meio de uma alga capaz de contaminar a água, o ar, os alimentos frios, os hospitais e os cemitérios. À procura de mérito em relação à sua descoberta, tal como fez em relação à descoberta do agente microbiano causador do câncer, enviou sua teoria ao Congresso Internacional de Budapeste, em 1884. Em 1896, porém, a Academia Nacional de Medicina do Rio de Janeiro, por meio de documentos oficiais do congresso, constatou que seu trabalho havia sido lido, não tendo passado por nenhuma votação, de modo que, por isso, não poderia ter sido aprovado, como o médico havia sugerido em diversos artigos publicados em jornais de grande circulação. 54 Freire. “Prioridade da descoberta do bacilo do cancro”, 331.

23 Aproveito a occasião para recordar que varios jornaes, não só da America mas ainda da França, se occuparam de meu trabalho de maneira mais ou menos minuciosa. Citarei entre elles O Paiz, do Rio de Janeiro, e a Revue Scientifique de Pariz, de 5 de Março de 1887, onde achareis artigos bastante longos noticiando a descoberta do microbio do cancro.55 Um artigo de maio de 1888 na Gazeta Médica da Bahia reconheceu a importância dos trabalhos de Domingos Freire, mas também ressaltou o fato de os micróbios obtidos por ele e Scheurlen serem muito parecidos. Desse modo, concluiu que ainda eram necessárias “novas investigações para contraprovar os resultados obtidos pelos três observadores”.56 De fato, Domingos Freire e Ernst Scheurlen chegaram praticamente às mesmas conclusões: “no organismo affectado do cancro, acha-se um bacillo que se desenvolve por sperulação”. A única diferença entre os dois trabalhos era que o de Freire considerava que o bacilo se originavam de uma substância gelatinosa chamada zoogléa produzida por bactérias. [Em minha Memória] dou a descripção de tumores cancerosos obtidos por meio de injecção de uma cultura em porquinhos da India. Em um d’estes tumores, no intervallo das cellulas cancerosas, encontrei grande numero de spóros e alguns bacilos.57 Àquela época, Freire era também muito conhecido por causa de seu trabalho com a febre amarela, então um grave problema de saúde pública no Ibid. Ibid., 333. 57 Ibid. 55 56

24 Brasil.58 Vale destacar que no ano de 1883 ele tinha recebido autorização para ampliar os testes da vacina contra a doença, produzida com culturas do micróbio xanthogenico, que já tinha sido aplicada em 48 pessoas, sem que nenhum dos vacinados tivesse sofrido o menor acidente sério. A influência de Domingos Freire, Scheurlen e de outros pesquisadores que à época acreditavam na existência de um agente microbiano responsável pelo câncer foi um dos motes para a tese de doutorado do médico português Luiz da Câmara Pestana (1863-1899), apresentada em 1889 na Escola MédicoCirúrgica de Lisboa, Portugal, sob o título “O micróbio do carcinoma”.59 Em seu trabalho, Câmara Pestana procurou examinar o dilema da época: se o câncer resultaria de uma causa interna, a chamada diátese proposta por Paul Broca, ou se existiria algum agente microbiológico externo, e ainda desconhecido, capaz de promover o surgimento da doença. Vejamos o que ele escreve: Acceitando portanto a natureza infectuosa do carcinoma, e como desde o momento em que ha infecção, ha alguma cousa

que

cresce

e

se

reproduz

que

a vai determinar; pergunto, se esse quid será um microbio autochtono, a propria cellula do organismo, que por uma aberração evolutiva, transformarse-hia n'um elemento extranho e ruim, enchertando-se e reproduzindo-se por toda a parte, dando logar ás neoplasias primarias e secundarias, como quer o Sr. D. António de Lencastre, ou se pelo contrario, o microbio é hetero chtono, extranho ao organismo e que pela irritação constante que produz, dará

58 O trabalho de Freire sobre a vacina de febre amarela e as estratégias de divulgação de seu trabalho foram previamente examinados em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 235. 59 O trabalho de Pestana foi previamente examinado em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 236.

25 origem ao tumor? São estas as duas theorias que se debatem e que procurarei descutir.60 Pestana identificou o tipo de bacilo descrito por Freire, mostrando que as múltiplas formas que ele parecia assumir nos trabalhos de outros autores eram senão fases diferentes da evolução do mesmo agente. Eis o que ele diz: Formas tão variadas descriptas por diversos auctores, poderiam levar a pensar que differentes bacillos teriam sido encontrados e que o microbio do carcinoma mudava de paiz para paiz e de observador para observador. Mas tanto nas preparações que tinha feito dos tumores, e que acima referi, como no exame mi- croscopico das culturas, a mesma diversidade de for- mas encontrei e ora observava bacterias analogas á descripção de Scheurlen, ora parecidas com as observadas por Schill, ora identicas ás que Domingos Freire tinha visto.61 O médico português estudou várias amostras de tumores extirpados por outros médicos, observando microrganismos por vezes dispostos em cadeias nos exames corados, bem como seu desenvolvimento em diferentes meios de cultura. No entanto, não conseguiu isolar um agente microbiano que pudesse ser associado à enfermidade. “Parece-me que ainda resta um largo e escabroso caminho a percorrer, para chegar a affirmar com segurança a causa determinante das neoplasias malignas”, ele concluiu.62 Conforme era o ponto central deste capítulo, julgamos ter indicado que as pesquisas sobre a etiologia do câncer estavam em voga há algum tempo,

Pestana. “O micróbio do carcinoma”, 10. Ibid., 37. 62 Ibid. 60 61

26 sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. Por caminhos silenciosos e menos trilhados, evidentemente, muitos outros médicos tentaram entender a etiologia do câncer na segunda metade do século XIX e início do século XX. Não pretendemos, assim, abarcar todas as teorias ou mesmo todos os pontos de vista sobre a origem das células tumorais propostas ao longo daquele período, mas ressaltar o fato de essa ser uma moléstia há muito discutida e estudada em todo o mundo. No Brasil, como veremos no capítulo a seguir, os médicos e cientistas priorizavam a definição das melhores — ou mais adequadas — técnicas cirúrgicas

para

a

extirpação

de

tumores,

a

realização

de

estudos

epidemiológicos que melhor delimitassem o alcance da doença na população e servissem como base para políticas públicas de combate aos tumores. Poucos foram os médicos brasileiros que se dedicaram à pesquisa sobre a etiologia do câncer

seguindo

protocolos

de

pesquisa

testados

e

validados

internacionalmente. Dentre eles, podemos citar dois, a saber, o oftalmologista Hilário Soares de Gouvêa e o médico mineiro Alfredo Leal Pimenta Bueno, cujas ideias serão apresentadas, analisadas e discutidas mais adiante.

27 CAPÍTULO 2

UM INIMIGO A SER COMBATIDO

Em 17 de abril de 1859, o médico português, naturalizado brasileiro, José Francisco da Silva Lima (1826-1910), foi chamado às pressas para examinar Joanna, uma escrava de 18 anos da vila de Camamu, um dos principais centros produtores de farinha de mandioca da capitania de Ilhéus no período colonial.63 Havia cerca de um ano Joanna, com fortes dores no ventre, notara um caroço do tamanho de uma laranja sensível à pressão dos dedos próximo ao quadril do lado direito. Após ter convivido com aquele incomodo por muito tempo, e sem saber a quem recorrer, apelou às sanguessugas, que aplicadas sobre o caroço pareciam aliviar as dores. Não funcionou. Recorreu, então, aos purgantes, mas tampouco adiantaram. Pelo contrário, produziram um sangramento vaginal intenso que quase a matou. E o caroço, indiferente às suas investidas, crescia progressivamente, estendendo-se em pouco tempo à região próxima ao umbigo, onde continuou a se desenvolver até chegar à circunferência de 86 centímetros.64 Ao examiná-la, Silva Lima, diretor dos serviços de clínica médica no Hospital da Caridade da Santa Casa da Misericórdia da Bahia, verificou um tumor globoso, duro, desigual em superfície e consistência, e móvel, deslocando-se como se flutuasse imerso em um líquido, ao passo que a parede abdominal percorria certo espaço antes de chegar ao contato com o caroço, 63 64

Silva Lima, “Prenhez extra-uterina de 18 mezes”, 255. Ibid.

28 como se se espalhasse furtivamente pelo corpo.65 Ao realizar um exame ginecológico, o médico constatou que Joanna estava grávida, concluindo mais tarde que o caroço havia se desenvolvido em consequência de uma concepção extrauterina, que, por sua vez, desencadeou uma gravidez ectópica, quando o óvulo é fecundado fora do colo do útero.66 Frente à gravidade da situação, e por se tratar de um caso que pela primeira vez se oferecia à sua observação, o médico optou pela retirada do feto, morto, ainda que os riscos de uma cirurgia naquelas circunstâncias fossem altos. Após ser operada, a jovem escrava oscilou períodos de melhora e piora, com dores ora mais, ora menos fortes. Mas, então, o caroço que outrora diminuíra, voltou a crescer, e com ele voltaram as dores. Joanna não resistiu às complicações e morreu às cinco da manhã do dia 12 de agosto de 1859, dezenove dias após a cirurgia.67 O relato do médico José Francisco da Silva Lima, publicado no dia 10 de maio de 1867 na Gazeta Médica da Bahia, constitui uma das muitas referências que se passou a fazer à questão do câncer na segunda metade do século XIX por parte da classe médica brasileira, que, motivada pelo que via e ouvia em congressos europeus e pelo que lia em artigos científicos, aos poucos começava a discutir a doença de causas incertas.68 Um dos debates da sessão da Academia Imperial de Medicina do dia 5 de setembro de 1851 tratou da cirurgia para o câncer de útero, por exemplo. Na ocasião, um dos médicos lembrou:



Ibid., 256. Ibid. 67 Ibid., 255. 68 Teixeira, “O câncer na mira da medicina”, 105. 65 66

29 A maior parte dos cancros que se dizem operados com o maior successo sem nenhum resultado sinistro posterior não eram talvez cancros verdadeiros, mas tumores, que simelhando-os muito com tudo muito differiam delle na sua intima natureza.69 O trecho acima sugere que àquela época era bastante difícil diferenciar os tumores malignos, então chamados de cancros verdadeiros, dos benignos. Na mesma reunião, outro médico defendeu a cirurgia para a maioria dos casos de câncer, ressaltando o seguinte: O cancro é muitas vezes e na sua origem quasi sempre moléstia local, e só se torna moléstia geral pela demora que ha em fazer a ablação delle, dando-se então occasião a que haja absorpção da matéria cancrosa, e que a moléstia assim se torne geral pelo infeccionamento de toda a economia.70 O câncer no Brasil em fins do século XIX era tratado como um tumor, um caroço visível e palpável, apenas. A noção de que ele seria não uma, mas várias doenças, igualmente caracterizadas pela divisão descontrolada das células, em consequência do “rompimento” de seus circuitos reguladores, aos poucos começava a ser discutida. Ao mesmo tempo, vale dizer, o câncer no Brasil era visto como uma doença de reduzida dimensão no campo médico quando comparada a enfermidades de maior impacto social, como sífilis e tuberculose. Justamente por isso, como se verá adiante, ainda não parecia ser uma razão para grandes preocupações por parte do Estado, que tinha papel 69 70

Annaes Brasilienses de Medicina, 3. Ibid.

30 crescente na vida social, facilitando e fomentando a atuação dos cientistas na resolução de problemas tidos como concretos, e que, assim, no campo da medicina, tinham como prioridade questões sanitárias.71 A percepção sobre o câncer como um problema de saúde pública começou a mudar no início da primeira década do século XX, como veremos a seguir. Em 1902, o advogado Francisco de Paula Rodrigues Alves (1848-1919) assume a presidência da República tendo o campo da saúde pública como destaque em seu plano de governo.72 Assim, para executar a reforma sanitária, escolheu o sanitarista Oswaldo Cruz (1872-1917), que assume a Diretoria Geral de Saúde Pública em março de 1903, tendo como objetivo erradicar doenças como febre amarela e tifoide, impaludismo, varíola e peste bubônica, entre outras moléstias que comprometiam a política de estímulo à imigração estrangeira e, acima de tudo, acarretavam prejuízos ao comércio exterior devido à imposição de quarentenas às embarcações que atracavam no porto do Rio de Janeiro.73 As condições de vida na então capital federal vinham se degradado inexoravelmente na virada do século XX. Paralelamente, a cidade passava por um intenso processo de metropolização, com a população crescendo de 522.651 habitantes em 1890 para 1.157.873 em 1920.74 O porto do Rio de Janeiro era, à época, o mais importante do Brasil e o terceiro em movimento na América Latina. No entanto, tinha uma estrutura antiquada, incompatível com sua condição de polo catalizador da atividade

Moraes & Amorim, “II Congresso Médico Latino-Americano”, 57. Ibid. 73 Ibid. 74 Sevcenko, A revolta da vacina, 75. 71 72

31 econômica nacional. Ao mesmo tempo, a cidade era foco endêmico de uma infinidade de moléstias, as quais manifestavam toda a sua violência contra os estrangeiros e migrantes de outros estados, fato que contribuiu para que a cidade do Rio de Janeiro se tornasse conhecida internacionalmente como “túmulo dos estrangeiros”, que não desciam dos navios quando estes chegavam ao porto para evitar qualquer contágio.75 Os países que tinham relações comerciais com o Brasil começaram, então, a exercer pressões para que os portos do país fossem saneados.76 Pressionado, o Estado brasileiro assume, assim, uma atitude mais centralizadora como forma de combate às doenças epidêmicas, sobretudo durante o período em que Oswaldo Cruz esteve à frente da Diretoria Geral de Saúde Pública. Foi sob o argumento de que a era de imprescindível interesse para a saúde pública, que o senador alagoano Manuel José Duarte (1859-1914) elaborou o plano de regulamentação da aplicação da vacina obrigatório contra a varíola, cuja publicação oficial no dia 9 de novembro de 1904 desencadeou aquilo que ficou conhecido como a Revolta da Vacina, violenta insurreição popular, mais tarde catalisada pela Liga contra a Vacina Obrigatória.77 Além dessas moléstias, outras duas doenças consideradas vilãs da saúde pública no Brasil nas primeiras duas décadas do século XX eram a sífilis e a tuberculose, esta de especial importância para a compreensão das diretrizes sanitárias daquela época. Isso porque desde o século XIX a tuberculose havia sido responsável pelo maior número de mortes no Rio de Janeiro, sobretudo

Ibid., 63. Bodstein, coord., História e Saúde Pública, 17. Não há no texto consultado indicação da autoria do capítulo no qual nos baseamos para fazer esta citação. 77 Sevcenko, 17. 75 76

32 entre

as

populações

mais

pobres.

A

doença

estava

relacionada

majoritariamente às condições de vida e trabalho da população, o que não acontecia com a febre amarela, que atingia indiferentemente pessoas de qualquer classe social.78 Contudo, frente à maneira como o número de casos de câncer crescia, e à ferocidade com que se abatia sobre os homens, indiferente a todo intuito de cura, artigos médicos sobre a doença tornaram-se mais frequentes, levantamentos epidemiológicos se intensificaram e o debate se ampliou na tentativa de se sistematizar a incidência das então chamadas neoplasias malignas. Em outras palavras, o câncer no início do século XX transformou-se em uma doença cada vez mais observada pelos médicos brasileiros.79 É neste contexto que se deram os primeiros esforços de sistematização da incidência da doença no país, os quais podem ser observados em dois artigos, escritos pelos médicos Antônio Augusto de Azevedo Sodré (1864-1929) e Olympio Viriato Portugal (1862-1934). No dia 15 de junho de 1904, Azevedo Sodré, então professor e diretor da cátedra de patologia interna da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, apresentou no II Congresso Médico Latino-Americano, em Buenos Aires, seu estudo sobre a frequência do câncer no Brasil. O mesmo estudo, em seguida, seria reproduzido na revista carioca O Brasil Medico80, então um dos principais periódicos médicos do país. Em seu artigo, Azevedo Sodré alerta os colegas

Lódola & Góis Junior, 691. Cuperschmid & Martins, “Instituto de Radium de Minas Gerais”, 1236. 80 Sodré, “A frequencia do cancer no Brazil”, 229. Azevedo Sodré teve papel de destaque na vida médica brasileira, sendo, inclusive, diretor-fundador da revista semanal brasileira de medicina e cirurgia O Brazil Medico. 78 79

33 brasileiros sobre a crescente incidência da doença, ressaltando as incertezas para o tratamento de muitas de suas formas e o alto custo das tecnologias usadas para esta finalidade, além de ressaltar a importância de levantamentos estatísticos e da criação e implementação de políticas públicas voltadas ao melhor atendimento das pessoas acometidas pela moléstia, tão sinistra como caprichosa em sua natureza. O câncer era uma doença relativamente frequente na Europa, segundo Sodré. “Por toda parte onde é observado o numero de casos augmenta de anno para anno”81, escreveu o médico. Analisando a doença pelas mesmas lentes que a medicina usava para analisar a tuberculose, ele sugere que a alta incidência do câncer nessas regiões se devia basicamente ao fato de a doença ser própria das grandes cidades, sendo, portanto, mais frequente em países ricos e mais desenvolvidos. Vejamos o que ele diz sobre isso: Esta tendencia progressiva subordina-se de alguma sorte aos progressos da civilização; pelo menos ella se accentua sem

embargo

dos

melhoramentos

hygienicos,

do

augmento do conforto e bem estar, mórmente nos grandes centros populosos.82 Sodré chegou a essa conclusão examinando o índice de mortalidade por câncer na França e na Inglaterra. De fato, em 1865, a mortalidade por câncer em Paris era de 8,4 para cada 10 mil habitantes. Em 1898, esse número havia subido para 12 por 10 mil habitantes. Por sua vez, em Londres, a média de mortes por câncer era de 4,8 para cada 10 mil habitantes entre 1861 e 1870, ao 81 82

Ibid. Ibid.

34 passo que de 1881 a 1890 esse número havia subido para 6,8 para cada 10 mil habitantes.83 Até onde é possível saber, o câncer no Brasil era pouco frequente, ou mesmo inidentificável, entre os anos de 1894 e 1898, tendo regiões em que praticamente nunca havia sido registrado um único caso sequer, segundo o médico.84 Manaus, no Amazonas, não havia registrado nenhum caso de morte decorrente do câncer em 1897, por exemplo. Tampouco Natal, no Rio Grande do Norte, em 1896. Ao todo, das 148 mil mortes registradas entre os anos de 1894 e 1898 no Brasil, apenas 690 eram decorrentes de tumores, de acordo com o levantamento feito por Sodré. Os dados referentes ao número de mortes por câncer no Brasil reunidos e analisados pelo médico provinham de dados enviados à Diretoria Geral de Estatística do Rio de Janeiro pelo serviço de registro civil. Contudo, é importante ressaltar que os registros aos quais ele se refere encontravam-se em plena fase embrionária, sendo deficientes e um tanto imprecisos, de modo que os mapas estatísticos, inclusive aqueles sobre os números de casos de câncer, eram feitos de forma irregular, com interrupções, como o próprio médico faz questão de ressaltar: Infelizmente o serviço do registro civil não funcciona ainda no Brasil com a precisão e regularidade que eram para desejar, de sorte que os trabalhos feitos com os dados por elle fornecidos são sempre incompletos e deficientes.85

Ibid. Ibid. 85 Ibid., 229. 83 84

35 Em seu artigo, Azevedo Sodré não entra no mérito das possíveis causas capazes de determinar a frequência do câncer, mas sugere que a doença seria um problema próprio dos países frios, que oscilavam em relação às latitudes, tendo, portanto, baixa incidência nas regiões tropicais, mais quentes. Isso fazia do câncer uma doença de baixa importância do ponto de vista epidemiológico no Brasil. Eis o que ele diz sobre isso: E’ fóra da duvida que a raça preta goza de uma relativa imunidade e que mesmo entre os brancos, ha differenças sensiveis na predisposição para o cancer que apresentam os

fracenzes,

suissos,

allemães,

inglezes,

italianos,

hespanhóes e portugueses.86 Mais adiante, o médico discorre sobre a maior incidência do câncer em pessoas de pele clara, citando levantamentos internacionais: Nos Estados Unidos, os indivíduos da raça branca pagam muito maior tributo ao cancer do que os pretos. (...) o cofficiente de mortalidade em 10.000 brancos é de 2,7, ao passo que em igual numero de pretos é 1,2.87 Ainda com base em dados apresentados por pesquisadores norteamericanos, Azevedo Sodré volta a sugerir que o câncer seria um problema próprio dos países frios, uma vez que os de clima quente, dizia o médico, eram pouco propícios ao desenvolvimento da moléstia, de tal modo que os países da África gozavam de tradicional reputação pela raridade com que se observava a frequência da doença, assim como na Jamaica e no México, nas regiões do 86 87

Ibid., 231. Ibid.

36 Caribe e da América Central, onde “ele [o câncer] é quasi desconhecido”.88 A seguir, a conclusão de Sodré: Não admira, pois, que o cancer seja raro no Brazil, que tem ¾ partes do seu vastissimo territorio encravadas entre o equador e o tropico de Capricornio, e que se o observe mais vezes ao Sul que ao Norte deste paiz. [...] No Brazil o cancer é molestia relativamente muito rara, posto que em certas localidades o numero de casos tenha augmentado nos últimos annos; a fraquencia do cancer no Brazil obedece francamente á influencia climaterica, variando conforme as latitudes; No Brazil o cancer se assesta com assignalada predilecção no utero [...] muitissimo mais frequente do que a gástrica e a hepática.89 As considerações de Azevedo Sodré sobre a baixa incidência do câncer no Brasil, aliada à sua despreocupação quanto à possibilidade de a doença se espalhar pelo país, sugere que os médicos brasileiros atribuíam pouca importância ao câncer nas primeiras duas décadas do século XX. As atenções voltavam-se para a tuberculose, então responsável pela maioria das mortes. Pode-se dizer que a percepção médica sobre o câncer começou de fato a mudar em 1906, com a I Conferência Internacional sobre o Câncer, em Paris. Durante a conferência, evidenciou-se a expansão da organização e do controle do câncer em outros países, de modo que a classe médica brasileira pôde se aproximar das mesmas preocupações a respeito da doença há algum tempo observadas em países da Europa — sobretudo Alemanha, França e 88 89

Ibid., 231. Ibid., 232.

37 Inglaterra — e nos Estados Unidos. Esse intercâmbio de conhecimento sobre o câncer parece ter contribuído significativamente para mudar a forma como os médicos encaravam a doença no Brasil.90 Essa mudança pode ser observada de forma mais nítida em um artigo escrito pelo médico Olympio Portugal, publicado em 11 de novembro de 1909 na primeira página do jornal O Estado de São Paulo e mais tarde reproduzido na íntegra n’O Brasil Médico. Vejamos o que ele diz: A frequencia da moléstia que vimos crescer nos diversos paizes de sete a 17, 24, 27 e até 80 por cento da mortalidade, também entre nós sofreu egual evolução. [...] O que apuram as estatísticas, sem face á dúvida, é a curva ascensional da cancerose. A clinica, por mãos de cirurgiões e de médicos, tactea cada dia a ríspida verdade; a demografia toma-lhe o peso e avisa; sabios e humanistas, movidos a egual fervor, dão alarme aos poderes, como na Allemanha e na Inglaterra, onde a medicina alcança efficaz collaboração.91 Segundo Olympio Portugal, “nunca foi maior o esforço de sabios e philanthropos em decifrar o enigma da estranha enfermidade, que tanto se alastra como se esquiva ao conhecimento de sua causa”.92 Em outro trecho, o médico vai além e compara a tuberculose, “mais ou menos silenciosa em seus ataques, solapando no intimo, lenta e recatada, sem grande aviso de dores”, com o câncer:



Teixeira, 106. Portugal, “O problema do cancer”, 43. 92 Ibid., 34. 90 91

38 Esse doe, amargando os curtos silencios do paciente com o lance inesperado de punhaladas vivas; corróe; ulcéra; deixa escorrer de si tão repulsiva sânie que exhala, como nenhuma, um fetido que humilha. E quando, baixo a baixo, anemiado e exhausto, côr de palha, o paciente não conta mais com a hormonia dos humores, - arrebenta a sua chaga em sangue, rutilando sobre as miserias da carne morta e putrefacta a ironia vermelha da vida que se esvae.93 Nascido na cidade fluminense de Rio Claro, no Rio, Olympio Viriato Portugal formou-se em medicina pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1887, trabalhando como médico no Hospital de São João Batista de Niterói por sete anos, quando, então, mudou-se para São Paulo, onde atuou como jornalista, colaborando com textos descritivos e estatísticos em várias publicações. Muito amigo de Júlio César Ferreira Mesquita, jornalista, advogado e diretor do jornal O Estado de S. Paulo, o médico colaborou por anos com a publicação. Em seu artigo n’O Estado, Portugal refuta os dados apresentados cinco anos antes por Azevedo Sodré, os quais sugeriam uma baixa incidência da doença no Brasil. Em seu estudo, Portugal ressalta o fato de os números apresentados por Sodré serem muito otimistas e apresenta novos dados em contrarresposta. Estes, por sua vez, sugerem que a incidência do câncer no Brasil na verdade era alta, principalmente nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. Nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, tal qual o proprio Azevedo registrou, o coefficiente differiu para 93

Ibid., 43.

39 mais, na mesma época, ascendendo a 2,8 e 2,5. [...] A cifra optimista decorre da imprecisão de um dos seus factores, pois que a especificação da nos registros civis do interior dos Estados raramente se esclarece com attestado medico e não póde aspirar o minimo alcance nosologico.94 É interessante ressaltar que àquela época, em São Paulo, a maioria dos artigos publicados na imprensa eram escritos por médicos. Eram eles que informavam e criavam as polêmicas que rodeavam os debates a respeito de muitas doenças. Esses artigos, ora científicos, ora mais sociais, apresentavam as mais adequadas estratégias de prevenção de algumas moléstias. À época, também era bastante comum que os médicos divulgassem suas teorias primeiro nos jornais e, mais tarde, em revistas especializadas, de modo que os iniciados costumavam ler os jornais para conhecer as mais novas teorias, defendidas por outros médicos. Os debates sobre essas teorias costumavam ser intensos, e os jornais eram o palco das constantes discussões, como a estabelecida entre Sodré e Portugal.95 Ainda que apresentem números divergentes, podemos concluir que os artigos de Azevedo Sodré e Olympio Portugal evidenciam uma mudança na percepção social sobre o câncer no Brasil na primeira década do século XX. Devido ao aumento de sua incidência no país, em grande parte por causa do aumento da expectativa de vida da população, começam a surgir instituições estatais e filantrópicas voltadas ao cuidado dos doentes, além de sociedades 94 95

Ibid., 43. Lódola & Góis Junior, 691.

40 médicas, hospitais especializados e centros de pesquisa sobre o câncer. Muitas das iniciativas partiram de esforços não-institucionais, como reflexo de um movimento filantrópico em relação a outras enfermidades.96 Até então considerado raro e excepcional, o câncer passa a ser visto como um problema cada vez mais recorrente97, mas que, ao mesmo tempo, é analisado pela forma como era compreendido nos países desenvolvidos.98 Essa, digamos, interferência internacional de pesquisas, debates e iniciativas relacionadas ao câncer nas primeiras décadas do século XX se deve ao fato de os médicos brasileiros com frequência irem aos Estados Unidos e à Europa em temporadas de estudo e pesquisa. Dessa forma, a concepção em relação à doença no Brasil tornou-se relativamente a mesma apresentada nesses países.99 As estratégias de controle do câncer, sobretudo na Alemanha, Itália, França, Inglaterra e nos Estados Unidos, estimulou a adoção de medidas semelhantes no Brasil, que via nos países desenvolvidos um modelo a ser seguido. Com isso, o foco das pesquisas desenvolvidas no país passou a ser a definição das melhores, ou mais adequadas, técnicas cirúrgicas destinadas à extirpação dos tumores ou à realização de levantamentos epidemiológicos que delimitassem o alcance da doença na população, servindo de base para a formulação de políticas públicas de combate à doença.



Bodstein, coord., 21. Teixeira, 14. 98 Teixeira & Fonseca, “De doença desconhecida a problema de saúde pública,” 27. 99 Bodstein, coord., 20. 96 97

41 De pais para filhos Ainda que a maioria dos médicos brasileiros priorizasse a realização de estudos epidemiológicos com o propósito de ajudar a determinar a incidência da doença no país, bem como subsidiar a formulação de políticas públicas de combate à moléstia, havia também alguns poucos médicos que se dedicavam à pesquisa sobre a etiologia do câncer, seguindo protocolos de pesquisa internacionais. É o caso do oftalmologista brasileiro Hilário Soares de Gouvêa (1843-1923).100 Alguns anos após a publicação de Traité dês Tumeurs, do médico Paul Broca, no ano de 1866, Hilário Soares de Gouvêa ofereceu novas evidências do possível caráter hereditário do câncer, tornando-se talvez um dos que melhor documentaram a capacidade de alterações genéticas gerarem células anormais e serem transmitidas de pais para filhos, a partir do diagnóstico de um retinoblastoma, isto é, de um tumor maligno relativamente raro que se desenvolveu na retina do olho direito de um menino de dois anos.101 Após fazer a retirada cirúrgica do olho e a análise patológica, o médico brasileiro confirmou o diagnóstico de retinoblastoma. Em 1891, aos 21 anos de idade, o menino operado por Gouvêa se casou e teve ao todo sete filhos, dos quais duas meninas, que nasceram e pouco tempo depois também desenvolveram retinoblastoma. A primeira, nascida em 1892, foi operada do olho direito, mas houve remissão e, pouco tempo depois, um novo tumor foi

100 O trabalho de Gouvêa foi previamente examinado em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 233-34. 101 Monteiro & Waizbort, em “The accidental cancer geneticist”, 811.

42 diagnosticado no olho esquerdo. A segunda, por sua vez, foi diagnosticada com retinoblastoma bilateral (nos dois olhos) aos cinco meses de idade.102 Os pais, no entanto, recusaram-se a operar a segunda criança. As duas meninas morreram de câncer, conforme o próprio médico relatou em artigo publicado em 1886 no Boletins da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro. Ele não sabia, mas Hilário da Gouvêa havia identificado uma forma familiar de retinoblastoma.103

O rádio contra o câncer Pode-se dizer que o médico Álvaro Alvim (1863-1928) pagou caro por sua obstinação.104 Álvaro Freire de Villalba Alvim nasceu no interior do Rio de Janeiro, mas cursou a Faculdade de Medicina da Bahia. Após concluir o curso, instalou-se na cidade do Rio. Em 1896, no entanto, como muitos pesquisadores de sua época, embarcou para uma viagem de estudos em Paris, França, onde conheceu a química Marie Curie (1867-1934) e seu marido, Pierre (1859-1906), que àquela época faziam diversas pesquisas com radioatividade.105 No final da primeira década do século XX, o uso do rádio começou a atrair cada vez mais atenção de alguns médicos brasileiros.106 Sua aplicação no tratamento do câncer refletia o que há algum tempo vinha sendo feito em países da Europa e nos Estados Unidos. Dessa forma, muitos dos médicos brasileiros que tiveram

Ibid., 812. Ibid. 104 Os anúncios nos jornais brasileiro e francês e o trabalho de Alvim foram previamente examinados em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 247-8. 105 Kroeff, “Primeiras organizações anticancerosas do país”, 19. 106 Teixeira & Fonseca, O controle do câncer no Brasil, 15. 102 103

43 contato com essas técnicas no exterior se engajaram na viabilização de iniciativas voltadas ao uso do rádio contra tumores ao voltarem ao Brasil.107 No ano de 1907, de volta ao Brasil, Álvaro Alvim trouxe consigo uma moderna aparelhagem de raio X, que instalou em uma clínica radiológica especializada no Rio de Janeiro. Dada as extensões de suas instalações, sua clínica recebeu o nome de Instituto Álvaro Alvim. Os equipamentos de eletroterapia e de radiologia incorporavam técnicas de uso do rádio, elemento químico mais poderoso que o urânio, e eram aplicados no tratamento de muitas doenças. Álvaro Alvim fez este anúncio, publicado no dia 4 de janeiro de 1920 no Correio da Manhã, do Rio: Electricidade Medica do Dr. Alvaro Alvim. Tratamento de todas as molestias, internas e externas, sem excepção, do homem e da mulher; pela electricidade sob todas as suas fórmas, as mais modernas. Tratamento das anemais, esgotamento nervoso, neurasthenia, nevralgias, nevrites, pulmões e estomago. Tratamento sem dor, dos cancros venéreos, ulceras malignas, syphiliticas, e tumores brancos pela luz do “Finsen”. Diariamente das 11 ás 6. Largo da Carioca, 11, 1º. andar. Álvaro Alvim trabalhou durante anos com elementos radioativos.108 O problema é que àquela época os efeitos nocivos da radiação eram pouco conhecidos. O médico, então, começou a sentir as primeiras manifestações de radiodermite, lesões causadas pela radiação, nos dedos da mão esquerda em

107 108

Ibid., 18. Cuperschmid & Campos. “Uso da radiação na medicina mineira”, 379.

44 1916.109 Mesmo assim, não parou, e os danos se agravaram. No dia 3 de maio de 1924, a Revista da Semana publicou um texto em que expôs o martírio do médico com os efeitos da radiação. Não é de hoje que o dr. Álvaro Alvim vem sendo victima da pratica da radioterapia. De tempos em tempos, o sacerdócio do martyr era demarcado com a perda de um ou mais dedos das mãos. Elle, porém, prosseguia sempre. De nada valeram rogos da familia e prescripções prohibitivas e severas dos colegas. Agora soffreu o dr. Álvaro Alvim a amputação do terço inferior do antebraço, cujos tecidos se achavam arruinados pela acção continua dos raios X, e o grande scientista, que já havia perdido os dedos da mão esquerda em duas operações, tem apenas o pollegar e a palma dessa mão! Cinco meses depois, no dia 11 de outubro de 1924, a revista publicou uma reportagem descrevendo o trabalho, os equipamentos e o tratamento de Álvaro Alvim por meio do rádio e, em seguida, as cirurgias de amputação em Paris, com fotos de seus dedos ulcerados e de pacientes com câncer de que ele tratou.110 Álvaro Alvim perdeu mãos e antebraços, e morreu em 1928 de leucemia.111 “Anunciamos a morte de Dr. Álvaro Alvim, radiologista brasileiro bastante conhecido. O eminente estudioso, que teve que passar por amputação de ambas as mãos, continuou seu trabalho, apesar de seus antebraços terem sido igualmente atingidos”, relatou em 28 de maio de 1928 o jornal Le Gaulois. Não seria demais lembrar que a química polonesa Marie Curie, também por

Kroeff, 19. Navarro et al., “Controle de riscos à saúde em raiodiagnóstico”, 1039. 111 Lima & Afonso. “Fascinação, medo e ciência”, 268. 109 110

45 causa dos efeitos da radiação, morreu em 1934, em Paris, depois de receber duas vezes o Prêmio Nobel.

A luta contra o câncer no Brasil Outras iniciativas que merecem ser destacadas e que nos ajudam a ter uma noção da dimensão do problema do câncer no Brasil àquela época dizem respeito à criação do Instituto de Radiologia da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1919 e à inauguração do Instituto de Radium de Belo Horizonte, em Minas Gerais.112 Daremos especial atenção a este último por ele estar relacionado especificamente ao ambiente médico e acadêmico no qual está inserido o médico mineiro Alfredo Leal Pimenta Bueno, cujos trabalhos sobre os mecanismos do câncer serão apresentados, discutidos e analisados no capítulo a seguir. Na década de 1920, os debates e trabalhos acadêmicos sobre aspectos médicos e sociais relacionados ao câncer no Brasil enfatizavam a necessidade de uma ação conjunta contra a doença, envolvendo governo e entidades privadas. Dentre as iniciativas de combate ao câncer, destaca-se a reforma promovida pelo médico sanitarista Carlos Chagas (1879-1934) em 1921, que incluía em sua proposta para organização dos serviços sanitários algumas providências importantes relacionadas ao combate à doença, a saber, o estabelecimento de estatísticas mais adequadas de óbito por câncer; execução das providências sanitárias necessárias nos domicílios onde houve caso ou 112

Bodstein, coord., 18.

46 óbito decorrente do câncer; gratuidade dos exames de laboratório que fossem precisos para a fixação do diagnóstico; organização da campanha de propaganda contra o câncer; e a fundação de institutos de câncer com fins terapêuticos e experimentais.113 Alguns anos depois, em dezembro de 1924, durante o II Congresso Brasileiro de Higiene, em Belo Horizonte, o médico Eduardo Rabelo (18761940) chamou a atenção para o fato de que a mortalidade por câncer nos países desenvolvidos vinha crescendo em relação a outras doenças. Ressaltou que o câncer ocupava lugar importante entre os problemas sanitários a serem resolvidos e que desde meados do ano de 1700 discutia-se na França e na Inglaterra a necessidade de se organizar estratégias de combate à doença.114 Ainda

durante

a

conferência,

surgiram

talvez

os

primeiros

dados

dimensionando o declínio, ainda que ligeiro, do número de casos de tuberculose e o aumento dos de câncer no Brasil. Àquela época, câncer e tuberculose passaram a mostrar movimentos opostos do ponto de vista epidemiológico. Com sua etiologia melhor compreendida, o número de casos de tuberculose começou a mostrar sinais de queda no Brasil, enquanto a mortalidade por câncer parecia tender a crescer, ainda que em ritmo lento, é importante ressaltar. Em 1910, o número de mortes por tuberculose na cidade do Rio de Janeiro era de 404 para cada 100 mil habitantes. Em 1924, esse número era de 350. Em contrapartida, o número de mortes em decorrência do câncer em 1910 era de 36 para cada 100 mil 113 114

Ibid., 19. Ibid., 20.

47 habitantes. Em 1924, havia subido para 40.115 De fato, à primeira vista, tais números podem parecer irrelevantes do ponto de vista epidemiológico. Contudo, nosso objetivo aqui é procurar mostrar que o câncer no Brasil nas primeiras décadas do século XX começou a se tornar uma ameaça crescente, embora ainda incompatível com a oferecida pela tuberculose, chamando cada vez mais a atenção de gestores públicos e médicos, entre eles Eduardo Borges Ribeiro da Costa (1880-1950).116 Em 1920, após voltar de uma temporada de estudos na Europa, onde conheceu a química polonesa Marie Curie e sua obra, o médico viu-se diante do aumento dos casos de câncer no estado de Minas Gerais.117 Àquela época, o câncer era anunciado como um mal terrível contra o qual a medicina moderna ainda iria aprender a enfrentar. Frente àquela situação, Borges da Costa, um especialista na extirpação de tumores com bisturi, conseguiu apoio do então presidente do estado, Arthur da Silva Bernardes (1875-1955), para a construção do Instituto de Radium de Belo Horizonte. O prédio foi erguido em um terreno nos fundos da Faculdade de Medicina da Universidade de Belo Horizonte e tinha como objetivo principal o estudo e as aplicações terapêuticas dos raios X e do rádio, tecnologias difíceis de serem manejadas. Na dose certa, a radiação era eficiente para destruir o tumor, mas qualquer erro na dosagem poderia danificar os tecidos sadios próximos.118



Rodrigues & Bichat. “Mortalidade de tuberculose”, 104. O trabalho de Costa e a criação do Instituto Radium foram previamente examinados em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 249. 117 Cuperschmid & Martins, "Instituto de Radium de Minas Gerais", 1249. 118 Ibid., 1248. 115 116

48 As circunstâncias que levaram à criação do Instituto de Radium se desenharam em meio a uma atmosfera de cruzada contra o câncer a partir da segunda década do século XX, o que motivou muitos médicos brasileiros a expandirem suas pesquisas relacionadas ao uso do rádio como forma de tratamento de tumores. Mantido com recursos públicos, o instituto comprava rádio da França, com certificados de dosagem assinados por Marie Curie.119 Os habitantes de Minas Gerais frequentemente destacavam-se na vida científica nacional, assim como a Faculdade de Medicina, que, integrada aos acontecimentos da ciência, a todo momento recebia professores estrangeiros para fazer apresentações em conferências sobre temas de interesse dos estudantes.120 Em setembro de 1922, para citar um exemplo, o professor Fernand Lamaitre (1880–1958), da Faculdade de Medicina de Paris, proferiu uma aula sobre as infecciosas cancerosas da laringe.121 Por vezes, também as autoridades médicas ou políticas que visitavam a cidade eram levadas para conhecer o Instituto de Radium. É o caso de Marie Curie. Em agosto de 1926, após longa viagem vinda de Paris, a química desembarcou em Belo Horizonte para uma conferência sobre o rádio e suas possíveis aplicações, aproveitando a visita para conhecer o instituto.122 O médico mineiro Alfredo Leal Pimenta Bueno à época já figurava entre os escóis da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, participando de várias reuniões sobre diversos assuntos acadêmicos e administrativos relacionados à

Ibid., 1240. Cuperschmid & Campos. “Uso da radiação na medicina mineira”, 378. 121 Ibid. 122 Cuperschmid & Martins, "Instituto de Radium de Minas Gerais", 1244. 119 120

49 faculdade, conforme pudemos verificar ao ler as atas das Sessões Ordinárias da Congregação da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte.123 Como veremos mais adiante, Pimenta Bueno se formou em medicina naquela faculdade em 1913, tornando-se professor da disciplina de física médica na mesma instituição dois anos depois, em 1915. Em 1921, o médico foi relator da comissão examinadora do concurso de histologia e anatomia patológica legal da Faculdade de Medicina. Em reunião da sessão ordinária da congregação da faculdade, presidida pelo médico Borges da Costa no dia 25 de janeiro de 1921, Pimenta Bueno apresentou um relatório destacando o valor da tese do médico Carlos Pinheiro Chagas (1887-1932) — primo do também médico e sanitarista Carlos Chagas, já referido anteriormente e que mais tarde ficou conhecido por ter identificado o agente causador da tripanossomíase —, então candidato à cadeira de histologia e anatomia comparada. Dessa forma, como era o objetivo central deste capítulo, julgamos ter indicado que o câncer começou a atrair cada vez mais a atenção da classe médica brasileira nas duas primeiras décadas do século XX. Ao mesmo tempo, a partir dos fatos aqui apresentados e discutidos, julgamos da mesma forma ter oferecido o contexto médico, político, histórico e social em que está inserido o médico mineiro Alfredo Leal Pimenta Bueno, cujas pesquisas sobre a origem do câncer serão abordadas no capítulo a seguir.

123

“Acta da 1ª sessão ordinaria da Congregação”, 25/1/1921.

50 CAPÍTULO 3

O CÂNCER SOB UMA NOVA ABORDAGEM

Entre os anos de 1926 e 1928, o médico mineiro Alfredo Leal Pimenta Bueno publicou uma série de artigos na revista científica O Brasil Médico, todos sob o título Contribuição para o estudo da pathogenia, da physio-pathologia e da therapeutica do cancer, do ponto de vista da doutrina da Trophodynamica Funccional, em que apresenta suas ideias sobre a origem das células tumorais, analisando também as mudanças fisiológicas e metabólicas decorrentes no organismo.124 Seu objetivo era entender como agentes biológicos, químicos, físicos e ambientais agiam no organismo e acionavam os mecanismos que conduziriam os tecidos ao câncer.125 O ponto central deste capítulo será, portanto, analisar como Pimenta Bueno, um pesquisador pouco conhecido e estudado, construiu e defendeu seu discurso sobre a etiologia do câncer à luz de uma abordagem ampla, que procurava integrar áreas como bioquímica, biofísica e fisiologia, entre outras, e como isso lhe permitiu aproximar os diversos planos que favorecem ou determinam o surgimento da doença. Também pretendemos apresentar as fontes de informação explicitamente, ou implicitamente, citadas pelo médico para justificar seus argumentos sobre os mecanismos do câncer. Antes de avançarmos na discussão e análise de seus artigos, contudo, discorreremos rapidamente sobre sua trajetória acadêmica.

124 O trabalho de Pimenta Bueno sobre a origem do câncer foi previamente examinado em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 238-9. 125 A análise levada a cabo nesta dissertação acerca das ideias da Pimenta Bueno sobre a origem do câncer tem como base os artigos publicados pelo médico entre os anos de 1926 e 1928 na revista O Brasil Médico, todos sob o mesmo título, Contribuições para o estudo da pathogenia, da physio-pathologia e da therapeutica do cancer, do ponto de vista da doutrina da Trophodynamica funccional, e subtítulo, Princípios geraes da Trophodynamica funccional á etio-pathogenia do Cancer. Os artigos foram publicados em diferentes volumes da revista, por vezes com alguns intervalos entre eles, e reunidos previamente em Fioravanti, op. cit..

51 A trajetória de Pimenta Bueno Alfredo Leal Pimenta Bueno se formou em medicina na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, em Minas Gerais, em 1913. Dois anos depois, ingressou na mesma instituição como professor de física médica126, fato este que nos diz muito sobre o tipo de estudo que ele mais tarde irá desenvolver em relação à etiologia do câncer, procurando identificar princípios básicos associados à origem da doença — e também como ele enxerga os fenômenos biológicos. Isso pode ser evidenciado, por exemplo, quando Pimenta Bueno afirma que compreende os fenômenos celulares de acordo com o princípio fundamental da termodinâmica, a conservação de energia.127 Algo digno de nota, e que reforça nosso ponto de vista, diz respeito à sua tese apresentada ao concurso para a cadeira de física médica da Faculdade de Medicina da Universidade de Belo Horizonte em 1915, na qual analisa a evolução da física na medicina, como o próprio título sugere: “Thermodynamica animal — Evolução da Physica na Medicina”.



126 A física médica constitui um campo multidisciplinar da medicina, a partir do qual se procura aplicar conceitos e técnicas da física, juntamente com os avanços tecnológicos, na prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças. Pode-se dizer que a física médica se firmou como campo específico da medicina a partir dos trabalhos do físico e fisiologista alemão Hermann von Helmholtz (1821-1894), autor de estudos em diversas áreas da ciência, incluindo fisiologia, óptica fisiológica, acústica fisiológica, química, matemática, eletricidade e magnetismo, meteorologia e mecânica teórica. Suas pesquisas em termodinâmica e eletromagnetismo, campos à época ainda em desenvolvimento na física, lhe teriam permitido formular a lei matemática da conservação de energia. Seus trabalhos em física e medicina começam a interagir em 1847, quando Helmholtz estende sua lei geral sobre conservação de energia a fenômenos biológicos. O faz ao publicar Über die Erhaltung der Kraft, obra que ajudou a ampliar as perspectivas de aplicação de técnicas físico-químicas ao estudo de fenômenos orgânicos, conforme atesta o historiador da ciência Fabio Bevilacqua. Vide Bevilacqua, “Helmholtz’s Ueber die Erhaltung der Kraft: The Emergence of a Theoretical Physicist”, 333. 127 Pimenta Bueno, “O estudo da pathogenia”, 16: 361.

52 Em 1926, Pimenta Bueno publicou seu livro Correlações Hemaulicas — Do ponto de vista da doutrina da Tropho-dynamica funccional128, apresentando-o como “fructo de um decennio de estudos orientados no sentido do methabolismo normal e pathologico dos tecidos”.129 Em sua obra, o médico mineiro diz ter chegado a várias conclusões originais, tendo como base princípios gerais de fisiologia normal e patológica. O livro Correlações Hemaulicas trata pouco sobre o câncer. Desse modo, não o exploraremos aqui. No entanto, um aspecto que vale a pena destacar é que, antes disso, Pimenta Bueno não havia tido predileção pela questão dos mecanismos do câncer, um assunto um tanto complexo, e que à época, como vimos, desafiava a sagacidade e a sabedoria do escol da mentalidade médica brasileira e mundial. Seu interesse pelos tumores começa a mudar a partir de 1926, quando o médico mineiro apresenta os fundamentos do que chamou de doutrina da Trophodynamica funcional, a partir da qual passa a investigar o metabolismo normal e patológico dos tecidos, estudando com mais atenção os mecanismos que desencadeariam o surgimento, a evolução e a expressão de tumores.



128 O livro de 1926 de Pimenta Bueno foi examinado previamente em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 238-9. 129 Pimenta Bueno, Correlações Hemaulicas, 4.

53

Figura 1 - Abertura padrão da série de artigos de Pimenta Bueno publicada na revista O Brasil Médico.

Pimenta Bueno era bastante crítico em relação às abordagens de outros médicos, os quais, segundo ele, não haviam apresentado nenhuma contribuição direta ou conclusão alguma sobre os mecanismos relacionados à doença. Um deles, citado explicitamente pelo autor em seu primeiro artigo, é Pierre Eugène Menetrier (1859–1935).130 De fato, Pimenta Bueno reconhece que o patologista francês havia sido quem talvez tivesse apresentado a visão mais precisa sobre os mecanismos do câncer, tendo posto em destaque as chamadas lesões précancerosas. Em seus estudos clínicos acerca de tumores em diferentes áreas do corpo, Menetrier havia observado que a doença por vezes se desenvolvia a partir de lesões inflamatórias pré-existentes, podendo resultar da transformação de papilomas — tipos de verrugas. Mais adiante, contudo, Pimenta Bueno pondera e lembra que o patologista francês não havia explicado como nem



Pimenta Bueno, “O estudo da pathogenia”, 15: 334. Exemplo previamente citado em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 239. 130

54 porque se faz o papiloma ou o adenoma, e nem qual a razão pela qual estes se transformavam em câncer vezes sim, vezes não.131 Ainda que de modo implícito, é possível verificar que Pimenta Bueno também aborda a ideia de diátese.132 À última página de seu primeiro artigo, publicado no dia 8 de dezembro de 1926, o médico reconhece que alguns tumores poderiam surgir sem nenhuma causa conhecida ou aparente, e reforça esta hipótese ressaltando o fato de a produção científica mundial ter registrado casos de cânceres surgidos sem que nenhum agente pudesse ser tomado como causa, respeitando, portanto, uma predisposição própria do organismo para a doença. Ao mesmo tempo, porém, deixa claro logo em seguida estar à procura de princípios mais essenciais, que englobem as múltiplas variantes da moléstia. “Mas então?”, questiona. “Seria o caso de denominar, como certos autores o fazem, de canceres espontaneos? Mas que é que ha que assim o seja?”.133 O médico mineiro estava convencido de que essas neoplasias malignas, sem causa aparente, que se manifestavam como uma consequência natural ou espontânea dos tecidos, como de resto todas as outras, estariam presas ao mecanismo único e universal pelo qual se processa o câncer. Pimenta Bueno também era um crítico dos métodos de pesquisa sobre o câncer. Vejamos o que ele diz sobre isso: Não basta poder accumular factos; não basta saber produzir experimentalmente o Cancer; não bastava, nem

Pimenta Bueno, “O estudo da pathogenia”, 15: 334. Termo atribuído pelo médico francês Paul Broca à predisposição própria do organismo para certas doenças. Vide página 10. 133 Pimenta Bueno, “O estudo da pathogenia”, 15: 335. 131 132

55 mesmo, produzir enxertos de volume igual ao de’um elephante, asiatiatico ou africano; também não basta distinguir morphologicamente uma especie tumoral de outra especie. É necessário poder animar os fatos recolhidos pela observação com o divino sôpro da sabedoria, construindo sobre elles as leis e os princípios que, afinal, são a crystallização de nosso proprio saber sobre as cousas naturaes... Só aceito as conclusões de outrem depois que as integrei em meu patrimonio scientifico, isto é quando após havel-as examinado, eu as fiz minhas. Porque a critica, em sendo honesta e sincera, é, muitas vezes, o caminho mais curto para chegarmos á Verdade, nos utilizando para a operação do raciocínio do mesmo archivo de factos recolhidos e fixados no curso das experiencias e um observador que concluía por modo diverso.134 O médico, contudo, não despreza as contribuições de pesquisadores que vieram antes dele, ou mesmo de seus contemporâneos, e, sempre que possível, cita outros autores a fim de justificar suas ideias. Em verdade, vale destacar, o médico recorre com frequência a citações em francês, italiano e espanhol para reforçar e legitimar seus pontos de vista. Ainda sobre Pierre Menetrier, Pimenta Bueno reconhece que o patologista francês havia alinhado as fases morfológicas sucessivas do processo canceroso, desde a lesão primitiva. Em outro trecho de seu primeiro artigo, o médico ressalta ainda que a conquista maior que havia sido feita em matéria de câncer referia-se à compreensão de que agentes

134

Ibid., 332.

56 diversos, como a luz, o sol, os raios X, o rádio, o alcatrão, o arsênico, o indol, e mesmo o vírus Rous135, poderiam desencadear o processo cancerígeno.136 Contudo, a manifestação de todos esses princípios biológicos parecia ser ignorado por boa parte dos que blasonavam sabedoria, segundo o médico. A razão pela qual os clínicos ignoravam tais princípios — e também tantos outros da biologia — e morfologistas e fisiologistas ignoravam princípios clínicos, na concepção de Pimenta Bueno, se dava ao fato de cada um deles desprestigiar as contribuições estranhas ao âmbito de suas próprias cogitações. Ao fazerem isso, dizia o médico, negavam o valor das ideias alheias, como se a clínica e a patologia pudessem estar em desacordo com a fisiologia ou como se cada uma das duas carregasse em si uma verdade que fosse oposta ou diferente à verdade de cada uma delas. Novamente, em seu artigo de 8 de dezembro de 1926, Pimenta Bueno deixa claro que pretende ir além. O fato de outros cientistas terem obtido lesões cancerosas por meio de parasitas, como havia feito o médico dinamarquês Johannes Fibiger (1867-1928), bactérias e vírus, como fizera Rous, parece não inutilizar sua crítica, uma vez que ainda restava a questão central, a saber, como procediam esses agentes biológicos no sentido de despertarem nos tecidos os mecanismos que os conduziam ao câncer.137 Frente a esta questão, Pimenta Bueno afirma ter um espírito habituado a não se acomodar às coisas feitas e a



135 Referência ao virologista norte-americano Francis Peyton Rous, que identificou, por meio de experimentos com uma galinha, um sarcoma transmissível, extremamente maligno, e com tendência a multiplicar-se pelo organismo. Vide página 15. 136 Pimenta Bueno, “O estudo da pathogenia”, 15: 334. 137 Ibid.

57 criticar e analisar com independência todos os objetos que se oferecessem à sua observação.138 Como veremos mais adiante, é por julgar que o estudo consciencioso do câncer só seria possível por meio da soma de conhecimentos diversos que o médico procura encadear em seus artigos uma série de fenômenos biológicos, os examinando ora do ponto de vista da embriologia, ora da bioquímica e do funcionamento celular, privilegiando a integração em vez da separação, a visão de conjunto em vez da visão sobre as partes. Ao fazer isso, chega à conclusão geral de que o câncer seria uma doença dotada de um processo evolutivo, tendo em sua causa uma força em evolução; uma ação de transformação progressiva, contínua e aceleradora e, portanto, gradualmente crescente em seus efeitos.139 A Chimica, a Physica, a Physico-Chimica, a Bio-Chimica, a Biologia, a Pathologia, a Physiologia normal e pathologica, bem como a Histologia normal e pathologica, são todas essas disciplinas absolutamente indispensaveis ao estudo do Cancer e sem o que arriscariamos a ter apenas uma visão unilateral do problema e, portanto, insuficiente.140 O trabalho de Pimenta Bueno constitui, assim, um capítulo relevante da história das pesquisas sobre o câncer no Brasil, sobre como os conceitos acerca dos mecanismos cancerígenos foram construídos e reinterpretados ao longo dos anos e também sobre a luta por novos tratamentos contra a doença no país.

Ibid., 16: 362. Ibid., 15: 335. 140 Ibid. 138 139

58 Princípios gerais da Trophodynamica funccional A ideia de Pimenta Bueno sobre a origem das células tumorais baseia-se, essencialmente, na interpretação dos mecanismos de ação do câncer a partir dos fundamentos da chamada Trophodynamica funccional, doutrina elaborada por ele próprio e cujo critério fundamental se baseia no fato de a atividade funcional das células estar associada à energia nutritiva que as rodeia. Vale ressaltar que isso

estaria

em

concordância

com

os

princípios

fundamentais

da

termodinâmica: a conservação de energia, ou a expressão da conservação de energia de um sistema. Pimenta Bueno via qualquer atividade do organismo como “um phenomeno de energetica”, que implicava um desequilíbrio de energia ou a “transformação de um certo potencial em energia actual ou dynamica, portanto em uma degradação energética”; o material energético seriam as substâncias nutritivas que abastecem o organismo para necessidades imediatas ou futuras.

141

De modo mais amplo, o equilíbrio do organismo

dependeria da circulação sanguínea, que transportaria os nutrientes. Ao assumir a lei da conservação de energia segundo o físico e fisiologista alemão Hermann

von

Helmholtz

(1821-1894)

como

princípio

básico

para

o

funcionamento normal das células, Pimenta Bueno, então, entende que fenômenos orgânicos seguiam o princípio de que a quantidade de energia que circula em um sistema de corpos em equilíbrio é constantemente a mesma; a

141 Pimenta Bueno assume, no âmbito dos fenômenos celulares, o princípio básico da termodinâmica, que é a conservação de energia, de modo que a quantidade de energia que circula em um sistema de corpos em equilíbrio (a célula, no caso) seria constantemente a mesma, quaisquer que fossem as operações intermediárias. Em outras palavras, as células não seriam capazes de criar ou destruir energia. Ao assumir isso, Pimenta Bueno compreende as células dos tecidos como incapazes de procurar pela energia que as penetra e nelas se transforma. Seria necessário que essa energia circulasse e fosse oferecida às células, as quais, fixas na constituição dos tecidos, ficariam à mercê da circulação nutritiva. Dessa forma, ao usar a expressão “degradação energética”, o médico se refere a um decaimento da energia oferecida às células.

59 célula, portanto, não poderia criar ou destruir energia, ela seria apenas um agente transformador de energia.142 Postas essas ideias, o médico começa a desenvolver o conteúdo de sua obra, a qual vamos expor a seguir. Em seus primeiros três artigos, Alfredo Leal Pimenta Bueno discorre majoritariamente sobre os mecanismos responsáveis por garantir às células as partículas energéticas nutritivas necessárias para que elas as convertam em energia funcional. As células, do ponto de vista Tropho-dinamico, seriam inteiramente passivas porque seriam apenas uma forma, uma maneira de ser da matéria comum, e nada mais haveria nelas que não fosse essa mesma matéria, submetida à ação das forças físico-químicas.143 Tendo como base as ideias de Hermann von Helmholtz, Pimenta Bueno considera que as células seriam um sistema transformador de energia, apenas. As cellulas dos tecidos são mesmo incapazes de procurar essa energia que as penetra e nellas se transforma; é necessário que essa energia circule e seja offerecida ás cellulas que, fixas na constituição dos tecidos, ficam á mercê da circulação nutritiva, isto é, da circulação sanguinea. Ellas são, pois, passivas.144 A energia que circula em uma determinada célula experimenta, segundo ele, uma transformação relativa à sua estrutura físico-química. Nesse sentido, a atividade funcional das células oscilaria entre dois estados: o de repouso e o de atividade. Estes seriam determinados de acordo com a intensidade energética circulando ao redor das células. No estado de repouso, as células reparariam o

Pimenta Bueno, Correlações Hemaullicas, 8-9 e 28. Pimenta Bueno “O estudo da pathogenia”, 21: 496. 144 Ibid., 16: 361. 142 143

60 desequilíbrio estrutural sofrido durante o estado de atividade funcional. A estrutura funcional das células seria alterada permanentemente na condição de uma dessas fases predominar sobre a outra. Em última análise, a atividade funcional das células dependeria da intensidade da circulação de energia. O médico segue explicando que a distribuição de energia seria assegurada pela circulação sanguínea e linfática — esta última responsável pela absorção de detritos e macromoléculas que as células produzem durante o metabolismo.145 A rede sanguínea asseguraria o transporte mecânico de energia e a velocidade desse transporte, isto é, a intensidade das trocas nutritivas próprias das células: a chegada em abundância de produtos nutritivos e a drenagem do material de refugo por meio do sistema linfático, responsável pela drenagem do plasma que circula nos tecidos. No câncer, sugere Pimenta Bueno, a circulação sanguínea se intensificaria, assim como a circulação capilar.146 Neste cenário, a circulação linfática se tornaria, portanto, exagerada, uma vez que haveria um maior recolhimento de substâncias nocivas, produtos finais do metabolismo celular. Como veremos mais adiante, para Pimenta Bueno, a origem do câncer estaria de alguma forma associada ao transporte dessas substâncias; isto é, o aumento do volume sanguíneo nos vasos e gânglios linfáticos seria a expressão própria da intensidade das trocas nutritivas que desencadeariam os tumores. Em última análise, para desempenhar suas funções corretamente, os órgãos dependem do metabolismo normal das células; este, por sua vez, 145 146

Ibid., 362. Nível circulatório no qual se dá a troca de nutrientes entre o sangue e as células.

61 dependeria da circulação sanguínea, regulada pelo sistema vasomotor. A atividade normal de um órgão estaria, portanto, intimamente relacionada ao processo de regulação neural, sendo o sistema nervoso o responsável pelas funções mais gerais, como a redistribuição do fluxo sanguíneo para áreas diversas do corpo, o aumento do bombeamento do coração e o controle da pressão arterial. Isto posto, Pimenta Bueno sugere que todos os órgãos servidos por um mesmo tronco arterial seriam, do ponto de vista fisiopatológico, solidários entre si. Isso, segundo ele, explicaria as infiltrações do braço — edemas — que costumam acompanhar a evolução de certos tumores de mama. Eis o que ele diz sobre isso: Do ponto de vista da doutrina da “Trophodynamica funccional”, o edema do braço correspondente ao seio em cancer é devido ao facto de que o seio e o braço correspondente constituem um systema solidario entre si, pelo facto de que são servidos por vasos sanguineos que se originam de um mesmo tronco arterial. Com efeito, a humeral e as mammarias interna e externa são todos ramos da sub-clavia147; ora o processo canceroso exige a majoração da circulação da sub-clavia e, como o braço é servido por esse mesmo manancial nutritivo augmentado de ímpeto, resulta a infiltração de seus tecidos.148 Mais adiante, Pimenta Bueno novamente volta sua atenção ao estudo das células, elemento, segundo ele, essencial para a atividade funcional dos tecidos. Logo de início, o médico se propõe explicar as diferenças básicas entre dois tipos de células: as autônomas e as histicas. A primeira é independente, comanda 147 148

Artérias localizadas sob a clavícula responsáveis por levar o sangue aos membros superiores. Pimenta Bueno, “O estudo da pathogenia”, 16: 362.

62 se a si própria; as variações relacionadas à sua funcionalidade dependeriam de seu momento fisiológico, enquanto sua nutrição, exclusivamente de sua capacidade de deslocamento e de assimilação. Iniciada sua vida, ele explica, sua atividade vai de uma ponta à outra da ontogenia, desde sua concepção até a maturidade, do nascimento à morte.149 No caso das células autônomas, a maior expressão de sua individualidade, no entanto, seria a proliferação. A atividade da célula histica, ao contrário, dependeria da circulação do material nutritivo por entre as células que não se movem umas em relação às outras e que, por isso, tendem a ficar mais ou menos isoladas do ambiente geral. Aqui, Pimenta Bueno apoia-se nas ideias do embriologista belga Albert Auguste Toussaint Brachet (1869-1930), publicadas em 1921 no livro Traité d'Embryologie, para explicar que dessa dupla condição de ser das células resultaria que a célula autônoma teria a capacidade de assimilar o material nutritivo em sua própria substância, transformando-o em protoplasma e, assim, crescer, aumentar sua massa e, por fim, dividir-se. De acordo com Albert Brachet, as células histicas só apresentariam essa propriedade durante a fase em que se desenvolvem e crescem no organismo a que pertencem. Seria o que acontece com as células do tecido epitelial, por exemplo, que se reproduzem com maior ou menor atividade enquanto são simples, ou seja, indiferentes. Então, ao se diferenciarem, tornando-se adultas, ou especializadas, já não desfrutam mais da capacidade de se reproduzir, tornando-se, assim, estéreis.150

149 150

Ibid., 17: 386. Ibid., 387.

63 A razão de ser disso seria o grau de hidratação do meio em que a célula se encontra, isto é, do grau de dispersão coloidal, de ionização das substâncias nutritivas e da constituição do citoplasma celular. Pimenta Bueno chega a essa conclusão ao confrontar as ideias de Brachet com as do bioquímico e fisiologista suíço Emil Abderhalden (1877-1950) e do médico belga Pierre Nolf (1873-1953), segundo os quais o grau de hidratação do ambiente onde a célula encontra-se interferiria na complexidade das proteínas, ao passo que o grau de dispersão coloidal, caracterizado por aspectos físico-químicos, influenciaria o processo de incorporação dessas proteínas ao citoplasma das células. Para os dois pesquisadores, a incorporação dessas proteínas exigiria que elas sofressem a maior desintegração possível dos compostos moleculares que as constituem, sendo necessário, portanto, que sofressem previamente um processo de clivagem molecular (desintegração), para, então, chegarem ao estado de aminoácidos.151 Ainda com base nas ideias de Brechet, expostas em Traité d'Embryologie, Pimenta Bueno infere que as células jovens, ou embrionárias, seriam mais hidratadas e também muito mais ricas em fermentos hidrolisantes152, que as células adultas, idosas, de modo que nas células velhas, especializadas, essas substâncias deixariam de ser incorporadas ao citoplasma celular, onde seriam convertidas em reservas energéticas. É nesse sentido que o médico brasileiro infere que as células adultas não se nutrem e, portanto, perdem a capacidade de



Ibid. Pimenta Bueno refere-se às enzimas responsáveis pela desintegração das proteínas em aminoácidos, os quais, em seguida, serão incorporados à estrutura coloidal das células. 151 152

64 se reproduzir. Como veremos mais adiante, esta relação constituirá um ponto fundamental de seu argumento sobre a etiologia do câncer. Para Pimenta Bueno, as células que continuam a se reproduzir o fazem enquanto apresentam-se indiferenciadas, ou em estado embrionário, quando as trocas nutritivas são muito mais intensas e, igualmente, muito mais intensa é a assimilação desses nutrientes pelas células. Para o médico, as células tornam-se maduras à medida que se afastam da fonte nutritiva e hidratante, ou seja, tornam-se adultas quando se desidratam. Neste momento, seu metabolismo seria extremamente diminuído e as células não mais conseguiriam se reproduzir.153 É interessante ressaltar que, para explicar melhor este duplo aspecto que pode apresentar a atividade celular, Pimenta Bueno faz uso da fórmula concebida pelo químico alemão Herbert Freundlich (1880-1941), a partir da qual o médico afirma que, quando a célula é nova e sua estrutura é de uma dispersão coloidal fortemente hidratada, a adsorção154 é mais intensa; sendo, então, rápido o crescimento material da célula.



Pimenta Bueno, “O estudo da pathogenia”, 17: 388. A adesão de moléculas de um fluído (o adsorvido) a uma superfície sólida. Neste caso, vale ressaltar, Pimenta Bueno se refere à adsorção química, empregada na separação de misturas. Nela as moléculas, ou átomos, unem-se à superfície do adsorvente por meio da formação de ligações químicas. 153 154

65 Neste caso, X seria a quantidade do material adsorvido por uma superfície (m) e, portanto, subtraído à solução, cuja concentração final será C, enquanto a e n seriam constantes referentes — ou observadas a partir dos — aos materiais adsorvidos e adsorventes em uma dada temperatura. Isto posto, Pimenta Bueno observa: “Estas cellulas têm como caracteristicos biologicos: metabolismo intenso e intensa proliferação; são cellulas indiferenciadas.”155 Aqui, vale ressaltar, o médico faz uma clara distinção entre o comportamento das células embrionárias (indiferentes) e das células adultas (diferenciadas). Tudo indica que Pimenta Bueno está discutindo o amadurecimento das células — diferenciação ou especialização —, processo um tanto complexo, em que diversas

vias

moleculares

interagem

e

muitas

vezes

se

influenciam

mutuamente. É por meio desse processo de especialização que as células adquirem características específicas. As células de gordura tornam-se especializadas em estocar energia, por exemplo. De acordo com Pimenta Bueno, o grau de hidratação das células diminuiria à medida que elas envelhecessem, de modo que a absorção de nutrientes seria pouco intensa e seu metabolismo, mínimo. Sendo células de baixa atividade metabólica, as células adultas, ou diferenciadas, portanto, se proliferariam menos. O médico também associa o mecanismo de cancerização das células de alguma sorte às mitocôndrias, compartimentos celulares responsáveis pela produção de energia, sugerindo que essas organelas desempenhariam papel determinante no processo de especialização celular, quando deixam de ser

155

Pimenta Bueno, “O estudo da pathogenia”, 17: 388.

66 embrionárias e tornam-se adultas, especializadas.156 Aqui, o médico demonstra ter um conhecimento bastante específico sobre a morfologia dessas organelas, sugerindo que elas apresentariam formas distintas no interior das células. Em um trecho de seu artigo, ele cita o médico francês Joseph Roy para reforçar essa ideia: (...) as formas das mitocôndrias, seja de grãos isolados ou em correntes, seja de palitos mais ou menos longos, seja de filamentos,

dependem

da

atividade

nutritiva;

são

pequenos grãos que correspondem à atividade máxima. Entre as células envelhecidas, as mitocôndrias tomam o aspecto filamentoso.157 A diferença na forma e no tamanho dessas organelas seria determinada, segundo ele, de acordo com o grau de hidratação das células, que, como vimos, diminui à medida que elas envelhecem. Em verdade, vale dizer, a noção de que o surgimento das células cancerígenas poderia estar ligado ao funcionamento das mitocôndrias há algum tempo vinha sendo discutida, em geral, graças às ideias do fisiologista alemão Otto Heinrich Warburg (1883-1970), publicadas em 1924, segundo as quais as células tumorais produziriam a energia que lhes permite sobreviver a partir do consumo da glicose livre no citoplasma, a região da célula entre a membrana e o núcleo celular. Ao mesmo tempo, Warburg postulou que o fator que conduziria os tecidos ao câncer estaria relacionado à respiração celular insuficiente, causada por danos nas mitocôndrias.158



Ibid., 389. Ibid. 158 Beishon, “Metabolic approaches to killing cancer cells”, 14. 156 157

67

Figura 2 - Trecho de um dos artigos de Pimenta Bueno: na obra, é possível verificar que o médico recorre com frequência ao trabalho de outros autores, os citando na língua original.159

Assim, para Pimenta Bueno, “a complexidade das mitochondrias, e, pois, da differenciação cellular, cresce com a deshydratação chimica dos compostos moleculares”.160 Por sua vez, o processo de desidratação das células se daria por meio de reações químicas específicas, as quais desencadeariam a combinação de um grande número de moléculas de ácidos graxos, havendo a eliminação de uma molécula de água para cada par de molécula de ácido graxo. Isso se daria 159 160

Pimenta Bueno, “O estudo da pathogenia”, 17: 392. Ibid., 390.

68 por meio de um processo chamado hidrolise, ou hidrólise, qualquer reação química que envolva a quebra de uma molécula por ação da água.161 Pimenta Bueno se volta mais adiante à ação da água sobre o metabolismo e a bioquímica das proteínas. Como havia concluído em seus primeiros artigos, uma hidratação intensa e, sobretudo, prolongada induziria o núcleo das células a dividir-se e, ao mesmo tempo, desintegraria a estrutura celular como um todo.162 Ele explica que no início da cariocinese — processo de divisão do núcleo — a água penetraria a célula em abundancia, fazendo com que seu núcleo aumentasse sua turgescência.163 A conclusão não se dá ao acaso. Baseiase no livro Sémiologie oculaire: le cristallin: anatomie, physiologie, pathologie, publicado em 1926 pelo oftalmologista francês Felix Terrien (1872-1940). Nele, Terrien debruça-se sobre o estudo das lesões anatômicas das fibras cristalinas características da catarata. Ao analisar suas ideias, Pimenta Bueno infere que a hidratação levaria as fibras cristalinas à perda de seus caracteres diferenciais, desintegrando as proteínas que as constituem, levando as células a se proliferarem, condição que já não mais gozavam.164 Voltaremos à questão da catarata, analisada por Pimenta Bueno em seus artigos, mais adiante.165 Por hora, é interessante ressaltar que neste trecho de seus artigos, mais que em qualquer outro, o médico apoia-se nos escritos de diversos cientistas, sobretudo franceses e italianos, para reforçar a hipótese de

Ibid. Ibid., 18: 437. 163 Ibid., 440. 164 Ibid. 165 Uma análise preliminar sobre a possível relação entre catarata e tumores, na visão de Pimenta Bueno, encontra-se em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 239. 161 162

69 que o câncer procederia por meio de um processo de desintegração hidrolítica das células normais, o que sugere que a célula se desintegraria por causa do excesso de água.166 Ao citar suas fontes, no entanto, Pimenta Bueno faz questão de dizer que as citações por ele usadas em seus artigos gozavam de valor e força de argumentos absolutamente insuspeitos e imparciais, já que eram fornecidos como resultado de pesquisas orientadas para outros rumos e de índole inteiramente diversa da que presidia seu trabalho.167 De fato, Pimenta Bueno cita muitos cientistas ao longo de seus artigos, como Arnoldi, Rondoni, Ruffini e Laborde, Mayer, Schaeffer, Terroine, para citar alguns nomes. Contudo, nos concentraremos nas ideias de alguns deles, mais especificamente. Primeiro porque esses autores são citados com muito mais frequência por Pimenta Bueno. Segundo porque suas ideias, como veremos, foram determinantes para que o médico formulasse sua teoria sobre a etiologia do câncer.

Da catarata aos tumores Pimenta Bueno se apoia essencialmente nas ideais do médico francês Jules Verne para melhor estudar a constituição das melaninas, elemento característico dos melanomas, um tipo bastante agressivo de câncer de pele. O faz tendo como base o livro Les pigments dans l’organisme animal, então mais recente trabalho de Verne, publicado em Paris em 1926. Em seu livro, o médico 166 167

Pimenta Bueno, “O estudo da pathogenia”, 18: 439. Ibid., 438.

70 explica que o processo bioquímico de produção de melanina, também chamado de melanogenese, se daria pela desintegração de moléculas proteicas no núcleo das células por um fermento oxidante. Demonstrei que a melanina em geral é produzida por meio da ação de um fermento oxidante especializado em um receptor, substância oxidável cuja transformação dá a melanina.168 Esta afirmação, aliás, repete-se várias vezes no mesmo livro. Vejamos o que ele escreve em outro trecho de sua obra: O conjunto dos resultados obtidos permite considerar as melaninas como pigmentos que se formam durante a desintegração das moléculas proteicas, quando algumas condições que estudarei se encontram reunidas.169 A partir das ideias expostas no livro de Verne, Pimenta Bueno infere que o surgimento da melanina se daria ao cabo de uma desintegração das proteínas localizadas no plasma celular por meio da hidrolise.170 Veremos mais adiante que o conhecimento sobre o papel da desintegração proteica para o surgimento das melaninas lhe dará subsídios conceituais para estudar o processo cancerígeno. Isto posto de base, Pimenta Bueno procura se aproximar de uma explicação mais precisa sobre os fenômenos bioquímicos que desencadeiam o câncer ao analisar os trabalhos dos oftalmologistas franceses Felix Lavagna

Verne, Les pigments, 302. Ibid., 149. 170 Pimenta Bueno, “Estudo da pathogenia”, 18: 439. 168 169

71 (1896-1968) e, sobretudo, de Felix Terrien, citado há pouco. Ambos escreveram intensamente sobre os aspectos físico-químicos associados ao cristalino normal e patológico, concluindo que a catarata resultaria de uma hidrolise das proteínas que compõem as fibras cristalinas. A bem da verdade, Pimenta Bueno não sabia até que ponto a catarata poderia ser confundida com um tipo de câncer ocular, mas estava convencido de que os processos bioquímicos que a desencadeavam eram os mesmos que conduziam os tecidos ao câncer. Vejamos o que escreveu sobre isso: [...] o Cancer é um processo verdadeiramente lytico, por hyperhydratação primitiva dos tecidos em que elle se assesta. É por isso mesmo que acho muito estranhavel que a catarata não seja o cancer do cristallino, tanto mais quanto não sei de nenhum caso de cancer do cristallino referido em literatura.171 Para o médico, a hidratação dependeria da intensidade de sua circulação local — irrigação sanguínea — e agiria, pois, como um agente de simplificação morfológica e, ao mesmo tempo, da atividade reprodutora das células, duas das principais características dos tecidos cancerosos.172 Como vimos, o médico infere no início de um de seus artigos que a hidratação intensa e, sobretudo, prolongada induziria o núcleo das células a dividir-se, fenômeno ao qual referese como caryocinése. Pimenta Bueno volta a pôr essa relação em destaque, agora apoiando-se nos escritos de Lavagna e Terrien. Ao estudar a etiologia e patogenia da catarata, Terrien afirma que “pesquisas recentes demonstraram 171 172

Ibid., 20: 468. Ibid., 21: 493.

72 que ocorreu certamente na catarata uma hidrólise de proteínas do cristalino e o excesso de raios ultravioletas é capaz de favorecer esta hidrólise”.173 E conclui mais adiante: “a catarata seria o resultado de uma hidratação atuando a favor da alteração do epitélio sub-capsular”.174 Além de verificar que a catarata resultaria de um processo contínuo e prolongado de hidratação das células das fibras do cristalino, Terrien também observou que elas passavam a se multiplicar. “Quando o cristalino ainda está transparente, mas já aumentou de volume e peso, a membrana apresenta em alguns lugares uma leve elevação. Nos pontos em que ela não é mais aderente à capsula surgem as primeiras modificações”.175 Em última análise, é possível concluir que os escritos de Lavagna e, sobretudo, de Terrien permitiram a Pimenta Bueno encadear a sucessão de ações que levavam as fibras do cristalino, adultas e diferenciadas, ao estado embrionário, quando perdem suas características funcionais e recuperam a capacidade de proliferarem-se, a saber, hiperemia176, hidratação e desintegração hidrolítica dos compostos celulares, dos quais resultaria a simplificação do tipo celular primitivo. Em outras palavras, as células de um tecido partiriam do estado embrionário, onde o grau de hidratação passava por um máximo, chegavam ao estado adulto, diferenciadas, quando o grau de hidratação

Terrien, Le Christallin, 151. Ibid., 152. 175 Ibid., 177. 176 Pimenta Bueno refere-se ao aumento da quantidade de sangue circulante em determinado local, ocasionado pelo aumento do número de vasos sanguíneos funcionais, podendo ser desencadeada por processos patológicos como inflamações agudas, agressões térmicas e traumatismos. 173 174

73 passava por um mínimo e, finalmente, eram submetidas a uma hiperemia, que levava à hidratação das células, que voltavam ao estado embrionário e readquiriam a capacidade de se proliferar (ver Figura 3). Da mesma forma, para Pimenta Bueno, a processo cancerígeno seria semelhante ao da opacificação do cristalino, já que sua patogenia também seria condicionada por uma hidratação dos tecidos, determinada por um processo prévio, mais ou menos longo, de hiperemia local, de irritação congestiva, seja qual fosse o agente dessa congestão, microbiana, parasitária, tóxica, química, mecânica, traumática, física etc.177

Figura 3 — Gráfico elaborado por Pimenta Bueno para ilustrar o mecanismo que conduziria as células ao câncer, a saber, as células de um tecido partiriam do estado embrionário, onde o grau de hidratação passava por um máximo, chegando ao estado adulto, diferenciadas, quando o grau de hidratação passa por um mínimo; quando, então, submetidas a uma hiperemia, as células se hidratam e voltam ao estado embrionário, readquirindo a capacidade de se proliferar.178

177 178

Pimenta Bueno, “Estudo da pathogenia”, 18: 441. Ibid., 20: 473.

74 A conclusão era importante, mas não queria dizer que todo e qualquer processo alinhado a essa sucessão de eventos levaria os tecidos ao câncer. Para Pimenta Bueno, era preciso tempo para que a lesão inicial se transformasse em um câncer, quando não fosse logo desencadeado pela intensidade da ação que provocou a lesão inicial. Isso, segundo ele, explicava o fato de o câncer ser mais comum em indivíduos de idade mais avançada.179 Ainda tendo a catarata como base para o estudo dos mecanismos do câncer, o médico debruça-se sobre as lesões oculares causadas por fulguração elétrica, raios e descargas elétricas de alta tensão, todas conhecidas por desencadearem a catarata. A partir das ideias de Terrien, ele conclui que, em consequência da ação da eletricidade, sobreviria uma hiperemia, a que se seguiria a hidratação do cristalino, então a desintegração hidrolítica das células que compunham suas fibras. Essas células voltariam ao tipo embrionário, recuperando a capacidade de se proliferar.180 É importante ressaltar que enquanto Terrien estudava como fulgurações poderiam causar lesões no cristalino, levando à catarata, Lavagna concluía que o traumatismo, a naftalina, o diabetes, a senilidade, entre outras condições, poderiam desencadear a mesma sequência de ações (hiperemia, hidratação, desintegração hidrolítica) que culminaria na catarata. É interessante notar como as constatações de Lavagna foram importantes para que Pimenta Bueno pudesse fazer outro paralelo entre os mecanismos do câncer e da catarata.181 Segundo ele, as conclusões de Lavagna seriam bastante pertinentes à condição de se ter em mente a lei das reações específicas propostas pelo fisiologista alemão Ibid., 18: 442. Ibid., 18: 442. 181 Ibid., 21: 491. 179 180

75 Johannes Müller no livro Handbuch der Physiologie des Menschen. Nele, Müller se dedica ao estudo da ação nervosa e dos mecanismos sensitivos, estabelecendo, talvez pela primeira vez, o principio segundo o qual o tipo de sensação que se segue a uma estimulação não dependeria do tipo de estimulação, mas da natureza do órgão sensitivo. Em outras palavras, as reações seriam especificas de acordo com a natureza do tecido, e não com a dos agentes excitadores. Seguindo este princípio, Pimenta Bueno diz que a catarata seria o modo ou a maneira pela qual o cristalino reagiria a toda causa capaz de determinar a vasodilatação ou a hiperemia do aparelho ciliar.182 A cataracta é, pois, uma syndrome e não uma molestia. Ella poderá ser determinada por factores os mais diversos em sua natureza mesma, mas todos identicos em seu determinismo, em seu efeito final que é a cataracta.183 Há neste particular uma perfeita similaridade entre o que se dá com o mecanismo da catarata e o do câncer, de acordo com Pimenta Bueno. Como a catarata, o câncer teria como agentes as mais variadas causas físicas, químicas, biológicas, mecânicas, entre outras; todas idênticas pelo só fato de que agem produzindo uma irritação — hiperemia —, mais ou menos duradoura, e de que resultaria, como na catarata, uma desintegração hidrolítica das proteínas celulares, a perda de seus caracteres diferenciais, isto é, a volta ao estágio embrionário, e, finalmente, o reestabelecimento da capacidade de proliferação.184 O câncer, para o médico, seria, pois, uma síndrome, como a catarata, que dependendo das condições gerais, se manifestaria localmente em uma determinada área irritada. Ibid., 18: 442. Ibid. 184 Ibid., 23: 549. 182 183

76 As condições gerais para o desenvolvimento da doença respeitariam, contudo, o metabolismo das células próprias de cada órgão, em concordância com a lei das reações específicas de Müller, de modo que o câncer resultaria sempre de um excesso de nutrição local, isto é, de uma hiperemia. Em suma, Pimenta Bueno procura demonstrar a identidade bioquímica que haveria de existir entre o processo de opacificação do cristalino e o de cancerização dos tecidos saudáveis, sem, no entanto, fazer da opacificação, em si, um processo canceroso. Ao aproximar os dois processos, o médico baseia-se no pressuposto de que a catarata seria determinada pela hidratação do cristalino. Logo, sendo ela ao mesmo tempo caracterizada pela proliferação de suas células, até então inertes deste ponto de vista, e que por isso regrediam em seu tipo morfológico, então estaria justificado o conceito que ele tinha do mecanismo do câncer e, sobretudo, sua maneira de interpretar esses fenômenos como devido à mesma hidratação. A semelhança entre os dois processos perduraria a propósito da possibilidade de ambas as condições poderem ser causadas por um dos produtos de destilação do alcatrão, como a naftalina, por exemplo.185 Com efeito, tanto a catarata quanto o câncer também seriam complicações muito notadas em síndromes como o diabetes ou o mesmo o alcoolismo, sendo que todos os agentes físicos capazes de determinar o câncer poderiam igualmente

185

Ibid., 20: 468.

77 determinar a catarata, a saber, traumatismos e irritações térmicas, luminosas, ultravioletas, Raios X e eletricidade.186 É interessante fazer aqui um paralelo às ideias do médico francês Eugène Doyen187, segundo as quais o câncer seria uma doença infecciosa crônica que poderia ser induzida pela injeção de microrganismos e se desenvolveria mais facilmente em células que já haviam sido irritadas por infecções anteriores.188 Vale lembrar que no livro de 1909, ele afirmou que a gênese dos tumores seria a expressão de um ato de defesa do organismo contra a invasão de um germe patológico.189 Algo semelhante havia sido sugerido pelo patologista alemão Julius Cohnheim, que considerava terem todos os tumores uma origem embrionária — conforme também foi visto no primeiro capítulo desta dissertação.190 Para ele, os tumores malignos seriam determinados pelo crescimento de células embrionárias esparsas pelo organismo. Ocorre, porém, que as ideias propostas por Cohnheim, mesmo tendo sido aceitas por inúmeros cientistas, não conseguiram penetrar o âmago da questão, a saber, quais as razões que determinavam a proliferação das células embrionárias. Como podemos concluir a partir da análise dos artigos de Pimenta Bueno, o médico defende o ponto de vista de que a cancerização dos tecidos, em sua natureza íntima, com a regressão das células ao estado embrionário, resultaria de um paroxismo inflamatório, então o último estágio de reação dos

Ibid. Vide página 20. 188 Doyen, Le Cancer, 106. 189 Ibid., 32-33. 190 Vide página 5. 186 187

78 tecidos a irritações compulsórias.191 Ou seja, o câncer resultaria de uma super hidratação celular de um tecido até então normal ou simplesmente irritado, inflamado, em que se formam com grande abundancia produtos de desintegração proteica.192 A volta ao estágio embrionário, por sua vez, seria um mecanismo das células para remediar as feridas causadas por essas irritações. Por outros caminhos, essa mesma hiper-hidratação poderia levar a um acúmulo de ácidos no interior das células.193 Dessa forma, o câncer para Pimenta Bueno seria resultado de uma acidose celular, ou seria, ela mesma, o câncer.



Pimenta Bueno, “Estudo da pathogenia”, 21: 496. Ibid., 29: 720. 193 Ibid., 47: 1319. 191 192

79 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta dissertação expôs como os conceitos relacionados aos mecanismos do câncer foram construídos e reinterpretados ao longo do século XIX, e como médicos e cientistas, cada um a seu modo e com os instrumentos materiais e conceituais de sua época, tentaram entender a origem da doença, propondo novos caminhos conceituais, médicos e institucionais de pesquisa e tratamento para a moléstia. Por caminhos silenciosos e menos trilhados, muitos cientistas tentaram entender a etiologia do câncer na segunda metade do século XIX e no início do século XX, propondo diversas teorias sobre as possíveis origens das células tumorais. Muitos encontraram evidências médicas que não puderam (ou souberam) interpretar; outros implantaram técnicas de tratamento que, não raro, fizeram mal a eles próprios. Nesse sentido, as análises levadas a cabo neste trabalho nos permitem concluir que o câncer, uma doença sobre a qual outrora se falava aos sussurros, metamorfoseou-se ao longo do século XIX em uma entidade cada vez mais discutida e estudada, sobretudo na Europa. Isso se deveu, em grande medida, ao aumento da incidência das pesquisas no campo da biologia celular, capitaneadas por cientistas como Johannes Müller e Rudolf Virchow, cujos trabalhos em meados

daquele

século

possibilitaram

um

melhor

entendimento

do

funcionamento celular e, portanto, das condições que poderiam favorecer ou determinar o surgimento das células cancerígenas.

80 É igualmente notável o modo como o câncer deixou o quase anonimato e se tornou uma questão de saúde pública no Brasil, transformando-se em um dos principais focos da atenção de médicos e pesquisadores brasileiros. As evidências obtidas nesta dissertação sugerem que a construção do câncer como problema médico no Brasil nas primeiras décadas do século XX se deu em meio a um cenário em que a preocupação maior ainda se centrava em doenças de maior impacto social, como sífilis e tuberculose. O fato de em um primeiro momento médicos e pesquisadores priorizarem a definição das melhores ou mais adequadas técnicas cirúrgicas para a extirpação dos tumores, ou a realização de estudos epidemiológicos que ajudassem a delimitar o alcance da doença na população, está de acordo com a concepção médica da época de que os pressupostos conceituais sobre a etiologia do câncer já haviam todos sido estabelecidos por pesquisadores europeus. Conforme pudemos verificar ao longo deste trabalho, poucos foram os cientistas brasileiros que se propuseram ir além dos pressupostos conceituais estabelecidos e investigar os mecanismos que conduziam os tecidos ao câncer. Tudo indica que Pimenta Bueno foi um dos poucos a examinar a etiologia do processo cancerígeno no Brasil, corporificando seus pontos de vista em uma série de artigos publicados na revista científica O Brasil Médico. A análise de seu trabalho nos permite concluir que o médico fez uma síntese dos escritos sobre fenômenos celulares acumulados até então, ajustando ao seu raciocínio conceitos clássicos elaborados por aqueles que vieram antes dele e por seus contemporâneos, recorrendo a esses autores em diversos momentos, a fim de justificar seus argumentos.

81 Em seus artigos, o médico coordena fatos clínicos e experimentais à luz do campo da física médica e das ideias do físico e fisiologista alemão Hermann von Helmholtz sobre a lei da conservação de energia para, então, propor uma explicação sobre os fenômenos bioquímicos que desencadeariam o câncer a partir dos trabalhos dos oftalmologistas franceses Felix Lavagna e Felix Terrien sobre os mecanismos da catarata. A partir do cruzamento desses e de vários outros materiais, o médico tira conclusões bastante originais, ao menos no que tange o panorama científico brasileiro. De um modo mais amplo, a análise dos documentos aqui apresentados nos permite concluir que o trabalho do médico é fruto de uma mudança de percepção da classe médica e do poder público sobre o câncer no Brasil nas primeiras duas décadas do século XX, que aos poucos incorporou a doença como um problema de saúde pública na agenda governamental do país. Ao mesmo tempo, se é verdade que o médico apresenta ideias originais sobre a etiologia do câncer, também é notório que também defende princípios que destoam em meio ao conhecimento científico de sua época. Isso porque não encontramos ao longo de nossa pesquisa estudos ou teorias alinhadas à possibilidade de qualquer célula, integrante da coletividade orgânica, após sua completa evolução embrionária e já em estado adulto, ser capaz de retroceder sobre seus passos, sob influência de fatores diversos, e tender ao seu estado embrionário, tornando-se maligna. Para alguém que dizia não estar sujeito à volúpia da notoriedade ou mesmo ao desejo comum de também ter ideias próprias sobre os mecanismos do câncer, suas teorias são um tanto singulares.

82 De fato, muitos outros estudos são necessários para que possamos compreender melhor o trabalho de Pimenta Bueno, e muitas perguntas ainda precisam ser contempladas. Apesar das contribuições que esperamos ter feito com este trabalho, ainda é preciso investigar melhor de que forma Pimenta Bueno teve contato com o conhecimento discutido e analisado em seus artigos, se também embarcou para o exterior em temporadas de estudo e pesquisa como outros médicos e pesquisadores de sua época, se manteve diálogo direto com algum cientista de fora do país, ou mesmo o modo como se deu sua formação na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte. Sem uma compreensão mais ampla de sua formação, carreira e produção científica, estaremos fadados a ter uma visão unilateral e, portanto, insuficiente de suas ideias.

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