OS EXORCISMOS NOS EVANGELHOS SINÓPTICOS

May 27, 2017 | Autor: Frei Miguel Grilo | Categoria: Biblical Studies, Trabalhos Academicos, Pesquisas, Exorcismos, Estudos Bíblicos
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OS EXORCISMOS NOS EVANGELHOS SINÓPTICOS

I – Tipologia dos milagres de Jesus
Vários critérios da historicidade permitem afirmar como muito provável que se tenham atribuído a Jesus histórico a realização de milagres e que tanto os seus seguidores como os seus inimigos tenham pensado que ele os havia realizado. Mais concretamente, Jesus realizou acções como curar enfermos e exorcizar endemoninhados, e os resultados extraordinários dessas acções foram consideradas por ele mesmo e por outras pessoas como milagres.
Contudo, não pretendendo limitar-nos a uma afirmação global, optámos por analisar cada milagre em particular e estabelecer juízos sobre a sua historicidade. Nesse intuito, iremos centrar-nos na historicidade de tipos de milagres por considerarmos ser mais fácil devido à existência de múltiplos testemunhos sobre estes tipos de milagres, tanto em relatos como em ditos. É, contudo, muito mais difícil pegarmos num relato concreto de cura ou de exorcismo e determinar a historicidade e os detalhes com que se narra.
Os milagres de Jesus foram narrados de acordo com os motivos, temas e formas habituais no mundo greco-romano. Um determinado relato que fora não somente histórico, mas também insólito, pode adquirir facilmente, no decurso da transmissão oral, o perfil convencional da forma literária que chamamos relato de um milagre, perdendo durante o processo as características específicas do acontecimento histórico. Por outro lado, os narradores da Igreja primitiva e o público a que se dirigiam puderam fomentar a tendência oposta: acrescentando detalhes de modo a dar vida ao narrado.
Além disso, visto que a Igreja em geral e os evangelistas em particular utilizavam os relatos dos milagres como símbolos da salvação que Jesus havia trazido, os traços úteis para essa função simbólica haviam sido destacados ou inclusivamente criados. Em alguns casos, não é de descartar a ideia de que todo o relato de um milagre proceda do desenrolar dramático de uma afirmação ou uma parábola de Jesus.
Outro problema que se apresenta ao julgar a historicidade dos relatos concretos, especialmente aqueles relacionados com as curas, é a frequente imprecisão na descrição da doença, de modo que não nos é indicada com precisão a patologia em cada caso, nem a causa da enfermidade ou a incapacidade, nem se a cura de Jesus foi permanente, … . E se ainda hoje é difícil julgar as supostas curas inexplicáveis, mesmo quando os médicos dispõem de informação clinica sobre o paciente e podem falar pessoalmente com ele, quanto mais dificuldade encontrará o exegeta que se encontra a vinte séculos de distância e com informações tão parcas.
É, por isso, mais fácil discutir sobre os tipos de milagres que Jesus disse realizar, ou cuja realização lhe foi atribuída, que julgar se é histórico o relato de um determinado acto taumatúrgico, especialmente no que concerne aos detalhes. De facto, os exegetas apesar de aceitarem a historicidade global de que Jesus realizou feitos considerados milagrosos, mostram certa reserva frente aos relatos de milagres particulares.

II – Os Exorcismos
Centrando-nos somente na tarefa de avaliar os possíveis elementos históricos nos casos individuais, iremos referir 7 casos distintos de exorcismos realizados por Jesus nos Evangelhos sinópticos. O facto de serem 7 os exemplos particulares de tal tipo de milagre revela a importância que tiveram os exorcismos no ministério de Jesus. Contudo, deveremos manter sempre presente que tais relatos estão desigualmente distribuídos entre as várias fontes evangélicas. Além disso, é também de referir que o Evangelho de João não contém nenhum relato deste tipo, se bem que a ausência de exorcismos dever-se-á muito provavelmente à particular postura teológica de João. Já nos sinópticos, quase todos os relatos de exorcismo propriamente ditos procedem da tradição marcana. Em Q parece ter havido um breve relato de exorcismo como introdução à controvérsia sobre Belzebu (Mt 12,22-24 ǁ Lc 11,14). A tradição especial L do Evangelho de Lucas não apresenta nem um só exemplo de relato completo de exorcismo, ainda que refira de passagem o exorcismo a Maria Madalena (mencionado também em Mc 16,9). A tradição especial M do Evangelho de Mateus contém um brevíssimo relato de exorcismo, porém, provavelmente trata-se de uma criação redaccional mateana. De facto, sendo que o número de fontes é limitado relativamente aos exorcismos, o testemunho múltiplo de formas é tão importante como o testemunho múltiplo de fontes.

O endemoninhado na sinagoga de Cafarnaum (Mc 1,23-28 ǁ Lc 4,33-37)
Marcos utiliza este relato como parte de uma cena paradigmática: o primeiro dia do ministério de Jesus em Cafarnaum, oportunamente situado no sábado. De facto, para Marcos, é o começo não somente da actividade de Jesus em Cafarnaum, mas de todo o seu ministério público. Por isso, a cena sintetiza grande parte desse ministério, sobretudo o escrito entre o capítulo 1 e 6 do Evangelho.
Dado o carácter paradigmático e generalizador de 1,21-34, que possivelmente deve a sua unidade ao mesmo Marcos, a prudência aconselha a não valorizar demasiado os detalhes deste primeiro exorcismo do Evangelho. Em particular, o conhecimento da verdadeira identidade de Jesus e a proclamação de um título cristológico por parte do demónio, assim como a ordem de guardar silêncio que lhe dirige Jesus, podem ser expressão da teologia de Marcos sobre o segredo messiânico.
Jesus provavelmente é capaz de ter realizado um ou mais exorcismos, pelo que o fundamento de tal probabilidade reside não tanto em Mc 1,23-28, mas nas várias referências existentes ao longo dos quatro Evangelhos sobre a actividade de Jesus em Cafarnaum.
Se Mateus e Lucas coincidem em Cafarnaum o relato Q da cura do servo do centurião (Mt 8,5-13 ǁ Lc 7,1-10), também João relaciona com esse lugar o relato equivalente à cura do filho do funcionário real. Contudo, esta não é a única aparição de Cafarnaum no Evangelho de João, que é tão centrado em Jerusalém. Um aspecto bastante relevante é o dito de Q em que Jesus recrimina certas cidades da Galileia pela sua falta de arrependimento apesar de todos os milagres realizados nelas, dedicando a Cafarnaum as repreensões mais duras, insinuando assim que, sendo Cafarnaum a principal beneficiária do ministério de Jesus, isto implica que Jesus tenha realizado ali diversos milagres, incluindo exorcismos, ainda que Mc 1,23-28 não seja historicamente fiável nos detalhes.

O geraseno endemoninhado
Uma das poucas coisas que o relato sobre o geraseno endemoninhado tem em comum com o do endemoninhado da sinagoga de Cafarnaum é um nome de lugar. No restante, esta longa e pesada narração assemelha-se mais ao relato sobre o rapaz possuído por um espírito mau de Mc 9, em sua tortuosidade, assim como no seu carácter peculiar e estranho. As muitas dificuldades, tensões, e inclusive contradições do relato reflectem a complicada evolução que experimentou ao longo de décadas uma referência mais simples até se converter na barroca narração que encontramos actualmente em Mc 5,1-20. Contudo, é bastante difícil determinar exactamente qual foi a forma primitiva do relato, ainda que possamos ter algumas pistas.
Para começar, não é nada frequente que um milagre de Jesus tenha como cenário uma cidade pagã em território pagão. O outro único caso é o exorcismo da filha da mulher siro-fenícia (Mc 7,24-30), que se desenrola na região de Tiro, mas que corresponde a uma cura à distância. Assim sendo, este exorcismo é o único milagre conectado directamente com uma cidade da Decápole. Isto poderia indicar – porém dificilmente provar – que um exorcismo de Jesus teve lugar realmente nos arredores da cidade pagã de Gerasa e que o insólito acontecimento do exorcismo contribuiu a que esse lugar permanecesse memorizado na tradição oral.
Contudo, existe um problema ligado com o termo 'gerasenos', mais propriamente com o local onde decorreu o milagre. É possível que o incidente da entrada dos demónios na vara de porcos, que se precipitaram no mar da Galileia e se afogaram (Mc 5,11-13), seja um acrescento facilmente separável, adicionado posteriormente à forma original do relato do exorcismo. Sem a debandada da vara e a sua queda no abismo, os habitantes de Gerasa não criam qualquer dificuldade ao relato. Mas, visto que Gerasa fica a cerca de 53 Km's de distância do 'mar', este deixa de ser um lugar credível. Daí que surja como mais provável a localidade de Gergera.
Contudo, a nosso ver, o incidente da vara de porcos é secundário, pelo que nos limitamos a considerar o relato primitivo perto de Gerasa, onde nem sequer uma vara de porcos endemoninhados se podia lançar ao mar da Galileia. Assim, removendo a vara suicida do relato original, podemos prescindir de teorias racionalizadoras sobre como os porcos saíram em debandada, assustados pelo paradoxismo dos demónios no tormento do exorcismo. E, mesmo prescindindo dessa vara secundária, é difícil determinar quais as partes do relato que poderiam reflectir acontecimentos históricos. Há que contar com a possibilidade de que uma grande imaginação tenha dado uma forte pincelada teológica e narrativa. Tal como se encontra em Marcos, o relato serve certamente o propósito teológico de simbolizar a comunicação da mensagem do Evangelho Cristão, curador e libertador, aos impuros gentios, missão assumida pelo próprio Jesus.
Esse amplo programa teológico deve fazer-nos suspeitos no que diz respeito a admitir como dados históricos vários detalhes do relato. De facto, não nos devemos deixar arrebatar pelo poder quase hipnótico desse diálogo. Se até agora tivemos o cuidado de não designar como ipsissima verba Jesu qualquer dito seu, com maior razão devemos abster-nos de declarar ipsissima verba qualquer frase de um endemoninhado. Ainda quando se pretenda ver no nome "Legião" uma referência à ocupação romana, que mortificava a população palestina.
Isto vale não somente para o nome Legião, mas também para a designação de Jesus como "Filho de Deus Supremo". Segundo a teoria marcana do 'segredo messiânico', nenhum homem pode proclamar com veracidade que Jesus é o Filho antes do acto decisivo e misterioso da revelação, que é a morte de Jesus na cruz – só então um ser humano pode manifestar a verdade. Antes desse momento, somente Deus, ao falar a partir do Céu no Baptismo e na Transfiguração de Jesus, e os demónios ao serem exorcizados (seres exclusivamente sobrenaturais), puderam expressar a verdade da filiação divina de Jesus. O diálogo entre Jesus e o endemoninhado de Mc 5,6-7 ajusta-se perfeitamente a esse plano, pelo qual deve ser visto como parte de um programa teológico e não como um dado histórico.
Franz Annen encontra um ulterior argumento para pensar que na base desta perícope esteja algum feito do ministério de Jesus. Annen, considerando verosímil o acontecimento do exorcismo em Gerasa, sugere que foi formulado por judeo-cristãos da primeira geração favoráveis à missão entre os gentios e envolvidos numa contenda sobre este aspecto com judeo-cristãos mais conservadores que se opunham a essa missão. Contudo, apesar de atractiva, esta ideia encontra-se dependente de que antes seja aceite o Sitz im Leben que este autor propõe para o relato.
Assim, tendo em conta tudo isto que foi referido, somos levados a crer que na base de Mc 5,1-20 encontra-se um exorcismo realizado por Jesus nas proximidades de Gerasa, se bem que devemos admitir a falta de provas sólidas a seu respeito.

O rapaz possuído por um espírito mau (Mc 9,14-29 par.)
O relato sobre o rapaz possuído por um espírito mau recorda o do geraseno endemoninhado no que diz respeito à sua longitude, à sua apresentação tortuosa e alguns detalhes gráficos e concretos. Os críticos debatem sobre se Mc 9,14-29 se deve a uma combinação de duas versões diferentes do mesmo acontecimento ou à lenta evolução de um só relato. Independentemente, na versão de Marcos encontramo-nos de novo numa perícope resultante de uma complicada história literária.
Observando onde diverge notavelmente do paradigma crítico-formal básico dos relatos de exorcismos já referidos, os três relatos ajustam-se ao modelo básico:
Jesus entra em cena;
O endemoninhado dirige-se a ele ou é levado à sua presença;
Nos relatos do geraseno e do rapaz descreve-se em detalhe a situação lamentável e terrível do endemoninhado;
Em Cafarnaum e Gerasa o diabo tenta evitar Jesus e proclama a Sua verdadeira identidade;
Jesus não cede no seu propósito, mas repreende o demónio e ordena-lhe que saia;
A narração menciona a saída do demónio, que frequentemente se desenrola entre arrebatos e convulsões ou alguma espécie de transtorno geral;
Por vezes há uma declaração adicional sobre o bom estado actual do antigo endemoninhado, como confirmação do êxito do exorcismo;
Habitualmente, a reacção dos espectadores (assombro, temor) faz parte do desenlace.
Ainda que o relato do rapaz possuído por um espírito mau se ajuste bastante ao modelo descrito, há uma quantas diferenças notáveis que contribuem à obscuridade e ao movimento irregular da narração:
Diferentemente de outros relatos deste tipo, Mc 9,14-29 faz referência à incapacidade dos discípulos para realizar o exorcismo pedido, o que nos surpreende, já que mais à frente irá afirmar que os discípulos podem realizar exorcismos em nome de Jesus;
O interlocutor de Jesus não é o espírito mau, como nos casos de Cafarnaum e Gerasa, mas o angustiado pai do possesso;
Em vez de uma luta sobrenatural entre Jesus e o demónio vemos um apaixonado confronto psicológico entre Jesus, que põe a fé como condição para realizar o exorcismo, e o pai da criança que, não sabendo que fazer, grita: "Eu creio, mas aumenta a minha pouca fé" (v.24);
Perante a súplica do pai no v.22, Jesus responde, aparentemente um tanto ofendido: "que é isso 'se podes'? Tudo é possível para aquele que tem fé!". Jesus põe a fé como condição para o exorcismo, bem como perante a possibilidade de Jesus assinalar a sua própria fé como a fonte dos seus milagres;
O mais peculiar neste relato é a maneira detalhada, quase clinica, como o padecimento do rapaz é descrito (vv.17-18.20-22). Facilmente verificamos que ele parece sofrer de algum tipo de epilepsia. Contudo, Marcos e todos os presentes, incluindo Jesus, viam um caso de possessão por parte de um demónio, que era necessário expulsar.
Nada disto em si garante a historicidade. Obviamente, Marcos utiliza o material para desenvolver alguns dos seus temas preferidos: o crescente conflito entre Jesus e os seus discípulos, a vitória de Jesus sobre os poderes demoníacos, e a necessidade da fé e da oração.
O relato premarcano do rapaz endemoninhado passou por uma larga e complicada evolução na tradição oral antes de chegar a Marcos, pelo qual bem podia remontar-se à vida de Jesus, mais concretamente um encontro especial e memorável entre Jesus e o pai da criança.
A incapacidade dos discípulos para exorcizar, a súplica do pai pelo seu filho, a clara descrição da epilepsia, a petição de fé por parte de Jesus antes do exorcismo e, possivelmente, a referência de Jesus à sua própria fé como a fonte dos milagres são atípicos dos relatos de exorcismo evangélico. Na realidade, alguns elementos são únicos. Além disso, em nenhum momento ao longo do texto nos deparamos com qualquer preocupação cristológica específica, surge apenas o título de 'mestre'.

O endemoninhado mudo (e cego?) (Mt 12,22-23a ǁ Lc 11,14)
Em Mt 12,22-23a ǁ Lc 11,14 temos provavelmente o único relato, ainda que breve, de um exorcismo procedente de Q, ou seja, o único próprio e verdadeiro atribuível a esta fonte. Este relato é extremamente lacónico, pelo que só existe para introduzir a versão Q da controvérsia sobre Belzebu. Assim, torna-se pertinente questionarmo-nos se estamos ante um produto puramente literário criado com esse fim pelo autor de Q. Independentemente da resposta, o carácter estranho do relato dá que pensar.
O beneficiário do exorcismo, além de endemoninhado, é mudo ou pelo menos sofre algum transtorno que o impede de falar, além de ser cego na versão de Mateus. Este último detalhe é deveras interessante, já que em toda a tradição evangélica não há um único caso de uma pessoa simultaneamente cega e muda. Se chegarmos à conclusão de que a descrição mateana do endemoninhado corresponde à forma Q original, então a insólita combinação de mudez e cegueira num possesso poderia servir de argumento favorável à historicidade desse exorcismo.
Contudo, não há razão aparente para a aparição deste exorcismo em Lc 11,14. Até porque bastaria fazer uma breve introdução à disputa ocasionada pelo exorcismo de um endemoninhado (sem entrar em detalhes). E, visto a questão da mudez não ter qualquer importância para o prosseguimento do discurso, ajuda-nos a acreditar que, ainda que os dados existentes sejam insuficientes, este exorcismo não será uma mera criação do autor de Q, até porque nada nos aponta nesse sentido.

O mudo possuído por um demónio (Mt 9,32-33)
Grande parte dos comentadores consideram este breve relato como uma criação redaccional de Mateus sobre o modelo da tradição Q utilizado também em Mt 12,22-23. Tal deve-se à complexa e harmoniosa estrutura que Mateus idealizou para o capítulo 8-9 do seu Evangelho, onde alberga um ciclo de 9 relatos de milagres. Aí o evangelista forma 3 grupos de 3 relatos e insere entre cada grupo uma secção sobre o discipulado. Aparentemente, quando chega ao nono milagre, já havia esgotado a sua provisão de relatos desse género (tomados de Marcos e das tradições Q e M) e supre a carência criando um relato similar ao do exorcismo que no capítulo 12 leva à controvérsia sobre Belzebu. Se tal explicação for correcta, então não fará sentido perguntarmo-nos se este exorcismo conta com alguma base histórica.

A alusão a Maria Madalena (Lc 8,2)
A frase de Lc 8,2-3, um tanto vaga e digressiva, não aclara se, além de Maria Madalena, outras mulheres haviam experimentado exorcismos ou se todas elas foram curadas de enfermidades. Lucas refere que Maria Madalena havia sido liberta de um gravíssimo caso de possessão demoníaca, sublinhando a gravidade com o número 7.
Quanto à sua fiabilidade histórica, parece-nos existir uma nítida probabilidade de ser uma composição do evangelista, pois encontra-se repleta de palavras gregas e de expressões tipicamente lucanas, bem como a concordância com o interesse de Lucas pelas personagens femininas. Já a referência aos 7 demónios parece implicar a existência de um relato mais amplo, a que somente alude. Se admitirmos que a narração do exorcismo é prelucana, então pouco ou nada se poderá adiantar a favor da sua historicidade.
Centrando-nos nos critérios de dificuldade e coerência, os 4 Evangelhos apresentam Maria Madalena como testemunha principal da crucifixão e sepultura de Jesus e também como testemunha principal, ou única do sepulcro vazio. Por isso, parece-nos bastante improvável que a tradição cristã tomasse a iniciativa de criar suspeitas sobre a fiabilidade de uma figura tão importante descrevendo-a como uma antiga endemoninhada.

A mulher sirofenícia (Mc 7,24-30 ǁ Mt 15,21-28)
Esta narração tem vários pontos em comum com outros relatos de milagres dos Evangelhos. Enquanto refere um exorcismo efectuado a uma pessoa pagã em território não judeu, recorda o de Mc 5,1-20. Contudo, ao contrário deste, carece de quase todos os motivos presentes num típico relato de exorcismo. O seu conteúdo é uma 'esgrima dialética' entre Jesus e a mulher sirofenícia, que pede a cura da sua filha endemoninhada, à semelhança do Pai da criança endemoninhada (Mc 9). Contudo, em Mc 9 o rapaz tem um verdadeiro encontro com Jesus, enquanto que em Mc 7 tal não chega a acontecer.
Por um lado, o relato sobre a mulher sirofenícia assemelha-se ao do centurião que, sendo gentio, dirige-se a um judeu, pedindo-lhe um milagre que é realizado à distância. Por outro lado, é semelhante ao do oficial real que, não desanimando perante uma atitude menos favorável de Jesus, não desanima e persiste em seus rogos até receber a confirmação de que o seu filho foi curado.
O relato sobre a mulher sirofenícia encaixa bem na estrutura redaccional de Marcos, visto que está precedido pela disputa de Mc 7,1-23 sobre o puro e o impuro. Além disso, Jesus não empreendeu durante o seu ministério qualquer missão programática entre os gentios, somente em alguns casos excepcionais a futura oferta de salvação dirigida a eles se encontra prefigurada mediante os símbolos da cura e do exorcismo. Por isso, muito dificilmente se poderá afirmar que o relato sobre a mulher sirofenícia é histórico no que é substancial.
A dúvida acerca da sua historicidade torna-se, contudo, mais evidente do que no caso do geraseno endemoninhado ou a cura do criado do centurião, pois apesar de estes poderem ser considerados como missão pós pascal entre os gentios, porém o tema claramente cristão da missão dirigida "primeiro aos judeus e depois aos gentios" não se encontra de uma maneira tão ostensível no núcleos desses relatos nem está tão claramente expresso nas suas formas primitivas como no relato da mulher sirofenícia.
Mesmo assim, não é possível negar de um modo categórico a historicidade de Mc 7,24-30 Mt 15,21-28, visto que se podem elaborar alguns argumentos favoráveis a ela. O relato contém vários detalhes insólitos que podem ter contribuído a que o sucesso original tivesse ficado gravado na memória dos discípulos. Além disso, em nenhum outro lugar Jesus fala com uma linguagem tão áspera, inclusivamente insultante (o uso do termo 'cães' para definir os gentios), a alguém que recorre a ele de boa-fé. Seria de esperar que Lucas omitisse esse relato.
Contudo, visto o relato sobre a mulher sirofenícia se encontrar tão carregado de teologia missionária e preocupações cristãs, tal leva-nos a crer que a sua criação por cristãos da primeira geração seja a conclusão mais plausível.

Vistos os 7 casos de exorcismos e a escassez de dados sobre eles, devemos admitir a debilidade que, como consequência, foram os nossos juízos. Contudo, se temos que dizer se há algum núcleo histórico subjacente aos relatos de exorcismo contidos nas secções narrativas do Evangelho, vemos como sendo as mais verosímeis as seguintes apreciações:
O relato sobre o rapaz possuído e a breve referência ao exorcismo praticado a Maria Madalena remontam provavelmente a acontecimentos históricos do ministério de Jesus. O mesmo sucede com o relato do geraseno, ainda que, neste caso, os argumentos não sejam convincentes.
Na sua presente forma, o exorcismo do endemoninhado em Cafarnaum pode ser uma criação cristã, ainda que provavelmente reflita o que Jesus fazia em Cafarnaum durante o seu ministério.
O exorcismo de um mudo é difícil de julgar. Poderia estar relacionado com algum acontecimento histórico, porém, poderia também tratar-se de uma criação literária utilizada para introduzir a controvérsia sobre Belzebu.
Em contrapartida, parece muito possível que o relato sobre o endemoninhado mudo foi idealizado por Mateus para completar os 9 relatos de milagres exigidos para o seu esquema.
O relato da mulher sirofenícia é provavelmente uma criação cristã destinada a ilustrar a teologia missionária da Igreja primitiva.

Poderíamos perguntar-nos se os exorcismos realizados por Jesus foram realmente possessões diabólicas ou se foram curas milagrosas de determinadas enfermidades. Seria então necessário conjecturar sobre o influxo positivo que a carismática personalidade de Jesus exerceu sobre aquelas pessoas perturbadas. Porém, estaríamos a entrar já num terreno onde não há qualquer modo de comprovar as hipóteses. Do mesmo modo, afirmar se em alguns desses exorcismos ocorreu um milagre ou não, vai mais além daquilo que é possível julgar a partir de bases puramente históricas.


Trabalho realizado por:
Miguel Pinto Grilo
Nº 311507012


MEIER, John P. – Un judío marginal: nueva vision del Jesús histórico. Tomo II/2: Los milagros. Navarra: Verbo Divino, 2000, pp. 745-780. Nota: Neste trabalho adoptámos a opinião do autor como nossa, pelo que, sempre que referimos 'nós', é também ao autor que nos estamos a referir.
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