Os Filhos da Serpente: Rito, Mito e Subsistência nos Cacicados da Ilha de Marajó

June 23, 2017 | Autor: Denise Schaan | Categoria: Archaeology, Marajó Island, Complex Chiefdoms
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International Journal of South American Archaeology

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Os Filhos da Serpente: Rito, Mito e Subsistência nos Cacicados da Ilha de Marajó Denise Schaan Universidade Federal do Pará, Brasil Email address: [email protected]

Inter. J. South American Archaeol. 1: 50-56 (2007) ID: ijsa00006

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Inter. J. South American Archaeol. 1: 50-56 (2007)

Os Filhos da Serpente: Rito, Mito e Subsistência nos Cacicados da Ilha de Marajó Denise Schaan Universidade Federal do Pará, Brasil Email address: [email protected] Available online 30 September 2007

Abstract By the 5th century, an economy based on intensive gathering of aquatic resources emerges on Marajó Island. This economy empowered kinship groups, who controlled, in their communities, access to basic resources. This situation was justified by a ritualistic and religious system that sought support on true and mythical ancestors. The study of decorative styles and ceramic iconography has allowed defining boundaries between social groups and better understand social organization and relations between chiefdoms up to the 14th century. © 2007 Archaeodiversity Research Group & Syllaba Press. All rights reserved. Keywords: Chiefdom; Amazonian Archaeology; Aquatic Resources; Marajo Island; Symbolim; Ceramics. Resumo A partir do século V, surge na ilha de Marajó uma economia baseada na coleta intensiva de recursos aquáticos, coordenada por famílias que rapidamente tornaram-se as detentoras do poder em suas comunidades, controlando o acesso a esses recursos. Essa situação era justificada por meio de um sistema ritualístico-religioso que buscava legitimação no parentesco com os antepassados reais e míticos. O estudo dos estilos decorativos e da iconografia da cerâmica tem permitido perceber os limites entre os diversos grupos sociais na ilha e entender melhor a organização social e as relações entre os diversos cacicados que perduraram até o século XIV. © 2007 Archaeodiversity Research Group & Syllaba Press. All rights reserved. Palavras Chaves: Cacicado; Arqueologia Amazônica; Recursos Aquáticos; Ilha de Marajó; Simbolismo; Cerâmica.

Introdução A arqueologia da ilha de Marajó sempre foi importante para a arqueologia da Amazônia de modo geral. Foi lá que surgiram as primeiras sociedades complexas, a partir de 400 A.D. Lá se encontrou também a maior seqüência cultural já definida, que se inicia há 3500 anos, com grupos identificados com uma cerâmica que foi caracterizada como pertencente à Tradição Hachurado-Zonada (fase Ananatuba). A partir do trabalho de Meggers e Evans (1957) no arquipélago de Marajó e no Amapá, no final da década de 1940, estabeleceu-se um primeiro contato entre pesquisadores americanos e brasileiros, que resultou ao longo dos anos em extensos programas de reconhecimento de sítios arqueológicos no Brasil como um todo e, mais tarde, especificamente na Amazônia. A estratégia dos programas PRONAPA (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas) e PRONAPABA (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas na Bacia Amazônica) consistia em identificar unidades culturais e mapeá-las no tempo e

no espaço. Apesar dos óbvios avanços que a adoção de uma metodologia comum de investigação resultou para o conhecimento da ocupação pré-colonial no Brasil, o conceito de “fase” arqueológica como foi usado deriva de uma concepção de cultura como um conjunto coerente e homogêneo de comportamentos, práticas e cosmologias que se estendem a todos os indivíduos que fazem parte de determinado grupo social. Dentro dessa perspectiva, o conjunto de objetos produzidos e utilizados pelos membros do grupo é entendido como os representando no registro arqueológico. Nesse trabalho, procuramos nos afastar de um conceito normativo de cultura e demonstrar de que maneira alguns aspectos do estilo e da iconografia da cerâmica marajoara informam sobre organização social e ajudam a entender a relação entre os modos de subsistência e vida cerimonial das populações que viveram na ilha de Marajó entre os séculos V e XIV de nossa era. Adota-se aqui uma abordagem de estilo que se pauta por um conceito da cultura como um conjunto dinâmico e em contínua transformação de símbolos compartilhados por um dado grupo social. A

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cultura material, de acordo com essa visão, não “representa” a cultura, mas é utilizada de maneira ativa nas negociações de significado que têm lugar em contextos sociais, políticos e econômicos, que por sua vez podem e devem ser avaliados de maneira independente das representações materiais. O Povo as águas: emergência de complexidade social A ilha de Marajó, localizada na foz do rio Amazonas, possui uma área de quase 50 mil quilômetros quadrados. As pesquisas arqueológicas indicam que a ilha esteve habitada há, pelo menos, 3500 anos. Durante os primeiros 1500 anos, o registro arqueológico indica a existência de pequenas vilas, de, no máximo, 150m², ocupando os diversos ecossistemas: campos baixos e altos, floresta inundada e de terra firme, galerias de floresta ao longo dos rios e zona intermediária entre campo e floresta. Aquelas populações viviam da caça, pesca, coleta e provavelmente da cultura da mandioca. A informação que se possui desses primeiros povos vem principalmente da cerâmica, bastante duradouras e em geral bem acabadas, encontradas na forma de vasilhas de paredes grossas e pesadas (devido ao antiplástico de cacos moídos), mas pouco expressiva em termos decorativos1. A proporção de fragmentos decorados encontrados nos sítios é pequena, o que indica o uso meramente doméstico e o reduzido caráter cerimonial e festivo dessa cultura material. Por volta do ano 400 d.C.2, começam a surgir sociedades organizadas de forma regional. Aqueles povos construíram barragens represando rios e ergueram imensas plataformas de terra3 sobre as quais moravam e realizam suas festas e rituais (Schaan 2004). Nos mesmos locais são sepultados os mortos, em cerimônias que envolvem muita pompa e demandam a produção de uma grande gama de objetos cerimoniais com alto conteúdo simbólico. Durante os 1500 anos que precederam a emergência de sociedades complexas, os “povos da floresta tropical” (Meggers & Evans 1957) sofreram com o clima implacável da ilha. Recebendo chuvas torrenciais e inundações devastadoras de fevereiro a maio, e assistindo à terra secar sob o tórrido sol do Equador, tornando-se ressequida e estéril, de agosto a dezembro, os povos nativos aprenderam sobre as dinâmicas ecológicas da ilha. Seu maior problema – a água que tudo inunda e depois desaparece – era, também seu mais precioso bem. Um bem e um recurso a ser aproveitado, manejado e controlado. Juntamente com a subida e descida das águas, vinham respectivamente a falta e a abundância da vida aquática. Espalhados pelos campos inundados durante o inverno, os peixes reproduziam-se às centenas de milhares, buscando voltar aos rios com a descida das águas. No entanto, no retorno aos rios, milhares de peixes acabavam ficando presos nas águas rasas das cabeceiras dos igarapés e lagos secos durante o verão.

Observando essa dinâmica, as populações nativas passaram a manipular conscientemente a ecologia, construindo lagos e barragens. A pesca intensiva nas cabeceiras dos rios e a possibilidade de controlar a oferta de água acabaram por determinar que aqueles fossem os melhores lugares para erguerem moradias permanentes. Em poucas décadas, sistemas de controle hidráulico disseminaram-se pela ilha, reproduzindo técnicas de manejo onde quer que as condições ecológicas fossem favoráveis. Nesses locais, a implantação de lagos e barragens pode ter emergido inicialmente através da cooperação entre famílias (ver modelo de Stanish 2004), mas parece que a partir de um certo momento o acesso aos recursos passou a ser controlado por grupos restritos de pessoas que justificavam sua posição dominante com sua relação com antepassados reais e míticos. Sugiram assim os diversos “cacicados” da ilha de Marajó, que ocuparam por cerca de 900 anos as áreas sazonalmente inundáveis dos campos. A imprevisibilidade da extensão dos invernos e dos verões, a dependência da fauna aquática, e os conflitos que provavelmente surgiram em torno do acesso à tão abundante, mas circunscrito recurso4, demandaram uma maior dependência da boa vontade dos espíritos protetores, e uma dependência do diálogo com o sobrenatural, mediado por chefes e pajés. Na cerâmica -em sua forma, usos e iconografiapercebe-se o enorme dispêndio de tempo dedicado à performance ritual e à produção dos objetos e cenários que a compunham. Apesar de a cerâmica não ser certamente o único suporte material sobre o qual a vida simbólica se expressava, nossa análise é limitada a ela, por sua durabilidade na floresta tropical. O povo das águas, que havia aprendido a controlar tão necessário e inconstante recurso, elegeu, não por acaso, como seus símbolos mais importantes os animais aquáticos e aqueles com uma relação estreita com a subida e descida das águas. Tais animais -a cobra, o jacaré, a tartaruga e o caranguejosão representados de maneira recorrente na cerâmica, como veremos mais adiante. Venerando os ancestrais As plataformas de terra (ou tesos) construídos pelos antigos marajoras são encontradas agrupadas nas cabeceiras dos rios que drenam os campos alagáveis da ilha. Em cada grupo de tesos existem alguns que contém sepultamentos e abundantes fragmentos de cerâmica decorada -partes de vasilhas e objetos rituais utilizados em festas-. No grupo de 34 tesos localizados ao longo do rio Camutins, encontramos seis desses tesos, que entendemos terem sido ocupados pela elite (Figura 2) (Roosevelt 1991, Schaan 2004)5. Os demais tesos são menores em volume e neles praticamente não se encontra cerâmica decorada; por esta razão acredita-se que eram habitados por pessoas comuns. Nos tesos da elite encontram-se estruturas domésticas e funerárias. O

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estudo das estruturas funerárias mostrou que as urnas eram colocadas dentro de uma casa ou templo. Somente o bojo das urnas eram enterradas no interior da moradia de forma que sua boca, fechada por uma tigela ou prato invertido, ficasse na altura da superfície. Dessa forma havia a possiilidade de contato constante com os restos mortais dos ancestrais, o que nos sugere a existência de rituais periódicos durante os quais retiravam e limpavam os ossos para depois recolocá-los na urna (ver MoralesChocano 2000). Junto às urnas, encontramos fogões de argila, e, junto à boca das urnas, havia pequenas tigelas decoradas que devem ter contido oferendas, provavelmente alimentos. Estas práticas indicam uma relação muito próxima com os antepassados e uma preocupação em reforçar os laços entre os antepassados e os locais de moradia (McAnany 1995). A iconografia das urnas funerárias é bastante variada, e, como no restante da cerâmica, são comuns as representações de humanos e animais. Há urnas dos seguintes estilos, quanto à figura representada: (1) urnas antropomorfas, nas quais uma face humana está representada sobre o pescoço ou parte superior da urna; enquanto que braços, ventre e pernas estão representados sobre o bojo do vaso; (2) com olhos e bocas humanos, e partes de corpos de animais representados de maneira naturalista ou estilizada; (3) com predominância de motivos estilizados de animais. As urnas diferenciam-se também pela técnica decorativa empregada em (1) policrômicas, em que os motivos decorativos em preto e vermelho são pintados sobre engobo branco; (2) bicrômicas e em negativo em que motivos decorativos em vermelho são pintados sobre o engobo branco, mas de maneira que o motivo decorativo aparece representado em branco sobre o fundo vermelho; (3) com pintura policrômica ou bicrômica ocorrendo concomitantemente com baixo-relevos (excisões) e incisões e duplo engobo; (4) com motivos esculpidos em baixo-relevo; (5) com motivos decorativos são desenhados por meio de incisões. Nessas duas últimas modalidades há variações em cores de engobo; (6) não decoradas, ou apenas engobadas de vermelho. As variações técnicas decorativas são dez, pelo menos, e referem-se também a uma distribuição geográfica dentro do domínio da cultura marajoara. Apesar de todas estas técnicas aparecerem praticamente em todos os sítios, sua freqüência relativa permite levantar a hipótese de que haveria diversos grupos sociais, que usavam o estilo da cultura material como forma de diferenciação social. Por exemplo, urnas antopomorfas incisas (tipo Pacoval Inciso, definido por Meggers e Evans 1957) jamais foram encontradas nos sítios do rio Camutins, assim como urnas antropomorfas policrômicas (tipo Joanes Pintado, definido por Meggers e Evans 1957) dificilmente são encontradas em torno do lago Arari (Figura 1). Essas diferenças, ou sub-estilos, tem sido interpretadas de forma diferente pelos estudiosos da arqueologia marajoara. Meggers e Evans (1957), por

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exemplo, assim como Magalis (1975) entenderam que as variações estilísticas tinham sentido cronológico. Roosevelt, por outro lado, propôs que representariam tanto diferenças cronológicas como geográficas, propondo dividir a fase marajoara em sub-fases, seguindo estas tendências estilísticas. As poucas datações que se possui, no entanto, não comprovam nenhuma dessas hipóteses.

1-a

1-b

Figura 1. Urnas funerárias provenientes do pacoval do arari (1-a) e rio camutins (1-b).

Escavações e estudos realizados no grupo principal de tesos da elite do baixo rio Camutins (Figura 2), permitiram inferir alguns aspectos da organização social. Na escavação de uma área de sepultamentos no teso Belém, o segundo em tamanho, encontramos a predominância de um estilo decorativo conjugada a uma iconografia que entendemos ter sido utilizada por uma linhagem ou grupo social. É o estilo da pintura negativa vermelha sobre branco e uma iconografia que representa uma face humana estilizada e sorridente sobre o bojo, acima da qual há representações estilizadas de serpentes (Figura 3). No teso Belém (M-17) urnas deste tipo foram

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Figura 2. Distribuição de tesos ao longo do rio Camutins.

encontradas em três níveis, mas a maioria delas provém de um mesmo nível estratigráfico, mostrando sua contemporaneidade e o domínio temporal de um determinado grupo social. O mesmo tipo de urna funerária foi encontrado no teso Camutinzinho (M16), escavado pelo proprietário da fazenda onde o sítio se localiza, que revelou ter encontrado seis urnas como estas agrupadas, posicionadas em alturas ligeiramente diversas, formando uma espiral. Outro exemplar deste tipo de urna foi escavado por Meggers e Evans (1957) no teso Camutins (M-1), o maior do grupo. O conjunto dessas urnas no teso Belém está posicionado cronologicamente (pela posição esratigráfica com relação a outras estruturas datadas) entre 700 e 900 d.C. (ver Schaan 2004). De um período posterior, nesse mesmo sítio (entre 900 e 1000 d.C.), são as urnas antropomorfas femininas que representam corujas e aparecem também em outros sítios do rio Anajás (Figura 1, urna à direita). É possível que esse tipo de urna fosse utilizado por outra linhagem que predominava neste e outros sítios do rio Anajás. A coruja, para os Tukano, é um ser feminino associado com noite e a morte, sendo a guardiã de cemitérios (Reichel-Dolmatoff 1971:102, 209). A coruja tem o hábito de alimentarse de roedores, engolindo-os por inteiro e depois expelindo sua pele e ossos como pelotas. Da mesma forma, a urna-coruja recebe em seu interior apenas os ossos, na cerimônia de sepultamento secundário, quando esses que seriam a morada da alma já foram libertados da carne e pintados de vermelho. Pode-se dizer então que os ossos voltam para dentro da mãecoruja que os expeliu, em sua morada final dentro da urna. Por entendermos que deve ter havido uma correspondência entre a identidade do indivíduo sepultado e o estilo decorativo/iconografia da urna, as urnas funerárias servem para mapear as diversas linhagens que dominavam os cacicados na ilha de Marajó. Os filhos da serpente

Figura 3. Urnas bicrômicas (vermelho sobre branco) escavadas no teso Belém (M-17, Rio Camutins).

Serpentes são representadas de diversas formas na iconografia marajoara. Aparecem de forma naturalista ou estilizada; com cabeças triangulares (como a da jararaca - Bothrops atrox) ou apenas pela representação de sua pele desenhada com triângulos e losangos; aparecem ainda como animais de duas cabeças ou como espirais que se opõem (Figura 4). Sua abundância e recorrência sobre todos os tipos de objetos de cerâmica indicam sua enorme importância dentro do imaginário daquelas populações. Geralmente relacionada à água, peixes, inundações e princípio feminino na cosmologia amazônica, a serpente pode ter sido para eles a progenitora dos peixes ou mestre dos animais, como na cosmologia tukano; ou quem sabe a grande cobra canoa que os trouxe ao mundo e os dispôs hierarquicamente ao longo da margem dos rios (Chernela 1997, Reichel-

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Conclusão

Figura 4. Exemplos de representações de serpentes na cerâmica marajoara: cerâmica da Coleção I.C. Banco Santos, fotos Denise Andrade (4-a, 4-b, 4-c); ilustrações grafismos Marajoara (4-d); ilustração de Tom Wildi (4-e).

Dolmatoff 1971). A pele da serpente é representada sobre uma banda junto à borda de tigelas, pratos, e em algumas urnas funerárias; como uma segunda banda nas tangas femininas; ou ainda sobre os braços de algumas urnas femininas. Serpentes enroladas estão representadas sobre a superfície de vasos, tigelas e pratos; e sobre o ventre de estatuetas femininas. Serpentes de dupla cabeça aparecem sobre a borda de vasilhas ou bojo de vasos. Serpentes naturalistas são vistas sobre corpo de vasos, e sobre apêndices de vasos que também representam cabeças de tartarugas. Como explicar a recorrência das representações desse ser tão poderoso? Seria para aplacar sua ira, pedir sua proteção, tornar sempre presente sua existência, registrar sua ubiqüidade? De acordo com a mitologia tukano, os primeiros humanos a povoarem a terra vieram juntamente com o herói criador, Pamurí-mahsë, (mandado pelo criador sol) no interior de uma cobra-canoa (Pamurí-gahsíru), cercada por peixes, com caranguejos presos em sua cauda. Em uma variante do mito, a cobra-canoa desembarca seus ocupantes no alto, médio e baixo curso do rio de acordo com sua posição social, ficando a elite no baixo curso do rio (Chernela 1997). Em outra variante, os humanos desembarcam mesmo sem ordem do herói criador que queria levá-los todos às cabeceiras do rio. Mesmo assim, ela lhes deu objetos (arco e flecha, ralador de mandioca, cestos, linha de pescar, etc.) que determinariam daí para diante as atividades a serem desempenhadas por cada grupo (Reichel-Dolmatoff 1971:25-27).

As cerâmicas amazônicas mais antigas, tais como a da fase Ananatuba de Marajó (3.500 anos) são cerâmicas predominantemente utilitárias, cuja decoração consiste em desenhos simples e repetitivos, a maioria das vezes em bandas junto à borda do vasilhame. São cerâmicas com distribuição restrita, que foram interpretadas como representando populações numericamente pequenas, com pouca interação cultural umas com as outras. A definição de tipos, dentro da perspectiva histórico-cultural, partia do princípio que a decoração das vasilhas seguia tradições culturais passadas de mãe para filha e que os conjuntos cerâmicos representavam grupos étnicos distintos, cujas regras de parentesco eram baseadas na matrilocalidade. A presença de tipos diferentes de vasilhas em um mesmo sítio era interpretada como intercâmbio, difusão ou migração. Dentro da ilha de Marajó, as diversas “culturas” assim definidas mantinham relações muito estreitas umas com as outras, já que percebe-se semelhanças de tipos decorativos nas diversas “fases”. Meggers e Evans (1957) interpretaram a intrusão de cerâmica de outra fase em um dado sítio arqueológico como “invasão” de uma aldeia por outro grupo social, que trazia consigo um estilo diferente de fazer cerâmica. As primeiras ocupações da ilha por parte dessas sociedades de reduzida demografia tiveram seus limites definidos principalmente através da cerâmica. Se aceitarmos que os estilos assim definidos (fases Ananatuba, Mangueiras, Formiga e Acauã) representam realmente maneiras suficientemente distintas de fazer cerâmica que permitam isolar seus produtores como grupos sociais distintos, o papel político desses estilos na cerâmica parece ter sido o de indicar uma hegemonia de representações simbólicas dentro do grupo, em contraste com outros grupos que se expressavam de forma diferente. Ou seja, o estilo artístico neste caso indicava uma homogeneidade em função da diferença com aqueles outros grupos que não compartilhavam do mesmo estilo. Essa decoração na cerâmica pode ter tido a função de marcar limites e denotar a oposição básica na qual a identidade social dessas comunidades se baseava – o grupo a que pertencia e “os outros”. Entretanto, a convivência observada entre as “fases cerâmicas” dentro de um mesmo espaço geográfico (no mais das vezes o mesmo sítio arqueológico) permitiria ainda vislumbrar na convivência desses primeiros estilos a pluralidade estilística que é tão marcante na fase Marajoara. Devemos lembrar aqui que a fase marajoara não foi definida (como as anteriores) primariamente por um estilo cerâmico, mas principalmente por um conjunto de características culturais: construção de tesos, práticas funerárias, obtenção de objetos líticos por meio de trocas, e produção de cerâmica cerimonial. Teriam as fases anterior sinalizado a pluralidade étnica que parece ter sido a tônica durante a fase Marajoara (Schaan 1999)?

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A abordagem normativa de cultura não deixa espaço para a noção de conflito social que, no entanto, esteve presente desde o início dos tempos. A existência de conflito parece ser mais inegável quanto mais complexas e populosas tornam-se as sociedades. Os estilos são de fato demarcadores éticos e êmicos de limites (que não necessaiamente convergem em uma mesma formulação), mas qual o significado destes limites? Como são estes limites manipulados pelos atores sociais? Com o surgimento dos cacicados amazônicos, estilos estéticos similares passam a ser identificados sobre grandes áreas geográficas. Esses estilos significam o compartilhamento de significados, mas avaliações independentes de outros aspectos do registro arqueológico são necessárias para inferir se estes estilos sinalizam realmente limites culturais ou sociais. Segundo Davis (1990:20) a presença de uma relação de similaridade pode ser evidência de uma relação histórica (a ser provada independentemente), mas a ausência de relação de similaridade não é evidëncia da falta de relação histórica. Os estilos cerâmicos amazônicos sofrem uma transformação significativa com o advento das sociedades regionais, como conseqüência de (e interferindo de maneira ativa em) processos econômicos e políticos mais gerais. Ao instalarem-se novas ordens econômicas e novas maneiras de organização política e administrativa das sociedades amazônicas, a arte se regionaliza e assume um caráter quase sagrado, usado pelas novas elites como forma de legitimar seu poder. No desenvolvimento de ideologias religiosas -ou melhor- na apropriação de ideologias tradicionais por grupos que assumem papel de liderança em nível regional, os estilos artísticos surgem como veículos privilegiados para a expansão e consolidação das novas idéias. O que pode ser mais legítimo do que a tradição? Ao reinventar e reforçar a tradição, as novas ideologias potencializam aqueles artefatos étnicos cuja presença imponente não deixa dúvidas quanto ao seu poder e legitimidade. Por exemplo, os restos mortais dos membros das famílias importantes são sepultados em urnas de cerâmica de decoração requintada e muitas vezes única. A repetitiva e monótona arte tradicional dá lugar a uma estética que é ao mesmo tempo localizada e regional. Localizada porque se baseia naqueles símbolos que comunicam sobre a identidade social local, como na arte tradicional amazônica. Regional porque há também a necessidade de assemelhar-se às elites regionais, o que é evidente pela adoção de estilos semelhantes de sepultamentos em urnas, uso de estatuetas femininas, bens de prestígio, adoção da policromia. Pode-se dizer que nesse momento as elites locais buscam alinhar-se tanto com as populações de suas próprias aldeias quanto com as demais elites regionais – buscando a identidade da linhagem e a identidade de casta. Ambas fornecem a base para uma economia política que se prolifera ao

longo da várzea amazônica e que como tal é encontrada pelos espanhóis no século XVI. Percebe-se que definir limites estéticos em sociedades complexas torna-se uma empreitada igualmente complexa e que vários níveis de análise devem ser considerados. Sob o ponto de vista mais geral, pan-amazônico, deve-se considerar que as semelhanças estilísticas e estéticas entre as sociedades da várzea e estuário mais provavelmente refletem redes de aliança regional do que uma uniformidade sociopolítica. Por exemplo, pode-se perguntar se as formas organizativas dos cacicados amazônicos – ainda pouco conhecidas – seriam tão semelhantes quanto o costume de dispor os restos mortais da elite em urnas funerárias antropomorfas, uma tradição que se percebe do alto Amazonas às ilhas do estuário. Por que algumas sociedades enfatizariam a iconografia funerária feminina (como a Marajoara), enquanto outras dariam igual ênfase aos dois gêneros? Haveria algo de atípico no processo de emergência de complexidade social em Marajó (sua antiguidade e excessiva ênfase no feminino) que não ocorre em outros locais da Amazônia? Qual seria exatamente a influência que a economia política e estética Marajoara teriam tido na expansão de novas formas de organização sociopolítica? O que afinal podemos concluir da existência de uma estética amazônica que, claramente, difere da estética de outras regiões da América?. A dificuldade dos autores de apontar exatamente no que se constituiu o modo especificamente amazônico de organização regional não pode simplesmente ser explicada pela falta de pesquisas na área ou pela falta dos indicadores mais óbvios de complexidade - tais como monumentos de pedra e o uso de metais. É possível que o poder regional das linhagens amazônicas tenha se baseado na sua habilidade de controlar recursos naturais por meio de práticas que se entendiam xamanísticas e que tenham sido não tanto as formas organizativas, mas sobretudo os mecanismos ideológicos de coerção - o domínio sobre o religioso, o ritual - que tenham produzido a necessária coesão regional (ver Heckenberger 2005). Nesse sentido, o que pode ter-se expandido não seria tão somente uma forma de organização sociopolítica, mas principalmente a idéia de que o econômico - a prosperidade - adviria principalmente do controle sobre o sobrenatural. Assim sendo, as elites teriam se apropriado de uma estética que era incialmente étnica para em seguida transformá-la em veículo de reivindicação de suas linhagens, que se pretendiam herdeiras de um modo de vida e formas organizativas que se tinham provado eficientes. A recorrente representação de serpentes e seres aquáticos na iconografia marajoara deixa poucas dúvidas sobre sua relação com os meios de subsistência - a pesca intensiva através do controle hidráulico. A ênfase na serpente e em tantos outros animais verificada na iconografia dos cacicados da várzea também aponta para a existência de cosmologias mais relacionadas com a pesca e a caça e

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menos com a agricultura. Como já afirmou Viveiros de Castro (1996), há algo de estranho na imagem, defendida pela maioria dos estudiosos, de que os cacicados da várzea teriam emergido com base em economias de agricultura intensiva. A presença constante de serpentes na iconografia amazônica não pode ser interpretada apenas como uma materialização de mitos e cosmologias, mas deve ser entendida também pelo papel político que tais representações possuíam no contexto dos usos dos objetos produzidos. Nesse sentido, a relação entre serpente, peixes e água pode ser entendida pelo papel preponderante que os recursos aquáticos tiveram para o desenvolvimento social das sociedades amazônicas, especialmente para o desenvolvimento das sociedades regionais - ou cacicados. Agradecimentos Uma versão preliminar desse paper foi apresentada no IV Congreso de Arqueología en Colombia, entre 5 e 7 de dezembro de 2006, na Universidad Tecnológica de Pereira. Agradeço à Sociedad Colombiana de Arqueología pela oportunidade de ter participado do congresso e especialmente a Rafael Gassón e Juan Carlos Vargas pelo convite para participar do Simpósio “Lo Ideal y lo Material em la Arqueologia Suamericana” por eles organizado e pela maneira carinhosa com que me receberam em Pereira.

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Notas 1. Meggers e Evans (1957) foram os responsáveis pela caracterização cultural dessas primeiras ocupações, a que denominaram fases Ananatuba, Mangueiras, Formiga e Acauã, através da tipologia da cerâmica. Estas seriam “fases da floresta tropical”, como descritas por Lowie (Steward 1948) no Handbook of South American Indians. 2. Adota-se aqui a cronologia de começo e final da fase Marajoara (400 a 1300 AD) como definida por Roosevelt (1991). 3. Os chamados mounds (em inglês) ou “tesos” (denominação local). 4. Para Carneiro, os conflitos por terra em áreas circunscritas teriam sido fundamentais para a emergência de lideranças de guerra e a conseqüente transformação sociopolítica das sociedades amazônicas (Carneiro 1970, 1998). 5. Meggers e Evans (1957) inicialmente classificaram os mounds em tesos-habitação e tesos-cemitério, em função da existência de cerâmica não decorada os primeiros e de sepultamentos em urnas nos segundos. Roosevelt (1991) em suas pesquisas em Teso dos Bichos e Guajará, no entanto, identificou também estruturas domésticas nestes que seriam tesos-cemitérios, chamando-os de tesos da elite, nomenclatura essa que passamos também a adotar (Schaan 2004).

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