Os filmes de Man Ray e a constituição de \"uma sinfonia visual\"

July 6, 2017 | Autor: Daniel Veloso | Categoria: Visual Studies, Film Studies, Film Theory, Film, Moving images
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Os filmes de Man Ray e a constituição de uma “sinfonia visual”: Análise de Le retour à la raison e Emak Bakia

Daniel Alexandre da Costa Veloso

Trabalho de investigação do Seminário de Fotografia e Cinema Mestrado em Cinema e Televisão Ano Lectivo 2014/2015

Docente: Margarida Medeiros

Junho de 2015

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A quantificação do trabalho de um realizador de cinema não serve de critério para avaliar a pertinência das suas propostas artísticas. É certo que a extensão de uma filmografia pode representar a maturação de um pensamento conceptual, a evolução de uma orientação estética ou a definição de um estilo próprio. Mas pode também não incluir nenhum destes elementos ou significar um retrocesso face às expectativas criadas em torno de uma primeira obra. As possibilidades são, de facto, inúmeras. No entanto, inicio com esta afirmação por considerar o realizador que me proponho a trabalhar um incontornável exemplo da irrelevância da quantificação. Man Ray realizou cerca de uma dezena de filmes, todos eles curtas-metragens, mas os seus contributos são, ainda assim, do meu ponto de vista, fundamentais para compreender a centralidade da imagem em movimento e as potencialidades libertadoras de um medium (à epoca) jovem, outrora alvo de desconfiança por parte dos seus próprios percursores – recordemos a célebre frase “Le cinéma est un invention sans avenir”, atribuída aos Irmãos Lumière, inventores do cinematógrafo - . Partindo da análise de Le retour à la raison e Emak Bakia, a tese que pretendo discutir ganha forma na ideia do cinema enquanto “sinfonia visual”. Tal tese será desenvolvida à luz das noções de preponderância temporal e rítmica associadas aos contributos teóricos da Escola Francesa, sobretudo aos da cineasta e teórica francesa Germaine Dulac. Ao mesmo tempo, pretendo discutir esta tese a partir dos conceitos de “cineolho” e “intervalo cinematográfico”, ligados ao pensamento do cineasta soviético Dziga Vertov. De que modo é explorado o ritmo nos filmes de Man Ray? Em que medida a alternância das imagens e os recorrentes jogos de luzes propostos pelo norte-americano afectam a sensibilidade do espectador? Qual a influência das técnicas fotográficas descobertas por este realizador? Será legítimo afirmar que o caminho encetado por Man Ray conduz a um afastamento das estruturas de percepção e racionalização vigentes? Com esta investigação proponho-me a auxiliar na definição de linhas orientadoras que permitam encontrar respostas para tais (e outras) perguntas. Em primeiro lugar, parece-me relevante convocar André Bazin e algumas das suas reflexões contidas em What Is Cinema? . Por um lado, Bazin discute o modo como, com a fotografia, a intervenção humana passa a ser desnecessária no estabelecimento da relação entre o objecto original e a sua reprodução. «All the arts are based on the 2

presence of man, only photography derives an advantage from his absence. Photography affects us like a phenomenon in nature, like a flower or a snowflake whose vegetable or earthly origins are an inseparable part of their beauty» (Bazin, 1967: 13). Esta ideia é essencial para a contextualização histórica da afirmação do cinema enquanto arte. Tal como a fotografia, o cinema, ao estar dependente da intervenção de uma máquina, foi alvo de uma considerável resistência aquando do seu surgimento, no final do século XIX. Era para muitos difícil conceber uma arte onde, segundo afirmavam os seus delatores, a máquina tudo fazia. Um pintor pinta, recorrendo a uma panóplia de materiais necessários à sua produção artística. O mesmo acontece, por exemplo, com um escultor. Mas, e seguindo esta ordem de ideias, qual seria a função de um realizador? Se a câmara nos apresenta a realidade tal qual ela se nos apresenta quotidianamente, nenhum impulso artístico poderia emanar deste novo dispositivo mecânico. Por intermédio dos seus protagonistas, o cinema foi prontamente capaz de rejeitar esta simplificação. É interessante constatar como, a partir de meados da primeira década do século XX, o paradigma da manipulação ganha força enquanto modo de afirmação artística da sétima arte. A montagem soviética e a escola expressionista alemã são claros exemplos da necessidade de transfiguração sentida pelos cineastas, que assim provavam a validade do nascimento e posterior consolidação da arte cinematográfica. Esta transfiguração é indubitavelmente visível nos filmes de Man Ray: pelo ritmo da montagem, a utilização das luzes ou pela decisão de abdicar de uma linearidade narrativa. Neste sentido, Bazin refere-se também à novidade de uma tensão entre dois elementos que sempre haviam convivido pacificamente. « (...) the conflict between style and likeness is a relatively modern phenomenon of which there is no trace before the invention of the sensitized plate» (Bazin, 1967: 13). Por outro lado, Bazin refere-se às possibilidades criativas da fotografia, ousando afirmar que, nesse âmbito, esta poderá até ultrapassar as outras artes. Neste contexto, refere-se aos propósitos surrealistas concernentes à técnica fotográfica, que podem, em grande medida, ser também aplicados aos objectivos cinematográficos daqueles artistas. «The surrealists had an inkling of this when they looked to the photographic plate to provide them with their monstrosities and for this reason: the surrealist does 3

not consider his aesthetic puropose and the mechanical effect of the image on our imaginations as things apart. For him, the logical distinction between what is imaginary and what is real tends to disappear. Every image is to be seen as an object and every object as an image» (Bazin, 1967: 16). Le retour à la raison, produzido em 1923, é pautado pela utilização de uma técnica fotográfica empreendida por Man Ray que, de certa forma, pode contribuir para esbater as fronteiras entre o real e o imaginado, tal como Bazin enunciava e atribuía aos surrealistas. Os “rayographs”, casualmente descobertos, consistiam em colocar objectos sobre uma folha de papel fotográfico, expondo-os posteriormente à luz durante alguns segundos. Sem recorrer à câmara, Ray viu as formas dos objectos surgirem à sua frente, num processo que logo o fascinou e o conduziu a inclui-lo nos seus filmes. « (...) my curiosity was aroused by the idea of putting into motion some of the results I had obtained in still photography» (Ray, 1963: 259). Em Le retour à la raison constata-se a aplicação prática desta vontade. Numa curta-metragem de cerca de três minutos, vislumbramos o aparecimento de vários “rayographs” animados – como resultado da exposição à película fílmica e à luz - , entre os quais se distingue uma multiplicidade de pregos e um pionés saltitante que se move no plano a uma velocidade alucinante. Ray foi ainda mais longe, ao derramar sal e pimenta sobre algumas das tiras de película – o primeiro plano do filme é fruto dessa experiência - . O artista norte-americano combina tais elementos com o movimento frenético de uma série de formas geométricas, como demonstra, por exemplo, o plano dos círculos. A opção de filmar as formas geométricas recorrendo a close-ups e a movimentos giratórios é, segundo Steven Kovacs, um método para enfatizar a dimensão abstracta daqueles objectos. «In the rotating shots the camera comes so close to the object that the object fills the screen. Thus, Man Ray used the same close-up method in his photography as he did in his first film. The result of such a close study is that the abstract nature of a particular object is highlighted, rather than the object itself. But insofar as it takes up much of the screen, the abstract form constantly wavers between acting as a form and a cinematic ground. In the process of rotation the abstract “ground-form” becomes a dynamic visual experience» (Kovacs, 1980: 122). O dinamismo da experiência visual apontado por Kovacs é, sem margem para dúvidas, 4

um dos efeitos primordiais atingidos por Man Ray em Le retour à la raison e alcançado, por um lado, graças às opções de câmara e, por outro, fruto do seu alucinante ritmo de montagem. Ray parecia ter encontrado um caminho para integrar as suas investidas fotográficas no percurso da imagem em movimento. A influência na componente sensorial deve, neste âmbito, ser convocada como um dos principais logros do norteamericano radicado em Paris. Le retour à la raison, ao abdicar da narratividade, põe a tónica no modo de percepção visual do espectador, na centralidade do olho e das suas potencialidades enquanto órgão da sensação. Ray pretende levar o cinema às raízes de onde aquela arte brotou, raízes essas indissociáveis do poder visual e das possibilidades do movimento. Difícil é assistir ao filme sem sentir que algo em nós se transfigura, ainda que não consigamos racionalizá-lo.

Em As Lições do Cinema, João Mário Grilo cita Germaine Dulac, cujas reflexões se configuram como essenciais para o mapeamento dos contributos cinematográficos de Man Ray. Dulac assinala a relevância das propriedades inerentes à sétima arte, destacando precisamente o movimento e o ritmo – elementos nucleares dos filmes do realizador norte-americano - . « “Jogos de luz, jogos de formas, jogos de perspectivas. Uma emoção intensa produz-se devido à simples visão de uma coisa percebida sensivelmente (...) Quis mostrar que o movimento e as suas combinações podiam criar a emoção sem arranjo de factos, sem peripécias, e quis dizer-vos: preservai o cinema por ele mesmo, pelo movimento sem literatura (...) O filme integral que todos desejamos compor é uma sinfonia visual feita de imagens ritmadas e que só a sensação de um artista é capaz de coordenar e de colocar no ecrã» (Grilo, 2007: 52). Le retour à la raison constitui-se como o primeiro momento de aproximação de Man Ray à “sinfonia visual” enunciada por Germaine Dulac: através da articulação de planos acelerados (e sobrepostos) dos “rayographs” com planos frenéticos de campos de margaridas; do encadeamento de estimulantes jogos de luzes com close-ups de formas geométricas; do movimento da espiral; do balanço ritmado da caixa de ovos que se justapõe ao tronco de Alice Prin – mais conhecida pela sua alcunha, Kiki de Montparnasse –, magnificamente iluminado.

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A peculiar montagem de Le retour à la raison parece-me relacionar-se intimamente com o conceito de intervalo perceptivo desenvolvido por Dziga Vertov - realizador contemporâneo de Ray -, mecanismo reflexivo fundamental da sétima arte. Novamente em As Lições do Cinema, João Mário Grilo refere-se aos pensamentos de Vertov sobre este conceito. « (...) a máquina de imagens é inseparável de um determinado tipo de imagens, de uma enunciação propriamente cinematográfica. E o signo físico deste tipo de enunciados, deste acto de enunciação, é menos a imagem que corre, do que o intervalo que a corta, pensa e reflecte. Esta ideia de intervalo e do fragmento fotogramático que lhe está associado é, evidentemente, a realização de um princípio anatómico de toda a percepção, a figuração do seu princípio genético» (Grilo, 2007: 105). É ainda imprescindível referir o carácter totalmente arbitrário atribuído à produção desta curta-metragem. O norte-americano, parte integrante do núcleo de dadaístas estabelecidos em Paris, aceitou fazer o filme a convite do amigo e correligionário Tristan Tzara, que se preparava para organizar uma sessão artística intitulada “Le Coeur à Barbe”. «Retour à la raison, commissioned by Tzara, expresses through its anarchic arrangement of sequences and strips of Rayographs Tzara’s Dada spirit of spontaneity and chance, which were the Dadaists’ strategies to disrupt logic and rational order» (Kuenzli et all, 1996: 3). A ironia contida no próprio título é ilustrativa do propósito disruptivo de Ray. Em nenhum momento do filme se pretende regressar a uma ordem de razão estabelecida nem tampouco levar o espectador a interpretar as imagens segundo os padrões da lógica convencional. Há uma vontade de subverter o pensamento aristotélico e de alargar os horizontes reflexivos do espectador, libertando-o da máquina narrativa alimentada quotidianamente pela indústria norteamericana. Corria o ano de 1925 quando Man Ray é convidado para realizar outro filme, desta feita financiado por Arthur Wheeler, cliente que havia conhecido ao fotografar a sua esposa. Apesar das resistências iniciais, Ray aceita a proposta e avança com a compra da melhor câmara disponível no mercado. Sem pressão de prazos, Emak Bakia é calmamente rodado no seu estúdio de Paris, em Biarritz e noutras aldeias do País Basco – consta que Emak Bakia seria o nome de uma dessas aldeias e que a expressão 6

basca signfica “Deixa-me em paz” - . A liberdade artística era plena e Man Ray sentiase entusiasmado pela possibilidade de filmar o que mais lhe aprazia. É à luz desta liberdade que devemos ler as opções tomadas pelo fotógrafo na concepção e produção de Emak Bakia. «And I was thrilled, more with the idea of doing what I pleased than with any technical and optical effects I planned to introduce. When I felt I had accumulated enough material for a short film, I’d mount the sequences in some sort of progression, consider the job finished» (Ray, 1963: 296). Preenchido por uma série de temas e motivos dadaístas e surrealistas, o artista norte-americano trabalha novamente as potencialidades do movimento e da luz enquanto constituintes principais da exploração da prática cinematográfica. Se em Le retour à la raison predominam planos fixos de formas geométricas que rodam (e planos giratórios de formas geométricas fixas), em Emak Bakia enfatiza-se a filmagem das luzes e dos seus movimentos. Das luzes desfocadas que giram pelo plano e remetem para a pura abstracção até às luzes localizadas e talvez provenientes de um qualquer carrossel, passando pela luz de uma frase que se precipita rapidamente sobre o céu; vários são os exemplos do protagonismo concedido a este elemento. No livro From Enchantment to Rage: The Story of Surrealist Cinema, Steven Kovacs constata também a reorientação de Ray. «It seems that between the making of his first film and the second Man Ray discovered that film was more than just moving pictures, that although it was able to animate an object, it was above all a medium of light. Thus, he moved from animated photography to the film of light» (Kovacs, 1980: 125).

As formas geométricas não são, todavia, arredadas das escolhas de Man Ray. Há uma sequência onde aquelas se reúnem e onde o realizador utiliza o stop-motion, truque característico de Georges Meliès, transmitindo a sensação de que os objectos entram e saem de campo sem qualquer tipo de influência humana. Assim se configura mais um traço manipulatório do cinema de Ray e se vislumbra o modo como a fotografia é compreendida pelos surrealistas enquanto instrumento de desconstrução do real. A potência do olho é novamente convocada, bem como as sensações despoletadas pela organização das imagens. Em Emak Bakia há até dois momentos onde o olho do realizador se nos apresenta, deixando transparecer a relevância atribuída àquele 7

orgão: o primeiro plano do filme, em que Ray espreita para a câmara e o seu olho surge de lado, virado para baixo; e o plano que antecede a sequência do automóvel desportivo e em que um olho se justapõe ao aparecimento dos faróis do automóvel. Este gesto de demonstração do olho seria repetido de forma muito similar, três anos depois, por Dziga Vertov, no filme The Man with a Movie Camera, sendo aqui convocado por remeter para o conceito de “cine-olho” desenvolvido pelo cineasta soviético. Para Vertov, «o olho da câmara é indefinidamente operacional. Omnipotente, omnipresente e insubmisso, só ele permitirá a urgente multiplicação dos pontos de vista (...)» (Grilo, 2007: 104). Man Ray também parece perspectivar a câmara enquanto instrumento desmitificador, capaz de quebrar as regras, de ultrapassar a percepção sobre o mundo dada pelo olho humano, e certamente que se identificaria com a definição de Vertov: « “Cine-olho”: possibilidade de tornar visível o invisível, de iluminar a escuridão, de desmascarar o que está mascarado, de transformar o que é encenado em não encenado, de fazer da mentira a verdade» (Xavier, 1983: 262). Por outro lado, Emak Bakia integra mais uma vez os “rayographs”, nomeadamente a sequência das partículas de sal e pimenta e a sequência da justaposição dos pregos e do pionés, ambas incluídas em Le retour à la raison. Tal integração é subsidiária da condição plástica dos produtos cinematográficos de Man Ray. Se, numa primeira fase, os surrealistas resistiram às técnicas fotográficas por considerarem que aquelas se limitavam a imitar a realidade, rapidamente mudaram de opinião quando confrontados com as suas potencialidades manipulatórias e plásticas – estas últimas graças à utilização de película - . É por isso que, ao definir como estratégia a colocação de objectos sobre a película fílmica, o norte-americano se aproxima de uma noção bastante cara ao surrealismo: a da plasticidade da fotografia, associada à importância da matéria enquanto ferramenta para a prossecução de objectivos artísticos.

A montagem de Emak Bakia é, tal como em Le retour à la raison, essencial para o estabelecimento de um ritmo – que, nesta segunda curta-metragem, se apresenta menos frenético, embora a intensidade seja igualmente alta – capaz de, por um lado, exponenciar as sensações e, por outro, contribuir para a associação de ideias distintas. 8

É certo que a ausência de narratividade é uma das características centrais dos filmes de Man Ray, mas as relações estabelecidas através da montagem não deixam de imiscuir-se no processo mental do espectador. Um exemplo ilustrativo desta ideia é a sequência do encadeamento do close-up dos pares de pés que saem do automóvel com o plano dos pés da dançarina de charleston. É a montagem que, como defende Vertov, “torna visível o invisível”, ao garantir a existência do intervalo perceptivo e, consequentemente, a significação de relações abstractas. «Os intervalos (passagens de um movimento para outro), e nunca os próprios movimentos, constituem o material (elementos da arte do movimento). São eles (os intervalos) que conduzem a ação para o desdobramento cinético. A organização do movimento é a organização de seus elementos, isto é, dos intervalos na frase. Distingue-se, em cada frase, a ascensão, o ponto culminante e a queda do movimento (que se manifesta nesse ou naquele nível). Uma obra é feita de frases, tanto quanto estas últimas são feitas de intervalos de movimentos» (Xavier, 1983: 250). Nesta sequência é possível identificar os distintos momentos referidos pelo cineasta soviético. O intervalo entre o desaparecimento do último par de pés que desce do automóvel e o surgimento dos pés da dançarina de charleston permite que o espectador estabeleça uma relação abstracta entre as duas imagens, sugerida pelo movimento (e pelo objecto) e não pela articulação de dois elementos narrativos. Tal sequência é portanto, do meu ponto de vista, crucial para a compreensão da noção de tempo de Ray e da importância da montagem em Emak Bakia. Esta noção é reforçada pelo carácter musical da sequência seguinte, conferido pela presença de uma banda e pelo intercalar rítmico dos planos que a constituem. Julgo pertinente, nesta fase, voltar a citar Germaine Dulac – aqui novamente citada por João Mário Grilo – no respeitante à ideia de aproximação rítmica do cinema à música. «Se o movimento considerado como causa de qualquer efeito se denomina acção, ele torna-se por isso mesmo, no interesse, na base e no objecto da arte cinematográfica (...) Todas as artes são movimento, uma vez que há desenvolvimento, mas a arte das imagens é, creio, a que mais próxima está da música, pelo ritmo que lhe é imposto» (Grilo, 2007: 52). Deste modo se justifica a crença nas potencialidades rítmicas dos filmes de Man Ray e se evidencia a vontade de orientar o seu cinema em

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torno de uma das suas características fundadoras: as possibilidades da imagem em movimento quando liberta dos artifícios que a colam ao teatro ou à literatura. Seria pouco rigoroso analisar Emak Bakia sem me reportar à sequência imediatamente posterior ao intertítulo “La raison de cette extravagance”. Um homem impecavelmente vestido sai de um carro com uma mala preta na mão, dirigindo-se à entrada daquilo que parece ser uma loja. Quando o espectador supõe tratar-se de um homem de negócios pronto a comercializar o seu produto, eis que, de dentro da mala, se evade uma dezena de colarinhos brancos, rapidamente sugados pelo poder de uma qualquer força invisível. De seguida, o mesmo homem arranca da camisa o seu próprio colarinho, que se precipita para uma dança com ritmos díspares – primeiro em slow motion, depois em fast forward - . É aqui enunciado o carácter dadaísta do filme e a sua tentativa de subverter a ordem lógico-racional tradicional. O intertítulo que precede a sequência indiciava uma explicação coerente para a “extravagância” das imagens anteriores, mas o que se nos apresenta um contributo para aumentar a confusão mental do espectador. Mais do que o grau de imprevisibilidade imposto, importa pensar como Ray manifesta a herança das práticas destrutivas do dadaísmo: nesta sequência constata-se a destruição dos limites impostos pela moral daqueles que defendem a narratividade cinematográfica. Para os dadaístas, “facto” e “realidade” são mitos culturais que não se coadunam com a sua conceptualização e prática artística. É neste sentido que a investigadora italiana Chiara Tognolotti convoca o teórico francês Jean Epstein, defensor do cinema enquanto “agent de dérationalisation” e mecanismo desconstrutor da uniformização espiritual associada à lógica aristotélica. « (...) pour réagir, il faut que l’homme sache récupérer les domaines de l’imagination et du rêve, de l’irrationnel et de la poésie. Epstein s’inspire encoire une fois du désir de Nietzsche de revenir à l’espirit dionysiaque et voit dans le cinéma l’instrument qui sait se faire le vecteur d’une nouvelle irruption de l’irrationnel dans les contraintes de la civilisation contemporaine» (Tognolotti, 2005: 6). Embora Epstein faça concorrer as suas reflexões para a apreeensão do cinema enquanto lugar de manifestação de sentimentos – conclusão que se afasta da tese por mim defendida, relacionada com a potência do olhar e da exploração das sensações -, os filmes de Man Ray podem ser interpretados segundo o conceito de “pensamento 10

visual” empreendido pelo teórico francês. Para Epstein, a comunicação não nasce do pensamento, mas sim do olhar e das suas características. É deste modo que as suas teorias dialogam com as referidas ao longo da investigação, engrossando uma linha de conclusão suportada numa coerente possibilidade: a de que os sublimes filmes de Man Ray procuram a constituição de um cinema puro, um cinema da pura visualidade, liberto das estruturas de percepção vigentes, onde o ritmo, o movimento e a experimentação são os factores essenciais e os grandes responsáveis pela construção da “sinfonia visual” propulsora de sensações ganhas pela virtude do cinema, tal como defendido por Germaine Dulac.

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