OS FUNDAMENTOS HISTÓRICOS DA CONSERVAÇÃO FLORESTAL NO BRASIL (2016)

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* Artigo publicado em S. Dutra e Silva, D. Sayago, F. Toni e F. Campos, Orgs., Ensaios em Ciências Ambientais: Crises, Riscos e Racionalidades. Rio de Janeiro: Garamond, 2016.

OS FUNDAMENTOS HISTÓRICOS DA CONSERVAÇÃO FLORESTAL NO BRASIL 1      

José Augusto Pádua,   Instituto de Historia / Universidade Federal do Rio de Janeiro   [email protected]    

FLORESTAS E TERRITÓRIOS

A situação no Brasil é marcada por um grande contraste. A tradicional falta de ação em termos de conservação florestal foi substituída por um movimento bastante intenso nas últimas quatro décadas, sobretudo ao nível do governo federal. Deve-se destacar, especialmente, o processo ocorrido na primeira década do século XX. Segundo um levantamento global, o Brasil foi responsável pela criação de cerca de 74% do volume total de áreas protegidas em todo o mundo entre 2003 e 2009 (Jenkins e Joppa, 2009).

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  Uma versão anterior do presente texto, mais curta e bastante diferente da atual, voltada para um público estrangeiro, foi publicada em inglês com o título de “The Politics of Forest Conservation in Brazil: A Historical View”. A publicação foi feita no periódico alemão Nova Acta Leopoldina -, Nationale Akademie der issenschaften, Vol 114, no. 390, 2013. A primeira tradução do texto foi feita por Khalleb Crosswite, servindo de base para a elaboração do artigo aqui publicado.

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Para analisar esta situação, é preciso observar o contexto histórico mais amplo. A história do Brasil não é rica em exemplos de conservação das florestas. Até 1934 e 1937, quando o primeiro código florestal foi estabelecido e o primeiro parque nacional foi criado, são muito raros os exemplos de medidas práticas significativas em favor da conservação. Houve, de fato, um relevante debate intelectual, desde o século XVIII, sobre a importância econômica e política de conservar florestas. Analisei esse debate de maneira bastante detalhada, até o final do século XIX, no meu livro “Um Sopro de Destruição” (Pádua 2002); mas, de maneira geral, o tema manteve-se em discussão dentro das academias e institutos, sem gerar grandes consequências praticas.2. Para a ampla maioria dos atores sociais, no dia a dia da construção dos espaços vividos, as florestas eram vistas como abundantes e excessivas, não fazendo sentido trabalhar pela sua conservação ou pelo plantio sistemático de árvores. Elas eram percebidas, muitas vezes, como geradoras de dificuldades práticas para os assentamentos humanos (como no caso da umidade exagerada do clima). Apesar do valor econômico ou estético de algumas espécies da flora e da fauna serem reconhecidos, as massas verdes como um todo eram vistas pela maioria como dotadas de valor praticamente nulo. A concepção amplamente vigente de progresso fundamentava o que chamei em outro trabalho de “imperativo da conversão” (Pádua, 2015). As paisagens “selvagens” e “desocupadas” deveriam ser convertidas em paisagens produtivas (do ponto de vista da economia de mercado).   Um levantamento histórico da criação de unidades de conservação federais por década mostra que nos anos 1930 teve início uma tímida política de conservação, com o estabelecimento de 4 unidades. Entre 1940 e 1980 foram criadas outras 38 unidades. Na década de 1980, porém, já no contexto da emergência do debate ambiental contemporâneo (ao nível nacional e internacional) e da redemocratização da cena política brasileira, ocorreu um claro avanço, com o a criação de 92 unidades. Na década de 1990 esse crescimento perdeu intensidade (54 unidades), ganhando um novo e forte                                                                                                                         2

  Uma exceção importante, um projeto de reflorestamento bem sucedido, foi implementado nas montanhas do Rio de Janeiro a partir de 1862. A idéia era restaurar colinas arborizadas que foram destruídas pelas plantações de café e pela produção de carvão em décadas anteriores. Mas , apesar de vários homens de ciência terem participado da concepção do projeto com uma perspectiva mais ampla, sugerindo inclusive a possibilidade do mesmo ser replicado em outros lugares, o argumento utilizado para convencer o estado da necessidade de investir recursos, mesmo que limitados, na sua realização, foi muito pontual e pragmático: conservar as fontes de água doce para a capital do país (Drummond, 1996; Pádua, 2002).  

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impulso na primeira década do novo milênio, com 116 unidades (Drummond, Franco e Oliveira, 2011)   Antes de analisar essa mudança histórica no ritmo de criação de unidades de conservação no Brasil, é importante notar que tal processo possui um claro viés geográfico na direção da Amazônia. De fato, na Floresta Amazônica se localizam mais de 80 % das áreas protegidas criadas no Brasil nas últimas décadas. A existência dessa enorme fronteira florestal, com um nível de ocupação demográfica muito menor do que em outras partes do país, define a historicidade e a materialidade geográfica de todo esse movimento.3 Além disso, considerando o fato da Floresta Amazônica ter-se tornado um ícone internacional da questão ecológica, a concentração de áreas protegidas na região atendeu ao objetivo de configurar uma imagem positiva do Brasil na cena internacional. A criação e a localização geográfica dessas novas áreas protegidas, portanto, mais do que demonstrar o crescimento genérico de uma preocupação ecológica na arena política – que também ocorreu, mas de modo menos intensa – precisa ser entendida no contexto de uma robusta mudança de paradigma geopolítico na cultura política brasileira em relação à destruição da Floresta Amazônica. A criação de áreas protegidas na Amazônia se associa a um conjunto de medidas e políticas de contenção do desmatamento, servindo para estabelecer

barreiras

territoriais ao avanço da fronteira de conversão florestal que havia ganho grande magnitude a partir da década de 1970, notadamente através da criação de pastos. É importante observar, além disso, que a montagem dessas barreiras de contenção ao desmatamento vem se valendo da combinação de diferentes categorias de áreas protegidas, algumas bastante inovadoras, que surgiram em diferentes momentos históricos e com base em diferentes conflitos sociais e iniciativas legais. Tal mosaico inclui parques nacionais, florestas nacionais, terras indígenas, reservas extrativistas etc.                                                                                                                         3

   A  situação  da  Mata  Atlântica  é  bastante  diversa  do  ponto  de  vista  histórico.  Enquanto  que  a  Floresta   Amazônica,  no  território  do  que  hoje  é  o  Brasil,  ainda  detém  cerca  de  80%  do  tamanho  da  sua  cobertura   no  inicio  do  colonialismo  europeu,  todos  os  remanescentes  da  Mata  Atlântica  somados  não  chegam  a   13%  de  sua  cobertura  anterior.    Mesmo  assim,  a  virada  conceitual  que  será  discutida  adiante,  produzida   pela  forte  emergência  do  ambientalismo  na  cena  pública,  contribuiu  para  o  estabelecimento  de  uma   legislação  bastante  restritiva  para  a  destruição  desses  remanescentes  (através  de  decreto federal de 1993, transformado em lei pelo Congresso Nacional em 2006). O desmatamento nos últimos anos vêm flutuando próximo de 20.000 hectares por ano contra um patamar de 100.000 hectares no período 19851990 e de taxas incomparavelmente maiores nas décadas anteriores. O volume total dos remanescentes da Mata Atlântica está na faixa dos 16,4 milhões de hectares (FUNDAÇÃO SOS MATA ATLÂNTICA/ INPE, 2014). Para uma primeira comparação entre as histórias ambientais da Mata Atlântica e da Floresta Amazônica ver Pádua, 2015b.  

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Mesmo áreas de escala muito menor, como os chamados quilombos - terras ocupadas por comunidades de população negra – devem ser inseridas nesse conjunto, servindo em várias situações concretas para conter a entrada de áreas florestais no mundo do mercado e sua consequente destruição. Quando observadas de maneira integrada, esses diferentes tipos de áreas protegidas formam um aglomerado bastante impressionante no atual mapa da Amazônia. A concentração de áreas protegidas na Amazônia configura um fator relevante, mas não suficiente, para entender o complexo processo de redução no ritmo do desmatamento naquela região ao longo da última década. Um processo que ainda não foi bem digerido pela mídia e pelo debate ambiental internacional, ou mesmo nacional, que parece muitas vezes não perceber a mudança de patamar ocorrida no ritmo do desmatamento. Um processo, por outro lado, cujos componentes históricos, geográficos e sócio-políticos ainda estão longe de terem sido plenamente desvelados pelos pesquisadores. De toda forma, mesmo com todas as precauções analíticas possíveis – como no fato das imagens dos satélites apresentarem limites na sua capacidade de detecção, sendo mais precisas para detectar o corte raso do que a chamada “degradação florestal” (empobrecimento da dinâmica ecológica e erosão da biodiversidade da floresta abaixo da sua copa) – a redução do desmatamento total vem sendo notável. Uma queda especialmente forte na curva do corte raso anual ocorreu entre 2004 e 2012, quando passou de 27.772 para 4.571 quilômetros quadrados (uma queda de mais de 80%). No período calculado para 2013 - entre agosto de 2012 e julho de 2013 aconteceu um preocupante retrocesso, com a perda total de 5.891 quilômetros quadrados e um aumento de 29% em relação à 2012. Em 2014, porém, o nível de desflorestamento caiu novamente para 4.848 quilômetros quadrados (INPE/PRODES,   2014).

Ainda é cedo para entender a dinâmica que está se desenvolvendo em relação ao comportamento da curva no médio prazo. Mas é provável, caso se mantenham as condições históricas atuais, que ocorram flutuações próximas do marco dos 5.000 quilômetros quadrados. Este nível, sem dúvida alguma, é ainda muito alto. Mas, em relação ao passado, configura um patamar que muitos consideravam quase impossível de atingir diante da realidade caótica observada nas últimas décadas do século XX. Este fato já configura uma lição importante: não existe tal coisa como o fim da história. Novas tecnologias, mudanças culturais, novas configurações políticas e outros tantos

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fatores podem produzir uma modificação real na maneira como as sociedades interagem com os territórios e ambientes. A queda pronunciada no patamar do desflorestamento na Amazônia não pode ser dissociada de todos os debates, denuncias, conflitos e investigações científicas que ocorreram a parir da década de 1970. Ou seja, as mobilizações sociais e as batalhas de ideias podem produzir resultados concretos. Por outro lado, as lições da história também nos mostram que retrocessos sempre podem acontecer. As conquistas históricas não são definitivas. O que significou, por exemplo, o forte aumento no desmatamento em 2013 (mesmo levando em conta o novo recuo, apesar de menos expressivo, no ano seguinte)? Um simples ponto fora da curva? Uma flutuação dentro do novo patamar alcançado? O sinal de que é possível entrar em uma curva em U, com um novo avanço progressivo da destruição florestal? Existem barreiras políticas fortes e consolidadas contra o retorno aos altos níveis de desmatamento observados anteriormente? Tudo isso deve ser objeto de analise dos pesquisadores e de discussão na sociedade. Em todo caso, é preciso observar as dinâmicas recentes no contexto da história da destruição das florestas no Brasil. No passado ocorreram outras quedas na curva do desmatamento na Amazônia, apesar de não tão pronunciadas quanto na ultima década. Aquelas reduções, como no início dos anos 1990, estiveram majoritariamente relacionadas com recessões econômicas. No ano de 2010, porém, observamos a combinação entre um crescimento econômico de 7,5 % e uma redução no corte raso na Amazônia de quase 7 % (ISA, 2014). A última década, de maneira geral, apresentou uma média de crescimento econômico considerável.

Estaria acontecendo uma

desvinculação entre crescimento econômico no Brasil e desmatamento na Amazônia? Essa é uma hipótese fascinante que precisa ser investigada no médio prazo, para além das flutuações que podem ocorrer em anos específicos. Para pensar todas essas questões em uma chave histórica e geográfica mais ampla é preciso partir da grande diversidade ecológica do território brasileiro, que inclui uma vasto mosaico de ecossistemas que vêm sendo agregados em seis grandes biomas. Quando os europeus chegaram à parte oriental da América do Sul, encontraram dois grandes complexos de floresta tropical: a Mata Atlântica, abrangendo cerca de 1,3 milhões de quilômetros quadrados, e a Floresta Amazônica, com cerca de quatro milhões de quilômetros quadrados apenas no que é hoje território brasileiro. Entre estas duas grandes áreas de floresta tropical existiam diferentes tipos de savanas, com maior

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ou menos aridez e densidade arbórea. É importante observar em especial a grande relevância da enorme savana existente no Brasil central, com uma área de cerca de dois milhões de quilômetros quadrados, conhecida como Cerrado. Esse bioma – que como todos os outros é um mosaico de ecossistemas com certas características ecológicas comuns - está se transformando talvez no espaço crucial para pensar o futuro do território brasileiro. Em primeiro lugar, com base em inovações tecnológicas produzidas nas últimas décadas, esse espaço tradicional de pecuária rústica está se transformando em uma das grandes fronteiras mundiais do agronegócio, especialmente da produção de soja. Na medida em que o avanço para a ocupação mercantil das terras do Brasil central e da Amazônia vem se dando a partir de atores sociais advindos de sul e sudeste do pais, a abertura de fronteiras econômicas no Cerrado e na Amazônia podem ser analisadas como um mesmo movimento de conversão dos ecossistemas nativos e despojo das suas populações tradicionais. De certo modo, isso vinha ocorrendo na segunda metade do século XX. No entanto, como vimos antes, os controles sobre o desflorestamento amazônico cresceram consideravelmente, muito mais do que no Cerrado,

onde a

conversão da vegetação nativa já atingiu o patamar dos 50% (contra 20% na Floresta Amazônica). Ao longo do século XX, em escala internacional, ocorreu um processo complexo de transformação na imagem das florestas tropicais: de selvas ameaçadoras passaram a ser vistas como tesouros ecológicos sob forte risco de destruição. A propagação do conceito de “biodiversidade” serviu como componente essencial nessa mudança de imagem (Slater, 2002; Pádua, 2015). Algo semelhante não aconteceu com as savanas, inclusive com o Cerrado. Sua paisagem de ervas e arbustos, combinados com árvores retorcidas, é muito menos valorizada e defendida. A construção do carisma das florestas tropicais, inclusive, passou muito pelo que chamei de “fetiche da biodiversidade”, como se os ecossistemas com menos variedade de espécies que as florestas

tropicais,

mesmo

que

sua

diversidade

seja

considerável,

fossem

intrinsecamente menos importantes e não prestassem serviços ecológicos valiosos. Na verdade, todas as formações ecológicas são importantes e valiosas em si mesmas. O manejo político-ambiental de um território nacional, portanto, ainda mais do tamanho do Brasil, deve ser pensado de forma integrada e relacional (Pádua, 2012b). Na verdade, a desvinculação entre a Amazônia e o Cerrado, ao nível das políticas de conservação, é apenas aparente, pois o vinculo vem sendo reconstruído de diferentes maneiras. A conexão entre os movimentos de desflorestamento nos dois

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biomas, que vinha ocorrendo nas décadas de 1980 e 1990, não deixou de existir em situações concretas. É o caso, por exemplo, de quando áreas de pasto são vendidas para agricultores de soja no Cerrado e os pecuaristas usam parte dos recursos obtidos para abrir novos pastos nas terras mais baratas da Amazônia. No entanto, a conexão principal que hoje se desenha – uma conexão por contraste - é bem mais sutil e complexa: o Cerrado está servindo como uma espécie de zona de sacrifício para a proteção da Amazônia. Em outras palavras, é mais fácil para as elites econômicas e políticas aceitar o imperativo geopolítico de salvar a Floresta Amazônica no contexto geográfico de um território que possui, ao lado da grande floresta, uma enorme área de savana disponível para ser convertida com muito pouca oposição social e política. É comum atualmente ouvir em meios empresariais e governamentais que a Floresta Amazônica deve ser salva por corresponder aos interesses de longo prazo do pais – especialmente o potencial econômico futuro dos seus vastos recursos ecológicos - e para atender ao desejo da opinião pública nacional e internacional. Ou seja, o custo político de permitir a destruição daquela floresta tornou-se muito elevado. Mas, na sequência argumenta-se que, além dos avanços verticais na produtividade por hectare, o Cerrado ainda oferece dezenas de milhões de hectares para o avanço horizontal do agronegócio. A agricultura brasileira não precisa destruir florestas na medida em que pode destruir savanas.

De

fato, no cotidiano da produção rural, avançar no rumo da Amazônia tornou-se muito mais arriscado do que no rumo do Cerrado. Mesmo os novos dados e argumentos científicos sobre a importância deste último bioma, em termos de biodiversidade e de relevância hidrológica por exemplo, não serão capazes de gerar um impacto político significativo sem uma forte sensibilização da opinião pública nacional e global (como veio se dando no caso da Amazônia). Após a construção de um difícil consenso político, mesmo que ainda bastante imperfeito, sobre a necessidade de salvar as florestas tropicais do Brasil, coloca-se agora o desafio de construir e difundir uma abordagem política mais ampla e sofisticada sobre o equilíbrio necessário entre o desenvolvimento econômico e a conservação dos diferentes biomas, particularmente, pelo nível em que está ameaçado, do Cerrado.

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DESMATAMENTO E CONSERVAÇÃO NA CHAVE DA HISTÓRIA AMBIENTAL

Deve-se ter em mente, para pensar o tema da florestas tropicais, o desenho histórico da construção do território brasileiro. Desde o período colonial, as autoridades políticas e diplomáticas foram capazes de negociar o reconhecimento internacional formal de um enorme território. Nos mapas e na diplomacia, o Brasil que surge no século XIX vai herdar politicamente o gigantesco território formal/virtual – um território pretendido - da América Portuguesa. Sua ocupação efetiva, porém, por populações e atividades econômicas de domínio luso-descendente, era muito limitada e concentrada em algumas manchas regionais: um arquipélago de economias regionais baseadas na exploração predatória dos recursos naturais locais. Entre estes assentamentos regionais estabeleceram-se vínculos, ou mesmo redes, de diferentes graus de alcance, permanência e densidade. Mas a esmagadora maioria do atual território brasileiro estava coberta por uma densa diversidade de ecossistemas nativos. As manchas de ocupação estavam cercadas por vastos “sertões”. Existe, assim, um componente essencial da geografia histórica e da história ambiental da formação do Brasil: o contraste entre um domínio luso-descendente pequeno e fragmentado versus um enorme território formal (Robert de Moraes, 2011). Esse contraste é ainda mais marcante na medida em que as áreas pouco ocupadas pelo economia de mercado, apesar de nelas existirem importantes populações indígenas e mestiças, assim como complexas formações ecossistêmicas, foram consideradas como espaços “vazios” a serem ocupados no futuro. A natureza rica e diversificada e os povos nativos foram unificados na ideia de “sertões” incultos a serem paulatinamente conquistados. A visão de uma fronteira aberta de recursos naturais abundantes para serem explorados ainda hoje é dominante em grande parte das elites políticas e econômicas do Brasil. Uma visão que prejudica os esforços para a conservação e o uso cuidadoso desses recursos (Pádua, 2010). A imagem da Mata Atlântica como um oceano verde inesgotável, uma espaço para o avanço sem limites da fronteira de ocupação, estava presente desde a construção inicial do território brasileiro. O despovoamento das populações nativas por conta da violência, de um forte choque epidemiológico e da migração de grupos indígenas para o interior do continente, reforçou a impressão de um território aberto à conquista

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(Monteiro, 2007). É importante observar, por outro lado, a lógica da queimada como método de conversão das paisagens nativas em territórios efetivamente ocupados. Como vem sendo demonstrado por pesquisas recentes (Cabral, 2014), a agricultura de domínio euro-descendente não percebia a floresta apenas como um obstáculo a ser eliminado. Ela era um ativo econômico que se inseria no centro dos métodos agrícolas dominantes. A fertilização provisória dos solos baseava-se na queima da biomassa florestal. Nesse contexto, a abertura da fronteira através do desmatamento veio acontecendo passo a passo. Mesmo que dentro dos fortes limites colocados pelo baixo desenvolvimento das forças produtivas até meados do século XX. O estado monárquico, que garantiu a unidade política do território no século XIX, tinha uma base fiscal muito insuficiente e uma capacidade bastante limitada de comando e controle no âmbito dos vastos espaços territoriais. Assim como no período colonial, o estado era dependente da fidelidade negociada de oligarquias regionais que efetivamente mantinham a ordem nos lugares realmente ocupados. A república instaurada em 1889, sob a justificativa ideológica do federalismo, consolidou ainda mais essa dinâmica política. Os poderosos locais usavam os recursos da natureza para garantir a base econômica do seu poder local. A partir da década de 1930, quando o estado começou a ganhar força e capacidade de regular e interferir na economia, a ideologia do crescimento e da colonização interna tornou-se hegemônica. A conservação da natureza não era um tema prioritário na ação, ou mesmo na percepção, dos principais líderes políticos. É verdade que um importante debate intelectual continuou existindo, desde o início da república, entre homens de ciência e alguns atores políticos no que se referia à necessidade de modificar o modo destrutivo de relação com os recursos do território. Um debate que deu continuidade às discussões do período monárquico e que foi renovado por pensadores influentes, como no caso de Alberto Torres (Franco e Drummond, 2009; Duarte, R.H., 2010). Ao contrário do século XIX, porém, o debate intelectual ajudou a fundamentar algumas iniciativas práticas de maior relevância, especialmente a partir da década de 1930, como a criação de legislações específicas e de um conjunto de áreas protegidas. Apesar de envolver um grupo relativamente pequeno de intelectuais e técnicos, o debate conservacionista continuou ao longo das décadas, estando ainda presente na iniciativa de expandir significativamente o número de áreas protegidas a partir da década de 1970 (Urban, 1998). A interação entre conservacionistas e o poder

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político efetivo, porém, foi sempre difícil, considerando que a prioridade estava no avanço da economia de mercado sobre o território. É significativo observar que nos dias de inauguração do primeiro parque nacional do Brasil - o Itatiaia, no estado do Rio de Janeiro, em 1937 - os diários do então presidente, Getúlio Vargas, não mencionam sequer uma única palavra sobre a relevância histórica da criação do parque nacional. Seus diários registram apenas eventos sociais e discursos de políticos locais durante a inauguração (Correa, 2003). Tratava-se de um mero dever burocrático e de uma medida convencional no sentido de não deixar o país muito para trás em relação aos Estados Unidos e, especialmente, à Argentina, onde já existiam parques deste tipo. De 1930 a 1980, o PIB brasileiro cresceu a uma taxa média de 7% por ano, em grande parte com base na intensa exploração dos recursos naturais do território. Depois da década de 1950, particularmente, o Brasil entrou em um movimento acelerado de urbanização, industrialização e expansão de fronteiras agropecuárias. Na década de 1980, quando a destruição da Mata Atlântica já estava muito avançada e a penetração destrutiva na Amazônia estava ganhando força, a criação de áreas protegidas começou a contar com um novo e importante aliado: a emergência do ambientalismo multissetorial, global e nacional, que inclusive se refletia nas diplomacia e nas novas culturas de gestão estatal que recomendavam o estabelecimento de políticas públicas e órgãos especializados no manejo ambiental do território (Hochstetler e Keck, 2007; Pádua, 2012) As mudanças históricas a partir de meados do século XX se manifestaram nos próprios conteúdos e fluxos de um território cada vez mais transformado através de sua apropriação pela economia de mercado. Ainda em meados do século XX, como pode ser constatado nos mapas 1 e 2 (Torre, 2009), projetados com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a ocupação de domínio euro-descendente do território brasileiro era relativamente pequena e concentrada na região da Mata Atlântica e da calha do Rio Amazonas. É verdade que o conceito de “área antropizada”, usado pelo IBGE, é discutível. Ele contribui para invisibilizar a economia adotada nos amplos territórios que estavam sendo manejados de maneira mais leve por populações indígenas e tradicionais. Nos mapas aqui reproduzidos, esses espaços aparecem como “vazios” e livres de qualquer presença humana. No entanto, exatamente por refletir essa concepção moderna e desenvolvimentista sobre o que significa a “ocupação humana” dos territórios, os mapas fornecem uma boa indicação da ocupação histórica dos diferentes biomas por manchas territoriais dotadas de maior densidade populacional e

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com atividades produtivas mais fortemente relacionadas com a economia de mercado e com o mundo urbano-industrial. Neste sentido, a Mata Atlântica já estava bastante “antropizada” em 1960, apesar de ainda apresentar vastas áreas verdes continuas. A Floresta Amazônica, ao contrario, era muito pouco “ocupada”. O mesmo pode ser dito do Cerrado, cujos solos ácidos eram então considerados inviáveis para a agricultura, uma realidade transformada em grande parte pelas pesquisas da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), a partir de década de 1970.

Mapa 1: Antropização dos biomas brasileiros até 1960

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Fonte: Torre, 2009

O mapa seguinte apresenta um quadro muito diverso. O forte crescimento da população e da economia brasileiras, a partir de 1960, produziu um notável avanço no processo de ocupação territorial “moderna”. O movimento de auto-conquista e de colonização interna que marca o imaginário da política brasileira desde a inauguração do país independente, mas com evidentes raízes no período colonial, tornou-se uma realidade palpável.

O avanço da “civilização” ou a “marcha para o Oeste”, que

produziu tantas formulações e projetos intelectuais no passado, transformou-se em um fenômeno concreto.

Mapa 2: Antropização dos biomas brasileiros em 2000

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Fonte: Torre, 2009

Pode-se constatar, pelos mapas anteriores, que a destruição intensa da Floresta Amazônica também é um movimento histórico recente. É possível observar o avanço da fronteira de ocupação de baixo para cima, no que ficou conhecido como “arco de desmatamento”. Neste sentido, uma comparação entre as trajetórias da Mata Atlântica e da Floresta Amazônica ao longo do tempo fornece uma bom ponto de partida para estudar a história ambiental do Brasil. No final do século XIX, apesar da imprecisão das estimativas, pode-se supor que a Mata Atlântica ainda cobria cerca de 90 % de sua área anterior à chegada dos colonizadores. O grosso do seu desmatamento, portanto, ocorreu nas oito primeiras décadas do século XX (Dean, 1996). Esse fenômeno não está relacionado com um pretenso cuidado com a conservação florestal no período anterior ao século XX, seja em termos de práticas racionais de economia rural ou de uma aplicação eficaz da legislação. Um dos grandes erros na análise da história do Brasil, especialmente no período anterior ao do século XX, está em confundir legislação e práticas sociais quotidianas. Nas manchas territoriais onde a economia derivada da formação colonial estava presente, a regra era uso predatório e descuidado da vegetação nativa e dos solos. As instituições não eram capazes de impedir essa dinâmica de maneira efetiva. A explicação para o fenômeno mencionado acima, portanto, está no pequeno tamanho da população e da economia, além da disponibilidade limitada de capital. Em 1900, por exemplo, a população oficial brasileira estava na casa dos 17 milhões de pessoas. Neste mesmo ano, para efeito comparativo, os Estados Unidos já contavam com mais de 76 milhões de habitantes. As vastas áreas continuas de Mata Atlântica sobreviveram devido à incapacidade das forças produtivas para ir além de uma fração bastante limitada de ocupação do enorme território formal do país. Esse quadro histórico-geográfico veio mudando profundamente no século XX através do grande crescimento da população – que passou de 17 para 170 milhões de pessoas entre 1900 e 2000 - e da economia brasileiras, além do notável fortalecimento do aparelho de estado e da sua capacidade de arrecadar, buscar empréstimos externos e implementar obras de infraestrutura. É no contexto dessas mudanças, especialmente na segunda metade do século passado, que a conversão dos biomas existentes no território veio ocorrendo com intensidade crescente.

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Os remanescentes da Mata Atlântica hoje são ainda de grande importância ecológica e social, inclusive no interior ou ao redor de grandes cidades. Mas a maior parte das áreas que antes estavam ocupadas por aquela grande floresta encontra-se em uma situação desoladora. É uma reflexão importante que deve ser feita em termos de história e de política ambiental: a maior parte do desmatamento da Mata Atlântica, do Nordeste ao Sul, resultou em áreas degradadas, ressecadas e profundamente erodidas. Áreas que quase não geram trabalho e renda, estando abandonadas ou ocupadas por uma pecuária extensiva de baixa categoria. Ou seja, grande parte desse desflorestamento foi inútil em termos de benefícios econômicos e sociais duráveis. Pode-se obter uma visão sintética desse fenômeno comparando imagens do que seria a paisagem florestada do médio Vale do Paraíba no Sudeste do Brasil, entre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro - tal qual se pode inferir a partir das matas remanescentes no Parque Nacional do Itatiaia, situado na mesma região – com as amplas paisagens degradadas que se apresentam ao olhar do observador contemporâneo   O destino histórico da Mata Atlântica deveria inspirar uma séria reflexão histórica sobre a relação entre desmatamento e desenvolvimento. Uma reflexão que deveria se desdobrar em direção ao futuro da Floresta Amazônica. É óbvio que a construção de um pais originado do colonialismo europeu em um território tropical coberto por florestas, considerando as características culturais e socioeconômicas dominantes na modernidade ocidental, passaria necessariamente por um forte desmatamento. Seria irrealista pensar o contrário. No entanto, mesmo tendo por base as próprias premissas socioeconômicas da modernidade, o que ocorreu em grande parte da Mata Atlântica pode ser definido como um inútil desperdício. Em outras palavras, a conversão da paisagem não produziu sequer o que convencionalmente se entende como “progresso”.

Ironicamente, o melhor método de recuperação ambiental e

socioeconômica de grande parte das áreas degradadas do Vale do Paraíba seria através do reflorestamento com essências nativas – algo bem diferente das monoculturas de árvores - e da criação de uma nova economia rural de usos múltiplos do território que combinasse, por exemplo, pagamento por serviços ambientais, turismo, corte sustentável de árvores plantadas e atividades agroflorestais, como no caso do plantio de café na sombra da floresta. Alguns projetos interessantes, nessa direção, estão sendo implementados em diferentes regiões ao longo da costa brasileira (Siqueira e Mesquita, 2007; Lima et al., 2007; ). A volta da floresta, em tal contexto, pode se tornar um

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verdadeiro “retorno ao futuro” (sugestiva expressão poética que costumava ser usada pelo musico e artista plástico Walter Smetak). Um outro ponto que deve ser considerado, além da geografia ecológica diversificada do território brasileiro, se relaciona com os diferentes momentos históricos onde ocorreram os grandes processos de transformação ambiental.

Vale dizer, a

complexa interação de fatores que configuram a historicidade de cada período. A maior parte do intenso desmatamento da Mata Atlântica, como já vimos, ocorreu antes da forte emergência do ambientalismo contemporâneo na opinião pública, em escala global e nacional, com todas as suas repercussões nas relações internacionais, nas políticas públicas, nos conflitos sociais etc. Até a década de 1970, a Mata Atlântica foi destruída quase sem oposição da imprensa, da opinião pública (com exceção de algumas vozes de intelectuais), do judiciário, dos governos estaduais e do governo federal. Os aparelhos de estado, na verdade, quase não tinham funcionários ou órgãos preparados para enfrentar o problema, para não falar na ausência das agências e secretarias de política ambiental que surgiram posteriormente.

Foi no rastro do fortalecimento de um

ambientalismo amplo e multissetorial (Viola e Leis, 1995), na década de 1980, que os remanescentes da Mata Atlântica passaram a ser protegidos por lei a partir de 1993. Mas neste caso já se tratava de salvar o que ainda restava, de garantir uma linha mínima de sobrevivência para aquele outrora grande complexo florestal. Não é difícil observar que a situação histórica da Floresta Amazônica brasileira é muito diversa. Em primeiro lugar, considerando a temporalidade da sua destruição. Em 1978, por exemplo, ainda estava de pé cerca de 97 % da cobertura florestal encontrada pelos colonizadores europeus. Em segundo lugar, devido à temporalidade das lutas pela sua conservação. O aumento na intensidade do desflorestamento, a partir da década de 1970, coincidiu com o momento da emergência do ambientalismo multissetorial mencionado acima. Os protestos e questionamentos contra a destruição daquela enorme floresta começaram logo no início da expansão da fronteira de ocupação econômica. Apenas um exemplo: Em 1975, na esteira da construção da estrada Transamazônica pelo então governo militar, os ecólogos R. Goodland e H. Irvin já publicavam um influente livro com o título dramático de “Selva Amazônica: do Inferno Verde ao Deserto Vermelho?” (Goodland e Irvin, 1975).

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É verdade que outro grande ciclo de ocupação da Floresta Amazônica, considerando as escalas vigentes na época, havia acontecido com o famoso “boom da borracha” na virada do século XIX para o XX. Os efeitos daquele ciclo em termos de desmatamento, porém, foram muito limitados. A razão principal encontra-se na própria constituição biofísica da seringueira. A colheita diária do látex não demandava a destruição das árvores. Ao contrário, sua saúde precisava ser conservada, requerendo certa manutenção da floresta ao seu redor. Nesse caso, a árvore em si foi um agente da história ambiental, influenciando diretamente a contenção do desmatamento (Dean, 1987; Pádua, 2000). O ciclo de ocupação ocorrido a partir da década de 1970, no entanto, no que foi chamado de “as décadas de destruição”, teve uma outra escala de impacto. Em poucos decênios foram desmatados cerca de 762.000 quilômetros quadrados, colocando o atual percentual de sobrevivência daquela cobertura florestal na ordem dos 80 % (Nobre, 2014). O avanço na ocupação econômica da Amazônia, ao longo deste período recente, deve ser entendido na chave do forte crescimento geral da economia e, de maneira mais específica, das concepções geopolíticas vigentes durante a ditadura militar que vigorou entre 1964 e 1984. O fato é que o avanço sobre a Amazônia não pode ser explicado como uma mera expansão natural da economia. Em meados do século XX, pode-se dizer que a propagação espontânea da produção rural estava abrindo novas fronteiras de ocupação na Mata Atlântica. Mas era uma economia relativamente pequena e com capacidade limitada de expansão geográfica. No final do século XX, a demanda pela Amazônia requereria um esforço especial de financiamento e infraestrutura. O que a região podia oferecer, no contexto econômico daquelas décadas, não era especialmente atrativo: terras baratas para pecuária e árvores para uma indústria madeireira ainda pouco internacionalizada. Uma notável exceção eram as importantes reservas minerais, que de todo modo requeriam empresas de grande tamanho e dimensão internacional. Mas mesmo essa exploração passava pelo incentivo público através de obras de infraestrutura e crédito facilitado. O fator geopolítico, mais do que uma necessidade premente da economia nacional, foi essencial no avanço socioeconômico sobre a região. A abertura da fronteira amazônica a partir da década de 1970 – incluindo a construção de estradas e obras de infraestrutura, a concessão de credito farto e generosos subsídios fiscais, o estabelecimento de projetos de colonização direta etc. – não estava fundamentada na busca pelo lucro econômico de curto prazo. Ela foi alimentada pelas

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preocupações geopolíticas dos governos militares que, dando continuidade a um antigo debate político, percebiam a região como um “vazio” onde a “nação brasileira” ainda não havia chegado. O grande temor era que tal vazio levasse à perda do domínio político sobre aquele enorme espaço, com a baixa densidade populacional e a falta de comando político sobre o território facilitando potenciais invasões militares externas. O que interessava, assim, era fomentar a presença de populações “brasileiras” e atividades econômicas reconhecidas como relevantes (na medida em que estivessem inseridas no mercado, nacional e global). É até desnecessário dizer que tal visão subestimava o valor intrínseco das complexas formações naturais e a subsistência das populações tradicionais lá existentes. A prioridade de converter a floresta em território usado ofuscava qualquer preocupação com os possíveis danos ecológicos e sociais provocados pelas atividades fomentadas pela ação do estado. Na cultura política então vigente, a ideia dominante, na verdade dominante na própria formação do Brasil, era marcada pelo “imperativo da conversão”. A Amazônia também era vista como um oceano verde a ser conquistado e convertido, assim como veio ocorrendo anteriormente na Mata Atlântica (Pádua, 2000; Mello, 2006) Como então entender o aumento das políticas de conservação e seu foco na Amazônia a partir da década de 1980 e, principalmente, a virada histórica que pode estar ocorrendo, mesmo com todas as suas imperfeições, através da forte redução do patamar de desflorestamento observado na última década? considerar fatores sociais, culturais e

Para isso é preciso

geográficos. É fundamental reconhecer, no

sentido da materialidade ambiental da história, que a geografia sempre importa. As condições geográficas do Brasil são bastante raras no quadro contemporâneo, seja pela dimensão do território formal ou pela quantidade de áreas florestais continuas que estavam relativamente pouco incorporadas na economia de mercado e na civilização urbano-industrial. As mesmas mudanças culturais e políticas que serão mencionadas a seguir não tiveram condições objetivas para embasar a criação de áreas protegidas tão dilatadas no contexto do Sudeste do Brasil, por exemplo. O tamanho das unidades de conservação depende da realidade geográfica.

Dito isso, é igualmente fundamental

reconhecer o impacto histórico das ideias. As décadas de debate internacional sobre o futuro da Amazônia e seus efeitos no ambiente planetário vêm produzindo resultados concretos. Como escreveu Alejo Carpentier, na epigrafe do seu magnífico romance O Século das Luzes, “as ideias não caem no vazio”. Seria um erro, no entanto, supor que

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o debate sobre a Amazônia apareceu de fora para dentro, como um fenômeno exógeno que forçou a sua entrada na agenda política brasileira. O que ocorreu foi uma interação complexa entre o debate internacional e os debates e disputas políticas no Brasil, incluindo fortes conflitos sociais ao nível local (Hochstetler e Keck, 2007; Pádua, 2012; Hecht e Cockburn, 2010). Após a década de 1980, o debate ecológico se tornou uma característica marcante da agenda política brasileira. Existem razões múltiplas para esse fenômeno: o carisma da Floresta Amazônica; a concentração de biodiversidade e água doce no território; os muitos conflitos sociais em torno da posse e uso da terra com o avanço das fronteiras do capitalismo sobre a Amazônia e o Cerrado; os muitos embates por conta da contaminação e da degradação do espaço vivido no rastro do rápido processo de urbanização e industrialização ocorrido a partir da década de 1950 etc. O crescimento da vibração política e social no movimento de superação da ditadura militar, nas décadas de 1970 e 1980, também desempenhou o seu papel. A Constituição de 1988, que foi elaborada na sequência da queda da ditadura militar, marcou essa dinâmica de democratização da sociedade, modernização institucional e reconhecimento político das novas temáticas ambientais. A realização, em 1992, da Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento no Rio de Janeiro, marcou a presença do Brasil no centro dos debates ecológicos globais. No conjunto dessas dinâmicas, o peso da percepção histórica no debate político também se fez sentir. As próprias análises sobre os resultados negativos da destruição da Mata Atlântica auxiliaram a antever, como afirmou Warren Dean (1996:380), “as terríveis consequências da destruição da sua imensa vizinha do oeste”. Mesmo assim, é realista afirmar que a percepção dominante na sociedade brasileira até o final do século XX era de que a Floresta Amazônica seria destruída de maneira crescente, replicando o que aconteceu na Mata Atlântica, por mais que os protestos e lamentos diante dessa realidade também fossem crescentes, produzindo uma sinergia bastante intensa entre debates e iniciativas sociais ao nível local, nacional e internacional. Mas como seria possível reverter um processo de desmatamento tão agressivo e caótico? É exatamente por esse motivo que a forte redução na curva do desmatamento na Amazônia ao longo da última década, que produziu uma mudança histórica no patamar de perda da floresta, merece uma análise histórica e sociológica mais profunda. A verdade é que não se trata de um processo trivial ou de fácil explicação.

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A   QUEDA   NO   RITMO   DO   DESMATAMENTO   NA   AMAZÔNIA:   MUDANÇA   HISTÓRICA   OU   FENOMENO  CONJUNTURAL?  

Pode-se formular a hipótese de que veio acontecendo uma importante mudança de paradigma na cultura política brasileira em relação ao destino da Floresta Amazônica. Este novo consenso, mesmo que bastante imperfeito, definiria um “imperativo de conservação” para a grande floresta do norte do Brasil e romperia com a continuidade do “imperativo da conversão” que dominou a formação histórica do território brasileiro.

Uma hipótese como esta precisa ser melhor qualificada. Em

primeiro lugar, ela não se refere à construção de um consenso forte sobre a necessidade de conservar e cuidar melhor dos diferentes biomas do território. Sua vigência se refere especialmente à Floresta Amazônica e, na medida em que chancela a visão de que as florestas tropicais são recursos valiosos e ameaçados, expande-se para o que resta da Mata Atlântica. É claro que ocorreu, nas últimas décadas, um certo crescimento geral na opinião pública brasileira da percepção sobre o valor e a importância dos espaços e elementos do mundo natural. O tradicional “imperativo da conversão” foi fortemente questionado por formulações cientificas, movimentos sociais e outras iniciativas na arena público. Já não é tão fácil defender um conceito fatalista e definitivo sobre a necessidade de “civilizar“ e “fazer progredir economicamente” o conjunto do território e seus ecossistemas (mesmo que na prática esse movimento de conversão continue fortemente presente, ou mesmo dominante, em diversas regiões). De toda forma, a ideia de conservar ganhou um maior espaço na sociedade brasileira, em contraste com o padrão histórico tradicional. Mas o consenso em relação às florestas tropicais possui uma outra qualidade e se destaca de modo evidente no que se refere à força das políticas públicas e ao volume de investimentos financeiros e humanos empregados na sua conservação. É importante reconhecer, em segundo lugar, que a possível construção de um novo consenso político sobre o imperativo de conservar a Floresta Amazônica não pode ser atribuído, de maneira simples, ao domínio de uma “consciência ecológica”, por mais que o debate ecológico internacional e nacional tenha sido fundamental para alimentálo. Os fatores geopolíticos e geoeconômicos são aspectos essenciais nessa mudança de

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paradigma.

Minha hipótese é que atores centrais da sociedade brasileira – com

diferentes níveis de coerência, profundidade e disposição para agir em relação ao tema– vieram aceitando a premissa de que Floresta Amazônica é um ativo geopolítico importante demais para ser destruído no curto prazo e com base em ganhos econômicos imediatos. A opinião pública, de forma geral, referenda essa percepção. Mas pode-se afirmar que, para além dos atores sociais onde ela é especialmente forte, como no caso da comunidade científica, a ideia veio ganhando presença nos meios empresariais, militares etc. O estado federal, mesmo com as diferenças de governo para governo, vem consolidando essa premissa como parte do que se poderia chamar de “razão nacional”. No nível federal, por certo, o fenômeno é mais evidente do que no caso dos governos estaduais amazônicos. O mesmo pode ser dito em relação ao empresariado. É claro que a maioria dos empresários locais na região amazônica, especialmente os envolvidos com a pecuária e a extração madeireira, possuem uma visão diferente e muito mais imediatista dos usos e da conversão da floresta. Muitos deles gostariam de manter o tradicional paradigma do “imperativo da conversão”. Mas, do ponto de vista histórico, não obstante sua relevância local, cabe indagar sobre o peso e influencia desses atores na economia e na política ao nível nacional. Cabe indagar, especialmente, sobre sua real capacidade para vetar ou boicotar políticas federais fortes, definidas com base em uma nova percepção dominante sobre o lugar da Floresta Amazônica no destino político do Brasil. O novo consenso histórico que pode estar nascendo, mesmo aceitando as variações conjunturais na sua consolidação, partiria dos seguintes elementos: 1) a Floresta Amazônica é um ícone do mundo global e sua destruição apresenta um custo político realmente relevante no contexto da opinião pública e da diplomacia globais. O custo político interno, além disso, também se tornou alto. Basta perguntar quais seriam os custos políticos, na sociedade brasileira, de um retorno aos níveis de desflorestamento anual vigentes em décadas passadas. Ou seja, do atual patamar de 5 mil quilômetros quadrados por ano para um patamar de 20 mil quilômetros quadrados por ano; 2) Por outro lado, do ponto de vista dos ganhos econômicos, o conjunto do debate sobre a importância geopolítica e geoeconômica dos recursos ecológicos amazônicos - incluindo a alta concentração de biodiversidade e água doce, assim como a capacidade para armazenar carbono e influenciar o clima – vem fortalecendo a percepção de que esses recursos valerão cada vez mais no futuro e podem ajudar a

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definir um lugar mais proeminente do Brasil no quadro internacional. Os ganhos econômicos para o país, no médio e no longo prazo, poderão ser muito maiores do que aqueles produzidos pelo desmatamento de curto prazo para, por exemplo, estabelecer fazendas de gado. Ou mesmo do que aqueles gerados pela indústria madeireira. É importante considerar, ademais, que ao nível dos estados amazônicos existem muitos setores da sociedade que contestam os benefícios dos velhos padrões de desmatamento e exploração imediatista, ou, mais ainda, que atribuem a esse padrão as recorrentes agressões e violações do seu modo de vida e dos seus direitos sofridas nas últimas décadas (como é o caso, por certo, de tantas comunidades de indígenas e de populações extrativistas). Existem igualmente, mesmo que ainda minoritários, políticos ao nível regional que percebem a mudança que está ocorrendo no padrão histórico e defendem novas formas de desenvolvimento regional baseadas na pesquisa científica, nos usos múltiplos e cuidadosos da floresta, nos serviços ambientais, no turismo etc. A construção de um novo consenso sobre a conservação da Floresta Amazônica na cultura política brasileira, caso seja confirmado pelo teste do tempo, deve ser entendido como um processo complexo e cheio de ambiguidades.

Sua gestação

histórica vai além dos limites definidos pelos governos federias do Partido dos Trabalhadores (PT) a partir de 2003. Desde a década de 1990 que uma série de inovações legislativas, técnicas e institucionais vem ajudando a reduzir o patamar do desmatamento. Uma das mais importantes foi o aumento de 50 para 80% do percentual de reserva legal das propriedades privadas na região. Esta decisão, tomada pelo governo federal em 1996, indicou a visão histórica de manter a conversão total daquela floresta no nível de 80%. Como agora já estamos perto deste nível, no que se refere ao território brasileiro, começa a emergir no horizonte histórico, ainda longe de se realizar, a necessidade e a possibilidade de se alcançar o “desmatamento zero” na Amazônia. De toda forma, apesar da oposição de proprietários e políticos locais, a sinalização de 1996 não só permaneceu como foi confirmada pelo novo Código Florestal de 2012. A ideia de que a lei pode forçar os proprietários privados de áreas florestais a manter um percentual de suas propriedades como reserva florestal já estava estabelecida no Código Florestal de 1934. O patamar inicial era de 25%. Com o novo Código Florestal de 1965, em seu artigo 44, ficou definido que na região Norte e na parte norte da região Centro-Oeste (na Floresta Amazônica, portanto), a exploração de corte raso requeria a permanência da cobertura arbórea de pelo menos 50% da área de cada

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propriedade. A partir de uma lei de 1989, já no período pós-ditadura militar, esse percentual foi designado como "reserva legal" e confirmado no nível de 50% na Floresta Amazônica e apenas 20% no Cerrado. Uma importante medida provisória de 1996, ampliada por outra medida provisória e por uma emenda constitucional de 2001, estabeleceu o novo patamar de 80% de reserva legal nas propriedades estabelecidas na Floresta Amazônica, elevando para 35% o patamar em áreas de Cerrado situadas na região amazônica em sentido amplo (Amazônia Legal) e estabelecendo o nível de 20% para propriedades situadas em outros biomas, inclusive na Mata Atlântica e no Cerrado existente fora da Amazônia Legal (Machado, 2010; Castro, 2013). Estes níveis estão em vigor até hoje, confirmados pelo novo Código Florestal de 2012. Observando-se o movimento histórico, portanto, todas essas medidas servem para confirmar o foco amazônico comentado acima. Até mesmo o Cerrado, quando situado na região amazônica, possui um grau mais elevado de reserva legal. Porque uma propriedade na Floresta Amazônica pode ser desmatada em apenas 20% e no Cerrado em graus que vão de 65 até 80% ? 4. A construção do carisma de certos espaços ecológicos em relação a outros possui uma dimensão cultural, assim como científica (visto que a ciência também se constrói dentro de certos paradigmas culturais). Mesmo assim, as consequências econômicas desses contrastes são enormes, como no caso da naturalidade com que o Cerrado está se convertendo em “zona de sacrifício” para a conservação da Floresta Amazônica. Na prática, os proprietários rurais tendem a direcionar suas atividades, especialmente quando devastadoras, para bioma menos “carismáticos” e dotados de menor proteção estatal e vigilância da sociedade civil. Na análise histórica da mudança de patamar da curva do desflorestamento na Amazônia é importante observar a interação entre as mudanças na cultura política e uma série de inovações tecnológicas e institucionais que com elas se relacionam ao longo do tempo. Essas mudanças permitem uma intensificação na eficiência das ações estatais de comando e controle. Um passo importante foi a inauguração, em 2002, do Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM). Este sistema, que veio sendo projetado e gestado ao longo da década de 1990, sinalizou a possibilidade de utilizar satélites e sofisticadas tecnologias para um monitoramento amplo dos fluxos territoriais na região, incluindo                                                                                                                         4  As reservas legais podem ser economicamente exploradas através de extrações seletivas de madeira, turismo, etc. Mas eles não podem sofrer corte raso.  

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um acompanhamento constante do desmatamento. Essa possibilidade, no que se refere especificamente ao desmatamento,

já vinha sendo implementada pelo Instituto

Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) desde 1988, com a criação do Projeto de Monitoramento do Desflorestamento na Amazônia Legal (PRODES). No rastro dessa iniciativa, que continua em vigor e produz importantes estimativas anuais de desflorestamento, o próprio INPE passou a implementar, a partir de 2004, o sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (DETER), ao qual veio se somar, depois de 2007, o Mapeamento da Degradação Florestal na Amazônia Brasileira (DEGRAD), que procura medir a deterioração ecológica de florestas que não foram totalmente removidas. Esses dois últimos sistemas, especialmente o DETER, com a sua rapidez na produção de informação, permitiram, pela via tecnológica, uma intensificação da capacidade de comando e controle do governo federal muito mais rápida do que se poderia esperar com a evolução normal dos mecanismos de gestão e da máquina burocrática.

Eles permitiram a definição de áreas prioritárias e emergenciais,

facilitando a realização de atividades fiscalizadoras de escala inédita, inclusive com apoio militar. O olhar do historiador deve registrar o impacto efetivo das novas tecnologias, mesmo levando em conta que elas não podem prescindir das instituições e da vontade política. Um outro fator que ajuda a entender a mudança histórica no patamar da curva do desmatamento amazônico se relaciona com a intensa criação de áreas protegidas e o estabelecimento, em 2000, de um Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC).

Em 2014, 1,55 milhões de quilômetros quadrados – cerca de 18 % do

território continental brasileiro – estavam estabelecidos como diferentes formas de reserva de proteção integral ou de uso sustentável ao nível federal, estadual e municipal. Deste total, cerca de 1,13 milhões de quilômetros quadrados na Amazônia, onde a percentagem de áreas abrangidas pelo SNUC sobre o total da região já atinge cerca de 27%.

Estas unidades de conservação incluem modelos convencionais de proteção

integral, como parques nacionais e reservas biológicas, e modelos onde populações podem viver no local e exercer atividades econômicas consideradas sustentáveis. Um exemplo deste último caso são as 90 reservas extrativistas, representando no total cerca de 144 mil quilômetros quadrados, criadas após o assassinato do Chico Mendes, líder do

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Conselho Nacional dos Seringueiros, em 1988.

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Tais reservas apresentam o aspecto

positivo de terem sido concebidas de maneira endógena, a partir das lutas de seringueiros e trabalhadores extrativistas contra a expansão da fronteira de ocupação capitalista na década de 1980. A reserva extrativista permite que populações locais continuem vivendo na reserva florestal e colhendo produtos da floresta, mas proíbe o desmatamento. O termo extrativismo tem associações negativas em outros contextos, especialmente na América Latina, indicando economias que vivem da extração de capital natural, com pouco beneficiamento dos elementos retirados da natureza (Gudynas, 2013). Mas, no contexto amazônico, ela passou a se referir ao uso dos frutos da floresta mantida em pé, representando um dos mais inovadoras modelos de unidade de conservação surgidos no século XX. Sua aceitação oficial pelo SNUC representou uma importante abertura conceitual por parte da política ambiental brasileira. Mas é importante considerar, no contexto das ferramentas territoriais de redução do desmatamento, outros padrões inovadores que não estão formalmente no Sistema Nacional de Unidades de Conservação. O caso mais importante, sem qualquer dúvida, é representado pelo modelo de terra indígena adotado pela Constituição de 1988. Hoje existem 697 terras indígenas com diferentes situações jurídicas, perfazendo uma área total de 1,13 milhões de quilômetros quadrados. A esmagadora maioria se encontra na categoria de Terras Indígenas Tradicionalmente Ocupadas, que foi reconhecida pela Constituição de 1988.6 De fato, a Constituição diz que o Estado tem de demarcar, proteger e preservar terras tradicionalmente ocupadas pelos índios como uma habitação permanente e para suas atividades produtivas. Existe aqui, na mirada do historiador, um ponto muito interessante sobre o condicionamento geográfico das leis. Se tal princípio fosse aplicado em relação ao Sudeste do Brasil, por exemplo, partes importantes dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro poderiam ser demandados como terras indígenas. No entanto, os remanescentes de populações indígenas que vivem na região não são considerados, na realidade concreta do poder executivo, no mesmo patamar de direitos dos povos indígenas presentes na Amazônia. Em parte, fatores socioculturais justificam esse contraste. É claro que o enraizamento territorial e a continuidade cultural indígena é bem mais sólida em regiões da Floresta Amazônica, onde a fronteira de ocupação                                                                                                                         5

Todos os números citados acima foram retirados do Cadastro Nacional de Unidades de Conservação do Ministério do Meio Ambiente (atualizados em outubro de 2014). 6 Os dados foram retirados do site Povos Indígenas no Brasil, do Instituto Socioambiental, em fevereiro de 2015.

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capitalista chegou com real intensidade apenas no final do século XX. No entanto, pode-se afirmar também que a decisão constitucional de 1988, para além dos direitos indígenas, direcionou implicitamente o seu olhar para a conservação da Floresta Amazônica. Em outras palavras, ela se inseriu na mudança histórica da imagem geopolítica daquela enorme floresta que está sendo discutida no âmbito do presente artigo. Tal observação não deveria surpreender. A atividade legislativa possui sempre uma historicidade concreta, relacionando-se com o momento histórico e com contexto geográfico em que está sendo praticada. Por outro lado, é muito comum que ela apresente conteúdos implícitos. Não é por acaso que cerca de 98,5% da área separada como terra indígena no Brasil de hoje se encontre na Amazônia Legal. Também não é por acaso que a situação dramática dos Guarani no Cerrado do Mato Grosso do Sul, onde cerca de 50.000 indígenas compartilham terras muito pequenas, encontre muito menos energia e vontade política por parte do estado federal no processo de necessária ampliação e regularização das suas terras. Não é que a pressão local dos proprietários, como se observa naquele caso, não exista na Amazônia. A diferença está na força do novo consenso político que veio sendo estabelecido em relação à Floresta Amazônica. A intervenção do estado federal é aqui muito mais evidente. De toda maneira, a quantidade percentual de espaços protegidos sob a forma de terras indígenas na Amazônia, – 1,11 milhões de quilômetros quadrados - se equipara ao total de unidades de conservação na região. A soma de todas essas áreas significa que carca de metade da Floresta Amazônica foi retirada do mercado de terras, ao menos do ponto de vista formal, nas últimas décadas. Mesmo que existam muitas falhas de implementação e fiscalização, já que existem casos de desmatamento ilegal nos vários modelos de áreas protegidas, não resta dúvida que seu papel vem sendo importante na redução do desmatamento, inclusive no sentido de fortalecer a base jurídica para a fiscalização estatal e para os conflitos sociais ao nível local contra a destruição florestal. Não seria possível examinar aqui todos os fatores, para além da criação de áreas protegidas, que podem ter contribuído para a queda de patamar na curva do desmatamento. Um conjunto importante de medidas foi tomado a partir de 2004, já no contexto dos governos do PT ao nível federal, com a criação do Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal – PPCDAm. Após a

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constatação de uma alta taxa de desmatamento em 2004, da ordem dos 27 mil quilômetros quadrados, esta iniciativa interministerial foi estabelecida a parir da liderança de Marina Silva, então ministra do meio ambiente. A importância desta personagem, aliás, no processo que está sendo examinado, é considerável. Trata-se de uma liderança política cuja história de vida se confunde com a das lutas contra a destruição da Floresta Amazônica a partir da década de 1980. Ë bem sabido que ela nasceu em uma família de seringueiros e viveu na floresta até os dezesseis anos, tento depois participado das lutas lideradas por Chico Mendes e, ainda mais tarde, sido eleita e reeleita senadora pelo PT. Uma explicação alternativa para a queda no patamar do desmatamento, inclusive, poderia ser ensaiada por um viés mais conjuntural. Ou seja, de um ponto de vista hipotético, ao invés de representar uma mudança histórica mais profunda de paradigma geopolítico, ela poderia ser atribuída à vontade política da ministra Marina Silva ao longo dos seus cinco anos nos governos do presidente Lula. O esquema por ela coordenado teria adquirido uma sobreviva até 2012 e depois, a partir de 2013, começaria a ruir com um novo crescimento na curva da perda florestal. As evidências revelam, no entanto, que uma virada na cultura política brasileira em relação à Amazônia já vinha ocorrendo, com bastante intensidade, desde os anos 1990. Mas os governos do Partido dos Trabalhadores, a partir da presença da ministra Marina Silva e da criação do PPCDAm, conseguiram implementar uma política de conservação dotada de maior profundidade e abrangência, manifestando uma mais clara vontade política e valendo-se de novas tecnologias e instrumentos de comando e controle. Os resultados, como vimos, são inequívocos. É importante constatar, além disso, que a queda do desmatamento continuou avançando após a saída da Ministra Marina, em 2008, ocorrendo um retrocesso apenas em 20137.

De todo modo,

dificilmente tal mudança de patamar na curva seria possível sem uma série de leis e políticas que vieram ocorrendo antes e, mais importante, sem o apoio direto e indireto de uma série de atores institucionais, políticos e sociais que não fazem parte dos governos de coalizão liderados pelo PT. Apesar disso, adotando uma mirada histórica mais ampla, pode-se afirmar que a própria presença do PT e da Ministra Marina no governo federal faz parte da dinâmica                                                                                                                         7

Entre 2007 e 2008 ocorreu uma flutuação significativa, com o desmatamento subindo de 11651 para 12911 quilômetros quadrados. Esse aumento foi ofuscado, porém, por uma queda notável em 2009, quando caiu para 7464 quilômetros quadrados (ISA, 2014).

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histórica que veio demarcando uma mudança na cultura política brasileira em relação à Floresta Amazônica. Tanto o partido quanto a personagem se inserem na renovação política posterior aos anos 1970, quando novas ideias, novas demandas na opinião publica e novos movimentos sociais começaram a questionar a trajetória do país no campo ambiental e a desenhar novas propostas de conservação. O futuro da Amazônia foi sempre um tema central nesse processo. Além disso, muitos lideres e movimentos ambientalistas – inclusive no campo do chamado “ambientalismo dos pobres” (Martinez-Alier, 2003), que tem no Conselho Nacional dos Seringueiros um ícone global - participaram do desenvolvimento do PT. Mas, como sempre acontece, o futuro está em aberto e depende da ação concreta dos diferentes atores sociais. Marina Silva, por exemplo tornou-se uma figura central na política brasileira após a sua saída do PT, recebendo cerca de 20% dos votos para Presidente da República em duas eleições consecutivas (2010 e 2014).

Trata-se

certamente de um dos maiores níveis de votação já recebidos por um candidato explicitamente oriundo do ambientalismo em qualquer pais do mundo contemporâneo. Mas é forçoso reconhecer que, apesar de apresentarem um sinal político significativo, inclusive no sentido de mostrar o peso das demandas ambientais no eleitorado brasileiro, as votações de Marina Silva não permitem supor que ela será eleita presidente no futuro. Tudo vai depender da sua capacidade para liderar uma proposta política que logre agregar uma maioria eleitoral. A coalizão de centro esquerda no poder, por outra lado, liderada pelo PT, apresenta muitos problemas e indefinições em relação ao futuro da política de conservação florestal. O primeiro governo da presidenta Dilma Roussef foi com justiça acusado de possuir menos sensibilidade e capacidade de articulação ambiental do que os dois governos anteriores do presidente Lula. A inversão na curva de queda do desmatamento em 2013 é um indicador de relaxamento na política de comando e controle, mesmo que outros fatores sejam igualmente importantes (como a polêmica sobre o novo Código Florestal, aprovado em 2012, que sinalizou para os exploradores da floresta um relaxamento institucional nas políticas de conservação). O presidente Lula, certamente, não era um ambientalista, mas sim um líder político carismático que pode ser inserido na tradição histórica das políticas socialdemocratas de crescimento econômico com forte distribuição e inclusão social.

No entanto, ele demonstrou

capacidade para agregar de maneira bem-sucedida, apesar de bastante conflituosa no

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interior do seu próprio governo, diferentes objetivos e demandas existentes na sociedade. Assim, ao mesmo tempo em que entregou a grande política agrícola nas mãos de representantes do agronegócio, ele trouxe para o governo ministros do Meio Ambiente realmente comprometidos com as vertentes ambientalistas do Partido dos Trabalhadores (como Marina Silva e Carlos Minc). Seria possível citar outros exemplos desse modelo de “governo em disputa”, como no caso da contradição entre as políticas para a agricultura empresarial e as políticas para a agricultura familiar e reforma agrária dentro da mesma equipe ministerial (até mesmo com a existência de dois ministérios voltados para os problemas da produção rural). No que se refere ao tema em discussão, porém, o governo Dilma priorizou abertamente o crescimento econômico e reduziu de maneira evidente o perfil da preocupação ambiental nas ações governamentais . Ela chamou para o lugar de ministra do Meio Ambiente, por exemplo, uma técnica sem liderança política: Isabella Teixeira. O governo Lula celebrou a queda do desmatamento na Amazônia como instrumento de diplomacia, inclusive climática, e de projeção do perfil do Brasil na cena internacional. O governo Dilma pretendeu fazer o mesmo. Pode-se dizer que o tema da Amazônia foi um dos poucos pontos ambientais valorizados nos discursos da presidenta.

Tal

continuidade, de fato, vem ao encontro de um dos argumentos centrais desse artigo: o tema da Floresta Amazônica descolou-se do conjunto da discussão ambiental, ganhando uma presença específica bastante forte e consensual na cultura política brasileira. Mesmo assim, o preço do relaxamento e da desaceleração no conjunto da política ambiental – como no caso da taxa muito baixa de criação de novas áreas de conservação no governo Dilma - refletiu-se no aumento da taxa de desmatamento em 2013. Os exploradores da floresta, no coração das fronteiras amazônicas, percebem quando existem condições políticas e institucionais conjunturais para apropriar-se de novas áreas através do desmatamento. É verdade que o governo acusou o custo político derivado desse retrocesso, tomando medidas para reafirmar as ações de comando e controle na região. Os resultados ainda requerem tempo para serem avaliados. No caso da oposição política, o futuro também é incerto. Uma forte coalizão de partidos conservadores, mas com apoio de muitos políticos de esquerda, apoiaram a ofensiva dos empresários rurais no sentido de mudar o Código Florestal vigente desde 1965. Um forte debate político dominou o tema nos últimos anos, com importantes manifestações no plano da sociedade civil e da opinião pública. As criticas

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conservadoras chegaram a condenar as políticas florestais brasileiras, inclusive na Amazônia, como excessivas, criando uma situação de “território congelado” para o avanço da produção rural e enfraquecendo o pais diante da competição internacional. Em outras palavras, o Brasil estaria fazendo mais do que os outros países de forte tradição agrícola para conservar as florestas tropicais. É muito significativo observar, contudo, que o novo Código chancelado em 2012 - em um momento de grande força econômica do agronegócio e, consequentemente , de uma grande força política dos seus representantes no parlamento - não mudou os níveis anteriormente estabelecidos de reserva legal. Ou seja, mesmo as forças mais conservadoras não ousaram questionar o princípio de 80% de conservação sinalizado pela taxa de reserva legal nas propriedades privadas na Amazônia. A ênfase dos parlamentares do agronegócio centrou-se em questões relacionadas com o relaxamento das exigências legais de reflorestar áreas de preservação permanente, nas margens dos rios por exemplo, e de recompor o nível de reserva legal no grande numero de propriedades onde ela não foi respeitada nas diversas regiões do Brasil.

Outros temas – como por exemplo a anistia para multas e a

diferenciação das normas legais de acordo com o tamanho das propriedades - foram abordados de maneira polêmica nos debates e incluídos de alguma forma no novo Código.

O ponto central aqui, porém, não é o de analisar os detalhes da atual

conjuntura florestal e sim as tendências históricas de mais longa duração. O fato de não terem usado sua força política para afrouxar de maneira mais significativa as normas de conservação e mudar as taxas de reserva legal pode ser um forte indicador de que os diferentes atores políticos estejam participando de um novo consenso histórico sobre o destino da Floreta Amazônica.

O retorno aos níveis anteriores de desmatamento,

portanto, seriam politicamente inaceitáveis. Trata-se de uma possibilidade concreta. Outra opção seria a dos setores antagônicos às fortes políticas de conservação florestal voltarem à carga no futuro, procurando modificar as normas que não tiveram a ousadia de contestar agora. Os próximos anos, assim, serão um teste fundamental para vermos o resultado histórico de todos esses embates. O governo de centro-esquerda liderado pelo Partido dos Trabalhadores logrou mudar o patamar da curva de desmatamento. Mas qual seria a performance florestal de um governo da oposição de centro-direita no futuro?

Um outro estilo de afirmar o consenso histórico em favor da Floresta

Amazônica ou uma radical mudança de políticas?

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Além das grandes clivagens políticas, existem uma série de questões profundas de conservação florestal que precisarão ser enfrentadas pelas forças políticas e sociais existentes no Brasil. O foco quase exclusivista na conservação da Floresta Amazônica, por exemplo, apesar das explicações históricas que aqui foram mencionadas, não parece ser sustentável, tanto do ponto de vista político quanto ecológico. Um maior equilíbrio na gestão dos território como um todo e no nível de conservação dos vários biomas se faz cada vez mais necessário. O futuro do Cerrado está começando a se tornar um tema político relevante no pais.

O tema da conservação, por outro lado, precisa ser

coordenado com o tema da restauração ecológica. No século XXI , quando se fala sobre sustentabilidade, não será suficiente apenas preservar ou conservar: será preciso trabalhar ativamente na restauração, tanto quanto possível, da saúde ecológica e paisagística dos diferentes territórios, especialmente das regiões que foram mais fortemente degradadas no passado. Foi visto acima o potencial desse tipo de política na Mata Atlântica, mas o mesmo pode ser dito em relação aos outros biomas. De toda maneira, pode-se perceber de modo crescente que o melhor equacionamento dos problemas e das políticas de conservação e restauração dos vários biomas existentes no território brasileiro requer uma mirada de mais longo prazo, que considere o vinculo entre as dinâmicas do passado e do futuro. O estudo da História Ambiental será cada vez mais necessário. Para avançar mais e melhor, será preciso olhar para trás.

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