Os fundamentos sagrados do poder faraônico no Reino Antigo (c. 2686–2181 a.C): Um estudo de caso sobre o Hino Canibal (The sacred foundations of pharaonic power during Old Kingdom (c. 2686–2181 BC): A study about the Cannibal Hymn)

June 13, 2017 | Autor: Roberto Torviso | Categoria: Ancient History, Old Kingdom (Egyptology), Ancient Egyptian Literature, Ancient Egypt, Cannibal Spell
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CENTRO UNIVERSITÁRIO LA SALLE DO RIO DE JANEIRO Unilasalle-RJ Curso de Licenciatura em História

Roberto Torviso Neto

Os fundamentos sagrados do poder faraônico no Reino Antigo: Um estudo de caso sobre o Hino Canibal.

Niterói 2015

CENTRO UNIVERSITARIO LA SALLE DO RIO DE JANEIRO Unilasalle-RJ Curso de Licenciatura em Historia

Os fundamentos sagrados do poder faraônico no Egito antigo: Um estudo de caso sobre o Hino Canibal.

Roberto Torviso Neto

Monografia

apresentada

ao

Curso

de

Licenciatura em História para obtenção do certificado de Licenciado em História.

Orientadora: Prof. Dr. Nely Feitoza Arrais

Niteroi 2015

Roberto Torviso Neto

Os fundamentos sagrados do poder faraônico no Egito antigo: Um estudo de caso sobre o Hino Canibal.

Monografia apresentada ao Curso de Licenciatura em Historia para obtenção do certificado de licenciado em Historia. Aprovada em dezembro de 2015 BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Nely Feitoza Arrais ( Orientador) Centro Universitário La Salle do Rio de Janeiro

Prof. Dr. Priscila Aquino (leitor crítico) Centro Universitário La Salle do Rio de Janeiro

Niterói 2015

Torviso Neto, Roberto. Os fundamentos sagrados do poder faraônico no Egito antigo: um estudo de caso sobre o Hino Canibal / Roberto Torviso Neto. – Niterói: UNILASALLE-RJ, 2015. 59 p. Orientador: Prof. Dr. Nely Feitoza Arrais. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura plena em História) – UNILASALLE-RJ – Centro Universitário La Salle-RJ. 1. História - Monografias. 2. Egito antigo. 3. Faraós. I. Título. CDD:900 CDD 960

AGRADECIMENTOS Tal como as dividades que colaboraram com faraó em sua ascensão às Imperecíveis, ao longo destes anos de graduação muitas pessoas formam e ainda são importantes nesta minha transição para uma outra vida, uma na qual poderei reiterar meu amor pelos estudos históricos. Meus mais profundos agradecimentos a todos vocês. Citando Isaac Newton, “Se vi mais longe foi por estar sobre ombros de gigantes”. Aos professores Beatris Gonçalves, Cecília Guimarães, César Ornellas, Eloisa Souto, Marcellos Caldeira, Milla Câmara, Priscila Aquino, Rafael Araújo e Sérgio Câmara aos quais admiro profundamente. Agradeço aos mestres com carinho. Agradeço a Nely Feitoza Arrais, minha caríssima orientadora. Obrigado por me fazer renovar minhas paixões pela História Antiga e pela mitologia, por me iniciar nos estudos sobre o maravilhoso Egito e por me guiar nesta pesquisa sobre o Hino Canibal ao longo deste último ano. Minha ambição é levar adiante o que aprendi. Aos queridos tios José Paulo de Paula, Renata Turba de Paula e Paulo César d’Ávila, pessoas mais do que amadas na minha vida e que contibuiram imensamente para minha formação como pessoa. Também a Eduardo e Rachel de Paula, bem como Henrique e Bernardo Viestel, estes irmãos que a vida me deu. Obrigado por existirem! Aos amados amigos, irmãos e gurus Caique Costa da Silva Ribeiro e Heitor Mello de Almeida. Agradeço do fundo de minha alma por estes anjos fazerem parte da minha vida a exatos 15 anos. Eu não teria chegado tão longe sem o apoio e a torcida de vocês. Aos meus avós Amélia Rosa Perpétuo Torviso, Fernando Pereira de Freitas (In Memoriam), Leila Yone Hasselmann de Freitas e Roberto Torviso (In Memoriam). Inclusive os de consideração – Armando e Marlene Noel – que, infelizmente, se foram. Por fim, mas jamais menos importante, aos amigos de outras terras, a saber: Bárbara Duarte, Sophia Rodrigues e João Pedro Osawa. Este trabalho não existiria sem o apoio de vocês.

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo a exposição do Hino Canibal enquanto recente objeto de estudo, apresentando as primeiras pesquisas efetivamente debruçadas sobre o mesmo. Analisando o contexto no qual esta parte da tradição foi transferida da oralidade para um corpus da literatura funerária egípcia, a saber, os Textos das Pirâmides, bem como os principais elementos da civilização na qual se insere, visamos refletir sobre a relação do texto com seu meio sociocultural. Se tratando de um trabalho de divulgação, fizemos questão de expor as fontes, sejam as fontes primárias ou as referências bibliográficas, a fim de melhor contribuir para com futuros pesquisadores.

Palavras-chave: Hino Canibal, Egito antigo, faraó, Reino Antigo, Textos das Pirâmides.

Sumário Apresentação .......................................................................................................................... 4 I – Contextualização: o Egito no tempo dos faraós ............................................................... 6 1.1 O faraó ......................................................................................................................... 10 1.2 Os Textos das Pirâmides ............................................................................................. 16 1.3 A concepção de vida post-mortem no Egito antigo ................................................... 19 II – Estudo de caso: o Hino Canibal .................................................................................... 23 2.1 As Declarações 273-274 .............................................................................................. 24 2.2 Considerações acerca de práticas antropofágicas no Egito ......................................... 28 III – Considerações finais ..................................................................................................... 33 IV – Referências bibliográficas ............................................................................................ 36 V – Anexos ............................................................................................................................. 38 Versão em inglês do Hino Canibal por Raymond Faulkner ............................................ 39 Tradução para o português do Hino Canibal ................................................................... 42 Transcrição do texto hieroglífico original por Kurt Sethe ............................................... 45

APRESENTAÇÃO

Este trabalho de conclusão de curso tem por objetivo analisar a tradição que se convencionou chamar os Textos das Pirâmides no intuito de elucidar uma característica específica da cultura egípcia, qual seja, a caracterização do faraó como um deus. Mais especificamente, o trabalho analisa o chamado hino canibal, parte integrante dos Textos das Pirâmides que ressalta a força e o poder do faraó perante os deuses e o cosmos egípcio. É de interesse acadêmico analisar tal passagem dos Textos das Pirâmides não somente pelo fato de haver pouco estudo acerca do Reino Antigo egípcio, devido à carência de fontes, como também por ainda menos pesquisas a respeito desta parte da produção literária egípcia. Além disso, vale lembrar que boa parte dos estudos em egiptologia tem sido realizada por filólogos e não são tantos os historiadores que se debruçam sobre o Egito, ainda mais o período do Reino Antigo, sendo necessária uma maior pesquisa histórica sobre este período. Para esta análise, alguns objetivos foram traçados a fim de entender as bases do sagrado na concepção monárquica do Antigo Egito. Em primeiro lugar, desenvolver a questão do sagrado enquanto fundamentação do poder faraônico no Egito durante o Reino Antigo. Segundo, entender a relação do sagrado com a monarquia e vice-versa no Egito Antigo. Isso será ponto crucial para a segunda parte desta pesquisa, que é o estudo de caso que se propõe a analisar a presença do feitiço/encantamento ou hino canibal na pirâmide do faraó Unas. Tais objetivos foram determinados com base nas questões levantadas sobre o tema e principalmente sobre nosso estudo de caso. No primeiro capítulo desta dissertação, a questão central é pensar sobre o que os Textos das Pirâmides enquanto texto sagrado pode nos mostrar sobre a posição do faraó na hierarquia cósmica; isto é, se a teofania egípcia apresenta o faraó como um deus entre os demais ou superior a eles. Refletimos também sobre como esta fonte histórica pode nos dizer algo sobre a legitimidade de governar do faraó e de que modo os Textos das Pirâmides se relacionam ao seu contexto histórico e social. Quanto ao estudo de caso, trata-se de uma investigação sobre qual o papel desempenhado pelas declarações 273 e 274 dos Textos das Pirâmides no rito de passagem do faraó Unas do mundo dos vivos para o mundo dos mortos e como a historiografia lida com esta fonte e, em especial, com o hino canibal. Numa análise geral, as sociedades do antigo Oriente Próximo se relacionavam com o sagrado num convívio diário, tendo como seu maior expoente a teofania egípcia, não sendo

possível fragmentar tais sociedades em setores como economia ou política porque tudo se encontrava interligado e perpassado pela religião. Esta relação é melhor apresentada pela presença da monarquia sagrada, isto é, de um monarca que é tanto um deus quanto um governante e que, conforme apresenta os Textos das Pirâmides, é ordenador do mundo segundo a vontade dos outros deuses mas que, como o hino canibal nos mostra, é superior às divindades ao ponto de devorá-las. Ciente de tais aspectos parece-nos razoável supor que o sagrado teve um papel fundamental na formação e constituição do poder faraônico no Egito, com seu auge no Reino Antigo (c. 2686 a.C. – 2181a.C.). Pretende-se debruçar sobre esta pesquisa coletando dados em bibliografia previamente levantada com intuito de elaborar uma contextualização historiográfica – cujos autores de referência serão Ciro Flamarion Cardoso, Bruce Trigger e Maria Thereza David João – para, em seguida, recorrer à fonte primária (os Textos das Pirâmides) analisando-a em seu contexto histórico. Além disso, no segundo capítulo, visamos ainda expor as recentes pesquisas relacionadas ao Hino Canibal, tanto de Christopher Eyre (2002) quanto de Katja Goebs (2004; 2008), também discutindo a questão em torno das possíveis práticas de antropofagia no Egito que alguns egiptólogos supõem a partir da existência deste hino. Para tanto, será utilizado o material das paredes da pirâmide com os hieróglifos, bem como a tradução para o inglês de Faulkner, ambos disponíveis no endereço virtual: http://www.pyramidtextsonline.com/. Também contaremos com a tradução de James P. Allen que, juntamente com a de Faulkner, serviu de base para a adaptação para o português de nossa própria autoria, cuja finalidade é tornar ainda mais acessível o debate sobre esta fonte primária. Anexas ao final, juntamente com a versão em inglês e sua adaptação para o português das Declarações 273-274, estão as transcrições dos hieróglifos feitas pelo alemão Kurt Sethe, um dos primeiros compiladores dos Textos das Pirâmides para as línguas modernas (no caso, a língua alemã), no intuito de expor ao máximo as fontes primárias para que futuros interessados neste objeto de estudo possam ter acesso à fonte histórica trabalhada. Trata-se, portanto, de um trabalho que se propõe à divulgação das recentes pesquisas sobre o Hino Canibal, que será tanto contextualizado quanto devidamente problematizado ao longo de dois capítulos. De meras menções e referências o Hino Canibal passa a ser de fato ponto de partida para algumas investigações no início do século XXI, a exemplo de pesquisadores como Christopher Eyre, Katja Goebs e Arlette David.

CAPÍTULO 1 – CONTEXTUALIZAÇÃO: O EGITO NO TEMPO DOS FARAÓS.

Parece adequado iniciar este trabalho de pesquisa apresentando todo o contexto no qual os Textos das Pirâmides, bem como o Hino Canibal, se inserem antes de prosseguirmos para o estudo de caso e é a esta contextualização ao que se dedica este capítulo. A opção por este procedimento se justifica pela necessidade de compreender a sociedade na qual esta literatura é produzida para melhor abordar a fonte primária a qual investigaremos. No estudo da Antiguidade, especialmente ao nos debruçarmos sobre o antigo Oriente Próximo, alguns cuidados devem ser tomados a fim de realizarmos uma pesquisa sem corrompê-la por meio de anacronismos. De acordo com Ciro Flamarion Cardoso (1997), o erro mais recorrente em boa parcela dos estudos egiptológicos realizados ao longo do século XX é analisar as sociedades do antigo Oriente Próximo do mesmo modo como compreendemos as cidades e os Estados de atualidade. Nas palavras do autor: Estamos acostumados a considerar certas dimensões ou setores das sociedades de hoje – por exemplo, o Estado e a atividade política a ele vinculada, a economia e a religião – como coisas sem dúvida ligadas entre si de muitos modos, mas nem por isto passíveis de confusão ou indiferenciadas. (CARDOSO, 1997, p. 10)

Cardoso ressalta que, apesar disso, não considera de todo inválido o desmembramento de uma sociedade antiga do Oriente Próximo em categorias como política, religião, economia, cultura e relações interpessoais. Para ele, há casos em que esta inadequação teórica pode ser relevada, conforme constatamos na seguinte passagem: Note-se que esta verdade não impede que nós, pessoas de hoje, possamos perceber no antigo Oriente realidades especificamente políticas, econômicas e religiosas onde os homens daquela época não as percebiam, para finalidades analíticas ou de simplificação didática. Mas devemos levar em conta, o tempo todo, que se trata de um modo de ver nosso, que não é lícito atribuir aos homens antigos. (CARDOSO, 1997, p. 10)

A fim de exemplificar sua fala, o autor menciona a reforma amarniana de Akhenaten, interpretada pela historiografia até então, conforme Cardoso apresenta, "como algo análogo às disputas de poder entre imperadores e papas na Idade Média, com motivações mais políticas e econômicas do que religiosas.". Ignorava-se o fato de que o faraó tenha se utilizado da religião para reagir ao incremento de poder político e econômico do clero de Amon, assim como o papel da esfera "religiosa", isto é, dos sacerdotes e os templos, como parte constituinte do estado no âmbito local das províncias. Os sacerdotes, especialmente

10 aqueles membros do clero do deus solar Amon, recebiam tributos e concessões de terra sim, mas não era por isso que este clero estaria disputando o poder ou medindo forças contra o faraó, uma vez que há todo um imaginário ideológico que coloca o monarca como alguém tão superior quanto um deus e dessa forma apresentando toda sua potência divina e legitimando o seu poder sobre os mortais, sendo este imaginário um dos pontos principais a serem analisados neste momento de contextualização. Este mesmo imaginário atribui ao faraó a causa pelas enchentes do Nilo e a boa colheita, desta forma mostrando que a questão "econômica" também está ligada ao estado e ao sagrado. Com isso, Cardoso defende seu argumento sobre o equívoco de uma divisão das sociedades do antigo Oriente Próximo tais como compartimentamos nossas sociedades atuais. Até o século XIX, o conhecimento sobre a história egípcia enfrentava muitas dificuldades, como o acesso às fontes, de modo que não permitia uma investigação efetiva. Contando apenas com os relatos de escritores gregos (a exemplo do Livro II, apelidado "Euterpe", das Histórias1 de Heródoto) que, no geral, se resumem a listas de nomes e algumas anedotas, além da lista de reis de autoria do escriba Manethon2. Este último elabora uma cronologia do Egito faraônico contendo cerca de cento e noventa reis agrupados em trinta dinastias que supostamente reinaram durante a longa duração do Estado egípcio. Por conta da dificuldade em nos situarmos em meio a esta grande quantidade de nomes, a academia convencionou uma divisão da história egípcia em quatro grandes períodos: o Reino Antigo, o Reino Médio, o Reino Novo e o Período Superior ou a Decadência (VERCOUTTER, 1986, p. 34). Apesar disso, a periodização da história do Egito que se inspirou na lista de Manethon tratou apenas da história de um Estado consolidado e os acadêmicos acharam adequado dividir os mais de três mil anos de história egípcia dentre três grandes eras: um Egito prédinástico, isto é, anterior ao surgimento do Estado unificado; um Egito faraônico; e um Egito greco-romano de após a dominação macedônica até o domínio romano consequente da batalha de Ácio em 31 a.C.. Da mesma forma incluíram os períodos intermediários, isto é, os intervalos de crise política e, consequentemente, de todo o Estado egípcio, quando havia territórios dominados por estrangeiros, dinastias paralelas ao governo central, fome, 1

Para maiores detalhes ver: HERÔDOTOS. História. Tradução e comentários de Mário da Gama Kury. Brasília: UNB, 1988. 2 Sacerdote do período ptolomaico que, a pedido do faraó, teria escrito a obra conhecida como Aegyptiaca. Trata-se de uma espécie de cronologia do Egito faraônico na forma de uma lista de nomes acompanhados pelas durações dos reinados.

11 problemas sociais ou todos estes pontos em conjunto. Há ainda uma espécie de período de transição do Pré-dinástico para o Reino Antigo, o chamado período protodinástico, dinástico primevo ou tinita, referente às duas primeiras dinastias. Se a unificação do Alto e do Baixo Egito representa a fundação do estado egípcio faraônico como um sistema administrativo centralizado, pode-se dizer que o Período Tinita foi o momento de consolidação e estruturação do Egito tal como será no Reino Antigo. Portanto, durante este período é que são definidos os elementos fundamentais da civilização egípcia que a acompanharão ao longo de toda sua experiência histórica, isso porque o Egito antigo não sofreu nenhuma mudança radical em sua longa existência, sendo por isso inclusive que Vercoutter lhe atribui o título de povo "menos revolucionário do mundo" (VERCOUTTER, 1986, p 19). Estes elementos, muitos deles resquícios de práticas do prédinástico, persistirão até os períodos da dominação ptolomaica e romana sofrendo, no máximo, transformações tão brandas que é possível dizer que se trataram de adaptações ou atualizações de elementos obsoletos para novos tempos. Analisando a organização do sumário de O Egito Antigo, de autoria de Jean Vercoutter, é possível deduzir que o autor considera a história do antigo Oriente Próximo egípcio dentro de três grandes blocos: os chamados Séculos Obscuros, compreendendo o período pré-dinástico e o período tinita (referente ao tempo das I e II dinastias), tendo sua nomenclatura justificada pela escassez de fontes históricas e achados arqueológicos referentes ao período; o que chamou Egito Clássico, referente à clássica divisão cronológica dos três reinos, o Reino Antigo, o Primeiro Período Intermediário, o Reino Médio, o Segundo Reino Intermediário e o Reino Novo; por fim, a fase de Decadência, quando ocorrem as invasões assírias e persas e se encerra com a conquista de Alexandre Magno e a dinastia dos Ptolomeus. Deixemos claro que se trata da visão pessoal de um egiptólogo dos anos 1950 e que a comunidade científica estabeleceu parâmetros historiográficos para a história do Egito diferentes da divisão trina de Vercoutter. Mais de três milênios de história estão compartimentados nesta divisão pessoal frente à história do Egito faraônico, sendo uma tentativa de organizar os estudos egiptológicos. Numa abordagem ampla utilizamos os Reinos como referencial, mas as dinastias também são usadas com muita frequência como referência temporal no estudo da história egípcia. Vercoutter declara que "pode-se dizer, sem exageros, que a redescoberta do Egito data da "Description de l'Egypte", uma série de publicações científicas de 1809 a 1829 sobre pesquisas e descobertas referentes tanto ao Egito antigo quanto ao da época das expedições

12 cientificas. (Cf. VERCOUTTER, 1986, p.11). Com estas expedições científicas francesas durante a era napoleônica, começa a surgir um interesse pela pesquisa histórica, embora fosse perpassada a ideia de dever de uma nação "civilizada" comprometendo-se a preservar a história da humanidade, inclusive com o confisco de peças e achados arqueológicos pertinentes a outros estados, justificado pelo argumento de que estes não teriam condições de arcar com tal responsabilidade sobre o legado das civilizações da antiguidade. Alguns exemplos dessa apropriação da história alheia em nome da "humanidade" são o obelisco na Place de la Concorde, em Paris, os vários pedaços de papiro no acervo do London British Museum, e até mesmo as múmias da coleção particular de D. Pedro II, famosas pela anedota na qual se diz que estes cadáveres embalsamados passaram pela alfândega brasileira como "carne seca". Por mais questionável que seja esta prática das potências mundiais, ela é uma fato e, uma vez que nos estudos históricos não se lida com possibilidades que não se concretizaram ("e se..." e afins), devem, sim, ser levados em conta durante a pesquisa, ainda mais pelo fato de tal prática de apropriação imperialista de patrimônio da humanidade ter sido um fator importantíssimo sem o qual (muito provavelmente) não seria possível estudar a história do Egito antigo, pois será graças a isso que Jean-François Champollion (1790-1832) terá as condições necessárias para conseguir decifrar o código da escrita hieroglífica, permitindo assim a aproximação direta dos egiptólogos com egípcios da antiguidade por dar voz às suas próprias fontes. Ao nosso recorte interessa apenas o Reino Antigo, embora os períodos pré-dinástico e tinita nos sejam interessantes quando avançamos para o estudo de caso, num segundo momento. Isso porque, como mencionado anteriormente, o Egito foi um estado que, na antiguidade, possuiu uma continuidade de seus elementos básicos jamais vista igual na história até hoje muitos dos elementos presentes no Reino Antigo e que serão mantidos praticamente inalterados até a dominação romana tem sua origem nos períodos pré-dinástico e tinita. A unidade administrativa no mundo egípcio era o spat ou nomo, que de lideranças locais, no pré-dinástico, tornam-se as províncias do estado egípcio. Sua economia era redistributiva e, ainda no Pré-dinástico, se iniciarão, após as colheitas tornarem-se fartas a ponto de haver produção e armazenamento de excedentes, troca de bens com outros povos, a exemplo dos minoicos e dos povos do Sinai. Voltaremos a este ponto mais adiante quando tratarmos do faraó.

13 Os grupos sociais variam de acordo com o recorte cronológico. Durante o Reino Antigo constam os seguintes: sacerdotes, funcionários públicos, artesãos e camponeses. Diferente dos sacerdotes que compõem um grupo social em fins do Reino Antigo, os militares não haviam sido organizados enquanto um grupo social específico neste período. Para os acadêmicos atuais, lidar com uma "pirâmide social" no mundo faraônico é equivocado, adaptando o discurso para uma espécie de hierarquia radial, uma vez que, considerando o imaginário egípcio daquele tempo, as relações de poder se dariam pela proximidade em relação ao faraó. Quanto mais próximo do rei-deus, melhor seria a satisfação pessoal. Esse pensamento justifica a mobilização de uma grande contingente de pessoas para o árduo trabalho de construir uma edificação monumental cuja função seria, nada mais nada menos, que guardar o cadáver do monarca. Neste capítulo buscamos esclarecer três elementos do Reino Antigo egípcio a fim de prosseguirmos melhor munidos conceitualmente para o estudo de caso do Hino Canibal. Primeiro, a figura do faraó, apresentando como as explicações mitológicas da formação do universo e do surgimento da monarquia sagrada egípcia fundamentam sua legitimidade, bem como seu papel naquela sociedade e no imaginário egípcio, suas funções e atribuições. Em seguida, os Textos das Pirâmides será nosso objeto, pensando seu gênero literário, sua produção e sua finalidade no mundo egípcio do Reino Antigo, estabelecendo relação entre o faraó com esta produção literária e a concepção de post-mortem no Egito antigo, conceito ao qual nos dedicaremos a analisar na parte final deste capítulo.

1.1 O FARAÓ. O primeiro elemento da sociedade egípcia que deve ser destacado é o fato de ser hierarquizada tendo, em seu centro, a figura do faraó, o monarca divino. Sendo o faraó elemento fundamental no estudo de caso que trabalharemos no capítulo seguinte, faz-se necessário apresentá-lo juntamente a seus principais atributos. Ao contrário das outras monarquias sagradas do antigo Oriente Próximo, o faraó não era um representante da vontade divina como na monarquia sagrada mesopotâmica ou um mortal ungido pela graça divina como no caso judeu, mas era ele próprio um deus na Terra. 3 Isso significa que sua palavra é a verdade irredutível, suas ordens são mandamentos como de qualquer outro deus, o solo em que pisa o faraó é sagrado, etc. 3

: Para maiores detalhes sobre a monarquia sagrada no caso mesopotâmico e da antiga Israel, ver CARDOSO, C. F. S. Antiguidade oriental: política e religião. 2ª Ed. São Paulo: Contexto, 1997.

14 Segundo Cardoso, é durante as três primeiras dinastias que aparece e consolida-se a chamada Grande Tradição, isto é, a tradição cultural e teoria político-religiosa centrada na figura do rei-deus. A cosmogonia conhecida como Enéada Heliopolitana reflete bem esta tradição, uma vez que a criação do mundo organizado se conclui com o surgimento da monarquia sagrada egípcia, sendo o faraó quem encarna Hórus, filho póstumo do deus Osíris, e o sucede como rei dos vivos. Quanto a esta concomitância entre criação do universo e surgimento do estado faraônico, Cardoso corrobora esta ideia quando diz: "Um rei assim concebido simboliza a união do cósmico e do humano. Os egípcios acreditavam que o Estado faraônico surgira concomitantemente com o ato de criação do universo, e duraria tanto quanto o próprio cosmo". (CARDOSO, 1997, 48). Cardoso também analisa uma passagem longa dos Textos das Pirâmides para exemplificar o que era o faraó de acordo com esta tradição, explicando que, naquele trecho, o faraó expõe as razões que legitimam seu direito divino de governar, além de outros de pontos que não é interessante discorremos. Também constam deste tempo a formação das instituições, embora não haja continuidade ou hierarquia explícita, e a concessão de cargos administrativos e de funcionalismo público pelo rei a seus parentes, tais como a chefia de um nomo ou o sacerdócio de um determinado deus. (CARDOSO, 1997, p. 42 e 43). Em seu texto, Bruce Trigger corrobora a importância da Grande Tradição como seguradora do estado faraônico, juntamente com a existência de um sistema administrativo centralizado, afirmando que, mesmo em tempos de crise política, dominava o pensamento da elite egípcia. (TRIGGER, 1983, p. 69). A hereditariedade do poder não era pela figura paterna, e sim pela materna. A chamada esposa principal (geralmente parente próxima do faraó, em muitos casos, sua irmã) era a portadora o sangue divino, tanto que, caso o faraó anterior tivesse herdeiro com concubina ou o soberano não fosse nascido na família real, era prática comum casar-se com uma meio-irmã que fosse herdeira legítima, isto é filha do faraó e da esposa principal. Embora a história faraônica seja dividida por dinastias e, portanto, havendo clara relação hereditária de poder, o faraó não nascia divino, como afirma Cardoso quando diz que "embora a hereditariedade fosse de regra e a dinastia reinante carregasse consigo o sangue divino, não era ao nascer, e sim ao ser coroado, que o rei do Egito assumia o seu caráter divino" (CARDOSO, 1997, p. 46). Por isso, a sucessão do trono no antigo Egito não se tratava de um mero "o rei está morto, vida longa ao rei", mas havia um ritual, uma cerimônia de entronização (como

15 costumam chamar os egiptólogos) que iria atribuir ao sucessor do falecido monarca sua condição enquanto rei-deus. Além disso, havia outra cerimônia, conhecida como festival Sed, que era uma renovação do poder monárquico que ocorria após os primeiros trinta anos de reinado. O festival Sed consistia na morte e no renascimento simbólico do monarca através de provas físicas que, no fundo, refletiam a necessidade de avaliar se o faraó ainda está em condições de governar e houve uma teoria de que este festival resulta da transformação de uma prática regicida que supostamente existia no período pré-dinástico, mas não vem ao caso pensarmos a respeito do festival Sed mais do que pela sua característica como manutenção do poder régio. (CARDOSO, 1997, p. 43). Faz-se necessário apresentar um histórico da monarquia egípcia, mais especificamente de sua origem até o Reino Antigo, a fim de mostrarmos como efetiva surge o estado faraônico no terceiro milênio, uma vez que é o faraó o centro da literatura a qual nosso estudo de caso faz parte. Considera-se historiograficamente Egito faraônico o intervalo de tempo desde a unificação dos antigos reinos do Alto e do Baixo Egito com o rei Menés ou Narmer4 até a derrota de Cleópatra VII e a consequente dominação romana em 31 a.C.. Conforme nos conta Bruce Trigger, há muitas teorias sobre o aspecto político e cultural do Pré-dinástico que se propõem a explicar como seria a organização política daquele tempo. Para Cardoso, o controle sobre as cheias do Nilo por meio da irrigação antecede ao estado, o que contraria a teoria conhecida como hipótese causal hidráulica5; vale lembrar que as atividades econômicas principais do pré-dinástico eram a agricultura e o pastoreio e ambas se beneficiavam com as enchentes controladas, o que levou a produção de excedentes que torna possível e viável as trocas de bens com outros povos de regiões próximas. (TRIGGER, 1983, p. 44 e 45). Para Trigger, a nova economia pautada nas relações comerciais internas, bem como aquelas com os povos do sudoeste asiático, apresentava uma necessidade de integração e gerenciamento adequados, o que não só contribuiu para o fim da organização tribal como

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Aqui temos um exemplo de problema com relação às fontes textuais produzidas por estrangeiros, como é o caso das Histórias de Heródoto. O historiador grego nos conta ser Menés unificador dos dois reinos e, além de Heródoto, toda uma tradição de cronistas perpetuam o feito como autoria de Menés. Por outro lado, os achados arqueológicos atribuem o feito a Narmer. Não se sabe se são dois nomes, um estrangeiro e o outro autóctone, para a mesma pessoa ou se tratam de duas pessoas diferentes, o que demonstra a fragilidade do estudo acerca da história do antigo Egito. 5 Teoria atualmente desacreditada, afirmava que o estado egípcio surge a partir da necessidade de assegurar a irrigação, cuja manutenção só seria garantida por meio de um estado centralizado forte o bastante de modo que este fosse capaz de se impor sobre as províncias. De acordo com Ciro Flamarion Cardoso, o francês Jean Vercoutter foi um dos últimos a defender tal ideia.

16 motivou o desenvolvimento de uma sociedade com hierarquia mais complexa. Também foi consequência da demanda desta nova economia o desenvolvimento de cidades que desempenhavam tanto uma função econômica, como entrepostos comerciais, quanto administrativa, como centros de controle políticos. Estas cidades ao longo do Nilo adquirem aspectos culturais próprios de modo a constituir identidades locais, com destaque para o âmbito religioso, uma vez que, como Trigger nos conta, tais locais são considerados centros de culto a deuses principais. As lucrativas relações comerciais, juntamente com a mineração aurífera, despertam a cobiça das lideranças regionais, lançando-os uns contra os outros numa disputa feroz pelo domínio das rotas comerciais e dos pontos de extração. (TRIGGER, 1983, p. 48 e 49). De acordo com alguns teóricos, será esta competição pelo controle econômico que dará origem às confederações e posteriormente aos reinos do Alto Egito, ao sul, no Vale do Nilo, e do Baixo Egito, na região do Delta, ao norte. Trigger apresenta a interpretação de Frankfort a qual alega que "a ideia de um reino do norte foi criada para ser uma contraparte simbólica em relação ao reino do sul após uma série de conquistas de estados menores pelo Alto Egito", pois, "a ideia de dois reinos reflete a visão egípcia da totalidade sendo composta por opostos em equilibrada oposição".6. É uma teoria interessante, porém, sem provas que sustentem, assim como boa parte das teorias sobre o Pré-dinástico. Se houve de fato um reino do norte ou se foi um mito legado pela tradição, não é o principal; o importante é que isso é um elemento marcante na legitimação do poder real, uma vez que o faraó porta os títulos Nsw-bity ("Rei do Alto e do Baixo Egito"), Neb-tawy ("Senhor das Duas Terras") e Nebty ("Duas Senhoras") sendo, este último, associado às chamadas deusas heráldicas Nekhbet e Wadjet, divindades do Alto e do Baixo Egito respectivamente. Portanto, tais títulos implicam a ideia de dois reinos unidos governado por um único soberano. A teologia citada anteriormente, a Enéada Heliopolitana, é outro exemplo de elemento de legitimação do poder real que se utiliza da ideia de um Egito duplo, pois, no mito conhecido como a Contenda de Hórus e Set, no qual ambos os deuses disputam pelo trono vago após o assassinato do deus Osíris, as duas divindades em conflito simbolizam os dois reinos unificados pelo faraó. O rei-deus é o portador de Maat, "divindade tardia e artificial, encarnação da verdade e da justiça num só conceito", sendo ele, portanto, a impor ordem ao 6

FRANKFORT, H. "Kingship and the gods". Chicago, 1948 apud TRIGGER, B. et al. Ancient Egypt: a Social History. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.

17 caos. (CARDOSO, 1997, p. 44). Cardoso tem uma observação interessante quanto à unificação, baseada na Contenda de Hórus e Set: A monarquia dual que, na e pela figura do rei, o Vale (Alto Egito) e o Delta (Baixo Egito) e reconcilia os deuses inimigos Hórus e Set, significa o esmagamento da oposição tanto interna quanto externa, garantido pelos deuses ao outro deus que é o rei: uma oposição a um monarca como este é identificada com as forças do caos. (CARDOSO, 1997, p. 48)

O conceito de Maat é, literalmente, de vital importância para o mundo egípcio, isto porque é pela manutenção de Maat e pelo afastamento das forças do caos (Isefet) que a vida ordenada e justa prevalecia no território do antigo Egito. Não nos delongaremos numa reflexão sobre a deusa-conceito Maat, embora um breve esclarecimento sobre ela se faça necessário neste trabalho tendo como embasamento bibliográfico a dissertação de Giselle Marques Camara. Nas palavras da autora, esta deusa "costurou, pelo menos desde a terceira dinastia trama religiosa, política e social, de modo a possibilitar que o Estado egípcio fosse cultural e socialmente compreendido, ainda que apenas pela elite letrada, como o 'espelho de uma perfeita ordem cósmica'." (CAMARA, 2011, p.18). A fim de explicar sua importância para o Estado egípcio, Camara diz ainda que Maat "tornou-se o alicerce de toda a estrutura política e social do Estado faraônico, conferindo governabilidade ao monarca, e regendo o comportamento individual e coletivo do homem egípcio, por ser compreendida como a medida ética reguladora das ações humanas." (CAMARA, 2011, p. 19). Agora, onde o faraó entra nisso? Maat dificilmente age por si própria, cabendo aos homens e principalmente ao rei-deus mantê-la, uma vez que esta se encontra constantemente ameaçada pelas forças do caos. (Cf. DUNAND e ZIVIE-COCHE apud CAMARA, 2011, p. 19). Uma das relações entre o faraó e a deusa-conceito consiste no rei-deus oferecê-la aos deuses durante a cerimônia de entronização, tratando-se de um pacto de governabilidade, ou seja, ele se compromete a renovar diariamente a ordem e a justiça no cosmos. É importante lembrar que a relação entre Estado e Maat é tão forte que sem um não existe o outro; daí justifica-se a visão destes sobre o que chamamos períodos intermediários, nos quais o estado faraônico encontra-se em crise, tanto por invasões estrangeiras quanto por lideranças paralelas ao faraó, o que indicia a importância do governo centralizado para aquela sociedade. Nas palavras de Camara:

Se o Estado desmoronasse, segundo Jan Assmann, isso também ocorreria com Maat, força harmonizadora e justiça conectiva que unifica todos os seres humanos, os

18 animais, os deuses, os mortos o cosmo. Todo o universo de práticas e ações partilhadas entre os homens – a linguagem, o conhecimento, a memória – iriam desaparecer, pois o intacto círculo de existência e circulação de sentido seria quebrado. A presença da deusa manifestada em um bom governo e na manutenção do culto aos deuses consistia no verdadeiro sentido e missão do Estado. (CAMARA, 2011, p. 22)

Como mencionado anteriormente, no Reino Antigo, o faraó incorporava todas as instituições e, portanto, detinha muitas atribuições. Era ele, por exemplo, o supremo sacerdote, uma vez que os sacerdotes ainda não compunham efetivamente um grupo social naquele tempo, sendo o faraó responsável pelos cultos e construção de templos. Aliás, a construção civil era, no Egito antigo, uma questão política, pois é sabido que faraós de todas as dinastias "disputavam" entre si, propondo-se a construir sempre mais, melhor e maior que seus antecessores, mas não é interessante para o objetivo deste trabalho aprofundar este comentário. Além do sacerdócio, o faraó era responsável pela indicação dos funcionários públicos, inclusive os nomarcas (os administradores locais dos nomos ou províncias), geralmente parentes seus, como afirma Cardoso: "O rei designa em muitos casos parentes seus para as funções mais altas, entre elas a chefia dos nomos ou províncias." (Cf. CARDOSO, 1997, p. 43); este nepotismo muito provavelmente se trata de uma estratégia política para a consolidação do sistema administrativo centralizado encontrado no Egito do Reino Antigo. Por último, mas não menos importante, temos o faraó como responsável pela economia redistributiva, isto é, cabe ao faraó distribuir o excedente das colheitas produtivas graças às cheias do Nilo entre seus súditos como forma de manutenção daquela força de trabalho. Consolidado o estado faraônico, inicia-se com a III dinastia o período que podemos efetivamente chamar Reino Antigo, aquele que, segundo Vercoutter, era tido pelos egípcios do período da Decadência como a idade de ouro que pretendiam reviver (VERCOUTTER, 1986, p. 56). É a partir desta dinastia, com o faraó Djoser e seu vizir Imhotep, que se inicia a "era das pirâmides". É graças à prosperidade e estabilidade durante o Reino Antigo que foi possível o surgimento deste tipo de construção, uma forma mais refinada das tumbas mastabas que, então, eram destinadas aos oficiais mais altos da sociedade egípcia. A exclusividade de uso das pirâmides pelos faraós apenas corrobora a relação de poder inerente ao status de rei-deus. As pirâmides desempenhavam uma função ritual e funerária no Egito antigo, sendo não apenas o local no qual sepultavam o soberano como também, a

19 partir do faraó Unas7, será responsável pelo sucesso de sua transição para a outra vida junto aos deuses; isso porque é na pirâmide de Unas que encontramos o mais antigo texto sagrado conhecido da humanidade, o que se convencionou chamar Textos das Pirâmides, que será melhor apresentado a seguir.

1.2 OS TEXTOS DAS PIRÂMIDES. Em obra conjunta com Bruce Trigger, o arqueólogo e egiptólogo inglês Barry J. Kemp afirmou que uma das três fontes textuais mais importantes do Reino Antigo e do Reino Médio que lidam com a monarquia sagrada é justamente os Textos ou o "Livro" das Pirâmides. Esta coletânea de textos funerários desempenhou uma importante função no Egito antigo e a ele dedicaremos uma explicação aprofundada. A literatura que convencionou chamar Textos das Pirâmides consiste nos escritos descobertos em 1881 nas paredes internas de cinco pirâmides pertencentes aos faraós Unas (2356-2323 a.C.; V dinastia), Teti (2323-2291 a.C.; VI dinastia), Pepi I (2289-2255 a.C.; VI dinastia), Merenre (2255-2246 a.C.; VI dinastia) e Pepi II (2246-2152 a.C.; VI dinastia) principalmente, já que também foram encontrados inscrições semelhantes nas pirâmides menores das rainhas de Pepi II e no templo mortuário de Ibi, faraó da VIII dinastia. O conjunto de textos mais antigo foi encontrado na pirâmide de Unas e é neste conjunto que consta nosso estudo de caso, o hino ou feitiço canibal, ainda que, conforme nos conta Maria Thereza David João, "Baines atesta que as composições mais antigas conhecidas como Textos das Pirâmides são aquelas encontradas no templo mortuário de Sahure (2458-2446 a.C.), também faraó da V dinastia, e não de Unas". (Cf. JOÃO, 2008, p. 74) Como dito anteriormente, as pirâmides desempenhavam não somente uma função funerária como também ritual, uma vez que proporcionaria uma travessia segura para junto dos deuses. Esta função ritual está ligada aos Textos das Pirâmides, uma série de encantamentos destinados a auxiliar o faraó em sua viagem rumo à "vida após a vida", uma parte da cosmovisão egípcia que apresentaremos com mais calma no item seguinte deste capítulo. Estes encantamentos, conforme nos conta João, eram armazenados e conservados (na medida do possível) dentro do palácio para eventuais cópias e o acesso a tais textos era muitíssimo limitado, sendo necessário inclusive um ritual de iniciação. Nas palavras da pesquisadora:

7

Controverso. Cf. JOÃO, 2008, p. 74.

20 A manutenção destes textos bem como o seu armazenamento para posteriores cópias nas pirâmides reais era realizado pelo palácio, pela corte, pela administração régia ou nos próprios templos destinados ao culto mortuário do faraó divino. O acesso a tais textos, contudo, estava sujeito a uma série de regras e, ao que tudo indica, exigia que sacerdotes especializados realizassem rituais de iniciação para tanto. Os textos estavam, provavelmente, colecionados em um corpus pelos sacerdotes de Rá em Heliópolis. (JOÃO, 2008, p. 75)

Ela afirma também que os textos das pirâmides "são uma compilação de textos anteriores, e carregam consigo representações de várias tradições existentes até então." (JOÃO, 2008, p. 75). Segundo Taylor, estes textos são "representantes do estágio formativo da tradição dos textos funerários egípcios, dos quais os maios importantes são os Textos dos Sarcófagos [do Reino Médio] e o Livro dos Mortos, este desenvolvido durante o Reino Novo." (Cf. JOÃO, 2008, p. 76) e, como desenvolve a autora em sua dissertação, estes textos funerários posteriores representam um processo de "democratização" da imortalidade, que é o tema ao qual se propôs em sua dissertação e, para maiores detalhes sobre o processo de democratização do Reino Antigo para o Reino Médio, recomenda-se tal trabalho de conclusão de pós-graduação como leitura. O que nos interessa em sua pesquisa são as informações e discussões referentes unicamente aos Textos das Pirâmides. A imortalidade no Reino Antigo era "reservada ao monarca, e o máximo que as pessoas comuns poderiam esperar era continuar a existir após a morte da mesma forma em que viveram neste mundo" (JOÃO, 2008, p. 76). A principal função da coletânea de declarações, hinos e encantamentos que compunha os Textos das Pirâmides era assegurar a transição bem sucedida do faraó para seu estado transfigurado, o akh, e, portanto, dedicavase à ressurreição do rei-deus e sua ascensão ao céu para junto dos deuses. Este akh tinha as mesmas necessidades que tinha quando vivo e, por isso, havia um templo de culto ao falecido em seu respectivo complexo de pirâmide dedicado a orações, oferendas para alimentar o morto ou suprir quaisquer outros tipos de necessidade que o faraó pudesse vir a ter. João atenta, contudo, para uma advertência de Baines, quem alega que "estas coleções de textos não apresentavam tudo o que seria necessário ao morto no outro mundo." (JOÃO, 2008, p. 76). A autora também diz que a organização e os temas são muito diversos para agrupá-los. Apesar disso, ela apresenta uma divisão com base na leitura de J. P. Allen, separando-os em três tipos. Há as passagens de "tipo mágico, cujo tema é a defesa do faraó frente a cobras e demais criaturas perigosas" que habitam o caminho para o outro mundo, citando como

21 exemplo o encantamento 2338. Há também os chamados textos rituais que, conforme João, "serviam como uma espécie de roteiro associando-o diretamente a Osíris. Os textos rituais, por sua vez, possuem dois temas principais: oferendas e ressurreição (passagem para o outro mundo)" (JOÃO, 2008, p.77). O exemplo citado para este tipo foi o encantamento 72 9. Por fim, temos o tipo referente aos encantamentos pessoais, isto é, "para uso pessoal do falecido", sendo "o maior e mais variado conjunto dentro dos Textos das Pirâmides". O encantamento 21710 foi citado como exemplo desta vez. João apresenta os três tipos de encantamento fazendo questão de dizer a localização predominante de cada um dentro da pirâmide, isso porque se acredita que, ao despertar como akh, o faraó precisaria ler estes encantamentos desde a câmara do sarcófago até a saída da pirâmide para que pudesse se unir aos deuses, daí a importância de localizar as passagens, mas não é nossa preocupação aqui. O francês Gaston Maspero foi o primeiro a editar os Textos das Pirâmides, publicação esta realizada em diversos volumes do jornal Ricueil, e, embora se limitasse às descobertas realizadas até então, foi um primeiro passo no processo de acessibilidade aos estudos sobre o Reino Antigo e a cultura do Egito faraônico. Também foi publicado em 1910 pelo alemão Kurt Sethe em título único, Die altaegyptischen Pyramidentexte, bem como uma tradução do alemão para o inglês de Raymond Faulkner em 1969 e, posteriormente, outra de autoria de James Peter Allen. Ao todo, trata-se 759 passagens distintas, organizadas de diferentes formas por cada autor. Optamos pelas duas traduções para o inglês neste trabalho de conclusão de curso, tendo como foco a pirâmide de Unas, acompanhadas pela fonte primária11 disponível online num site que conta com imagens digitalizadas das paredes da pirâmide. Como conta João (e podemos constatar pelas fotografias), os textos da pirâmide de Unas foram "esculpidos nas paredes da câmara e a [sic!] da antecâmara funerária de Unasque totalizam 228 encantamentos – estão na vertical, sem acompanhamento de imagens, e pintados na cor verde, que é associada à regeneração." (JOÃO, 2008, p.74). Nosso estudo de caso, as declarações 273-274 conhecidas como hino canibal, é parte integrante do texto encontrado apenas na pirâmide do faraó Unas e na de seu sucessor, Teti, 8

"Cai, ó serpente que saiu da terra! Cai, ó chama, que veio do Abismo! Cai, rasteje para fora!" TP 233 in: Faulkner, 1969. In. JOÃO, 2008, p.77. (Tradução da autora). 9 "Recita quatro vezes: Ó Osíris o Rei, eu enchi teu olho para ti com o unguento-perfume". TP 72 in: Faulkner, 1969. In. JOÃO, 2008, p.78. (Tradução da autora). 10 "[...] Seth, Néftis, proclamam aos deuses do Alto Egito e seus espíritos: 'Este Unas vem, um espírito indestrutível, se ele desejar que tu morras, tu morrerás, se ele desejar que tu vivas, tu viverás!' [...]" TP 217 in: Faulkner, 1969. In. JOÃO, 2008, p.78. (Tradução da autora). 11 Disponível para consulta no endereço eletrônico: http://www.pyramidtextsonline.com/.

22 e será a esta passagem que dedicaremos uma melhor apresentação no próximo capítulo.

1.3 A CONCEPÇÃO DE VIDA POST-MORTEM NO EGITO ANTIGO. Talvez a característica mais intrigante da cultura egípcia seja a sua concretude e, com isso, queremos dizer que seus aspectos sociais, cotidianos e religiosos estão muito ligados às relações encontradas na natureza, não sendo as noções de vida, morte e post-mortem exceções. Sobre esta inspiração dos fenômenos da natureza no imaginário egípcio, podemos percebê-lo, por exemplo, na imagem do deus Khepri (também conhecido como Kheper, Khepra e Khepre), representado como um escaravelho, inseto cuja associação não só com o deus Khepri e a função por ele desempenhada como também à ideia de força física não é aleatória, uma vez que o ato destes artrópodes de rolar bolas de esterco maiores e mais pesadas que eles próprios foi compreendido pelos antigos egípcios como a força que move o disco solar pelo céu. Há diversos exemplos que podem ser utilizados para sustentar a ideia de fenômenos naturais influenciando a mentalidade do egípcio e, consequentemente, sua forma de ver o mundo, mas não nos seria interessante, podendo nos desviar de nosso objetivo. Apesar disso, este aspecto cultural do antigo Egito é importante para pensarmos sobre a concepção de post-mortem daquela civilização. A noção temporal, para o egípcio, não era pautada na ideia linear de sucessão de acontecimentos, mas "na ideia de um tempo ligado ao eterno, ao permanente, que, mesmo quando comportava a mudança, era apenas para que seu estado anterior fosse restaurado, revivido em ciclos, tal como ocorre com os movimentos da natureza." (CAMARA, 2011, p. 17). A temporalidade para os egípcios era cíclica, noção muito inspirada nos movimentos celestes ao longo do dia. Para eles, o dia começava com o nascimento do deus solar na alvorada e se estendia até o anoitecer, pois, ao cair da noite, acreditava-se que o deus havia morrido e estava fazendo sua travessia pelo mundo dos mortos para poder renascer algumas horas depois. Este processo, inspirado aos egípcios pelo movimento do sol e sua substituição pela lua durante a noite, se repetiria dia após dia até o fim do universo e tem tudo a ver com a existência, tanto a humana quanto a divina e a cósmica. Cardoso (1999) afirma que, até o momento, foram classificadas três concepções sobre a vida após a morte na religião egípcia a partir da literatura e da iconografia funerárias: 1) um destino terreno, a ressurreição da múmia dentro da tumba; 2) um destino celeste, uma ascensão aos céus para junto dos deuses na barca solar; 3) um destino osiriano, isto é, uma

23 vida no mundo subterrâneo de Osíris. Estas coexistem, podendo ser confrontadas em textos funerários, como veremos, e, em certos períodos da história do Egito antigo, fundem-se. Por mais que a ideia de múltiplas possibilidades do que aconteceria alternativa ou simultaneamente após a morte pode nos parecer estranha, é bom lembrar que os egípcios não compreendem o mundo da mesma forma engessada como nós tentamos compreendê-lo. O destino que se segue na outra vida depende não apenas de quem você é (como no caso do destino celeste, reservado aos faraós) como também do conhecimento que você possui, visto que são necessários diversos encantamentos para ajudar o morto numa transição tranquila entre as duas vidas. O encantamento 245 presente nos Textos das Pirâmides (que, como mencionamos no item anterior, está intimamente ligado às práticas funerárias e à passagem para a outra vida) é o exemplo exposto pelo autor para demonstrar uma contraposição entre duas concepções de vida após a morte:

"Que possas abrir teu lugar no céu entre as estrelas celestes, pois tu és a Estrela Solitária [= a estrela da manhã], o companheiro de Hu [= deus que personifica o alimento]. Olha lá embaixo Osíris, quando governa os mortos, pois tomas posição longe dele: tu não estás entre eles [i.e. o rei não está entre os mortos governados por Osíris], tu não és um dentre eles." (CARDOSO, 1999, p. 109).

Na passagem citada, o destino celeste e o destino osiriano se opõem e podemos perceber nesta passagem uma clara diferença entre as duas vidas após a morte, dada a depreciação do destino osiriano em relação ao destino celeste. Isso ocorre porque, apesar de coexistirem, o faraó é um deus, ao contrário de seus súditos mortais e, portanto, seu destino seria diferente daquele dos homens comuns. Os mortais justificados12 viveriam suas vidas como eram em vida, só que agora no mundo dos mortos onde Osíris é soberano. Em sua posição divina como Hórus encarnado (rei-deus), de forma alguma o faraó se submeteria à subserviência no mundo de Osíris e, por isso, seu destino seria diferente, nos céus. Isso serve como exemplo de como os textos funerários podem dizer muito sobre o imaginário que sustenta o poder faraônico, visto que nesta passagem a diferenciação do faraó em relação a seus subalternos aparece de forma bastante evidente. Cardoso nos conta também que a ontologia dos egípcios antigos apresentava uma ideia do ser composto por cinco partes – o nome, a sombra, o coração, o ba e o ka – sendo estes elementos de cruciais para compreendermos o a concepção do post-mortem no Egito. 12

Nomenclatura atribuída a um homem comum ou cortesão falecido que tenha se provado digno na pesagem do coração de viver reino de Osíris.

24 O nome (ren) era importante não somente no Egito como em muitas sociedades humanas, visto o poder inerente à palavra, cerne das práticas de feitiçaria e magia tão comuns na história da humanidade. Exemplo disso é clássica ameaça: "Apagarei seu nome da história", uma vez que o nome é um elemento de perpetuação. Disso podemos arriscar um palpite sobre a escrita do nome do falecido dentro das pirâmides: se estas eram construídas para durar pela eternidade, se o nome, parte constitutiva do ser, estava entalhado em suas paredes, então uma parte do morto permaneceria ligada ao cosmos. Mesmo perdendo todos os outros elementos sua existência se perpetuaria enquanto a pirâmide mantivesse seu nome intato. Referente ao nome enquanto elemento ontológico, Cardoso nos conta que "para um egípcio, o próprio fato de seu nome ser pronunciado serviria como uma garantia contra a aniquilação do ser, posto que, de certo modo, o nome é aquilo que representa" (1999, p.106). A sombra (shwt) talvez seja o elemento mais curioso, a começar pelo motivo de escolhê-la como parte ontológica. A sombra de uma pessoa está sempre com o indivíduo, grudada nele, mesmo durante a noite, quando ela está conosco mesmo que não a vejamos. De acordo com Cardoso (1999), o signo de shwt "remete tanto à noção sombra no sentido físico e à de proteção; bem como a uma entidade ou parte de uma pessoa capaz de conter e transferir poder". O autor diz ainda que certos textos atribuem à sombra a capacidade de se mover a uma grande velocidade. Havia também o coração (ib), o qual acreditava-se ser a "sede do intelecto". Para os egípcios, não se pensava com o cérebro, mas sim com o coração e eles tinham algo semelhante a nossa ideia de "consciência pesada". É por isso que a literatura e a iconografia mortuária populares do Reino Novo apresenta a pesagem do coração em contraposição a Maat, pois o coração precisava ser mais leve que a pena que presentifica a deusa-conceito a fim de que o morto fosse justificado (considerado digno de viver no mundo subterrâneo governado por Osíris). Os dois últimos elementos valem ser apresentados em conjunto e logo veremos o porquê disso. O ka (o "princípio do sustento") simbolizava a força vital que garante a continuidade do ser física, era representado como uma duplicata nua do indivíduo e era este o elemento a usufruir das oferendas. Já o ba é entendido pelos egiptólogos como o "princípio de mobilidade", capaz de mover-se inclusive entre dimensões do cosmos. Agora, se o ka deve usufruir das oferendas e estas são deixadas do lado de fora da pirâmide, como isso acontece? Sendo o ka o "princípio de sustento" que usufruirá da oferenda e o ba o "princípio da mobilidade" capaz até de deslocar-se entre as dimensões, um coopera com o

25 outro para a manutenção da existência do ser: ambos se fundem, formando um terceiro elemento, o akh, uma espécie de espírito através do qual o morto se manifesta em sua vida após a morte pela eternidade (Cf. CARDOSO, 1999, p. 106). A forma como os egípcios concebem a vida após a morte é um tema muito abrangente, sendo provavelmente o assunto ao qual mais pesquisas foram dedicadas, devendo-se muito à popularidade das múmias dentro da indústria cultural. Apesar disso, não é este o objetivo da pesquisa a qual nos propusemos com este trabalho. Foi nossa intenção neste subitem apresentar de forma sucinta os três destinos possíveis, com foco no destino celeste, e os elementos constituintes do ser porque lidaremos com estes conceitos no capítulo seguinte, dedicado ao estudo de caso de uma passagem dos Textos das Pirâmides.

CAPÍTULO 2 – ESTUDO DE CASO: O HINO CANIBAL.

Começamos agora a nos debruçar sobre o nosso estudo de caso: as Declarações 273274 dos Textos das Pirâmides encontradas na pirâmide do faraó Unas. Trata-se da passagem do texto de sua pirâmide que inicia a ascensão do faraó ao céu e abre, conforme Allen (2005), o grupo dos "Encantamentos para o Renascimento do Espírito" 13. A escolha por este objeto para nossa investigação foi simples: além de percebermos que as Declarações 273-274 apresentam o ápice do poder divino do faraó (quem devora os deuses), também pudemos perceber que o Hino ou Encantamento Canibal14 aparecia de forma muito pontual nas teses e publicações sobre o Egito, limitando-se a ser uma mísera menção ou nota de rodapé, ou seja, não era um assunto no qual tivessem se aprofundado, seja pela carência de fontes, seja por falta de interesse. Confirmamos a marginalização do Hino Canibal quando procuramos bibliografia para este estudo de caso, mas felizmente também nos motivamos neste mesmo processo porque encontramos autores que nos anos 2000 publicaram trabalhos mais amplos ou mais incisivos sobre os encantamentos 273-274. Em 2002, o professor Christopher Eyre, da University of Liverpool, publicou o livro The Cannibal Hymn: a Social and Literary Study no qual se dedicou a uma análise das Declarações 273-274 dos Textos das Pirâmides, referentes ao Hino Canibal. É uma obra que se encontra atualmente indisponível para vendas e que teria contribuído muito para uma melhor investigação neste nosso estudo de caso. Descobrimos também outra egiptóloga que se propôs dedicar uma parte de sua carreira acadêmica a esta passagem ofuscada da literatura funerária egípcia. Katja Goebs, professora na University of Toronto, publicou em 2008 o livro Crowns in Egyptian Funerary Texts no qual discorre em poucas páginas algumas considerações sobre a questão em torno de possíveis práticas canibais no Egito antigo. Ela também publicou um artigo analisando mudanças e permanências na produção textual do Hino Canibal tal como ele aparece nos Textos das Pirâmides e nos Textos dos Sarcófagos. Nossa proposta para este segundo capítulo se divide em duas partes. Primeiro, um breve introdução sobre o Hino Canibal, apresentando seus elementos centrais. Em seguida,

13

No original: "Spell for the Spirit's Rebirth". (ALLEN, 2005, p. 50). Alguns autores se referem com feitiço ou encantamento (Cannibal Spell), como é o caso de Goebs, enquanto outros, a exemplo de Eyre, preferem o termo hino (Cannibal Hymn). A nomenclatura depende dos critérios do autor. 14

27 expor alguns pontos sobre a questão em torno do canibalismo no Egito antigo para podermos abordar o Hino Canibal já tendo uma ideia de que tipo de prática canibal ele reflete.

2.1 AS DECLARAÇÕES 273-274. Estas declarações ou encantamentos narram a ascensão do faraó ao céu, mais especificamente sua chegada ao horizonte, onde uma refeição preparada com as essências dos deuses é cozida especialmente para recebê-lo. Como mencionado há pouco, esta passagem dos Textos das Pirâmides não havia sido um objeto de estudo até os anos 2000 e até alguns anos antes, se considerarmos o tempo de coleta e análise de dados para a produção de um texto acadêmico em 2002 por Christopher Eyre. O Hino Canibal é passível de análise de aspectos da sociedade egípcia seja no campo da linguística, da literatura, de práticas funerárias e rituais, etc. e, portanto, permite uma discussão que pode facilmente se estender por vários âmbitos daquela civilização durante o Reino Antigo. Por conta disso optamos por traçar como fio condutor desta apresentação uma exposição comentada sobre alguns elementos centrais do Hino Canibal a fim de evitar desvios para debates que não serão proveitosos para nossas considerações finais. Em sua tese de doutorado sobre as transformações da religião e das práticas mágicas no antigo Egito, a egiptóloga Rosalie David afirma que o Hino Canibal se insere em um grupo de passagens dos Textos das Pirâmides que sugerem que os textos datam de um período anterior à unificação, remetendo a aspectos de antigos rituais régios e hostilidades que teriam ocorrido durante o período pré-dinástico. Exemplo disso, como comentado algumas páginas atrás ao falarmos do faraó, é o festival Sed que, de acordo com alguns pesquisadores, é uma forma mais amena para um suposto ritual do período pré-dinástico no qual o rei velho e enfraquecido é morto para renovar e fortalecer a liderança. Além disso, ela declara que o Hino Canibal "alude à prática de reunir os ossos dos mortos, um costume que deve ter existido antes das primeiras tentativas de mumificação". (Cf. DAVID, R.; 2011, p. 134-135). Além disso, Bruce Trigger tem uma passagem interessante em seu texto que estabelece diálogo com a ideia exposta por Rosalie David:

Em aspectos essenciais, os cemitérios parecem ter mudado um pouco desde os tempos badarianos. Corpos sem cabeça e caveiras extras sugerem a possibilidade de práticas de decapitação neste período, o que pode indicar derramamento de sangue vingativo associado à sociedade tribal. Contudo, é possível que estes achados estejam relacionados a um costume mais amplamente difundido de desmembramento de corpos. Não há evidências arqueológicas que comprovem

28 tradições de canibalismo em tempos pré-dinásticos. (TRIGGER, 1986, p.31) (Tradução nossa) 15

O parágrafo citado acima é de uma obra que consta na bibliografia da tese de Rosalie David e parece que o trecho no qual David fala sobre a "prática de reunir os ossos dos mortos" é conclusão da leitura do parágrafo do texto de Trigger, mais especificamente o trecho referente aos "corpos sem cabeça e caveiras extras". Seja como for, não possuímos fontes sobre o pré-dinástico que possam contribuir com o debate em torno de possíveis práticas canibais. Em 2001, a egiptóloga Katja Goebs apresentou na mesa redonda internacional "Textos das Pirâmides versus Textos dos Sarcófagos" uma pesquisa examinando por contraste as versões do Hino Canibal tais como aparecem nos dois conjuntos de textos. Na publicação dos anais do evento em 2004, ela não apenas expõe os setes tipos de diferenças que podemos observar quando comparamos os dois textos, como também comenta sobre a presença de alguns elementos tal como faremos antes de passarmos ao próximo item. Os sete tipos de diferenças mencionados são: 1) Mudança simples de posição de trechos; 2) variação sutil de tema; 3) substituição de termos específicos por outros diferentes embora afins; 4) troca de termos individuais ou passagens inteiras que indicam uma interpretação equivoca da original; 5) amenização da brutalidade e da violência presentes no Hino Canibal de modo a adequá-lo a tempos "mais civilizados"; 6) inversão de passagens inteiras sugerindo diferentes ênfases temáticas; e 7) adição de passagens inéditas. Como não nos é interessante no momento aprofundarmos neste ponto, exemplos e explicações sobre cada um dos tipos estão presentes na obra mencionada na referência bibliográfica deste trabalho. Eyre conta que acadêmicos costumavam abordar o Hino Canibal com a finalidade de resgatar possíveis práticas sociais, culturais e principalmente rituais de uma tradição oral mais antiga que os textos, abordagem esta que critica: "Formas de comportamento rituais, ações rituais e seu acompanhamento falado devem sem mais antigos, mas é fútil especular a respeito de reminiscências culturais de um passado indeterminado e carente de

15

"In essential features, cemeteries also appear to be little changed from badarian times. Headless bodies and extra skulls suggest the possibility of head-hunting at this time, which might betoken patterns of blood revenge associated with tribal society. It is possible, however, that these finds are related to a more widespread custom of dismembering corpses. There is no archaeological evidence to confirm traditions of cannibalism in Predynastic times." (TRIGGER, 1986, p.31)

29 documentação"

16

(EYRE, 2002, p. 18). Para ele, "[o] mais importante para ambos o

propósito e a forma dos textos são sua relevância à época que aparecem escritos e o modo como eles eram usados, tanto em performance quanto transmissão." 17 (EYRE, 2002, p. 18). Alguns elementos presentes no hino merecem ser destacados para uma melhor compreensão. Talvez os principais sejam os deuses que auxiliam o faraó. Shezmu e Khonsu são as divindades auxiliares explicitamente nomeadas e, sabendo sobre as atribuições dos mesmos, compreenderemos de forma mais clara que a presença destes no processo de massacre e deglutição dos deuses não é aleatória. Há também deuses mencionados de maneira mais sutil, velada, como é o caso de Ele-Cujo-Nome-é-Oculto, Ele-QuemApreende-Pelo-Cabelo e Ele-Sobre-o-Vermelho, mas não serão contemplados neste trabalho porque relacioná-los a nomes conhecidos dos deuses aos quais se referem demandaria muito tempo. Explicaremos a seguir apenas Shezmu e Khonsu, divindades melhor conhecidas e que desempenham funções importantes como auxiliares do faraó no fato narrado no Hino Canibal. Khonsu é um deus lunar da fertilidade e da cura, senhor do tempo e seu nome significa "o Viajante". Sua filiação diverge entre as regiões do Egito, sendo filho de Amun e Mut no Alto Egito (mais precisamente Tebas, onde compunha a Tríade Tebana) e filho de Ptah e Sekhmet no Baixo Egito. Costuma ser representado com cabeça de falcão ou como uma criança e sua coroa levava o disco lunar, mais especificamente, a lua cheia sobre uma lua crescente. Seus templos e santuários eram múltiplos, sendo o principal deles o que fora construído por Ramsés III dentro complexo de Karnak, tamanha a importância do deus. Em uma das paredes deste templo há um texto conhecido como a cosmogonia de Khonsu (Khonsu cosmogony), versão na qual este deus é quem fecunda o ovo cósmico e então "viaja para Tebas, honrando seu nome de Khonsu ('o viajante')" (PINCH, 2002). Era um deus antigo a quem os egípcios recorriam quando adoeciam, sendo chamado por eles "Khonsu o Misericordioso", e é também um deus de proteção, invocado para combater poderosos demônios. Era também conhecido como Portador dos Livros do Fim do Ano, texto no qual os deuses escreviam os nomes daqueles que viriam a perecer durante o ano, razão pela qual era temido entre os egípcios e aspecto bastante sugestivo com relação a sua presença no Hino Canibal (PINCH, 2002). Khonsu é mencionado na passagem 402: 16

"Forms of ritual behavior, ritual actions and their spoken accompaniment must be older, but it is futile to speculate about cultural survivals from some indeterminate and undocumented past." (EYRE, 2002, p. 18) 17 "More important to both the purpose and the form of the texts are their contemporary relevance, at the date they appear in writing, and the way in which they were used, both in performance and in transmission." (idem)

30

"402: De fato, Khonsu, quem abate para os senhores, corta as gargantas [dos deuses] para Unas e toma para ele o que está em suas barrigas. Ele é o mensageiro enviado para castigar.". 18

Shezmu, por sua vez, é deus do óleo, do perfume e do vinho, mas também da execução, da carnificina e do sangue. Este último atributo do deus é o suficiente para fazer os egípcios não serem tão chegados a ele, ainda mais pelo fato de a cor vermelha não ser a preferida daquela sociedade justamente por estar associada à fúria, ao fogo e, claro, ao sangue. Pode ser chamado demônio, não porque seja mau – o que ele não necessariamente é – mas porque, aqui, demônio é o mesmo que uma divindade inferior, além de Shezmu estar relacionado ao "mundo dos mortos". Era representado com cabeça de falcão ou com cabeça de leão, o que somado a seu ímpeto assassino torna possível confundi-lo com a deusa da vingança, Sekhmet. As divindades egípcias costumavam ser um tanto ambivalentes, isto é, não eram sempre boas nem sempre más e nem mesmo Shezmu era exceção à regra. Embora fosse conhecido como um cruel e violento demônio, um "Executor de Osíris" que castigava os malfeitores, Shezmu também era um bom protetor dos virtuosos, a quem recebia no outro mundo com uma taça de vinho e perfumes. No Handbook of Egyptian Mythology de Geraldine Pinch, este demônio é apresentado numa única frase "Shezmu era o deus da vinicultura que abatia os inimigos do rei e do deus Sol" (PINCH, 2002, p.195). Ele é conhecido principalmente como "abatedor de deuses", precisamente por causa de sua participação no episódio narrado no Hino Canibal dilacerando e mutilando os deuses para serem cozidos e, então, servidos ao faraó. Shezmu é mencionado na passagem 403 do Hino Canibal: "403: De fato, Shezmu os corta para Unas e cozinha para ele uma refeição deles para o faraó com suas panelas. Unas é quem devora a magia deles [=dos deuses], quem engole seus espíritos.". 19

Estes dois deuses, Khonsu e Shezmu, são deuses que auxiliam um após o outro no processo de abate e preparo dos deuses para o consumo do faraó. A questão que alguns egiptólogos tradicionais levantam é se o hino é indicativo mais que suficiente para sustentar a hipótese de que os egípcios praticavam ou praticaram em algum momento de sua história o

18 19

Ver a tradução em anexo p. 47. Idem.

31 canibalismo efetivo, assunto que discutiremos a seguir.

2.2 CONSIDERAÇÕES ACERCA DE PRÁTICAS ANTROPOFÁGICAS NO EGITO. Como visto anteriormente, Trigger declara que ainda não há evidências arqueológicas que comprovem práticas canibais no Pré-Dinástico. Apesar disso, os egiptólogos achavam que o Hino Canibal estava de fato relacionado a uma cultura que praticava a antropofagia. Sobre a questão sobre se a antropofagia foi um costume entre os egípcios, opto pela postura cética de suspensão do juízo num momento em que as evidências históricas não possibilitam o debate. Entretanto, podemos comentar sobre o canibalismo do hino por um viés metafísico, antropológico e ritual e duas autoras escreveram a respeito. Arlette David, da Hebrew University of Jerusalem, publicou um artigo, em 2011, intitulado "Devouring the Enemy: ancient Egyptian metaphors of domination" no qual, como explicita o título, apresenta quatro tipos de relações de poder entre o faraó e os seus inimigos (em geral, estrangeiros) em iconografia e textos e que agem como formas metafóricas de dominação. Os quatro tipos expostos pela pesquisadora – golpeando ("smiting"), atropelando/pisoteando ("trampling"), imobilizando ("immobilizing") e devorar ("devouring") – nos interessa apenas o último pelo fato de ser a única das metáforas de dominação relacionada de forma mais explícitas ao Hino Canibal, embora o desenvolvimento do artigo como um todo é interessante para qualquer um que estude a civilização egípcia e sua história. A pesquisadora cita J. Newman, linguista inglês que dedicou um estudo das metáforas da língua inglesa, aplicando o estudo linguístico dele em sua abordagem antropológica sobre o Egito antigo. Newman classifica as metáforas em duas categorias: as metáforas de orientação ativa (agent-oriented), que "servem como forte imagem de internalização, isto é, incorporando algo à esfera pessoal ou privada de alguém"

20

, e as metáforas de orientação

passiva (patient-oriented), que "envolvem destruição física e eliminação" 21. Sobre as metáforas de orientação ativa, Arlette David afirma que "devorar implica metáforas relacionadas à aquisição de posses" a fim de demonstrar que esta figura de linguagem se faz presente no Estado egípcio não somente em âmbito interno como também externo. O exemplo dado foi a relação entre Egito e Núbia em que a "fome" pelos recursos 20

"[…] an agent-oriented metaphor 'serves as a strong image of 'internalization' i.e., incorporating something into one's personal or private sphere." DAVID, A, 2011, p 91. 21 "These metaphors, then, involve physical destruction (the enemy is consumed by Egypt; it is chewed swallowed and digested into something different) and elimination". Idem, p 92.

32 naturais da Núbia levou o Egito a "engoli-la" e "absorvê-la" para dentro de sua economia e zona de influência, "digeriu-a" para se fortalecer e se satisfez com os ganhos dessa incorporação. Quanto às metáforas de orientação passiva, o foco está no objeto de consumo: o objeto externo se interioriza ao ser incorporado ao consumidor. Tal processamento e transformação, para Newman, são necessariamente violentos. Estas metáforas têm implicações políticas e econômicas. De acordo com Arlette David (2011), o hieróglifo wnm (comer/devorar) é empregado para conceitos econômicos abstratos, o que indica que os egípcios relacionavam de maneira metafórica as semânticas de alimentação e vantagem econômica. Isso ocorre na língua portuguesa também, mas não com alimento e sim com bebida. Um desejo muito forte, que os falantes de língua inglesa e os antigos egípcios se refeririam como "fome de x", para os falantes de língua portuguesa seria "sede de x", sendo a "sede de vingança" um exemplo comum. Referindo-se agora diretamente ao Egito, Arlette David diz que: "alimento é sustento, mas também uma representação do caos do inimigo sacrificado e destruído para reestabelecer a ordem, Maat".22 A subjugação de um inimigo e seu consumo, seja por um deus, pelo faraó ou pelo leão real (uma das representações iconográficas do Estado egípcio) significa o triunfo sobre um agente do caos e a manutenção do status quo ordenado, uma das funções do rei-deus, como vimos no capítulo anterior. A autora também diz que: O sentido mágico de tal comportamento de consumo no imaginário egípcio é mais bem compreendido quando direcionado pelo rei falecido contra os próprios deuses: no Hino Canibal dos Textos das Pirâmides o rei falecido 'devora a mágica [dos Senhores] e engole seus espíritos' a fim de tomar o poder deles. 23 (tradução nossa)

A autora distingue três atributos de posse envolvidos na metáfora de dominação pelo consumo de algo (ou alguém) que são mais bem apresentados em seus termos latinos – usus, fructus e abusus – como vemos no parágrafo citado abaixo. Em termos legais, a imagem (wnm ) designa o processo pelo qual o Egito se apropria da entidade representada pelo inimigo; o egípcio proclama literalmente os três atributos de posse, bem chamados usus, fructus e abusus, em latim, onde usus se refere ao direito de uso do objeto possuído, fructus (outra metáfora com alimento) o direito de consumir o produto do objeto possuído e abusus é o direito último de 22

"Food is sustenance, but also a representation of the enemy's chaos sacrificed and destroyed to reestablish order, Maat." Idem, p. 92. 23 "The magical significance of such consuming behavior in Egyptian imagery is well understood when directed by the dead king to the gods themselves: on the Cannibal Hymn of The Pyramid Texts, the dead king 'eats their [the Lords'] magic and gulps down their spirits' in order to take over their power". Idem, p. 92.

33 dispor do objeto. 24 (tradução nossa)

Gardiner A2 (wnm)

comer/devorar (to eat/ to devour)

De todo modo, Arlette David cita Ritner, quem resume o ato mágico envolvido na deglutição: "consumo implica a absorção de um objeto e a aquisição de seus benefícios. Por outro lado, tal ato pode desempenhar simples função hostil, onde 'devorar' significa 'destruir' – embora até mesmo neste caso o conceito de adquirir poder pode se manter". Outra autora, Katja Goebs dedica algumas páginas do livro Crowns in Egyptian Funerary Literature a considerações sobre o canibalismo no Egito, ainda que o debate se dê exclusivamente por uma perspectiva antropológica. Ela justifica sua reflexão explicando o que, no Hino Canibal, a leva a comentar sobre a possibilidade de práticas antropofágicas no Egito antigo conforme o trecho citado a seguir: O potencial uso do encantamento junto com um ritual, possivelmente envolvendo oferenda de carne e/ou mutilação, pode nos levar de volta à questão sobre se os egípcios alguma vez praticaram algum tipo de canibalismo que possa ter sido comportamento prototípico que proveu o vocabulário que foi transposto na esfera cósmica e ritual juntamente a seus atores. 25 (tradução nossa)

Em seguida, Goebs afirma que boa responsabilidade por esta ideia equivocada de canibalismo entre povos "primitivos" se deve à indústria cinematográfica que desde cedo divulgou uma falsa associação da "selvageria" de maneira quase universal à antropofagia, o que gera, de acordo com a autora, relutância em aceitar que canibalismo é uma pratica que ocorreu e ainda ocorre mesmo em sociedades que a antropofagia teve sua prática comprovada em algum período de sua história. A egiptóloga distingue dois tipos de canibalismo. O primeiro é o que alguns autores como Peggy Reeves Sanday (University of Pennsylvania) chamam "canibalismo de fome", uma vez que está relacionado à fome (e vale reforçar que nos referimos a ela enquanto 24

"In legal terms, the image designates the actual process by which Egypt appropriates the entity represented by the enemy the Egyptian owner proclaims literally the three attributes of ownership, nicely named usus, fructus and abusus in Latin, whereby usus is refers to the right to use the object owned, fructus (another food metaphor) the right to consume the produce of the object owned and abusus is the ultimate right to dispose of the object." Idem, p 92. 25 "The potential use of the spell in conjunction with a ritual, possibly one involving meat-offerings and/or butchery, may lead us back to the question of whether the Egyptians ever practiced any form of cannibalism that could have been the prototypical behaviour which provided the vocabulary that was transposed onto the cosmic and possibly ritual sphere and its actors." (GOEBS, 2008, p. 350)

34 problema social) que leva ao consumo dos membros mais frágeis da sociedade, como velhos e crianças; efetivamente, trata-se de uma prática que ocorre em momentos de colapso social onde há uma crise no contrato social e retorno ao estado de natureza no qual a lei do mais forte é o único regulamento. Exemplos deste tipo de canibalismo são encontrados em inscrições dentro da tumba de Ankhtifi26 e as cartas de Heqanakht. 27 O segundo tipo de antropofagia é de caráter ritual e geralmente envolve consumo de inimigos ou escravos (exocanibalismo) ou, em raras ocasiões, de parentes (endocanibalismo) a fim de obter ou manter a vitalidade do devorado no consumidor por meio da absorção de seus poderes e força vital pelo consumidor. Goebs acredita ser esta a concepção de canibalismo presente nas Declarações 273-274. Ela explica que "uma vez que comer e beber são ações de sustento vital, ingestão oral parece ser o único ou pelo menos a forma dominante de absorção a apropriação de poderes" (GOEBS, 2008, p. 352). A egiptóloga menciona também que práticas de alimentação com fins mágicos não é algo exclusivo das sociedades "primitivas". Um exemplo fornecido é o consumo de testículos de touro a fim de curar a impotência sexual. Outro exemplo é a prática de "comer a realeza" presente em algumas culturas africanas, o que a psicologia freudiana compara ao consumo da hóstia na Comunhão cristã (GOEBS, 2008, p. 353). Para Marshall Sahlins (1983. In: GOEBS, 2008, p. 355), o "canibalismo sempre é simbólico, até mesmo quando é real". Em linhas gerais, seja como ideia ou como prática, o canibalismo geralmente se insere num contexto ritual e, como bem afirma Goebs, "o tabu relativo ao consumo de carne humana ganha um sentido positivo no que permite a aquisição da energia vital do consumido, constituindo deste modo uma espécie de 'comunhão por sacrifício'".28 O "canibalismo político" de prisioneiros de guerra, cuja finalidade era garantir a continuação da vida e acréscimo de poder e vitalidade para os vitoriosos e sua sociedade, bem como para seus deuses, a custo do inimigo, parece ser a concepção que melhor se encaixa no Hino Canibal, onde o rei falecido assimila para si os poderes de seus ancestrais a fim de garantir sua própria 26

"All of Upper Egypt was dying of hunger and people were eating their children, but I did not allow anyone to die of hunger in this nome." Autobiografia de Ankhtifi. Disponível em: http://www.reshafim.org.il/ad/egypt/texts/ankhtifi.htm 27 "Everything belongs to me and one says: "Half a life is better than a (whole) death."Behold, one calls 'hunger' only (real) hunger, namely only when one begins to eat human beings, never were they (i.e. the human beings) given such (high) salaries anywhere. Conduct yourself bravely until I come to you again, for, behold, I shall spend the summer here." 2ª carta de Heqanakhte. Disponível em: http://www.reshafim.org.il/ad/egypt/texts/heqanakht.htm 28 "The ordinarily tabooed action of eating human flesh acquires a positive force in that it permits those who consume it to acquire some of the eaten person's vital – often fertile – energy, making it a form of 'sacrificial communion'." (GOEBS, 2008, p. 355)

35 existência (GOEBS, 2008, p. 355). Por fim, Goebs conclui que, uma vez que não há no Egito qualquer evidência ou sugestão de canibalismo para além de textos e que tudo o que podemos, no momento, utilizar como argumento em defesa da ideia de práticas antropofágicas pelos egípcios são casos de antropofagia por outras sociedades, não é possível, portanto, tirar conclusões consistentes. Além disso, ela ressalta que, apesar da antropofagia poder ser associada a dados fatores sociais e ambientais que propiciariam seu surgimento, a presença de um destes fatores (que não a fome) não significa inevitavelmente que a antropofagia é uma prática daquele grupo. Dada este capítulo por encerrado, passaremos então às considerações finais, momento no qual faremos um apanhado geral discutindo o Hino Canibal enquanto exemplo do poder faraônico no imaginário egípcio.

III – CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Nesta etapa conclusiva do trabalho faremos um apanhado geral das principais ideias apresentadas nos dois capítulos e comentaremos alguns pontos com nossas interpretações. Vimos que o faraó é a figura central da civilização egípcia e tanto seu surgimento quanto seu desenvolvimento se dão ao longo dos séculos finais do período pré-dinástico, principalmente por causa da Unificação dos nomos (spat). Isso é facilmente deduzido pelos títulos do faraó no Reino Antigo: "Senhor das Duas Terras", isto é, aquele que uniu os sistemas administrativos do Vale do Nilo e do Delta do Nilo em um único Estado centralizado. Como cada nomos tinha suas próprias divindades que os representava, muitas delas poderiam personificar seus locais de culto de maneira metafórica. Como vimos no capítulo 1, a monarquia faraônica possui estreito vínculo com a religião cujo papel é essencial legitimá-la, seja para consolidar o surgimento do Estado e da monarquia, seja para dar-lhe um destino final diferente dos mortais. O faraó é um deus encarnado e merecia todas as honras, isso incluía um sepultamento digno de um deus. A mumificação se legitima como exclusiva ao faraó durante o Reino Antigo por meio do mito de Osíris. Neste conto, o deus é traído e morto pelo irmão, Set, e tem seu corpo esquartejado e as partes espalhadas por todo Egito. A deusa Ísis, ao mesmo tempo irmã e cônjuge de Osíris, recolhe os pedaços de seu falecido esposo (com exceção do falo que foi comido por um peixe) e recorre à magia para revivê-lo e, substituindo seu pênis por um pedaço de madeira, tem relações sexuais com ele e dessa união nascerá Hórus como filho póstumo. Este mito heliopolitano serve ao mesmo tempo como justificativa para a monarquia sagrada no Egito (uma vez que o faraó é Hórus encarnado) e para atribuir a mumificação exclusivamente ao faraó. Ora, se a primeira múmia foi um deus falecido e faraó é um deus tal como Osíris, naturalmente as práticas funerárias estavam reservadas apenas às divindades. Tal exclusividade será rompida gradativamente a partir do Primeiro Período Intermediário quando se inicia um processo de "democratização" das práticas funerárias, como bem trabalhou Maria Thereza David João em sua dissertação de mestrado em 2008. Também foi mencionado ao longo dos capítulos que o festival Sed seria uma adaptação da prática regicida que alguns egiptólogos consideram que tenha sido comum

37 durante o período pré-dinástico. Se tal cerimônia implicava ou não práticas antropofágicas – reais ou simbólicas – não é um conhecimento que nos seja acessível no momento e muito dificilmente o será, uma vez que as investigações sobre o período pré-dinástico são em sua maior parte mera especulação, tendo como ponto de partida achados arqueológicos (basicamente locais de sepultamento) e práticas culturais das quais tentam resgatas as possíveis origens. O Hino Canibal, nosso estudo de caso, levanta um problema. Se não podemos utilizálo para sustentar o argumento em favor da existência de um canibalismo no Egito – e Goebs refuta suficientemente esta ideia – o que de fato ele pode nos revelar sobre a cultura egípcia? Pode-se dizer que faz parte de um discurso daquele tempo que veio a contribuir para a formação do imaginário, da cultura imagética daquela sociedade, tratando-se daquilo que podemos chamar poder simbólico. À luz da obra de Pierre Bourdieu sobre o poder simbólico, faço minhas suas palavras a fim de explicitar tal relação de poder:

[...] num estado do campo em que se vê o poder por toda a parte, como em outros tempos não se queria reconhecê-lo nas situações em que ele entrava pelos olhos dentro, não é inútil lembrar que – sem nuca fazer dele, numa outra maneira de o dissolver, uma espécie de "círculo cujo centro está em toda a parte e em parte alguma" – é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem. (BOURDIEU, 1989, p. 7-8)

Deste modo, não somente a política e o aparelho administrativo como também os templos, as estátuas, a linguagem, as pirâmides e a própria literatura funerária expressa uma relação de poder e influencia diretamente a vida cotidiana, embora não seja explícito. A pergunta que pode ser feita é: como pode haver o exercício de uma influência do poder simbólico numa sociedade por parte de algo como os Textos das Pirâmides, já que uma literatura escrita no interior de uma edificação pensada para ser lacrada? Se aplicarmos a teoria de Ulpiano Bezerra de Menezes sobre a História Visual – onde ele pensa a investigação da imagem através do circuito de produção, circulação e recepção das imagens, além de distinguir uma esfera visual e outra visível da imagem – à imagem mental, ao imaginário, a uma metafísica do poder, iremos nos deparar com o seguinte problema: não haverá circulação daquele texto. Mesmo que houvesse, apenas um grupo muito seleto de iniciados era capaz de escrever os hieróglifos e um menor ainda capaz de lê-los e interpretálos, então pouco surtiria efeito.

38 Não seria razoável considerarmos que tem uma função de propaganda sem que se façam algumas ressalvas; por exemplo, ninguém está lendo o texto, ninguém compreende os hieróglifos, mas todos veem a pirâmide e uma pessoa que conseguiu construir (ou mandar construir) algo daquele porte era digno de honras. O ponto é que o texto está lá e, na mentalidade egípcia, ter um nome é existir enquanto aquele nome for pronunciado ou estiver escrito. A ameaça mais comum na antiguidade era ameaçar apagar o nome de alguém da História porque se acreditava nessa propriedade simbólica e mágica da palavra, vale lembrar que, de acordo com Cardoso, o ser na concepção egípcia era constituído de cinco partes e uma delas era o nome. O egiptólogo Moacir Elias Santos apresenta esse aspecto da cultura egípcia no seu artigo "Hieróglifos: entre o simbólico e a mágica", caso haja interesse em aprofundar a discussão. Com isso, falar do faraó, ter um texto sobre faraó na pirâmide com o nome dele no cartucho era uma forma de garantir sua existência, funcionando como uma espécie de âncora que o ligada ao plano físico. O dito popular "fale bem, fale mal, mas fale de mim" caberia muito bem na boca de um rei-deus egípcio. Podemos assim entender que o Hino Canibal se trata de um discurso que, tal como o mito de Osíris e as contendas de Hórus e Set, tem uma aplicação política por mais que seu conteúdo e sua forma sejam da religião. Para além de uma simples alegoria de ascensão aos céus para junto dos grandes reis do passado nas Imperecíveis, o Hino Canibal é um enaltecimento tal da figura do rei-deus que representa o ápice da monarquia sagrada faraônica ao colocá-lo numa posição dominante em relação às divindades. O faraó é retratado como alguém poderoso mais até do que os deuses, sendo capaz de devorá-los, engolindo seu, ba, seu ka (e, com isso, o akh), o coração (que é a sede do intelecto e, como diz o hino, Unas engoliu a sabedoria dos deuses), e claro, o corpo mutilado. Deste modo, os deuses se tornam meras sombras impotentes que se prendem a uma mera existência por meio de seu nome. Com base nas reflexões de Arlette David e Katja Goebs sobre o consumo de outrem, concluímos que consumo da "mágica" dos deuses se trata de uma apropriação de potências, capacidades e funções de modo que no fim haveria de se alcançar um estado de plenitude. Por fim, trata-se de um objeto de estudo que merece abandonar as notas de rodapé e ter um estudo mais aprofundado, sim, por mais que as fontes sejam escassas. A discussão é interessante, a pesquisa é recente e há muito a ser problematizado ainda. Por exemplo, por que esta passagem dos Textos das Pirâmides aparece apenas nas tumbas de Unas e Teti, dos faraós mais antigos a construírem pirâmides? Por que o hino retorna nos Textos dos

39 Sarcófagos de forma bem diferente, mais amena, do que a versão que encontramos nos Textos das Pirâmides? Convido-os ao debate.

IV – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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41 II Nacional de Estudos sobre o Mediterrâneo Antigo e IX Jornada de História Antiga, 2010, Rio de Janeiro. I Encontro Internacional, II Nacional de Estudos sobre o Mediterrâneo Antigo e IX Jornada de História Antiga. Rio de Janeiro: NEA, 2010. v. 1. SETHE, Kurt. Die Altaegyptschen Pyramidentexte nach den Papierabdrucken und Photographien des Berliner Museums. Leipzig: J. C. Hinrichs'sche Buchhandlung, 1908, p. 205-216.

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TRIGGER, Bruce; et al. Ancient Egypt: a Social History. Cambridge: Cambridge University Press, 1983. VERCOUTTER, Jean. O Egito Antigo. São Paulo: Editora Difel, 1986.

ANEXOS

43 VERSÃO EM INGLÊS DO HINO CANIBAL East Gable (south to north) Utterance 273-274 393: To say the words: "The sky is clouded, the stars are darkened. The Bows move, the bones of Aker tremble (earthquake), (then all) movements cease 394: after they have seen Unas appearing and powerful as a god who lives on his fathers, who feeds on his mothers! Unas is a lord of craft, whose name (even) his mother does not know. 395: Unas' venerability (Spsw) is in the sky, his strength (wsr) is in the Akhet-horizon, like his father Atum who begat him. He has begotten him more powerful (wsr) than himself. 396: The Kas of Unas are behind him, his maidservants are under his feet, his (protector) gods are over him, his uraei are on his brow (wp.t), the guide-serpent of Unas is on his brow (Ha.t), she who perceives (ptr) the soul (of the enemy), she whose fire is effective. The power (wsr.w) of Unas is for his protection. 397: Unas is the Bull of Heaven, who (once) suffered want, and who has decided to live on the essence of every god, who eats their entrails when they come from the Isle of Fire with their bellies full of magical charms (HkA.w). 398: Unas is a well provided one, who has absorbed his spirits (Ax.w). Unas has appeared as this Great One, lord of those who are at hand. He sits with his back turned to Geb. 399: Unas it is who judges with He-whose-Name-is-Hidden, on the day when the elder (smsw) is being sacrificed. Unas is the lord of offerings, who knots the cord, who prepares himself a meal. 400: Unas is he who eats men (rm.tjw), who lives on gods, lord of messengers who gives instructions. 401: Indeed, He-who-seizes-by-the-Hair, residing in Kehau (kHA.w) is he who lassoes (spH) them for Unas. Indeed, the snake Lifted-Head (Dsr-tp=f) is he who keeps guard over them for him, who keeps them back for him. Indeed, He-over-the-red is he who binds (the Kas) them for him. 402: Indeed, Khonsu (the Moon), who slaughters the lords, cuts their throats for Unas, and takes out for him what is in their bellies. He is the messenger whom he sends out to chastise.

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403: Indeed, Shesmu (Wine-press god) cuts them up for Unas and cooks for him a meal out of them in his evening cook pots. Unas is he who eats their magic, who swallows their spirits (Ax.w) . 404: Their great ones are for his morning meal, their middle-sized ones for his evening meal, their little ones for his night meal, their old men and the old women are for his fuel. 405: Indeed, the Great Ones in teh Northern Sky are they who light fire for him (under) the kettles which contain them with the legs of their eldest. 406: Those who are in heaven serve Unas when his hearth is constructed with the legs of ther (old) women. e has completely encircled the Two Heavens, he has revolved around the Two Lands. 407: Unas is the Great Power (sxm wr), the Power over the Powers. Unas is the Axm-hawk, the Hawk of Hawks, the Great One. He whom he finds on his way, he eats him bit by bit. Respect before Unas is (more) than before other nobles (saH.w) who are in the Akhethorizon. 408: Unas is a god older than the eldest. Thousands serve him. Hundreds make offerings for him. A certificate is given him as a great power (sxm wr) by Orion (saH), the father of the gods. 409: Unas has appeared again in heaven. He is crowned with the Upper Egyptian Crown as Lord of the Horizon. He has reckoned up the dorsal vertebrae, he has seized the hearts of the gods, 410: he has eaten the Red One, he has swallowed the Green One. Unas feeds on the lungs of the wise. His pleasure is to live on hearts, as well as on thier magic (HkA.w). 411: Unas is disgusted when his tongue touches the emetic (parts) which are in the Red One. He is pleased when their magic is in his belly. The dignity (saHw) of Unas shall not be taken from him (for) he has swallowed the wisdom (sjA) of every god. 412: Unas' span of life is Eternity, his limit is Everlastingness in this his dignity of If-hewishes-he-does, if-he-wishes-not-he-does-not. He is in the region of the Akhet eternally and forever. 413: Lo, their soul (bA) is in the belly of Unas, their spirits (Ax.w) are with Unas as the broth of the gods, cooked for Unas from their bones. Lo, their soul (bA) is with Unas, their Shadows (taken away) from those to whom they belong.

45 414: Unas is that which appears, which appears, which remains. The doers (of evil) shall not be able to destroy the favorite seat of Unas amongst the living in this land, eternally to eternity.

Referência: FAULKNER, R. The Pyramid Texts. Disponível em: http://www.pyramidtextsonline.com/ Acesso em: 20/10/2015

46 TRADUÇÂO PARA O PORTUGUÊS Tradução para o português a partir das versões inglesas de Faulkner e J. P. Allen. 393: O céu ficou nebuloso, as estrelas se escureceram; os arcos se moveram, os ossos do Horizonte tremeram; e aqueles que se movimentavam de súbito pararam.

394: Vendo surgir Unas poderoso como um deus que vive de seus pais e alimenta-se de suas mães. Unas é um senhor artífice cuja (própria) mãe não sabe seu nome.

395: A sacralidade de Unas está no céu, sua força está no horizonte, como seu pai Atum antes dele. Atum gerou Unas mais poderoso do que ele próprio. 396: Os kaw29 de Unas estão atrás dele, suas serviçais sob seus pés, seus deuses protetores estão sobre ele, seus uraei30 estão em sua testa, a serpente-guia de Unas está em sua testa, ela que percebe a alma (do inimigo), ela cujo fogo é efetivo. O poder de Unas é para sua proteção.

397: Unas é o Touro Celeste, quem desejou e decidiu viver da essência de cada deus, quem come as entranhas deles quando eles vêm da Ilha do Fogo com suas barrigas recheadas de encantamentos mágicos.

398: Unas é um abastado que absorveu os espíritos [dos deuses]. Unas apareceu como este Grande, senhor daqueles que estão na mão. Ele senta com as costas voltadas para Geb. 399: Unas é quem julga com Ele-Cujo-Nome-Está-Oculto31, no dia em que o mais velho for sacrificado. Unas é o senhor das oferendas, quem amarra a corda, quem prepara ele próprio uma refeição.

400: Unas é quem devora os homens, quem vive dos deuses, senhor dos mensageiros que dá as instruções.

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Plural de ka. Plural de uraeus, nome como são chamadas as cobras presentes na coroa real. 31 O deus demiurgo Atum. 30

47 401: De fato, Ele-Quem-Apreende-Pelo-Cabelo, residente em Kehau, é quem os laça para Unas. De fato, a Serpente de Cabeça Erguida é quem mantém os guarda para faraó. De fato, Ele-sobre-o-Vermelho é quem os amarra os kas deles para faraó. 402: De fato, Khonsu32, quem abate para os senhores, corta as gargantas [dos deuses] para Unas e toma para ele o que está em suas barrigas. Ele é o mensageiro enviado para castigar. 403: De fato, Shezmu33 os corta para Unas e cozinha para ele uma refeição deles para o faraó com suas panelas. Unas é quem devora a magia deles [=dos deuses], quem engole seus espíritos.

404: Os grandes são para a refeição matutina, os de altura mediana para a refeição da tarde, os pequenos para o lanche à noite, os velhos e as velhas são combustíveis para o forno. 405: De fato, os Grandes do Norte34 acendem o fogo para ele sob os caldeirões com as pernas do mais velho.

406: Aqueles que estão no céu servem Unas quando a lareira dele é construída com as pernas de suas mulheres. Ele cercou completamente os Dois Céus, ele girou ao redor das Duas Terras.

407: Unas é o poder maior, o poder acima dos poderes. Unas é o falcão, o falcão dos falcões, o Grande. Ele quem devora de pouco em pouco quem cruza seu caminho. Respeito perante Unas é mais do que diante dos outros nobres que estão no horizonte.

408: Unas é um deus mais antigo que o mais velho. Milhares o servem. Centenas prestam oferendas por ele. Ele foi nomeado como o grande poder por Órion, o pai dos deuses.

409: Unas apareceu novamente no Céu. Ele recebe a coroa do Alto Egito como Senhor do Horizonte. Ele quebrou as colunas vertebrais dos deuses e adquiriu seus corações. 32

Ver p. 29. Ver p. 30. 34 Os antigos reis que habitam as Estrelas Imperecíveis no extremo norte celeste. 33

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410: Ele devorou o Vermelho, ele engoliu o Verde. Uma se alimenta dos pulmões dos sábios. Seu prazer é viver dos corações, bem como da magia deles.

411: Unas se enoja quando sua língua toca as partes eméticas do Vermelho. Ele fica contente quando a magia deles está em sua barriga. A dignidade de Unas não será tomada dele (pois) ele engoliu a sabedoria de cada deus.

412: A expectativa de vida de Unas é a infinitude, seu limite é a eternidade, seu privilégio é de "Quando ele quer ele faz, quando não quer ele não faz". Ele está no horizonte eternamente e para sempre.

413: Olhe, o ba deles está na barriga de Unas, seus akhs estão com Unas como o caldo de carne [feito] dos deuses, cozidos para Unas com os ossos deles. Olhe, o ba deles está com Unas, suas sombras são tudo aquilo que lhes resta.35 414: Unas é aquilo que aparece, que aparece, que permanece. Os agentes do caos 36 não serão capazes de destruir o assento favorito de Unas entre os vivos nesta terra jamais, por toda a eternidade.

35

Há uma ambiguidade entre as traduções de Faulkner e Allen. O último diz que as sombras foram só o que restou aos deuses, enquanto o primeiro diz que as sombras também foram tomadas deles. Optamos por utilizar a versão de Allen. 36 Faulkner traduz como "doers" [= depravados] e Allen como "those who do (evil) deeds" [= aqueles que fazem coisas más], ambos com o sentido negativo seja lá a quem for. Optamos por sintetizar ambas a traduções como "agentes do caos" com base na leitura de Cardoso (1997, p. 48).

49 Transcrição do texto hieroglífico do Hino Canibal por Kurt Sethe

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Referência: Sethe, Kurt. Die Altaegyptischen Pyramidentexte nach den Papierabdrücken und Photographien des Berliner Museums. Leipzig: J. C. Hinrichs'sche Buchhandlung, 1908.

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