Os Geraldos - Uma História da Música Popular de Porto Alegre - Capítulo II

September 20, 2017 | Autor: Arthur de Faria | Categoria: Música Popular Brasileira, História do Rio Grande do Sul
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Os Geraldos ou

...os gaúchos que levaram o maxixe pra Paris O século XIX já estava passando os créditos. Foi nesse momento que, no Rio de Janeiro, capital federal, o Brasil começava a conhecer pela primeira vez um artista gaúcho. O sujeito era mulato, atuava, dançava, cantava cançonetas e se chamava Geraldo Magalhães. Tinha nascido em São Gabriel (320 km a oeste de Porto Alegre, metade sul do Estado), no dia 31 de maio de 1878.

E não dá pra passar batida essa informação: sabe lá o que é nascer mulato na pequena São Gabriel, em 1878, e querer fazer carreira cantando e dançando?!? Dá pra imaginar a possibilidade estatística disso se concretizar!?! Pois o fato é que o cara tinha muita bossa, muita manha e muita vontade. Armado com todos esses atributos, mais uma irretocável elegância no vestir, Geraldo, naquele momento, arrasava no Saloon Paris, em plena Rua do Ouvidor. Era a estrela da dupla Os Geraldos, que então se completava com a castelhana Margarita.

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A partir da entrada do século, os dois se transferem para as casas de chope e cafés-cantantes da Lapa e Praça Tiradentes (em teatros como o Moulin Rouge e o Maison Moderne). O clima era ovaudeville reinante de então. Em 1905 (alguns autores falam em 1907), Geraldo troca de parceira, numa venda casada de cama & palco. No lugar de Margarita, entra a também gaúcha Antonina “Nina” Teixeira (porto-alegrense nascida por volta de 1880 – e que possivelmente morreu por volta de 1940 no Rio). Ainda que eventualmente gravasse sozinha – Geraldo também – Nina seria sua interlocutora ideal. Juntos, eles eletrizariam as plateias cariocas, em duetos picantes e muito teatrais, dançando maxixes plenos de sacanagem e atacando cançonetas repletas de duplo sentido. A bem da verdade, as vezes de um sentido só: aquele mesmo. Acabam se empolgando e, para delírio de uns e escândalo absoluto de outros, mostram o show em pleno Passeio Público, Largo da Lapa, em frente às “francesas” do Alcazar Lírico. Coisas de Belle Époque tropical. As pessoas compravam, levavam pra casa e ouviam nos seus gramofones o que quisessem, fosse a baixaria que fosse (sabe letra de funk carioca? Pois é).

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Um belo exemplo de canção do repertório da dupla era a singela marcha Vassourinha, de Felipe Duarte e Luiz Figueira, cuja letra dizia: Ela: Sempre, sempre em movimento Sempre, sempre em movimento Vassourinha varre o chão Ele: E o Abano faz o vento E o Abano faz o vento Para acender o fogão Ela: Tu és de palha e tens pau Tu és de palha e tens pau Que outro dia mesmo vi Ele: Ora Deus ela é bem mau Ora Deus ela é bem mau Toma-lo tu pra ti Rica Vassoura Ai quando serás minha? Ela: Queres de Abano Passar a varredor? Os dois: Varre, varre querida Vassourinha Abana, abana meu Abanador Ou então o singelo diálogo registrado em O Coronel Velho Conquistador, quando Nina reclama:

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Eu pensei que o senhor tivesse uma espada maior! Um homem tão grande, com uma espadinha de criança?!?!?

Também gravam muito para os Discos Gaúcho (daqui a pouco tem um capítulo inteiro sobre esse lendário selo) e Odeon/Casa Edison. Entre 1902 – quando a Casa lança o primeiro suplemento de gravações feitas no Brasil – e o final da década de 1910, Geraldo é um dos únicos seis (s-e-i-s!) cantores populares a gravar no país inteiro. Sua parceira, então, é uma raridade ainda maior, já que até a década de 1920 não existe nenhuma outra cantora de verdade indo ao disco – apenas uma que outra atriz de teatro de revista arriscando eventuais dotes vocais. Em dupla ou solo, o gabrielense grava como nenhum outro artista gaúcho de sua época – com a provável exceção do compositor e instrumentista Octavio Dutra (de quem logo falaremos). São registros que dão um amplo panorama musical desses primeiríssimos anos do século XX: fados, canções patrióticas, romanzas, modinhas, tanguinhos, cançonetas, motivos humorísticos e muitos desafios nortistas, o último grito de então. Para a gravadora de Fred Figner, foram 15 discos só em 1905 (dos gravados ainda só de um lado – ou seja: uma música por bolachão), mais quatro em 1907, cinco em 1909 (incluindo o supersucesso Vem Cá, Mulata), sete em 1910 e 14 outras gravações sem data. Já para os Discos Gaúcho, 45 músicas em 1915, espalhadas entre discos com uma ou duas músicas. E há ainda 10 músicas para o selo Phoenix, também gravadas em 1913. Uma curiosidade interessante: parte importante do repertório da dupla era de pérolas compostas pela maior hitmaker de então, a já então 4

veterana (e sempre revolucionária) Chiquinha Gonzaga. Corriam tempos arejados. O duo vai se tornando tão popular que acaba contratado para uma temporada no México, dali partindo para a Europa. Em 1908, os salões portugueses e parisienses se quedam arrebatados pelos impulsos demoníacos do maxixe. Paris e Lisboa já conheciam o ritmo, levado para lá por bailarinas e companhias de revista brasileiras, mas seriam Os Geraldos que iriam inocular definitivamente nos europeus seu vírus, resultando numa intensa epidemia de exotismo tropical. Um trabalho interessante sobre essa cena é De La Matchitche a La Lambada, da pesquisadora Ariane Witkoski (ainda que ela cometa erros, como afirmar que Geraldo e Nina eram irmãos, uma informação ali é muito importante: Très vite, les Parisiens découvrent le vrai maxixe, grâce aux Irmãos Geraldos [Geraldo Magalhães et Nina Teixeira] qui se produisent au Théâtre Marigny en 1908).

E é em Paris que Geraldo e Nina lançam, com estrondoso sucesso, o tango-chula Vem Cá, Mulata (tango-chula ou polca-chula, segundo as variantes classificações em discos e partituras). A canção tinha sido composta em 1902 pelo carnavalesco Arquimedes de Oliveira, em parceria com o poeta e teatrólogo Bastos Tigre. Emplacaria razoáveis vendas numa versão instrumental, de 1906, mas faria sucesso é com a gravação dos Geraldos, no ano seguinte à estada parisiense da dupla. E que sucesso! Foi um dos seis discos mais vendidos e executados da primeira década do século, com novos surtos de popularidade a cada carnaval. Na abertura da deliciosa gravação, que capitaliza ao máximo o recente êxito europeu, o locutor anuncia: 5

- O popular Vem Cá, Mulata, cantado pelo Geraldo para a Casa Edison, como se estivesse em Paris… E, lá pelas tantas, num dos diálogos entre as estrofes, os dois ainda brincam: Ele: Vê lá como estão gostando! Ah, Nina, mas lá no Brasil é que é gostoso. (…) Eles tão de boca aberta, olhando pra gente! Ela: Olha aquele francês: tá todo babado! O fato é que Geraldo gostava de música, de cantar, de interpretar os personagens das cançonetas, de estar num palco. Muito, até. Mas tinha uma coisa de que ele gostava ainda mais: mulher. Tanto que, nessa volta ao Brasil de 1909 (mesmo com a evidência das gravações de 1909, há quem jure que ele só voltou em 1913), é recebido com honras pela imprensa tupiniquim. E, surpresa: quede-lhe Nina? O mulato voltou de partnaire nova: a portuguesa Alda Soares. Na bagagem, uma novidade: o ritmo americano do one-step, que vai explodir pelo País com a versão em português que gravam de Caraboo, o maior hit do efêmero gênero. Ao longo da década de 1910, Os Geraldos vão repetidas vezes a Porto Alegre, para shows ou mesmo a caminho de São Gabriel, para visitar parentes de Geraldo. Em 1915, como se viu, gravam para a Casa A Elétrica/Discos Gaúcho temas de nomes tão deliciosos como Um Matuto no Ceará, Saudade do Gaúcho, Os Grelinhos ou regravações do que já haviam registrado para a Odeon, como o conhecido Fado Liró. E sempre com muito sucesso. Diga-se de passagem, não só musical. Quem conta é Achylles Porto Alegre: O moreno Geraldo, com sua “pose” distincta de príncipe russo, alcançou (...) com seus maxixes e cançonetas apimentadíssimas, o mais estrondoso successo e o coração de... mais de uma dama elegante. Alda, que não era boba nem nada, decidiu que iria arrastar o marido de volta para seguras terras lusitanas. Conseguiu o feito em 1915 – e uma das últimas coisas que fazem antes de viajar foi gravar 6

a citada Caraboo, que vira Minha Caraboo. Quando a música vira o maior sucesso do Carnaval de 1916, eles já não estavam no Brasil pra ver. Seguem atuando juntos nos teatros de revista portugueses até 1926. Aí, aos 48 anos, ele se emprega como vendedor de uma companhia de vinhos e só muito raramente a dupla volta a se apresentar, sempre em Portugal. Surpreendentemente, seguem casados até 1970 – quando Geraldo morre, dia 11 de julho, aos 92 anos de idade. Mortificada pela saudade de seu garboso príncipe, Alda se vai poucos meses depois.

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