Os Iluministas e os Vampiros: um discurso sobre o outro

May 24, 2017 | Autor: Gabriel Braga | Categoria: Vampire Studies, Vampires, Iluminismo, vampiros, Augustin Calmet, Vampiros na França
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ISSN: 2525-7501 OS ILUMINISTAS E OS VAMPIROS: UM DISCURSO SOBRE O OUTRO*

Gabriel Elysio Maia Braga**353

RESUMO Durante os séculos XVII e XVIII, diversos homens de letras se dedicaram a criar sistemas explicativos que pudessem auxiliar na compreensão dos fenômenos da natureza, ou até mesmo, de fenômenos aparentemente sobrenaturais, tais como os casos de vampirismo levados ao periódico francês Le Mercure Galant na última década do seiscentos. Tais casos provinham das possessões recém adquiridas pelos Habsburgos, na Europa Oriental, através dos tratados de Carlowitz (1699) e Passarowitz (1718). A ocupação militar austríaca na região dos Bálcãs, que durou até 1739, gerou diversos relatórios militares e médicos, patrocinados pela imperatriz Maria Teresa, sobre os supostos ataques de vampiros. Deste contato entre culturas distintas surgiram diferentes sistemas explicativos para o fenômeno dos sugadores de sangue. Os franceses em específico dedicaram um considerável número de páginas ao assunto, tanto em periódicos como em publicações independentes. É importante ressaltar que um dos pontos principais dos franceses ao tratarem do assunto era explicitar as diferenças entre o dito esclarecido povo francês – ou seja, eles mesmos – e os ditos ignorantes e supersticiosos povos da Europa Oriental – ou seja, “os outros”. Objetiva-se com essa comunicação a análise dos discursos franceses de finais do século XVII até meados do século XVIII sobre os relatos de vampiros e sobre os povos dos Bálcãs, dando ênfase no modo como era feita essa diferenciação.

Palavras-chave: Vampiros; Iluminismo; Discurso

INTRODUÇÃO

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria. ** Mestrando em História na Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]

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ISSN: 2525-7501 Há algo de curioso na curta tradição – e talvez esse não seja o melhor substantivo – historiográfica que podemos chamar de História dos Vampiros. Embora as pesquisas sobre o tema geralmente referenciem a carta de Pierre des Noyers, de 1659, como o marco inicial do contato do ocidente europeu com o tema dos vampiros, o termo vampiro foi somente utilizado, pelo menos por eruditos ocidentais, no século XVIII. Poderíamos então referir-nos a essas poucas pesquisas como História dos Sugadores de Sangue. O problema, novamente, encontrarse-ia nos primeiros relatos, nos quais os mortos que voltavam a vida dirigiam-se a seus familiares pedindo comida, roupas, ou – em casos violentos – os estrangulavam, mas que, mesmo quando havia violência, não sugavam o sangue de suas vítimas. O que dizer então dos mortos(-vivos) que causavam malefícios sem nem ao menos deixar as suas tumbas? Chamados de mastigadores estes apenas, tomados por uma fome incontrolável, mastigavam suas mortalhas, ou em alguns casos, partes de seus corpos. Entretanto o efeito dessa mastigação tumular era a morte dos parentes do falecido, em um número de “trois fois neuf354” (DES NOYERS, 1659, p.561). Por que motivos então, devemos perguntar-nos, um conjunto de fontes tão diferentes acaba por ser estudado? Por hora, podemos dizer que assim se estuda a história dos vampiros, porque os autores modernos, ao investigar o fenômeno, abrangiam toda essa pluralidade em seus discursos, pois nela viam uma continuidade estabelecida desde os corpos mastigadores até os vampiros. Estudando e analisando tais discursos, devemos dar atenção às dispersões, às mudanças, enfim, as descontinuidades de tal criatura. Paul Barber (2010), biólogo de formação, é um crítico mais radical dos discursos ocidentais sobre os vampiros. De acordo com este autor, o ato de sair do túmulo nunca existiu nos relatos, a não ser nos discursos ocidentais. O biólogo afirma que foram os viajantes do ocidente que forjaram tal mito. Sua preocupação, contudo, é em recuperar e defender o que seria a “verdadeira figura do vampiro”, o que no final das contas apenas revela uma das diversas e distintas visões sobre essa figura. O que Barber parece não perceber é que sua constatação reforça que os vampiros não passariam de uma criação discursiva que surgiu a partir das

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Três vezes nove, totalizando vinte e sete.

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ISSN: 2525-7501 investigações sobre o fenômeno de mortos que voltavam das suas tumbas e interagiam com de alguma forma os vivos.

6. Mortos-Vivos no Le Mercure Galant Já nos referimos ao primeiro relato sobre mortos mastigadores de que se tem notícia na língua francesa, a carta de Pierre des Noyers. Secretário da rainha da Polônia, des Noyers redigiu o documento de quatro páginas em uma viagem que fizera à Ucrânia, acompanhando o rei. A carta foi destinada a um amigo francês e relatava o que o secretário denominou de “doença fabulosa” (DES NOYERS, 1659, p.561). Esta possuía um curioso desenvolvimento, fazia com que os cadáveres mastigassem suas mortalhas, ou em alguns casos partes de seus corpos, o que levava os parentes do defunto à morte. A discussão foi levada a um público mais amplo quando o próprio des Noyers redigiu um artigo para o periódico Le Mercure Galant. Antes de tecer comentários sobre essa produção, é importante situarmos o local de publicação, ou seja, o referido periódico. O Mercure possuía por tradição a publicação de temas que de alguma forma dialogavam com a cultura, tais como moda, viagens, poemas, críticas literárias, enigmas, descrição de festivais, entre outros (STORER, 1935, p.444). Era, em suma, um espaço de debate aberto ao público que poderia enviar suas contribuições através de cartas a serem publicadas (CHARTIER, 1998, p.17), contribuindo assim para a construção de um espaço público de debate já no século XVII, tal como teoriza a historiadora Joan DeJean em seu livro Antigos Contra Modernos (2005), em especial no segundo capítulo, denominado A Invenção de um Público para a Literatura. Tendo em mente a popularidade do Mercure, podemos ter uma melhor percepção do rebuliço intelectual – e não somente – causado pela publicação de Pierre des Noyers em maio de 1693. Outro fator a se levar em conta é a mudança sofrida na narrativa. Se em 1659 os mastigadores eram o produto de uma doença, algo natural, na última década do século XVII eles aparecem como criaturas demoníacas. A localização geográfica de tal mal também foi alterada, da Ucrânia, destino de sua viagem, para a Rússia e a Polônia. Des Noyers explica o fenômeno dos mortos-vivos não mais a partir da narrativa dos mastigadores enquanto doença, mas sim pela possessão dos cadáveres por demônios, os quais deixavam o túmulo – os

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ISSN: 2525-7501 demônios, não os cadáveres – entre meio-dia e meia-noite e iam até os parentes dos defuntos sob a aparência do falecido. Aliciavam-nos desse modo a fim de sugar-lhes o sangue, fato que poderia ser constatado, segundo o autor, no ato da exumação. Os cadáveres eram encontrados repletos de sangue, comprovando sua natureza de Upierz355 (DES NOYERS, 1693, p.62-63). Além do sangue, quando dentro dos túmulos, os demônios desenvolviam no cadáver uma fome tão grande que este se alimentava do que estivesse mais próximo a sua boca (Ibidem, p.64). Não só o sangue abundante era sinal de possessão demoníaca. Os corpos possuídos eram encontrados, de acordo com Des Noyers, com os membros flexíveis, corados, e não secos como era de se esperar. Se constatado tal estado de não naturalidade cadavérica, o corpo era decapitado, seu coração aberto e do sangue originava-se a profilaxia: misturavam-no com farinha e cozinhavam um pão que se consumido protegia os familiares das aflições mais graves que poderiam vir a ocorrer devido à possessão do cadáver do parente (Ibidem, p.66-67). Tudo ocorria, lê-se no artigo, sob a supervisão dos padres ortodoxos, ou seja, a Igreja Ortodoxa, na opinião de des Noyers, estava a par das situações e até mesmo incentivava as ações por ele

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descritas. No ano seguinte, foi publicada no Mercure uma dissertação

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de autoria de Marigner,

um advogado do parlamento de Paris. Na primeira parte, o advogado buscou um modo de classificação de todos os seres, mesmo os que possuíam natureza fantástica, tais como os anjos. Seguindo a divisão cartesiana entre corpo e espírito, Marigner notava que os conhecimentos eram todos reduzidos a essas duas categorias (MARIGNER, 1694a, p.62). A essência dos seres humanos encontrava-se no intermédio dessas duas definições. Um problema teórico se formava ao pensar na natureza dos, assim denominados pelo advogado, Stryges357. Não se poderia considerar tais criaturas como possuindo uma essência intermediária, pois tal classificação as humanizaria. Não poderiam ser humanas aquelas criaturas que mastigavam suas vestes e sugavam o sangue de seus parentes.

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Palavra provinda do latim Strige, que designava um pássaro que se alimentava de sangue e carne humanos. Alguns pesquisadores acreditam que foi a partir desse termo que se originou a palavra vampiro. 356 A dissertação foi dividida em duas partes, publicadas em janeiro e fevereiro de 1694. 357 Palavra também originada a partir do latim Strige.

ISSN: 2525-7501 Três eram os possíveis destinos dos espíritos após a morte, o céu, o inferno e o purgatório – ideia que “só foi aperfeiçoada no século XVI” (LE GOFF,1995, p.60). O purgatório se constituía em um local situado na fronteira entre a punição e o regozijo. Um local fortemente atrelado à matéria, ao corporal. Uma condição que, no caso de Marigner, serviu para explicar os Stryges de Russie, enquanto punição divina aos povos vulgares e regidos pelo signo de libra (MARIGNER, 1964b, p.105). Outro fator que propagava os relatos sobre vampiros, na visão do autor, era a umidade das localidades de onde provinham os casos. Segundo ele, a umidade afetava a imaginação, prejudicando a capacidade intelectiva da alma (Ibidem, p. 106).

7. Novos Relatos e as Grandes Investigações Na virada do século, um novo fator é acrescido nessa história dos relatos sobre ataques de mortos-vivos. O império Habsburgo conseguiu posse, através dos tratados de Carlowitz (1699) e Passarowitz (1718), de territórios que representaram grandes perdas aos turcos. Com o primeiro tratado, adquiriram a posse de grande parte da Hungria e, com o segundo, do norte da Sérvia, norte da Bósnia e da Valáquia. As forças militares de ocupação conservaram-se nestas regiões até 1739 (BARBER, 2010, p.5). Durante esse período foram produzidos dois relatos que ficaram muito conhecidos na época, gerando debates sobre o fenômeno dos mortosvivos euro-orientais. Em 1725, na vila de Kisilova, na Sérvia, nove pessoas relataram terem sido atacadas por Peter Plogojowitz. Afirmaram que este teria deitado em suas camas e tentado estrangulálas. Um caso de violência que poderia ser tomado como casual se o referido atacante não tivesse morrido dez semanas antes dos relatos. A própria viúva de Plogojowitz afirmou tê-lo visto e que este pediu por seus sapatos. Os casos geraram um grande pânico nos habitantes da vila. O provedor imperial, autor do relato sobre o caso de Kisilova, escreveu que a população foi até ele, em um estado de desespero, exigindo que tomasse providências. Em um primeiro momento, afirma, optou por tentar acalmá-los, entretanto, visto que suas palavras não surtiam efeito, acatou os pedidos das pessoas, que já ameaçavam abandonar a região devido ao grande mal que os afetava. Pediram autorização ao, na denominação do provedor, papa local358, para 358

O patriarca – da Igreja Ortodoxa – da região.

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ISSN: 2525-7501 seguir com as práticas que poriam fim ao estado de morto-vivência de Plogojowitz, ou seja, atravessar o cadáver com uma estaca e queimá-lo (ibidem, p.6-7). O autor do relato acompanhou a exumação e constatou os sinais cadavéricos que atestariam o caráter de criatura morta-viva. Eram eles a conservação do corpo – sem apresentar sinais de putrefação – e a falta de odor desagradável (ibidem, p.6). Tais sinais, recorrentes nos relatos, serviam como um meio para comprovar a veracidade do fenômeno e a necessidade dos atos cometidos, que na visão do provedor imperial eram bárbaros359. O relatório apresentado é também um pedido de desculpas prévio, no qual o autor justifica sua autorização a tais atos, pela animosidade da população. O caso de Plogojowitz foi diretamente responsável pela produção da obra De Masticatione Mortuorum in Tumulis (1728), de autoria do filósofo e pastor alemão Michael Ranft. De acordo com Orem (2011), o livro proveniente da dissertação de Ranft foi também uma resposta ao tratado De Masticatione Mortuorum (1679) de Philipp Rohr. Este havia tratado a mastigação cadavérica como um fenômeno demoníaco – tal como o des Noyers de finais do século XVII. Na opinião de Ranft, o poder diabólico não era tão grande a ponto de conseguir possuir um cadáver (SÁINZ, s/d, p. 24). O filósofo objetivava retirar Deus e o Diabo das explicações acerca dos mortos-vivos pois cria ser possível esclarecer tal fenômeno a partir de causas naturais e do poder da imaginação. Grande parte de sua explicação reside no conceito de forces cachées de la nature360 – ressaltando novamente o fator natureza e não a atuação de um poder divino/demoníaco. A mastigação foi por ele explicada de duas formas. Primeiramente, a questão da mastigação das mortalhas e dos próprios corpos poderia ser respondida pelo temido enterro prematuro361. Ao se verem debaixo da terra e tomados pela fome, as vítimas de um enterro antes da hora seriam levadas a se alimentar de seus próprios corpos até a morte. A segunda questão dizia respeito aos barulhos escutados nos cemitérios. Esta teria duas causas, a primeira os

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Não podemos esquecer que a Igreja Católica condenava a exumação dos corpos e sua violação. Em tradução livre, forças escondidas da natureza. 361 Uma preocupação que já aparecia em testamentos do século XVI, como mostra Ariès em O Homem Diante da Morte (1977). 360

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ISSN: 2525-7501 barulhos da própria putrefação e a segunda a mastigação dos ratos, que adentravam nas tumbas e consumiam os cadáveres (VERMEIR, 2010, p. 10). Havia ainda um outro problema. Nos relatos eram comumente atestados o bom estado de conservação do corpo, o crescimento de unhas e cabelos, a troca de pele, a ereção, entre outros. Esses fatores, segundo o pastor, poderiam ser explicados pelas forces cachées de la nature, e não pela intervenção divina ou demoníaca. Por esse fator Ranft ironiza os papistas362:

Agora podemos perguntar-nos se, após sua separação da alma, o corpo pode permanecer isento de corrupção. [...] os Papistas sustentariam sem dúvida esse princípio, rejeitando todas as razões que os verdadeiros sábios que observam os fenômenos naturais podem emprestar da Natureza. Para os Papistas o assunto é compreendido: eles estão entre os milagres da não-putrefação dos corpos, a fim de confirmar a autoridade de sua ortodoxia e de sua religião. Não pensam eles que os corpos dos santos se mantém para sempre isentos de corrupção? É por isto que admitem um número de santos realmente impressionante que, se quisermos celebrar a todos, um milênio dificilmente seria o suficiente, mesmo se realizássemos uma cerimônia por dia; pois toda a vez que tropeçam em um corpo humano ainda intacto [...], eles imaginam que acabaram de descobrir um santo ainda desconhecido do calendário (RANFT, 1995, p. 72. [Tradução e grifos nossos].

Outro fator a ser considerado na teoria de Ranft é o papel da imaginação. Esta era a grande responsável pelos malefícios sofridos. Não apenas pelo fato de as pessoas imaginarem os ataques e se imaginarem doentes, e com isso realmente adoecerem, mas também havia a imaginação do morto. Para o filósofo, o corpo ainda guardaria um resquício de vida 363. Sendo assim, ela poderia ainda ser influente nos corpos e mentes dos vivos, levando-os até mesmo à morte. Poucos anos após a dissertação de Ranft ser publicada, um novo caso, de maiores proporções, chamou a atenção dos homens-de-letras, o hoje denominado caso dos vampiros da

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Termo que utiliza para se referir aos católicos. Algo que afirmava sob grande influência de Paracelso.

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ISSN: 2525-7501 Medvegia364. Arnod Paole365 era um heiduque366 que relatara ter sido perseguido por um vampiro turco quando estava em viagem na região de Gossova – na Sérvia turca. Para se proteger dos possíveis malefícios causados pelos ataques do sugador de sangue, Paole afirmou ter comido terra do sangue do vampiro e ter se ungido em seu sangue. Aparentemente a profilaxia não obteve resultados, pois entre 20 e 30 dias após sua morte367 vários habitantes relataram ataques noturnos da autoria do referido falecido, sendo que quatro destes faleceram após um curto período de tempo. Visando o fim dos ataques, a população se reuniu e decidiu pela exumação do corpo do suposto vampiro. O cadáver, relatou-se, foi encontrado em um surpreendente estado de conservação, além disso, sua boca, seus olhos e seu nariz estavam repletos de sangue fresco. Todos esses fatores comprovavam, na visão dos habitantes, o caráter vampírico de Paole, portanto, foi decidido pelo extermínio deste. Uma estaca foi cravada em seu coração. Neste momento, relatou-se o vampiro teria gritado de dor. Cortaram sua cabeça, queimaram seu corpo e jogaram as cinzas em um rio. Os relatos sobre ataque, entretanto, não cessaram. Figurou-se, portanto, que as quatro vítimas de Paole teriam também sido transformadas em vampiros. Por conta disso, os cadáveres – após verificados seus estados de conservação – foram exumados, empalados, decapitados e incinerados. Por conta do pânico gerado pelas notícias, a imperatriz Maria Teresa ordenou o envio de uma comitiva composta por soldados e médicos com o intuito de averiguar a situação. Quando estes chegaram, foram informados de que mesmo com todas as medidas tomadas até aquele momento, os ataques não haviam cessado. A conclusão foi a de que Paole teria sugado sangue de um gado e que dezessete pessoas que da carne dele comeram – e faleceram pouco tempo depois – estariam infectadas e teriam se tornado vampiras.

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No original Médreïga, uma vila situada na Sérvia, em uma região que estava, na época, sob o domínio turco. Citado também como Arnont Paole ou Arnold Paole. 366 Heiduque, originalmente, designava o soldado que havia lutado contra a ocupação turca na Hungria e na Sérvia, no século XV. Durante os séculos XVI e XVII o termo era utilizado na França para designar os criados vestidos à moda húngara. A designação também é sinônima de “alabardeiro de um nobre Húngaro”, ou seja, o guerreiro de um nobre que carrega a arma chamada de alabarda. No período de Paole, o termo heiduque era usado para designar uma milícia que protegia as vilas. 367 Paole caiu de sua carroça e quebrou o pescoço. 365

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ISSN: 2525-7501 O relatório feito pelos enviados da rainha consiste, principalmente, nos detalhes de todas as exumações, atentando para os elementos destoantes do que era o esperado para cadáveres, ou seja, a conservação – não apenas do corpo, mas também dos órgãos internos –, a presença de sangue na boca e nos olhos e a aparência – como dito no relatório – saudável dos defuntos. Foram então permitidas a decapitação e a cremação dos corpos desses supostos vampiros. O relatório redigido sobre este caso, Visum et Repertum368, foi enviado à rainha no ano de 1732. Tal documento, de acordo com Argel e Moura Neto (2008) propagou a lenda do vampiro por toda a Europa, chamando atenção especial da imprensa (ARGEL & MOURA NETO, 2008, pp. 15-16). É importante ressaltarmos que pela primeira vez foi utilizado o termo vampiro – no original Vampyr – ocasionando sua tradução para o italiano e o francês, primeiramente, e um pouco depois para o inglês. Podemos ainda citar mais uma dissertação notável sobre o assunto. De autoria do padre italiano Giuseppe Davanzati, a Dissertazione Sopra i Vampiri teria começado a ser escrita em 1739. Não há informações certas de quando foi concluída. O que é certo é que foi oficialmente publicada somente em 1774. Contudo, Ceglia (2011) mostra que havia uma circulação da obra em formato manuscrito. Pode-se comprovar esta afirmação pela crítica de Pieter Burman, que considerou a Dissertazione a melhor obra produzida sobre o assunto até então (CEGLIA, 2011, p. 488). Burman faleceu em março de 1741, muito antes da data oficial de publicação. Antes mesmo da carta de Bento XIV à Davanzati, elogiando a obra e a erudição do autor. David Keyworth (2010) afirma que o catolicismo setecentista investiu muito em sua reinvenção, buscando livrar-se de superstições e práticas de influência pagã. O então papa Bento XIV emitiu uma declaração afirmando que os vampiros não seriam nada além de alucinações e acusou os padres orientais de incentivar crenças com o objetivo de lucrar com os exorcismos – e outros procedimentos – realizados. Os argumentos utilizados por Davanzati não se distanciam muito das ideias do Sumo Pontífice. As crenças nos malefícios que mortos-vivos poderiam causar deviam-se, na visão do padre italiano, à corrupção, credulidade, baixo nível educacional e alimentação deficiente dos camponeses (KEYWORTH, 2010, p. 166).

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Visto e descoberto.

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ISSN: 2525-7501 Certamente, o trabalho mais ilustre foi o do monge beneditino dom Augustin Calmet. Sua Dissertation sur les apparitions des anges, des demons et des esprits, et sur les revenans et vampires de Hongrie, de Bohême, de Moravie et de Silésie369, foi publicada em 1746 e abarcou muitos aspectos do sobrenatural, além, é claro, dos recentes casos de vampirismo. A obra ganhou uma segunda edição três anos depois, mas foi com a terceira edição, revisada e ampliada, que ganhou uma maior visibilidade. Com o nome alterado, o Traité sur les apparitions des esprits et sur les vampires ou les revenans de Hongrie, Moravie, etc., foi dividido em dois tomos, consistindo na maior obra sobre o assunto. Sua diferença para com a abordagem de Davanzati já pode ser notada no início da obra. Calmet afirma que pretendia examinar o assunto seriamente sem rejeitar tudo de início, como o fizeram outros pesquisadores, em suas palavras, pretenciosos (CALMET, 1751a, p.II-III). O religioso argumentou que não se poderiam ignorar os relatos sobre ataques de mortos-vivos pois as narrações apresentavam tantas particularidades, tantos detalhes e tantas informações jurídicas, que os fatores não poderiam ser explicados somente pelas superstições da população (Idem, 1751b, p.VI). O autor explora primeiramente casos de aparições de anjos e demônios narrados tanto pela bíblia quanto em relatos históricos e literários. Pretende mostrar com isso a não corporalidade destes e a versatilidade de formas nas aparições malignas – desde a serpente do Éden até criaturas humanas (Idem, 1751a p.35). Em relação aos demônios, estes precisariam da permissão divina para atuar, pois Satã por si só não seria capaz de enviar seus subordinados independentemente (Ibidem, p.49). Calmet insiste sempre na investigação e comprovação dos casos. Fala em não ignorar os relatos, mas também em colocar tudo em dúvida, não importando o número de testemunhas. A justificativa era a de que o Diabo, embora não pudesse ter ação direta na matéria, poderia utilizar do poder de influenciar a imaginação dos indivíduos (Ibidem, p.98-100), provocando assim uma alteração na percepção de realidade. Era justamente esta faculdade diabólica que, na opinião do beneditino, dificultava a identificação de sua obra, pois agitava as opiniões incrédulas (Ibidem, p.299), restando poucos que se dispunham a uma análise mais aprofundada. 369

Dissertação Sobre a Aparição de Anjos, Demônios e Espíritos, e sobre os revenans e vampiros da Hungria, Bohemia, Morávia e Silésia. [Tradução livre].

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ISSN: 2525-7501 Sua proposta é a de investigar, pôr em dúvida, trazer evidências e assim contribuir para o conhecimento.

CONCLUSÃO Através dessas obras conseguimos observar todas as dispersões e mudanças sofridas pela figura do morto-vivo causador de malefício, se tomarmos a breve carta de des Noyers como ponto inicial do debate euro-ocidental. Cremos ser relevante destacar alguns temas comuns a essas produções a fim de salientar as diferenças de abordagem e mesmo algumas mudanças teóricas. O poder do Diabo constitui um dos principais debates, pois diz respeito diretamente à proveniência dos vampiros. Em contraste com o cristianismo medieval, ou mesmo a demonologia do início da Idade Moderna, os dois padres do século XVIII – Calmet e Davanzati – não viam o Diabo como o inverso de Deus. A inversão era um dos principais instrumentos analíticos da demonologia. Contudo, isto implicava em admitir em Satã um poder igual, mas inverso, ao de Deus. Ou seja, em sua inversão, em sua contrariedade, seriam equivalentes em termos de poder. O que Calmet e Davanzati fizeram, em um contexto de uma reforma do catolicismo que buscava uma maior mescla com discussões científicas, foi estabelecer o local de Satã como subordinado do Todo-Poderoso. Além disso, buscavam estabelecer seus poderes, reduzindo-os se comparados ao que haviam estabelecido teólogos medievais e de início da modernidade. O vampirismo, portanto, é trabalhado por vários pensadores com objetivos diversos, reclamado como exemplo para sustentar teses maiores e sistemas explicativos sobre a natureza. Importante também a presença dos povos dos Bálcãs nos discursos sobre o vampirismo e as superstições. A viagem adquiriu um caráter extremamente importante na modernidade. A descoberta de novos mundos e novas espécies animais concedeu um grande caráter pedagógico e formador de saber aos deslocamentos pelo planeta. Não somente era apreciada a travessia de oceanos, como também a visitação a regiões do próprio continente europeu das quais não se tinham muitas informações, como era o caso da Hungria.

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ISSN: 2525-7501 Gregoire Besson (2012) trabalha com o conhecimento francês sobre a Hungria através dos relatos de viagens. Relatos estes que eram publicados no formato de livros e possuíam um público ávido por esse tipo de literatura. A Hungria consistia justamente em um território não explorado pela intelectualidade francesa. Dividida em quatro territórios, sendo um sob explícito domínio otomano e outros dois sob domínio indireto, apenas a parte oeste era possessão dos Habsburgos até os já referidos tratados de Carlowitz e Passarowitz (BESSON, 2012, p.9-10). Após os dois tratados, a produção de relatos sobre a região cresceu consideravelmente. Entre esses relatos, os mortos-vivos causadores de malefícios garantiram seu lugar, primeiramente nos periódicos, poucas décadas depois na literatura científica e após isso nos poemas, nos romances e, já no século XX, no cinema. Nesse contato de diferentes culturas, estabeleceu-se também as diferenças entre um povo que vivia as Luzes – os próprios franceses – e um povo que, na opinião dos ditos iluminados – ainda era muito influenciado por superstições e crendices. Deve-se notar também que, na maior parte dos relatos, exceptuando Marigner, um dos alvos dos ataques era a profecia cristã ortodoxa. Calmet, principalmente, faz uma grande defesa do catolicismo romano, reafirmando o poder dos padres ocidentais frente aos ortodoxos e reforçando a verdade da profissão romana. Ressaltamos, portanto, que os discursos sobre os mortos-vivos dos Bálcãs não diziam respeito apenas ao sobrenatural, mas continham questões políticas e fizeram parte do projeto iluminista, ressaltando as qualidades do povo francês.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Reyes

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s/d.

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