Os imigrantes portugueses na bélle époque carioca e a definição da identidade nacional

July 15, 2017 | Autor: C. Cordeiro | Categoria: Immigration Studies, Gender and Sexuality, Luso-Afro-Brazilian Studies
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Célia Carmen Cordeiro University of Texas at Austin

Os imigrantes portugueses na bélle époque carioca e a redefinição da identidade nacional1

I- Introdução Desde a segunda metade do século XIX que os cientistas europeus perspetivam o Brasil enquanto “laboratório racial” e, por conseguinte, matéria-prima para substanciar as suas teorias científicas. Quando visita o Brasil em 1865, o médico naturalista suíço Louis Agassiz (1807-1873) afirma: “... a deterioração decorrente da amálgama das raças... vai apagando rapidamente as melhores qualidades do branco, do negro e do índio, [e vai] deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia e capacidade mental” (qtd. in Schwarcz 23). As palavras de Agassiz corroboram as ideias do Conde de Gobineau (1816-1882) no seu Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1855), na medida em que ele aponta a miscigenação como causa da degeneração humana e, ainda, enaltece a raça ariana, única símbolo de civilização. Por um lado, o médico Nina Rodrigues (1862-1906) compartilha desta opinião, identificando a miscigenação como responsável pela inviabilidade do Brasil como nação (Schwarcz 23); por outro lado, o filósofo e crítico literário Sílvio Romero (1851-1914) vislumbra na imigração europeia de origem lusa a solução para civilizar o Brasil. Eis uma visão oposta àquela do diplomata e romancista Aluísio Azevedo, que considera os portugueses imigrantes degenerados, os quais urge erradicar do país. Neste ensaio, proponho uma leitura do romance O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo, em contraste com o ensaio “O Elemento Português no Brasil” (1902), de Sílvio Romero. Os autores apresentam visões antagónicas no que diz respeito à temática da emigração portuguesa para o Brasil durante a bélle époque carioca (1890-1910). A bélle époque inicia-se com o governo republicano de Deodoro da Fonseca (1889-1891). Nesta épica, a prioridade é modernizar o Brasil, tendo como referência as capitais europeias da civilização: Paris e Londres. Na bélle époque carioca, almeja-se revolucionar as ideias no plano artístico, cultural e político como estratégia para banir os vestígios da colonização lusa conotada com o atraso e subdesenvolvimento do passado. No romance de Aluízio Azevedo, os imigrantes portugueses são apontados como os exploradores do Brasil, transferindo-se para eles a imagem do antigo colonizador e são, simultaneamente, identificados como seres degenerados moralmente. Pelo contrário, no ensaio de Sílvio Romero, incentiva-se a emigração lusa para o Brasil, pois, segundo o crítico, são os portugueses “a gente... que connosco se irmaniza fatalmente pelas tradições e pela língua” (Romero 30). Sílvio Romero alvitra como benefícios da emigração lusa não só reforçar o estoque racial branco, mas também fortalecer os traços de lusitanidade presentes na formação da identidade brasileira. Contudo, nenhum dos autores destaca o contributo das imigrantes portuguesas para a reconstrução do Brasil enquanto nação moderna. Neste ensaio, venho propor que o contributo das imigrantes lusas é indispensável para a manutenção da ordem social brasileira à época. Em O Cortiço, as imigrantes são mulheres que se sustentam a si e a seus filhos em resultado do exercício da sua profissão de lavadeiras e/ou amas-de-leite. Além disso, são elas as responsáveis pelo aprumo da indumentária da classe burguesa, contribuindo para a estabilidade desta classe social. II- Lusofobia versus Lusofilismo: Aluízio Azevedo versus Sílvio Romero No Rio de Janeiro da bélle époque, os imigrantes convivem no mercado laboral com os escravos de ganho e com os ex-escravos na luta pela sobrevivência, o que acarreta, desde logo, profundas transformações na capital federal ao nível da sua estrutura demográfica, económica e social. Em Trabalho, Lar e Botequim, Sidney

                                                                                                                1  Cordeiro, Célia. “Os imigrantes portugueses na bélle époque carioca e a redefinição da identidade nacional”. Ometeca Ciência e Humanidades. Eds. Eva Paulino Bueno, Jerry Hoeg. Vol. XXII. 2015. 45-63. Print. ISSN 1041-3650.

  Chalhoub informa que segundo o censo de 1890, são 155.202 habitantes de naturalidade estrangeira no Rio, isto é, 30% da população total, havendo, porém, um desequilíbrio entre a percentagem de homens e mulheres estrangeiros (56% H para 44% M). Destes, 106.461 são portugueses e 180.000 são identificados como negros ou mestiços, ou seja, 34% da população carioca (44). Entre esse número elevado de imigrantes, muitos aportam na capital carioca doentes em resultado da longa travessia e das más condições higiénicas dos navios (Alencastro 30). Por conseguinte, o desafio abraçado pelo regime republicano, no que concerne à questão laboral, é grande, na medida em que tem por objetivo a “transformação do homem livre – fosse ele o imigrante pobre ou o ex-escravo – em trabalhador assalariado” (Chalhoub 46). Segundo a historiadora Lená de Medeiros, os portugueses são conotados com um passado colonizador que as elites cariocas querem apagar, enquanto os franceses e os ingleses “tendiam a ser vistos como os arautos do progresso por todos aqueles que defendiam a construção de uma capital moderna” (Os Indesejáveis 62). Isto num momento histórico em que persiste o conflito racial no acesso ao exercício de uma profissão. Na agenda do jovem governo republicano impera a construção de uma nova ideologia do trabalho, conotada com os ideais positivistas de “ordem” e “progresso.” Como afirma Eva Paulino Bueno, a intelligentsia brasileira apropria-se da doutrina positivista como meio para articular a ideia de nação (Bueno 371). Uma nação que se queria governada por um Estado positivista, o mais avançado para a época. Esta nova ideologia não está apenas relacionada com o desempenho do trabalho em si pelo trabalhador assalariado, mas também com a vigilância deste fora do local de trabalho pelas entidades policiais, sendo a sua conduta social importante para a “manutenção do decoro público” (Putnam, Chambres, and Caulfield, 16). Não esqueçamos que na base do Positivismo estão ideias de teor determinista e racional, que circunscrevem a conduta do ser humano, sobrevivendo unicamente o mais forte socialmente. Eis a conceptualização do Positivismo enquanto projeto inteletual brasileiro (Bueno 379). A realidade migratória lusa vem enriquecer esse debate de redefinição da nação brasileira num momento em que se pretende nacionalizar o comércio. Desse diálogo resultam duas correntes de pensamento: a lusofobia e o lusofilismo. Na lusofobia, representada neste ensaio por Aluízio Azevedo, identifica-se o imigrante português como sendo um obstáculo ao desenvolvimento e expansão do Brasil. O seu carácter ambicioso e explorador está vincadamente descrito no seu romance. Pelo contrário, no lusofilismo, defendido por Sílvio Romero, busca-se resgatar o elemento português presente na formação brasileira como estratégia de preservação das raízes lusas que estiveram na base da fundação da nacionalidade. Daí advém a proposta de Romero para a criação no Brasil de um estoque racial luso sobre o qual se implantaria a identidade brasileira. Pelo contrário, no romance naturalista, Aluísio Azevedo recria a lusofobia através da criação de estereótipos lusos. O Cortiço constitui um exemplo da estética naturalista de final de oitocentos, a qual figura como a outra face do projeto intelectual positivista do governo brasileiro (Bueno 373). Estética essa que foi inspirada nos romances naturalistas de Émile Zola (1840-1902) e de Eça de Queirós (1845-1900). Segundo Sônia Brayner, Zola aplica o método experimental da biologia ao romance, fazendo a analogia com as organizações vivas estudadas nesta ciência, partindo da formulação das leis gerais da natureza física e social: evolução, seleção, determinismo e hereditariedade para conceptualizar e criar as suas personagens (Brayner 12). Então, o homem do romance naturalista é um ser movido pela fisiologia e já não pelas acessos de paixão e amores romanescos tão típicos da estética anterior, o romantismo. O corpo físico encontra um paralelo com a própria sociedade, ambos organismos vivos fechados e que se relacionam interiormente (Brayner 35). Em O Cortiço verifica-se, por isso, a representação da jovem nação a partir da periferia: “Naturalism, by attempting to enable the idea of the nation as an entity composed of different people, rewrote the idea of nation from the periphery” (Bueno 391). Designado por Estalagem João Romão, no cortiço convivem imigrantes de diferentes etnias, com maior incidência para os imigrantes italianos e portugueses que se estabelecem na capital da República em grande número durante a bélle époque (1890-1910). Esses trabalhadores livres exercem as suas funções em paralelo com o trabalho dos escravos de ganho de que Bertoleza constitui um exemplo. Ela é explorada pelo comerciante português, João Romão. O cortiço situa-se junto ao sobrado de Miranda, comerciante luso casado com Estela, uma brasileira rica. Mais imigrantes portugueses são: Jerónimo, pedreiro, e Maria da Piedade, lavadeira, entre outros. Esses imigrantes vivem no Rio e executam as mais variadas profissões inerentes à classe operária. Constroem núcleos familiares desestruturados, logo, segundo o narrador, nocivos ao bem-estar citadino. No final da obra, João Romão ascende ao sobrado através do casamento com a filha de Miranda, Zulmira. Jerónimo deixa-se conquistar pela mulata Rita Baiana, abandonando a casa e a família. Maria da Piedade e Dona Isabel enlouquecem em consequência da conduta imoral do marido de uma e da filha da outra, respectivamente.

 

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  Bertoleza comete suicídio e João Romão recebe um certificado de reconhecimento pelo apoio dado à causa abolicionista, em vésperas da abolição da escravatura no Brasil (lei aúrea de 13 de Maio de 1888). O romance de Aluísio Azevedo apresenta o cortiço como um lugar de degeneração e de decadência social. No entanto, é também um espaço onde os imigrantes exercem a sua força de trabalho. Este espaço habitacional apresenta-se-nos como uma “prisão” sem chave, onde se denota a repressão e o controlo sociais das massas trabalhadoras, uma espécie de “panóptico” foucauldiano (Foucault 169-170). Vedado por “um muro grosso de dez palmos de terra,” mandado construir por João Romão, com um portão central, o cortiço circunscreve-se entre fronteiras fictícias que o insula da restante sociedade brasileira. Nele, João Romão tenta impor a ordem. Há vários episódios onde tal atitude se verifica: quando Marciana quer bater na filha e tirar satisfações com o caixeiro Domingos por tê-la engravidado, é João Romão que intervém para apaziguar os ânimos (34). Quando os rendeiros não pagam a renda, são despejados por João Romão, como se vê com “o homem muito amarelo que fazia charutos” (46). Assim como o panóptico foucauldiano, os inquilinos de João Romão só se mantém no cortiço se cumprirem as regras. Segundo Michel Foucault, essa imposição da ordem só funciona “if [the body] is caught up in a system of subjection” (Foucault 170). Ou seja, a ordem funcionará neste local se houver uma hierarquia entre Romão e os inquilinos, que são numerosos, pois o cortiço agrega uma diversidade de gente de profissões distintas: canteiros, ferreiros, carpinteiros, pedreiros, lavadeiras, amas-deleite. Esses trabalhadores das classes populares não necessitam sair do cortiço para se deslocarem ao seu local de trabalho, logo este espaço residencial rapidamente se transformara numa moradia almejada pelos profissionais da classe baixa. Em Os Indesejáveis, Lená de Medeiros indica a chegada de estrangeiros pobres no final de oitocentos como um facto do quotidiano. Segundo a historiadora, eles agregam-se nos centros urbanos e há uma tendência a descrever o mercado profissional por nacionalidade, tal é a multietnicidade de origens desses imigrantes (61). Àparte de o cortiço ser um local onde João Romão impõe a ordem, este também é um espaço de contornos ambivalentes. Ora se apresenta como decadente socialmente, “...aquele bafo, quente e sensual... com o seu fartum de bestas no coito,” ora como uma força viva, “E naquela (...) naquela humidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco (23). O cortiço, neste contexto e enquanto espaço da coletividade, representa a sociedade enquanto organismo vivo, que acorda, se desenvolve e vive no quotidiano da paisagem carioca. Um exemplo bem conseguido da aplicação das ciências biológicas ao romance naturalista. O pequeno comércio do Rio de Janeiro havia sido monopolizado por portugueses desde o início do século XVIII, daí um certo sentimento lusofóbico crescente em relação a este grupo étnico. Segundo Rosana Barbosa, os resultados de uma investigação levada a cabo pela inquisição em 1796 indicam que “o comércio varejista do Rio de Janeiro no século XVIII era totalmente monopolizado pelos portugueses” (179). Em 1842, segundo a historiadora, o representante português no Rio, Ildefonso Leopoldo Bayard, comunica ao governo português de que nas lojas do Rio de Janeiro não havia senão caixeiros portugueses (Barbosa, 181). Estes dados servem para explicar a razão da existência de um sentimento anti-lusitano existente desde há muito no Brasil, particularmente no Rio de Janeiro, relativamente ao facto de os portugueses dominarem o pequeno comércio naquele país. João Romão é utilizado como o estereótipo do comerciante luso na capital federal. João Romão é um exemplo de como a lusofobia é recriada no romance naturalista. Ele é tido desde o início do romance como o estereótipo do imigrante luso, ganancioso e sem escrúpulos. Azevedo utiliza-o enquanto “a stereotype suture” da identidade portuguesa (Bhabha 115) e através dele articula um reconhecimento grupal da comunidade lusa no Brasil. Assim sendo, a política vigilante que opera na capital contribui para denegrir a sua imagem. Há muito que as áreas periféricas do Rio estão sob o escrutínio de médicos higienistas com o intuito de disciplinar os grupos étnicos que chegam a par dos ex-escravos aos centros urbanos e se fixam nos cortiços. Estes estrangeiros, segundo Lená de Medeiros, eram considerados ‘hóspedes perigosos’ porque ‘inimigos cotidianos das forças encarregadas da manutenção da ordem pública’ (Os Indesejáveis 92). Isto num momento em que o regime republicano busca normatizar comportamentos. Sendo João Romão estrangeiro e dono de um cortiço, ele é percepcionado pelas elites republicanas como um agente promotor de um antro de sujidade e perversão. João Romão chegara pobre mas singrara à custa da exploração de outros (Bertoleza, os seus fregueses e inquilinos, por exemplo), portanto é para ele transferida a imagem do antigo colonizador na sua ânsia de amelhalhar. Ele é aquele que, segundo o velho Botelho (criado do português Miranda), apenas via o Brasil com uma única serventia: “enriquecer os portugueses e que, no entanto, o deixara a ele [Botelho] na penúria” (27). Comerciante de vinhos, géneros alimentícios, roupas, entre outros objetos, Romão explora o cliente, pesando

 

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  mal os produtos, enganando no troco e roubando materiais de construção para melhorar o cortiço e, por conseguinte, ascender a uma classe superior: Desde que a febre de possuir se apoderou dele totalmente, todos os seus atos, todos, fosse o mais simples, visavam um interesse pecuniário. Só tinha uma preocupação: aumentar os bens. Das suas hortas recolhia para si e para a companheira os piores legumes, aqueles que, por maus, ninguém compraria; as suas galinhas produziam muito e ele não comia um ovo, do que no entanto gostava imenso; vendia-os todos e contentava-se com os restos da comida dos trabalhadores. Aquilo já não era ambição, era uma moléstia nervosa, uma loucura, um desespero de acumular; de reduzir tudo a moeda. E seu tipo baixote, socado, de cabelos à escovinha, a barba sempre por fazer, ia e vinha da pedreira para a venda, da venda às hortas e ao Capinzal, sempre em mangas de camisa, de tamancos, sem meias, olhando para todos os lados, com o seu eterno ar de cobiça, apoderando-se com os olhos, de tudo aquilo de que ele não poderia apoderar-se logo com as unhas (21). Porém, o facto de ele ser português e branco contribui para que Bertoleza o aceite como amante e gerente das suas finanças porque, segundo Azevedo, “procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua” (14). Rita Baiana vê em Jerónimo “o macho de raça superior”. Ela abandona o mulato Firmo, volúvel e instável, em detrimento do português “hercúleo” porque o “sangue da mestiça reclamou os seus direitos de apuração e Rita preferiu no europeu [português] o macho de raça superior” (138). Ao utilizar estas palavras, o escritor de O Cortiço cria um paradoxo. Embora mostre um sentimento lusofóbico no romance através da figura de João Romão, Azevedo acaba justificando a motivação das suas personagens (Bertoleza e Rita) em quererem melhorar a sua raça juntando-se com o imigrante português, ao recorrer à ideologia positivista eugénica. Eis o determinismo social em prática quando há que recorrer à miscigenação como método de sobrevivência para vencer numa sociedade que exclui com o propósito de “civilizar”. Neste sentido, com motivações diferentes, Azevedo aproxima-se de Romero na medida em que acaba por mostrar a necessidade da permanência do elemento português na sociedade brasileira para branqueá-la via miscigenação. Defendendo o “elemento” luso no Brasil, Sílvio Romero invoca a necessidade de os portugueses terem privilégios na terra onde “foram os principais progenitores, os principais formadores, os principais organizadores da nacionalidade brasileira” (1). Para ele, “a raça que mais nos [brasileiros] convém, por ser aquela que melhora as condições da nossa mestiçagem extensíssima, sem alterar a fisionomia histórica da nação; ao que obsta a que sejamos um outro Haiti ou um outro São Domingos, sem o perigo de transformar-nos em conquistas da Alemanha ou da Itália é a portuguesa” (11).2 Sílvio Romero não distingue o português segundo a categoria de género; refere-se simplesmente enquanto “a gente que mais nos quadra” (Romero 30). O mesmo é dizer, a que mais convinha à nação brasileira da época pelas razões elucidadas acima. Seguindo a linha de pensamento deste crítico literário, Rita Baiana deveria mesmo ter-se associado a um homem português para assimilar a sua raça e cultura, logo, a raça lusa estaria a contribuir para melhorar as “condições da nossa [brasileira] mestiçagem” (Romero 30). Rita iria, assim, evoluir e civilizar-se ao assimilar-se à cultura lusa de Jerónimo. Uma ideia fundada num pensamento também racista de Sílvio Romero, que despreza o valor do elemento africano e da cultura negra na formação da identidade brasileira num momento em que 34% da população do Rio de Janeiro se autoidentifica como sendo negra ou mestiça, segundo o censo de 1890 (Chalhoub 43). Azevedo, diferentemente, mostra Jerónimo a submeter-se à raça “inferior,” quando se junta com a mulata num processo de abrasileiramento, facto que contribui para a sua degeneração, passando a assimilar a preguiça e a falta de organização no trabalho, características estereotipadamente associadas geralmente à cultura brasileira. A historiadora Gladys Ribeiro identifica os imigrantes portugueses comerciantes e industriais como sendo aqueles que constituem a percentagem da população imigrada que não adere ao artigo 69, parágrafo 4º da Constituição de 1890. Segundo este artigo, os imigrantes a viver no Brasil poderiam adquirir a cidadania brasileira no prazo de seis meses a seguir à implantação da República (1889). Os portugueses comerciantes residentes no Brasil preferem continuar a usufruir do estatuto de estrangeiros, de modo a lograrem de privilégios comerciais com Portugal. Esta atitude coloca-os no horizonte de percepção brasileira como ‘uma espécie de bode expiatório” (Ribeiro 52). Ao contrário de Jerónimo, João Romão não é o tipo de imigrante que se deixa incorporar facilmente na cultura brasileira. Ele continua transacionando produtos com a pátria lusa, não

                                                                                                                   

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  contribuindo para a tão desejada nacionalização do comércio brasileiro pelos jacobinos ultranacionalistas seus contemporâneos. Assim sendo, João Romão é o exemplo do imigrante “indesejável,” de acordo com a classificação de Lená de Medeiros relativamente aos imigrantes europeus no Rio. Ou seja, aquele que, segundo Maria Luiza Tucci Carneiro, não se integrava ao “nós” [brasileiros] “atendendo às regras impostas pelos ordenadores da sociedade brasileira” (2). Esta constitui mais uma das razões por que o imigrante português comerciante vem a figurar no romance O Cortiço associado ao conceito de “surplus visibility,” de Daphe Patai, significando “in the treatment of minorities and minority views, when one ‘of them’ is visible at all, all of them are seen to be taking over” (Patai 2). Neste caso, as características negativas de João Romão são expandidas pelo grupo de imigrantes portugueses no Rio aos olhos dos brasileiros, os quais sentem, aparentemente, medo de que estando grande parte do comércio nas mãos de portugueses seria este um indício de outro tipo de colonização ou de neocolonialismo lusos, que impossibilitaria aos brasileiros gerirem todos os recursos nacionais de forma independente. No entanto, como afirma Gladys Ribeiro, a economia brasileira está a passar por um período muito complicado entre 1888 e 1897. As causas para tal são diversas: o encarecimento geral do custo de vida (géneros alimentícios e habitação), a crise do café e as revoltas da Armada no Sul do país (1893) (Ribeiro 51). Enfim, uma sequência de acontecimentos que contribuem para encarar a República de uma forma menos positiva. Por conseguinte, poder-se-á afirmar que a realidade espelhada no romance de Azevedo constitui um exemplo mais das estratégias reunidas pelo regime republicano para dispersar o pensamento da população para outro alvo – o imigrante português. Afinal, é ele que vende os géneros de primeira necessidade, cujo encarecimento irá atingir as classes populares, as quais, segundo Gladys Ribeiro, não viam a República com bons olhos, pois “o Imperador ainda granjeava sorrisos e recolhia lágrimas dos olhos daqueles que se consideravam seus filhos” (Ribeiro 52). Logo se vê por estas palavras como o povo sente saudades de um passado que se extinguira e com ele levara hábitos outros que jamais regressariam. É por isso coerente o comentário de António Cândido quando afirma que se poderá ler a personagem de Azevedo como “paradigma à reacção suscitada no brasileiro mais ou menos ressentido pela constituição das fortunas portuguesas daquele tempo (115). Para Sílvio Romero, a oficialização da língua portuguesa no país seria o primeiro passo para que se operasse o estreitamento de laços luso-brasileiros nas mais diversas áreas. Contrariamente a Azevedo, Romero apela no seu ensaio ao “pacto de cooperação” entre Portugal e Brasil, o qual implicaria a assinatura de protocolos em diversas áreas: “... tratados de comércio convenientes a ambas as partes, convenções literárias, científicas, políticas, económicas [...] vantagens especiais para o fim de reatar o fio interrompido da imigração portuguesa...” (29). Estas palavras mostram claramente o apoio do filósofo à emigração lusa para o Brasil. O pensador, receoso da permanência de grandes colónias de alemães no Sul do Brasil persiste na divulgação da importância do elemento português, não só por questões de raça, mas também culturais, sugerindo que os brasileiros aprendessem as tecnologias com as nações mais avançadas [Alemanha e Inglaterra], mas jamais negassem as suas raízes portuguesas (10-17). Romero pretende “re-colonizar” o Brasil com o elemento português. Recolonização aqui leia-se aculturação no sentido de institucionalizar a língua de Camões e espalhar a presença portuguesa pelo país de acolhimento de modo a impedir a aglomeração de nichos de imigrantes de outras nacionalidades dominando o norte, o sul ou o centro do país. Vejam-se as colónias de imigrantes alemães no sul do Brasil contemporâneas do discurso de Romero. As posições de Azevedo e de Romero, embora aparentemente antagónicas, parecem estabelecer pontos de contacto não ao nível da estética, mas ao nível da retórica eugenista concernente ao imigrante português no Brasil. O primeiro através da ficção; o segundo, pelo ensaio, primem por justificar a presença ou ausência do imigrante português no país, recorrendo, no caso de Azevedo, à identificação do imigrante português e da imigrante portuguesa como elementos de degeneração social; no caso de Romero, a civilização do Brasil operarse-ia pela aculturação da cultura lusa via miscigenação e oficialização da língua portuguesa, metas a alcançar de modo a elevar o Brasil ao nível de civilização europeia. III- As imigrantes portuguesas na bélle époque carioca No seu estudo sobre o serviço doméstico no Rio de Janeiro entre os anos 1860 e 1910, Sandra Lauderdale Graham informa que na década de 70 dois terços das domésticas eram mulheres livres (imigrantes, escravas forras ou agregadas). A transição entre a mão-de-obra escrava e livre para a mão-de-obra totalmente livre foi um processo lento, o que acabou gerando grandes ansiedades para a classe dominante e, consequentemente, conflitos sociais (Graham128-129). Antes o amo tinha o controlo total sobre a vida dos

 

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  escravos, inclusive sobre a sua vida sexual; agora a elite brasileira não tem mais o controlo da conduta dos seus servos, pois eles já não se criam e vivem na mesma casa que os patrões. As amas-de-leite, as lavadeiras e as costureiras (entre tantas outras mulheres que exercem actividades de serviço doméstico) vivem em cortiços. Estes têm uma conotação negativa no imaginário da classe dominante pelo “pavor do contágio” de doenças resultado das más condições de higiene, o que mostra que além dos perigos efectivamente existentes de contágio, há toda uma mentalidade e imaginação fabricada em torno das “classes viciosas e perigosas” transmissoras de doenças, a um nível tão profundo que “a doença física se tornava indistinta do contágio moral” (Graham 139-140). Por conseguinte, aos olhos dos patrões as empregadas domésticas constituem uma ameaça à sua saúde física e integridade moral e de suas famílias. Eis por que durante a bélle époque proliferam, segundo Sônia Roncador, a publicação de manuais domésticos dirigidos exclusivamente a um público feminino. Segundo a crítica literária, serviam essas publicações para “normatizar o serviço doméstico segundo padrões burgueses de higiene, eficiência, ordem” e mostrar, ainda, “uma visão, também burguesa, da casa enquanto lar, ou seja, associada aos valores de privacidade, aconchego, harmonia” (Roncador 96). Cabia, então, à dona de casa zelar pelo bom ambiente no lar doméstico, que passava também pela relação harmoniosa com seus empregados. No romance de Azevedo, as tensões domésticas entre patrões e empregados estão presentes, particularmente através da representação do desempenho das imigrantes portuguesas enquanto lavadeiras e amas-de-leite no cortiço. São elas que estabelecem a ponte entre a sua classe social e a burguesia, sendo as únicas que pelo exercício da sua profissão estabelecem uma relação entre o cortiço e o mundo burguês carioca. Aluísio Azevedo representa-as enquanto símbolo de corrupção física e moral, no entanto, a capital federal não lhes oferece condições adequadas para que tenham uma vida menos difícil. Alguns lugares da cidade do Rio de Janeiro carecem de escoamento adequado, o que faz com que em espaços habitacionais como os cortiços a lavagem da roupa deixe um cheiro desagradável, com o qual as lavadeiras passam a ser conotadas. Segundo Sandra Lauderdale Graham, a burguesia acredita que a roupa lavada nos cortiços os tornava “verdadeiros focos de miasmas,” ameaçando a saúde dos clientes (Graham137). Apesar da falta de meios para exercerem a sua profissão com maior profissionalismo, essas mulheres representam uma força de trabalho colectivo válida através da qual recebem um pequeno salário que lhes garante a sua independência pessoal. Factor este extremamente importante numa época em que a mentalidade social imponha à mulher (burguesa principalmente) o casamento como via única de sustento assegurado. É através desse trabalho pouco remunerado que as imigrantes lusas sustentam as suas famílias e contribuem para a manutenção do status social da burguesia. Elas são as responsáveis pela boa aparência da classe burguesa que do seu trabalho dependia (Francois 3). Segundo a historiadora Marie Francois, as lavadeiras cruzam espaços que são “... arenas of intersection where public and private spheres overlap, separations of production and reproduction break down, and social relations produce and are produced by demands of material life (Francois 34). Deste modo, a posição dessas mulheres é ambígua no espaço doméstico, alguém que vivendo fora do lar se mantém dentro dele através dos seus serviços, constituindo, simultaneamente, uma ameaça à sua segurança, perspectivada nos discursos da classe dominante e dos higienistas da época. Além disso, o conhecimento que possuem da classe burguesa através da sua profissão também lhes confere algum poder. Muitos segredos de elite se manifestam na própria sujidade da roupa, levando a que as lavadeiras sejam elas próprias veículos de informação entre os locais de reprodução e os espaços de produção do serviço doméstico. Apesar disso, Azevedo apresenta as lavadeiras como seres cuja conduta é considerada abominável pela elite carioca. Também a escritora brasileira Júlia Lopes de Almeida (1886-1934) representa os empregados domésticos de modo negativo nas suas obras. Em A Viúva Simões, por exemplo, Almeida representa, segundo Sônia Roncador, os empregados como “cada vez mais exigentes” e descreve o seu comportamento “infernal” ao final da narrativa quando ilustra um diálogo entre a nova governanta de Ernestina Simões (uma antiga criada sua de nome Josefa) e uma amiga da viúva, lê-se: “Que mulatinha levada! Aquilo ainda há-de acabar rolando bêbada pelas ruas. A Ana já veio me dizer que exige mais ordenado... Ui! Agora esta história de criadas é um inferno!...” (qtd. in Roncador 103). Portanto, a crítica aos empregados domésticos (lavadeiras, amas-de-leite, entre outros) é uma constante na belle époque. As lavadeiras portuguesas têm um papel fundamental em O Cortiço. Além de representarem uma importante força de trabalho, contribuem ainda para a vivacidade e maior sociabilidade da vida na Estalagem João Romão. No entanto, a sua profissão parece ser valorizada apenas pelo corticeiro, dado o lucro que lhe davam, explícito na publicidade que fazia: “Estalagem João Romão: alugam-se casinhas e tinas para lavadeiras”:

 

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  E as lavadeiras não se calavam, sempre a esfregar, e a bater, e a torcer camisas e ceroulas, esfogueadas já pelo exercício. Ao passo que, em torno da sua tagarelice, o cortiço se embandeirava todo de roupa molhada, de onde o sol tirava cintilações de prata. Estavam em dezembro e o dia era ardente. A grama dos coradouros tinham reflexos esmeraldinos; as paredes que davam frente ao Nascente, caiadinhas de novo, reverberavam iluminadas, ofuscando a vista (37-38). No entanto, sendo membros de famílias desestruturadas (na sua maioria), as imigrantes portuguesas são elementos indesejados na reconstrução do modelo de nação por intelectuais como Aluísio Azevedo. Segundo Sueann Caulfield, “the Republic brought abolition of explicit noble and racial privileges, but did not eliminate status hierarchies” (Caulfield 16). A autora quer dizer que a diferenciação de classes persiste mas de forma diversa. Neste contexto, a honra nacional está relacionada com o decoro público. Por outras palavras, há uma representação da sociedade brasileira nos espaços públicos, aparentando modernidade, mesmo que a mentalidade não acompanhe os avanços do tempo. Eis por que se eliminam os cortiços na capital federal de modo a apresentar os centros urbanos isentos da “vergonhosa” e “imoral” vivência da classe operária. Nesta se incluindo as imigrantes portuguesas cuja conduta sexual não se coaduna com os valores republicanos da aparência, do mais vale parecer que ser. Azevedo descreve as imigrantes lusas de forma marcadamente naturalista, na medida em que o meio e a hereditariedade são responsáveis pelos seus comportamentos inapropriados. A Leandra, a “Machona, portuguesa feroz” com duas filhas, a “Das Dores,” separada do marido, e Nenen, virgem de 17 anos, óptima a engomar e a fazer roupa branca de homem. A Leocádia, mulher do ferreiro Bruno, com fama de leviana. A Dona Isabel, “velha portuguesa devota,” mãe de Pombinha, noiva de João da Costa e com 18 anos ainda não é mulher (33). Para além destas, há as lavadeiras brasileiras, a cabocla Paula, a mulata Marciana e a filha Florinda e termina a lista das lavadeiras com Albino, “homem linfático e efeminado” (35). Como corpo colectivo, as lavadeiras exercem um papel importante no romance, não só enquanto profissionais do serviço doméstico, mas também pelas opiniões que emitem relativamente às restantes personagens e pelos núcleos familiares que representam. É através das lavadeiras que o leitor toma maior conhecimento do quotidiano da vida no cortiço. Todos os dias se encontram no recinto colectivo das tinas e os seus diálogos informam o leitor dos conflitos que perpassam as suas vidas e, ainda, das vidas das restantes personagens do romance. São elas que apresentam a mulata Rita Baiana, por exemplo, a quem o narrador confia a tarefa de apontar-lhe tanto os defeitos como as qualidades (37) e a portuguesa Maria Piedade de Jesus (46). Além disso, são elas que sabem as notícias do cortiço em primeira mão: a doença do português Jerónimo (66), da separação de Bruno e Leocádia (74) e da gravidez inesperada e “inaceitável” de Florinda, protegendo-a das “garras” da mãe (81) ou idolatram a francesa Leónie (86-87). Enquanto corpo colectivo, as lavadeiras enformam o motor de relações no cortiço e decoram a sua paisagem com roupa branca, dando uma certa forma e cor ao espaço, concebido na estética naturalista como um organismo vivo. Elas constituem uma espécie de “jornal diário” dos acontecimentos sociais locais: “E as lavadeiras não se calavam, sempre a esfregar, e a bater, e a torcer camisas e ceroulas, esfogueadas já pelo exercício” (37). Além disso, é através desse trabalho feminino que o cortiço cresce, trazendo uma população residente mais diversificada e cujo dinheiro ajuda João Romão nos custos das obras de reabilitação do espaço. As lavadeiras servem de objecto de crítica de Azevedo por as suas vidas não se ajustarem ao modelo de família patriarcal imposto pelo regime republicano. A conotação da nação moderna com a honra familiar é um princípio incutido pelo regime e pela Igreja através do qual se tenta justificar a erradicação da imoralidade dos centros urbanos. Imoralidade essa associada à perversão sexual. Os adjectivos utilizados para descrever as lavadeiras são de uma brutalidade incrível, chegando a incutir-lhes uma carga animalesca, própria da corrente naturalista, que pretende encontrar nas personagens os seus aspectos mais instintivos. Leandra, por exemplo, alcunhada de “Machona” denota, desde logo, o seu aspecto pouco feminino, distante dos estereótipos de beleza feminina da época em que, mais do que tudo, as mulheres tinham que “mostrar formosura e elegância de modos” (Vaquinhas 74). O regime republicano de cariz positivista encontra na família a célula basilar da sociedade, a metonímia da nação. Neste sentido, propaga-se a ideia de um lar estável no qual a esposa é a companheira do marido, responsável pela educação dos filhos. Leandra é, desde logo, identificada como a mulher “viúva ou desquitada” (33). A ambiguidade do seu estado civil é traduzida complementarmente pelo facto de “os filhos não se parec[erem] uns com os outros” (33). Tendo a doutrina positivista por valores a ciência e o determinismo biológico, influenciada pela hereditariedade lamarckiana, uma mãe com este perfil instável de família transmitiria, por consequência, essas características aos filhos. Assim sendo, é com naturalidade que o narrador

 

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  descreve a filha da “Machona,” Das Dores, como alguém que herdara as mesmas características da mãe, pois Das Dores é “casada e separada do marido,” representando um modelo de família fragmentada e que, por isso, em nada contribuirá para o desenvolvimento da nova nação brasileira. Seguidamente, Leocádia é descrita como uma “portuguesa pequena e socada, de carnes duras, com uma fama terrível entre as suas vizinhas” (33), o que a coloca desde início como elemento transgressor dos valores republicanos de fidelidade, harmonia e respeito. Além de lavadeira, Leocádia comete adultério como forma de servir de ama-de-leite numa família de classe alta: “ – Olha! pediu ela, faz-me um filho, que eu preciso alugar-me de ama-de-leite... Agora estão pagando muito bem as amas!” (71). Esta imagem fria da ama-de-leite na República Velha (1889-1930), completamente despida da encarnação do alimento e dos cuidados afectuosos da antiga ama-de-leite escrava residente no lar, transforma Leocádia numa ameaça perante os olhos do lar burguês, transmissora de doenças aos futuros cidadãos republicanos. Dona Isabel, respeitada no cortiço por ser “...uma pobre mulher comida de desgostos” e de “cara macilenta de velha portuguesa devota” (34) também faz parte de uma família desagregada. O marido suicidarase e Pombinha nascera “muito doentinha e fraca”. No entanto, ela fizera todos os esforços para lhe dar “uma boa educação, dando-lhe mestre até de francês” (34). Educação que, todavia, não lhe facultara os valores necessários de resistência a uma vida pecaminosa quando segue os passos de Léonie, sua madrinha, e se torna prostituta de luxo. Acrescente-se que as mulheres do cortiço admiravam a francesa Léonie, assim como os homens burgueses. O luxo da sua indumentária de corte françês, a sua personalidade assertiva e a sua elegância de modos seduziam as gentes do cortiço. Segundo Lená de Medeiros, o refinamento europeu manifestava-se na capital também através da presença de “meretrizes francesas, nos figurinos e adornos franceses” (Os Indesejáveis 27). A prostituição constituiu um aspecto “civilizacional” na capital carioca porque uma importação europeia. Os homens são conduzidos na “arte do amor” pelas “mãos experientes” de francesas, fazendo com que se sintam parte de uma modernidade recentemente conquistada nos Trópicos. Algo que, segundo Lená de Medeiros, não se poderia dizer relativamente às mulheres portuguesas e às mulheres oriundas da Europa centrooriental. (Os Indesejáveis 27). As palavras da historiadora aplicam-se ao retrato naturalista evidenciado por Aluízio Azevedo com respeito às imigrantes portuguesas que descreve no romance. Então, civilizar o Brasil requeria importar o bom e o mau das sociedades europeias de modo a que a nação brasileira respirasse o mesmo ar que pairava no Velho Mundo. A vida leva Pombinha a enveredar por práticas ilícitas, mas até aí o seu comportamento se apresenta ambivalente. Virgem e não “visitada pelas regras” até aos 18 anos, é “desflorada” por Leónie, casa-se com João da Costa, separa-se e passa a viver com a francesa, facto que leva Dona Isabel à loucura e a terminar os seus dias numa casa de saúde. A portuguesa Maria Piedade de Jesus torna-se alcoólatra e enlouquece em consequência da separação de Jerónimo e, ainda, por saber do caminho da filha na prostituição. O ciclo da perversão repete-se. Além de hereditários, estes “vícios” são contagiosos: “A Bruxa [a cabocla Paula], por influência sugestiva da loucura de Marciana, piorou do juízo e tentou incendiar o cortiço” (104). No século XIX, como afirma Michel Foucault em History of Sexuality (1976), “... sexual irregularity was annexed to mental illness” para constituir “... a sexuality that is economically useful and politically conservative” (Foucault 152). Azevedo critica essa fragmentação familiar, mostrando a consequência desses comportamentos na degenerescência do ser humano. A degeneração diagnosticada pelo pensamento social brasileiro constituía um “national ailment” que aliava a saúde individual ao bem-estar nacional (Borges 235). Neste sentido, a degeneração, segundo Dain Borges, constituía, no Brasil tal como na Europa, uma “psychiatry of character, a science of identity, and a social psychology,” pois “national decline should be understood through the metaphor of progressive hereditary illness in a body that the nation was a sick man” (Borges 235). Mais uma vez, a ciência positivista toma forma na estética naturalista. É neste contexto que o regime republicano e Azevedo (no qual se integra) negam a integração das lavadeiras lusas imigrantes no projecto nacional. Segundo a ideologia republicana, a sua conduta ‘imoral’ iria macular a honra nacional aos olhos das civilizações europeias. Assim, o autor percepciona e descreve as lavadeiras de modo semelhante às mulheres de cor como Bertoleza, a escrava de ganho. É neste contexto que Azevedo encapsula as imigrantes lusas, pois a sua cor branca não inviabiliza a forma como são percepcionadas socialmente. Os imigrantes pobres lusos são estigmatizados e marginalizados no país de acolhimento, quer ao nível do género, quer ao nível da sua orientação sexual. Neste último nível inserem-se Leandra – a “Machona” e Albino. Ela é identificada por “Machona,” portuguesa dona de um génio “feroz” e com uma situação conjugal indefinida: “viúva ou desquitada,” o narrador não sabe ao certo, exactamente para recriar essa imagem de quem

 

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  vive nas margens, transgredindo às normas da família republicana positivista, logo excluída da nação idealmente civilizada republicana. Leandra é descrita como tendo características masculinas. Albino, pelo contrário, apresenta características femininas, descrito como “efeminado” e “linfático”. A sociedade maltrata-o devido à sua homossexualidade como quando lhe batem na República de Estudantes. A partir daí, ele deixa de sair do cortiço, a não ser no Carnaval. A homossexualidade é exposta como “perversão” nefasta à proliferação sã da raça brasileira. No entanto, seguindo o pensamento da teórica Judith Butler em Gender Trouble (1990), género pode ser perspectivado enquanto performance. Por conseguinte, Leandra e Albino interpretam uma identidade individual que não é mais do que uma construção discursiva e cultural, sendo, por isso, capazes de controlarem a sua identidade através da performance que realizam socialmente, pois género é “the repeated stylization of the body, a set of repeated acts within a highly regulatory frame that congeal over time to produce the appearance of substance, of a natural sort of being…” (Butler 135). Em suma, O Cortiço é um romance que retrata a nação brasileira em processo de reestruturação, quer em termos da definição da sua identidade nacional, quer em termos da sua reorganização interna. Ao longo deste processo, os ideais positivistas influenciam sobremaneira a elite republicana e a intelligentsia brasileira, levando a que os escritores naturalistas tenham sido “the first group of writers to turn a de-centered, or excentric, gaze at the totality of the Brazilian society of their time” (Bueno 363). Para eles, corpo humano e corpo social projetam-se como espelhos cujas imagens se refletem mutuamente. Azevedo mostra tais imagens lendo a nação a partir da periferia, enaltecendo como os imigrantes lusos são nocivos ao desenvolvimento do corpo social. A hostilidade nacionalista aos imigrantes portugueses constitui a reação das elites cariocas aos “fantasmas” da colonização lusa que ainda assolam numa nação cuja independência é um fenómeno relativamente recente. Identificá-los como os imigrantes “indesejáveis” porque tomam atitudes e desenvolvem comportamentos inversos àqueles impostos pelo regime republicano constitui, nas palavras de Lená de Medeiros, “uma operação cirúrgica em defesa da ordem” para “forçar o retorno dessa camada inferior à Europa” (De Medeiros 92). Em contrapartida, Sílvio Romero desenvolve esforços para a integração desses imigrantes na sociedade brasileira. Estando a cultura lusa na base da formação identitária brasileira, assim como a língua portuguesa, o Brasil conseguiria, segundo este crítico, atingir o seu desenvolvimento e coesão nacional abrindo portas à emigração lusa sem quaisquer restrições. Azevedo, pelo contrário, apresenta os imigrantes lusos como “bode expiatório,” o que constitui simplesmente uma estratégia do momento para ocultar outras realidades, nomeadamente o descontentamento da classe operária com as imposições republicanas mencionadas acima. No entanto, entre as qualificações atribuídas aos imigrantes portugueses, Azevedo mostra através das personagens Bertoleza e Rita Baiana a vantagem da assimilação através do homem branco, criando, assim, um paradoxo na exposição do seu raciocínio. Apesar de na sua maioria pobres e iletrados, os imigrantes portugueses constituem uma força de trabalho que o regime republicano não deverá desprezar, tendo em conta a inexistência de hábitos de trabalho na sociedade brasileira à época e a ânsia de modernizar o Brasil. No entanto, a inexistência de condições de vida adequadas está na génese da sua conduta como, por exemplo, a falta de água canalizada inviabiliza a existência das boas condições físicas dos recintos de lavagem da roupa. Não é a falta de esforço, perseverança ou espírito de sacrifício que leva a que as imigrantes lusas sejam discriminadas pelos locais. Pelo contrário, muitas vezes, são elas as chefes de família, únicas responsáveis pelo seu sustento e o dos seus filhos. Além disso, é o seu trabalho que permite manter o aprumo da classe burguesa, assim como a ordem social estabelecida. Logo, nem tudo pode ser considerado negativo quanto à presença migratória lusa no Brasil como Azevedo tenta fazer crer ao leitor. O romancista apresenta a pobreza e origem portuguesas das lavadeiras imigrantes per se motivo de discriminação social. O exemplo da prostituta Léonie e o seu glamour parisiense ergue-se como contraponto à pobreza e simplicidade lusas. Ao passo que o vestuário das imigrantes portuguesas denota pobreza e precariedade, conotadas com o subdesenvolvimento próprio do período da colonização; a indumentária luxuosa de Léonie parece ocultar a imoralidade expressa no exercício da prostituição pelo impacto positivo que cria nas restantes personagens, independentemente da classe social a que pertençam. A sua aparência exuberante é conotada, pois, com a modernidade europeia que os brasileiros pretendem imitar. Eis um exemplo claro de que a modernização e civilização da jovem nação brasileira quer-se superficial, sem atentar ao conteúdo dos valores morais da população.

 

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