Os Intelectuais de São Paulo na crise do Império: repertório de ideias e ação política (1875-1889)

May 23, 2017 | Autor: Rubens Correa | Categoria: História, Historia Política, História Do Brasil Império
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Revista do IHGSP - Vol. C - 2016

Revista do Instituto Histórico e Geográfico de

São Paulo

Ano CXXII – Volume C

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Revista do Instituto Histórico e Geográfico de

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São Paulo – 2016

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Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo Publicação oficial do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo – fundado em 1º de novembro de 1894, reconhecido de Utilidade Pública pela Lei Estadual 508, de 17 de novembro de 1949, e pelo Decreto Federal 59.151, de 26 de agosto de 1966. Rua Benjamin Constant, 158 – CEP 01005-000 São Paulo – SP Fone: (11) 3242-8064 Novo e-mail: [email protected]

Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo – IHGSP V. I, T. I, 1895. São Paulo: 1895 Anual ISSN 0100-2953 l. História e Geografia – Periódicos

Editor e Jornalista-responsável: Armando Alexandre dos Santos (MTb 36.265) Conselho Editorial: Alberto Luiz Schneider (PUC-SP/IHGSP) – Alexandra Wilhelmsen (Universidade de Dallas/ IHGSP) – Padre Aníbal Gil Lopes (UFRJ-IHGSP) – Antonio Roque Dechen (USP-ESALQ) – Armando Alexandre dos Santos (UNISUL/IHGSP/IHGB) – Arno Wehling (UFRJ/IHGB) – Damásio Evangelista de Jesus (CJDJ/IHGSP) –Edivaldo Machado Boaventura (UEBA/ IHGB/IHGSP) – Eduardo de Almeida Navarro (USP/IHGSP) – Ives Gandra da Silva Martins (Mackenzie/IHGSP) – João Grandino Rodas (USP/IHGSP) – Jorge Pimentel Cintra (USP/IHGSP) – José António Falcão (Academia Portuguesa de História-APH/IHGSP) – José Bueno Conti (USP/IHGSP) – Liliana Rizzo Piazza (Mackenzie/IHGSP) – Lincoln Etchebéhère Junior (USM/IHGSP) – Lúcia Maria Paschoal Guimarães (UERJ/IHGB) – Marcus de Noronha da Costa (APH/IHGB/IHGSP) – Maria Ascenção Ferreira Apolônia (USM/ IHGSP) – Maria Cecília Naclério Homem (USP/IHGSP) – Maria da Conceição de Moraes Coutinho Beltrão (UFRJ/IHGB) – Nelly Martins Ferreira Candeias (USP/IHGSP) – Paulo Lebeis Bomfim (Academia Paulista de Letras/IHGSP) – Paulo Roberto Moraes (USP/IHGSP) – Ricardo Luiz Silveira da Costa (UFES/IHGSP) – Rogério Ribeiro da Luz (IHGSP) Capa: Entalhe em madeira, representando as Armas do Império brasileiro. Acervo do IHGSP, fotografia de Abel Francisco Junior. Diagramação: Luis Guillermo Arroyave Impressão: BMK Pro Indústria Gráfica Ltda. – Rua Fáustolo, 1300, CEP 05041-001 São Paulo-SP

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Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo Diretoria eleita para o triênio 2015-2017 Diretoria Executiva Presidente: Nelly Martins Ferreira Candeias Vice-Presidente: José Carlos de Barros Lima Secretario Geral: Jorge Pimentel Cintra Secretário Geral Adjunto: Jorge Henrique Monteiro Martins Tesoureiro Geral: Eduardo Conde Tesoureiro Geral Adjunto: Luiz Freitag Suplentes: Andréa Carla Aydar de Melo Generoso Helena Ribeiro Ingrid Hotte Ambrogi Maria Cecília Naclério Homem Samuel Moraes Kerr Conselho Administrativo Efetivos: Lisindo Roberto Coppoli Manoel Joaquim Ribeiro do Vale Neto Miguel Parente Dias Suplentes: Eugênia Cristina Godoy de Jesus Zerbini Fábio Augusto Generoso Júlio Abe Wakahara Conselho Fiscal Efetivos: José Bueno Conti Lincoln Etchebéhère Júnior Rogério Ribeiro da Luz Suplentes: Eduardo Alberto Escalante Mário Albanese Vaner Silvia Soler Bianchi

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Apresentação O presente volume da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo não é um volume comum, mas é altamente simbólico: é o número 100. Raríssimas revistas chegam a atingir esse venerável centenário. A nossa, apesar das dificuldades que no Brasil atual atingem as publicações culturais, felizmente chegou ao centésimo número. E não chegou envelhecida e reumática, mas, pelo contrário, cheia de vitalidade. É o que os leitores poderão facilmente constatar pelo seu conteúdo. O presente volume é aberto por um dossier especial, dedicado à memória da Rainha D. Maria I, cujo segundo centenário de falecimento se comemorou neste ano; o Instituto se associou em abril à lindíssima Missa de Requiem celebrada na Igreja de Nossa Senhora do Brasil por alma de D. Maria I, e realizou em homenagem a ela, no mês de setembro, uma sessão solene em seu salão nobre, com a honrosa presença do Príncipe D. Bertrand de Orleans e Bragança. É com satisfação que nossa Revista reproduz, abrindo este volume, a mensagem que, na ocasião, o ilustre Príncipe dirigiu aos presentes. A Língua Portuguesa, no contexto da atual globalização, foi o objeto de uma jornada de estudos promovida em outubro. O segundo dossier especial é constituído por algumas das palestras então proferidas em nosso auditório. Na seção dos artigos, merecem destaque os dois estudos anchietanos que abrem a série, seguidos por um verdadeiro passeio cultural efetuado à histórica Fazenda Morro Azul, no interior paulista; pela evocação de intelectuais paulistas, no contexto da propaganda republicana de São Paulo; pela biografia do Eng. Joaquim Branco e, fechando a série de artigos científicos com chave-de-ouro, uma explanação filosófica sobre a Tradição e sua importância para a História. Estampamos depois uma sessão nova, em nossa Revista, intitulada “Depoimentos para a História”, com textos de dois destacados sócios do IHGSP, um deles advogado e o outro engenheiro civil, que, na sua trajetória pessoal, não apenas estudaram a História, mas verdadeiramente ajudaram a fazer História. No final do volume, uma resenha que se reveste de atualidade, já que no próximo ano se celebrará o centenário da entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial. 7

A Editoria da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo conclui esta breve mensagem agradecendo as manifestações de confiança e apoio que tem sempre recebido da Dra. Nelly Martins Ferreira Candeias e dos demais membros da Diretoria; esses agradecimentos são também extensivos aos membros do Conselho Editorial, aos autores de artigos aqui publicados e, de modo mais amplo, aos consócios que não têm deixado de enriquecer nossa Revista com suas críticas e sugestões, sempre bem acolhidas por nós. O Editor.

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Sumário I - Dossiers especiais.........................................................................................11 – Homenagem à memória da Rainha D. Maria I...........................................11 Palavras do Príncipe Dom Bertrand de Orleans e Bragança........................13 Palavras da Dra. Nelly Martins Ferreira Candeias.......................................19 Dona Maria I, Rainha do Brasil

Ibsen José Casas Noronha....................................................................25

D. Maria I: visão geral de um reinado esquecido

Armando Alexandre dos Santos...........................................................33

– 64º. Encontro dos Descobrimentos – A Língua Portuguesa no Mundo Globalizado................................................................................47 Mensagem de abertura

Nelly Martins Ferreira Candeias..........................................................49

Camões, expoente máximo e consolidador da Língua Portuguesa

Armando Alexandre dos Santos............................................................51

Ensaio sobre a historicidade da Língua portuguesa

Alberto Luiz Schneider.........................................................................69

Fernando Pessoa e seus heterônimos

Nelson Faria de Oliveira......................................................................77

II – Artigos A fundação e os primeiros tempos de São Paulo numa carta de São José de Anchieta a Santo Inácio de Loyola

Damásio E. de Jesus.............................................................................87

Nos escritos de Anchieta, a arquitetura de uma Nação

Maria Ascenção Ferreira Apolônia...................................................113

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Fazenda Imperial Morro Azul: tradição e vanguarda (1817-2017)

Maria Cecília Naclério Homem.........................................................141

Os intelectuais de São Paulo na crise do Império: repertório de ideias e ação política (1875-1889)

Rubens Arantes Corrêa......................................................................161

A importância do Eng. Joaquim Branco na História de São Paulo

Aristides Almeida Rocha....................................................................183

Notas sobre a Tradição

Victor Emanuel Vilela Barbuy............................................................191

III – Depoimentos para a História Os conturbados dias que levaram ao Movimento de 1964

Ives Gandra da Silva Martins..............................................................205

O concreto armado no Brasil – Notas de um engenheiro civil

Rogério Ribeiro da Luz.......................................................................211

IV – Seção de Resenhas Resenha de “O Brasil na Primeira Guerra Mundial: a longa travessia”

Armando Alexandre dos Santos.........................................................215

V – Noticiário..................................................................................................227 In Memoriam..................................................................................................234

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I – Dossiers especiais

Homenagem à memória da Rainha D. Maria I O Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo celebrou a memória de D. Maria I, Rainha de Portugal, Brasil e Algarves, no ano em que se comemora o segundo centenário de seu falecimento, ocorrido no Rio de Janeiro, no dia 20 de março de 1816. Inicialmente, o Instituto se associou, juntamente com a Casa de Portugal, à oportuna iniciativa do Príncipe D. Luiz de Orleans e Bragança, Chefe da Casa Imperial do Brasil, de mandar celebrar na Igreja de Nossa Senhora do Brasil, no dia 8 de abril, uma Santa Missa em sufrágio de D. Maria I. Repetiu-se, no ato, precisamente o mesmo ritual religioso celebrado 200 anos antes, no Rio de Janeiro, com a Missa de Requiem em ré menor, do Pe. José Maurício Nunes Garcia, composta em 1816 para os funerais de D. Maria I. A regência foi do maestro Natan Bádue. Além de seleto e numeroso público, estiveram presentes membros da Família Imperial do Brasil e o Dr. Paulo Lopes Lourenço, Cônsul-Geral de Portugal em São Paulo. Uma sessão solene em homenagem a D. Maria I foi também realizada no auditório do Instituto, no dia 8 de setembro, com a participação do Príncipe Imperial D. Bertrand de Orleans e Bragança, descendente em linha direta, na 6ª. geração, da homenageada. Fizeram também uso da palavra, na ocasião, a Presidente do Instituto, Dra. Nelly Martins Ferreira Candeias, e os Profs. Ibsen José Casas Noronha (que veio expressamente de Coimbra, Portugal, em cuja Universidade leciona) e Armando Alexandre dos Santos. A sessão, que se revestiu de grande brilho, foi enriquecida com a pre-

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sença da Banda da Polícia Militar do Estado de São Paulo, que abriu a sessão com o Hino da Independência, e com a apresentação do Trio “Cantos do Brasil”, que, coordenado pelo Maestro Samuel Kerr, executou canções brasileiras dos séculos XVIII e XIX. A seguir, são transcritas as falas reconstituídas dos quatro oradores e são reproduzidas fotografias da sessão, assim como da Missa realizada na Igreja de Nossa Senhora do Brasil.

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Sessão solene de 8 de setembro de 2016

Palavras de S.A.I.R. Dom Bertrand de Orleans e Bragança, Príncipe Imperial do Brasil Não poderia ser mais oportuna esta sessão solene, realizada no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo por iniciativa de sua Presidente, Dra. Nelly Martins Ferreira Candeias, em homenagem à memória da grande Rainha D. Maria I, a Piedosa. A iniciativa da Dra. Nelly nos tocou muito, ao meu irmão D. Luiz, que é o Chefe da Casa Imperial do Brasil, e a mim. Ambos temos grande apreço pela Sra. Presidente e pelo seu trabalho à testa deste Instituto – entidade cuja atuação acompanhamos com interesse e simpatia há muitos anos. O mais antigo Instituto Histórico foi fundado, no Brasil, em 1838, ainda na menoridade de D. Pedro II, sendo desde logo colocado sob o patrocínio do Imperador-Menino, que nos tempos conturbados da Regência, com sua simples autoridade moral garantiu a unidade e a continuidade histórica do Brasil independente. Surgiu assim o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB. Sua missão primordial era estudar e escrever a História do Brasil. Num país novo, recentemente emancipado da tutela lusa, essa era uma tarefa de grande importância e, até mesmo, de interesse vital: o Brasil independente devia se conscientizar de sua própria individualidade, devia tomar consciência de si mesmo. Tratava-se de uma questão identitária. Até hoje, mais de 120 anos depois do golpe republicano, o IHGB ainda conserva o costume de realizar, todos os anos, uma sessão especial celebrando o aniversário natalício do grande Imperador que, aliás, fazia questão de participar ativamente de seus trabalhos institucionais e presidia pessoalmente, sempre que podia, a suas sessões. Durante o Império, o Brasil constituía uma só unidade administrativa. Éramos um Império unitário, mantendo assim a tradição lusa, que foi sempre a de ser

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um Reino unitário. A partir de 1889, já em regime republicano, o Brasil tornou-se federativo. Realizou-se, assim, o projeto de uma federação, que parece bem mais adequado à imensidão de nosso território e já vinha sendo gizado na Monarquia; com certeza, teria sido adotado mesmo que não tivesse havido o 15 de novembro. Com o sistema federativo, naturalmente foram valorizadas as unidades integrantes da Nacionalidade. Naturalmente também, foram sendo constituídos os Institutos Históricos estaduais, que, no âmbito mais restrito dos respectivos territórios, tinham a mesma missão que, em âmbito nacional, competia ao IHGB. Cabia-lhes estudar, escrever e, sobretudo, valorizar a História e as tradições de cada Estado, inseridas no contexto mais amplo da nacionalidade brasileira. O Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, fundado em 1894, é um dos mais antigos do Brasil. Se com o IHGB a Família Imperial brasileira sempre manteve relações muito próximas, o mesmo se deve dizer dos Institutos estaduais. Ainda depois de 1889, a Princesa Isabel e o Conde d´Eu viam com bons olhos e com muita esperança a floração dos Institutos estaduais. Mantinham correspondência com seus principais membros e procuravam incentivá-los em sua missão específica. O mesmo fez, ao longo de toda a sua vida, meu Pai, D. Pedro Henrique de Orleans e Bragança (1909-1981), que foi Chefe da Casa Imperial desde a morte da Princesa Isabel, em 1921, até o fim de seus dias. Meu Pai era membro efetivo ou honorário de muitos Institutos Históricos estaduais, inclusive do de São Paulo. Sempre que visitava um Estado brasileiro, não deixava de ir à sede do respectivo IHG. No caso do IHGSP, a revista do Instituto registra numerosas passagens de meu Pai por sua sede. Aqui ele se sentia bem, num ambiente de idealistas que, no âmbito cultural e científico que lhes era próprio, realizavam em prol do Brasil tarefa análoga àquela que, por missão dinástica, competia à Família Imperial, como guardiã da História e das nossas tradições. Justamente nessa linha de considerações se insere a homenagem aqui prestada a D. Maria I, Rainha de Portugal, do Brasil e dos Algarves, a qual faleceu, como disse, há 200 anos, mais precisamente no dia 20 de março de 1816. Seu passamento se deu no Rio de Janeiro, aonde veio ter a Família Real Portuguesa no contexto das guerras napoleônicas, e onde seu filho, o Príncipe Regente e depois Rei D. João VI realizou uma obra imensa, não somente salvando e reorganizando o Reino de Portugal, cuja cabeça – situada no Continente europeu – fora invadida por estrangeiros, mas também assentando as bases para a criação, no Novo Mundo, do gigantesco Império brasileiro, que viria a constituir a obra-prima do gênio evangelizador e civilizador de Portugal. Mais tarde, os despojos da Rainha foram trasladados a Portugal e depositados, com as honras e a veneração que ela bem merecia, na Basílica da Estrela, que ela idealizara e mandara erigir em louvor do Sagrado Coração de Jesus. Foi

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a primeira igreja ereta, em toda a Cristandade, em honra do Sagrado Coração. Era ali que a soberana desejava ser sepultada, muito embora rompendo a tradição de serem os Reis, Príncipes e Infantes da Dinastia de Bragança sepultados no Panteão de São Vicente de Fora. Foi muito injustiçada a memória de D. Maria I. Ela, que fez a todos os títulos jus ao epíteto de “a Piedosa”, embora tenha sido durante muito tempo denominada, de modo pejorativo e mal-intencionado, “a Louca”. Como se a enfermidade mental que a acometeu nos vinte e poucos últimos anos de vida fosse capaz de apagar os mais de quarenta anos que vivera como Princesa, nos tempos conturbadíssimos do consulado pombalino, e os quinze anos em que, como Rainha de direito e de fato, realizara brilhante governo em Portugal! Afirma Caetano Beirão, em obra documentada e solidíssima, verdadeiro clássico sobre o reinado de D. Maria, quase ao final de sua análise históricocrítica da administração interna, da diplomacia, da economia, da cultura, das artes, da legislação, no reinado de D. Maria: Era excepcionalmente favorável, se não brilhante, a situação de Portugal, ao atingir seu termo [em 1792] o reinado efectivo de D. Maria I. Enquanto convulsões internas, ameaças de guerra, dificuldades económicas e políticas flagelavam outros países, aqui, na pequena casa lusitana, a vida decorria suavemente, alegremente, como numa grande família, em que todos, desde o chefe ao último dos filhos, trabalhassem para o bem comum. País nenhum precisava menos do que o nosso dos solavancos perigosos duma revolução. Progredia-se em todos os ramos da actividade colectiva. Lançavam-se os fundamentos das grandes escolas modernas, empreendiam-se múltiplas viagens de exploração e de estudo aos nossos domínios ultramarinos e ao estrangeiro, procurava-se disseminar o ensino e levá-lo às classes humildes da sociedade, abriam-se estradas, melhorava-se o serviço dos correios, protegiam-se as indústrias nacionais, inauguravam-se fábricas, aperfeiçoavam-se os serviços hospitalares e, justamente no ano em que a Rainha deixou de governar dava-se começo às obras do teatro de S. Carlos, belo monumento a atestar o grau de cultura de uma época... A par destes progressos de vária ordem, procurava o governo de D. Maria I facilitar o viver das camadas populares, não se limitando a ir ao encontro das suas necessidades materiais, mas elevando-as e dignificando-as no campo propriamente social (Caetano Beirão, D. Maria I – Subsídios para a revisão da história do seu reinado, 4ª. ed., Lisboa, 1944, pp. 399-400).

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Na infância e na adolescência, D. Maria viveu na corte de seu avô D. João V, respirando os últimos ares do velho Portugal patriarcal e familiar de outrora, quando dinastia e povo se estimavam e se queriam, e uma Nobreza antiga e cônscia dos seus deveres servia de elo entre o soberano e as classes populares. Eram tempos em que os Reis andavam com segurança e quase sem escolta por todas as partes, sem nada temer. Eram, todos eles, descendentes e continuadores de D. João I, o Rei de Boa Memória, monarca invencível, segundo o derrotado D. João de Castela, “porque não há exército no mundo capaz de resistir à força de um Pai cercado por sete mil filhos”. Os Reis de Portugal, na boa tradição medieval, timbravam em manter íntimo contato com seu povo. As audiências públicas eram rotineiras, a nenhum súdito sendo vedado o acesso direto ao seu soberano. Esse costume – lembro aqui de passagem – foi mantido no Império Brasileiro até o seu final. Meu trisavô D. Pedro II reservava sempre um dia da semana para essas audiências populares, às quais compareciam livremente todos os que desejassem fazê-lo, sem nenhuma formalidade. Na mocidade e no início da idade adulta, D. Maria assistiu à exacerbação de um fenômeno que já se verificara em outras nações, mas era, até então, praticamente desconhecido em Portugal. O absolutismo – no mau sentido do termo – régio. Eu me permitiria dizer, a respeito desse absolutismo, que nós recebemos por assim dizer com o leite materno, na nossa formação de Príncipes brasileiros, a ideia de que foi o absolutismo monárquico que solapou os tronos na Europa e inclusive, de certa forma, no Brasil. Não tivesse Luiz XIV atraído para a Corte de Versailles a nobreza e aqueles que seriam os intermediários naturais entre o rei e o povo, e a Revolução Francesa não teria ocorrido. O principal responsável pela Revolução Francesa foi, sob esse ponto de vista, Luiz XIV. Por quê? Porque ele consolidou o modelo de monarquia absoluta na França. O Marquês de Pombal foi responsável pela decadência de Portugal, porque foi ele que estabeleceu a monarquia absoluta em Portugal. Ou existe uma organicidade e se compreende que a nação, como um todo, é uma grande família, na qual um completa os demais, numa magnífica orquestra em que o Imperador atua à maneira de um maestro à frente de sua orquestra, ou nós corremos o risco de caminharmos para um divórcio entre o chefe de Estado e a Nação, entre o pai e os filhos. Esse ponto, para nós é absolutamente sagrado, quanto a mim, e sobretudo quanto a meu Irmão, o Príncipe D. Luiz, que é o herdeiro do trono. O papel de D. Maria I foi, como realçou muito bem o orador que me precedeu, precisamente o de uma contrarrevolucionária. Ela viveu exatamente na fase de passagem, do absolutismo régio mais desregrado, para as revoluções em série produzidas em decorrência da Revolução Francesa. Como contrarrevolucionária D. Maria agiu, restabelecendo o prestígio e a influência da Coroa, equilibrada pela Lei de Deus e pelas leis tradicionais da Mo-

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narquia lusa, respeitando as autonomias, as franquias, os privilégios de cada corpo social. Ela respeitou e prestigiou a Igreja e as Ordens religiosas, procurando reconciliar com Deus o Reino que Pombal afastara das suas vias históricas. Ela foi uma apóstola da devoção ao Sagrado Coração de Jesus, ela favoreceu a Nobreza, humilhada e vilipendiada no reinado anterior, ela, logo no início do seu reinado, restabeleceu os contatos diretos com o Povo, retomando o tradicional costume das audiências públicas e abertas. Todas as obras ingentes de seu brilhante governo, expostas minuciosamente por Caetano Beirão e sobre as quais não me cabe tratar aqui, se inserem nessa linha geral de rompimento com a Revolução descristianizadora e destruidora das legítimas tradições portuguesas, e de retomada do percurso histórico de um Portugal autêntico, da verdadeira Terra de Santa Maria. Se contemplarmos a História de Portugal nessa perspectiva, sem esquecer, naturalmente, que Portugal haveria de ser, 101 anos depois da morte de D. Maria, o pedestal escolhido pela Santíssima Virgem para, em Fátima, falar ao mundo inteiro, transmitindo mensagem de transcendental importância, veremos como foi grande o papel histórico de Dona Maria I. Como descendente direto da homenageada soberana e como membro da Casa Imperial do Brasil, não posso concluir esta breve mensagem sem destacar o eminente papel que ela representa especificamente para a Terra de Santa Cruz. Íntimas e prolongadas, mais do que isso, eternas são as vinculações de Dona Maria I com o Brasil. Já como herdeira da coroa de Portugal, ainda em vida de seu pai D. José, o título que portava era o de Princesa do Brasil. O Brasil já era indiscutivelmente, na primeira metade do século XVIII, o “Joia da Coroa” mais luzente e mais gloriosa do Império luso espalhado por todo o orbe. Era também, pelas suas dimensões continentais, e sobretudo pelo imenso potencial humano e material que comportava, o de mais promissor futuro. O Principado do Brasil passou a ser, naturalmente, o título dos herdeiros imediatos do Reino de Portugal. Como Rainha, já depois de ter adoecido incuravelmente, veio para o Brasil. Foi a primeira soberana europeia que transpôs o Oceano e desembarcou no Novo Mundo, em terra sua, em área da qual era soberana. E foi também, nos últimos anos de sua vida, a primeira Rainha do Brasil. Com efeito, proclamado a 16 de dezembro de 1815, o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, este teve como titular a então Rainha D. Maria I. Viria ela a falecer três meses depois, sendo sucedida no Trono do Reino Unido pelo filho, D. João VI. D. Maria aqui foi, com todo o respeito e veneração, depois de exéquias soleníssimas que duraram três dias, sepultada provisoriamente, à espera de que, em cumprimento de sua vontade, fossem seus despojos trasladados para a Basílica da Estrela. Estou persuadido de que já há muito tempo ela goza, na bem-aventurança

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eterna, do prêmio de suas boas obras, da recompensa merecida por sua vida exemplar e, estará, por toda a eternidade, bem junto ao Sagrado Coração de Jesus que ela tanto amou e por cuja devoção tanto se empenhou. Que nessa privilegiadíssima condição, ela se lembre do nosso Brasil, sobre o qual reinou; que ela continue a nos ajudar e favorecer, conseguindo bênçãos e graças de Deus para que nossa Pátria, a tantos títulos afastada do bom caminho e das vias que a Providência Divina lhe havia traçado, retome o bom caminho.

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Palavras da Dra. Nelly Martins Ferreira Candeias, Presidente do IHGSP É  uma  honra receber Sua Alteza Imperial e Real, o Príncipe D. Bertrand de Orleans e Bragança, no momento em que o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo homenageia a Rainha Dona Maria I, a Piedosa, na data que evoca os duzentos anos de seu falecimento. Os contatos da Família Imperial com este Instituto são antigos. Em novembro de  1946 tivemos a honra de receber a Princesa Dona Maria Pia, viúva de D. Luiz de Orleans e Bragança, e sua filha, Dona Pia Maria de Orleans e Bragança, avó e tia, respectivamente, dos Príncipes D. Luiz e de D. Bertrand. Suas nobres presenças deixaram entre nós a mais viva e perene saudade. Dez anos depois, em 12 de maio de 1956, o Príncipe D. Pedro Henrique de Orleans e Bragança, pai de suas Altezas, então Chefe da Casa Imperial do Brasil,  tornou-se Membro Honorário desta entidade. Faz-se referência em nossas atas à belíssima exposição de aquarelas de sua autoria. A visita do Príncipe D. Bertrand de Orleans e Bragança, membro da Família Imperial Brasileira, ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo é para nós privilégio digno do mais justificado orgulho. É de lembrar a magnífica homenagem realizada conjuntamente pelo IHGSP e pela Faculdade de Direito da USP, em 2008, comemorando os 200 anos da vinda da Família Real para o Brasil, na presença de Sua Alteza Imperial e Real, o Príncipe Dom Luiz. Nesse dia histórico os 800 assentos do Salão Nobre da Faculdade de Direito foram ocupados. São muitos ainda os problemas da nossa história em que, frente à apreciação falseada dos homens, a autenticidade dos fatos tem andado enredada em fantasias grosseiramente arquitetadas, todavia o que se refere à vida e morte de D.

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Maria I tem merecido por muitos autores uma dissecação mais pormenorizada e mais atenta. Ao nos referirmos à D. Maria Piedosa, no período de seu pai D. José I, vamos nos referir a quatro períodos da História de Portugal: a tentativa de regicídio em setembro de 1758; o processo dos Távora; a expulsão dos jesuítas; e o legado de D. Maria I, Rainha de Portugal. D. José I nasceu em Lisboa, em Junho de 1714, e faleceu na Ajuda em fevereiro de 1777. Era filho do rei D. João V e da rainha D. Maria Ana de Áustria. Cognominado  o Reformador  devido às reformas que empreendeu durante o seu reinado, D. José I foi intensamente influenciado pela política do seu primeiro-ministro, o Marquês de Pombal, que redefiniu as leis, a economia e a sociedade portuguesas, transformando Portugal num país moderno. O seu reinado durou entre 1750 e 1777. Monarca sem filhos homens, D. José I entendeu que sua filha primogênita deveria casar-se com um príncipe português, por ser ela herdeira do trono de Portugal. A continuidade dinástica da Casa de Bragança ficou assegurada com o seu casamento com Pedro III, irmão do Rei e tio da princesa, em 1760. O casal teve três filhos: o príncipe D. José, que faleceu jovem, D. João, o futuro D. João VI, e a infanta D. Mariana Vitória.

A tentativa de regicídio Em 3 de setembro de 1758, D. José I, rei de Portugal, vindo clandestinamente de um encontro amoroso, sofreu um atentado a tiros. Ainda que não com demasiada gravidade, o incidente serviu para que seu Ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, aproveitasse esse episódio para desencadear uma implacável perseguição contra seus adversários, a aristocracia, particularmente a família Távora, e os jesuítas.

O processo dos Távora em 1759 Os Távora jamais conspiraram contra o Rei. Eles apenas pretendiam libertar o Rei do domínio de Pombal. A família foi injustamente acusada, pelo Marquês de Pombal, de “conspirar contra o Rei”, que desejava quebrar e abalar a nobreza lusa, sujeitando-a inteiramente a um rei absolutista, dominado por seu todopoderoso primeiro-ministro. O Marquês de Távora, que tinha sido governador da Índia, tentou ser recebido pelo Rei, mas Pombal sempre se empenhou em impedir o Rei de ouvir diretamente seu leal servidor. A família Távora representava o velho Portugal, anterior ao absolutismo, e

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Pombal se aproveitou do “atentado” para eliminar dois de seus adversários, a velha Nobreza e a Companhia de Jesus. E assim procedeu. Movida pelo  orgulho  e pela  ambição, mas também por sua preocupação com os negócios do  Reino de Portugal, a Marquesa de Távora não ocultava o desdém que sentia pelo Marquês de Pombal e por seu Ministério. Sua casa tornou-se assim um local onde se reunia a oposição contra Pombal, que estava ciente disso. O processo contra os Távora foi absolutamente irregular, com testemunhas compradas e “confissões” arrancadas por meio de torturas bárbaras. Nada de concreto havia que demonstrasse a participação dessa família no “atentado” que lhe foi atribuído, sem jamais ter sido comprovado. Acusada de ter sido a primeira instigadora da tentativa de assassinato do rei D. José I, a Marquesa de Távora, bem como sua família, foram presos em dezembro de 1758, e levados ao Palácio de Belém. Em janeiro de 1759, a execução foi violenta: ela e toda a sua família foram impiedosamente mortas e seus  bens  confiscados pela Câmara Real. Os empregados foram queimados, tudo tendo à volta o alarido frenético da alegria popular. D. José I assim procedeu para que nunca mais a nobreza se rebelasse contra a autoridade régia. Esse tenebroso episódio é denominado na História de Portugal como “O Processo dos Távoras”.

A expulsão dos Jesuítas Segundo alguns historiadores, a história da educação na América Portuguesa, pode ser dividida em duas fases: antes e depois da expulsão dos jesuítas no reinado de D. José, em 1759. A expulsão é um episódio das “Reformas Ilustradas”, promovidas pela Coroa portuguesa a partir de 1750, marco inicial das reformas educacionais patrocinadas pelo Marquês de Pombal e continuadas por D. Maria I após sua queda. A modernização do Estado exigia outros tipos de parceiros em sua marcha para o progresso. Como os jesuítas eram a maior e mais influente ordem religiosa nos domínios portugueses, foram os primeiros a serem expurgados. Os jesuítas, como educadores, dominavam o sistema de ensino em Portugal e no Ultramar. Além disso, tinham um patrimônio cultural invejável, motivo mais do que suficiente para se tornarem uma ameaça para a implementação do sistema vigente. Por esses fatos, tornaram-se alvo do Marquês de Pombal, que iniciou uma campanha anti-jesuítica com acusações que se alastraram por toda a Europa. Em setembro de 1759, um ano após a tentativa de regicídio a D. José, Pombal expulsou os jesuítas da metrópole e das colônias, confiscando seus bens, sob a alegação de que a Companhia de Jesus agia como um poder autônomo dentro do Estado português.

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Até 1759, a Companhia de Jesus foi o principal agente da educação escolar, com vários colégios, voltados para a formação de clérigos e leigos, sendo o colégio da Bahia o mais importante deles. Outras ordens religiosas também se dedicaram à educação escolar na colônia, como as ordens dos beneditinos, dos franciscanos e dos carmelitas, mas não alcançaram projeção. O marquês reconhecia que os jesuítas representavam uma poderosa organização da administração portuguesa e de sua política e, por serem contra as reformas pombalinas, foram expulsos de Portugal e do Brasil, tendo os seus bens confiscados em 1759. Pombal não só se livrou daqueles que atrapalhavam seus planos, como lucrou com o confisco de suas terras e demais bens. Declaro os sobreditos regulares (os Jesuítas) (...) rebeldes, traidores, adversários e agressores que estão contra a minha real pessoa e Estados, contra a paz pública dos meus reinos e domínios, e contra o bem comum dos meus fiéis vassalos (...) mandando que sejam expulsos de todos os meus reinos e domínios. Ao fim do governo e mesmo pretendendo trazer diversas melhorias para a Coroa, Pombal não conseguiu manter-se no cargo após a morte de Dom José I, em 1777. Seus opositores o acusaram de autoritarismo e de trair os interesses do governo português. Com a saída de Pombal do governo, as transformações sugeridas pelo ministro esclarecido encerraram um período de mudanças que poderiam amenizar o atraso econômico dos portugueses.

A “Viradeira” D. Maria I começou a governar em 24 de abril de 1777, após a morte de D. José I e terminou em 1816. Dona Maria I se casou em 1760 com o seu tio Dom Pedro III, dando início à chamada “Viradeira”, isto é, a virada do regime que trouxe ao poder os inimigos do Marquês de Pombal, que governara o país no reinado do seu pai. Seu primeiro ato como rainha, foi a demissão e exílio da corte de Pombal, a quem nunca perdoara a forma brutal como tratou a família Távora durante o Processo dos Távoras. D. Maria I procurou anular gradativamente a política de Pombal e organizou um novo governo para reatar a tradição monárquica e resolver os problemas suscitados pelo Regime Pombalino. Afastado, o Marquês de Pombal pediu a demissão de “todos os lugares” que ocupara, passou a ser perseguido pela rainha e adeptos, até sua morte alguns anos depois. Contudo, algumas medidas da administração pombalina foram mantidas, como, por exemplo, a participação de membros da burguesia nos negócios do Estado e os estímulos à educação e à ciência, com a criação de vários órgãos e instituições voltados para a pesquisa.

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Rainha amante da paz, dedicada a obras sociais, concedeu asilo a numerosos aristocratas franceses fugidos ao Terror  da  Revolução Francesa. Perdoou aos criminosos do Estado que lhe pareceram dignos desse ato. A animosidade que sempre existiu entre os príncipes do Brasil e o marquês de Pombal e o desejo deste de ver D. Maria renunciar ao trono em favor de seu filho D. José, não permitiram à futura rainha que se familiarizasse com os assuntos políticos. No entanto sente-se que três preocupações absorveram o seu espírito desde os primeiros tempos do seu reinado: reparar as ofensas a Deus,  moralizar a vida pública e governar em certos campos de uma forma mais progressiva. Seu reinado foi de grande atividade legislativa, comercial e diplomática, na qual se pode destacar o tratado de comércio que assinou com a Rússia em 1789. Desenvolveu a cultura e as ciências, com o envio de missões científicas a Angola, Brasil, Cabo Verde e Moçambique. No âmbito da assistência, fundou a Casa Pia de Lisboa; nos domínios da Instrução, a criação de numerosos institutos de ensino, desde a Academia Real da Marinha em 1779, até a Aula Pública de Desenho em 1781, o Instituto das Salécias em 1782, e a Real Biblioteca Pública da Corte, a Academia Real de Fortificação, Artilharia e Desenho em 1790, e, sobretudo, a fundação da Academia Real das Ciências em 1779. Tudo isto foi feito sem ter que violentar a Nação, levantar forcas, armar cadafalsos, encher enxovias, expulsar os jesuítas, perseguir a nobreza e chacinar a plebe. Tudo isto foi feito com brandura e equilíbrio modelares, dentro do serviço do bem comum. Durante o reinado de D. Maria I, Portugal viveu uma era de largo desenvolvimento e de oportunas reformas. Foi denominada de Piedosa por ser muito devota e ter mandado construir a Basílica da Estrela, dedicada ao Coração de Jesus, devoção no tempo em expansão. A morte do marido e logo a seguir a do filho primogênito D. José, afetaram-lhe irreversivelmente a razão. Nos últimos vinte e cinco anos de vida, o governo português passou a ser desempenhado pelo outro filho e sucessor, o futuro rei D. João VI, como Príncipe-Regente.

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Dona Maria I, Rainha do Brasil Ibsen José Casas Noronha* No dia 16 de dezembro de 1815 foi criado o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. A ideia de elevação do Brasil a Reino foi, certamente, de grande inspiração e também um ato de Justiça. O texto do decreto assinado por Dom João, Príncipe Regente, que criou o Reino Unido, é de grande beleza e declara, logo no seu início: Faço saber aos que a presente Carta de Lei virem, que tendo constantemente em Meu Real Animo os mais vivos desejos de fazer prosperar os Estados, que a Providencia Divina confiou ao Meu Soberano Regimen… Importa realçar a concepção transcendente do poder que o Príncipe Regente reafirma. A visão de mundo do Antigo Regime ainda estava bastante marcada pelo pensamento jurídico-político que fundamenta o exercício do Poder no serviço de Deus. Mas não era apenas o Poder que estava marcado pela sacralização. Todos os aspectos da vida estavam, de uma forma ou de outra, plenos de concepções que eram informadas pelo respeito a tradições e modos de ser e agir que nada mais são que produtos de uma Civilização. O Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves teve uma Rainha! E essa Rainha, cuja memória evocamos hoje aqui nesta sessão, foi a primeira Rainha do Brasil, representando, em muitos aspectos, a fidelidade às tradições e a percepção da necessidade da sacralização da vida social. Dona Maria I merece a Justiça da História.

Rainha Piedosa e Fidelíssima O Papa Bento XIV, em 1748, concedeu a Dom João V, muito querido avô de Dona Maria, o tratamento de Fidelíssimo para que fosse usado pelos soberanos * Graduado em Direito pela Universidade de Brasília, Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra, professor de História do Direito e História da Administração Pública na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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de Portugal. Poderia ousar afirmar que o cognome de a Piedosa, pelo qual ficou conhecida a Rainha Dona Maria I, consagra o perfeito conúbio com o tratamento concedido pelo Sumo Pontífice aos soberanos de Portugal, e que foi usado pela primeira Rainha do Brasil. De fato Dona Maria foi piedosa e fidelíssima. E são esses dois atributos que gostaria de salientar nesta tarde aqui em São Paulo… Lisboa a viu nascer no dia 17 de dezembro de 1734, no Paço da Ribeira. Seu Pai era, então, Príncipe do Brasil, título tradicional que Dona Maria irá usar a partir de 1750. Num discurso proferido na Academia de Ciências exatamente um ano após a sua morte, José Bonifácio de Andrada escreve: Nos deveres da fé, no Amor da Santa Religião, que professamos, ninguém excedeo a Maria, bem poucos a igualarão. Que dia houve desde a sua mais tenra mocidade, em que ella se não empregasse em afervoradas orações? Que dia houve em que seus olhos não arrebentassem em devoto pranto, prostrado ante os altares de seu Deos! Quantas outras provas fazia ella da sua piedade! Para se humilhar ante a Divindade muitas vezes pelas sêdas, e cambraias do leito mudava huma manta grosseira; pelas sobegidões da meza Real hum pedaço de pão secco, quando muito acompanhado de um simples conducto. E para dizer tudo de huma vez, em tudo se lhe transluzia hum coração inflamado em pura religião; e estava esta, por assim o dizer, transvazada em sua alma de modo, que em nenhum tempo da sua existência andava apartada della; e toda a sua vida foi huma copia fiel do original que tinha gravada no intimo do seu peito*. *** Gostaria de relembrar, primeiramente, às Senhoras e aos Senhores, a criação da Real Casa Pia de Lisboa, em 1780. Nesse mesmo ano a Rainha D. Maria I nomeara como Intendente Geral da Polícia da Corte e do Reino o Dr. Diogo Inácio de Pina Manique, que se manteve em funções até 1805. A preocupação com os desvalidos marca a atuação dessa instituição comandada por Pina Manique, que formava solidamente a moral de órfãos e os preparava para o exercício de uma profissão. Tendo sido instalada originariamente no Castelo de São Jorge, pos* Elogio Academico da Senhora Dona Maria Primeira, recitado por José Bonifácio, em sessão publica da Academia Real de Sciencias de Lisboa, aos 20 de Março de 1817, Rio de Janeiro, Na Typ. Imparcial de Francisco de Paula Brito, 1839, pp. 14-15.

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suía diversas casas de acolhimento e formação. A casa de Santa Isabel recebia órfãs de tenra idade e a de Santo António órfãos para receber as primeiras letras. Também havia o colégio de São José, espécie de creche para crianças órfãs que não haviam alcançado a idade de iniciar a aprendizagem. Ainda possuía a Real Casa Pia escolas superiores: um colégio onde era ensinado o alemão e a escrituração mercantil; o colégio de São Lucas onde se ensinavam as ciências. Os alunos frequentavam aulas de farmácia, desenho, gramática latina, anatomia, inglês, francês e princípios de navegação. A partir dessa formação, segundo as vocações, os alunos seguiam para outras instituições para aprofundarem seus conhecimentos. O espírito da instituição estava vincado na ideia de que a instrução não poderia ser separada da formação moral. Por isso os alunos da Real Casa Pia aprendiam as obrigações de católicos romanos. Para além de muitas atribuições – que pediriam uma palestra sobre o tema, pois é difícil conceber hoje a sua eficiência – a Casa Pia casava órfãs beneficiando-as com dotes avultados. Os novos casais eram destinados a colonizar terras do imenso Portugal daquele tempo. Sabe-se que até 1795 a Casa Pia já tinha patrocinado 91 casamentos. A proteção da Rainha, que visitou frequentemente a Casa Pia, foi fundamental para o desenvolvimento da instituição, que teve o seu apogeu no final do século XVIII e no início do século XIX, tendo sido interrompido pelas invasões francesas. *** Durante os primeiros quinze anos do seu reinado foi necessário restabelecer as relações com a Santa Sé, que haviam sido rompidas devido à hipertrofia das concepções sobre o poder então em voga em Portugal, o chamado regalismo. As doutrinas de Febronius haviam sido introduzidas na Universidade de Coimbra e as suas teses – que enfraqueciam o poder do Papa e propugnavam a nacionalização da Igreja Católica – influenciaram as relações com a Igreja durante o consulado pombalino. Apesar de o De Statu Ecclesiae, e do Legitima Potestate Romani Pontificis, de Febronius terem sido condenados pelo grande Bispo de Coimbra, Dom Miguel da Anunciação em 1768, sabe-se que as doutrinas dessas obras vicejaram e foram o fundamento para o distanciamento do Papado propugnado por Pombal. O prelado de Coimbra foi preso devido à Carta Pastoral que publicou condenando os erros doutrinais que já preparavam a Revolução Francesa. A fidelidade de Dona Maria ao trono de São Pedro será bastante notável na reaproximação e no efetivo reatamento das relações com a Santa Sé, que se deu logo nos primeiros anos do seu reinado.

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Numa Carta datada 3 de abril de 1777, do Cardeal Palaviccini, Secretário de Estado de Pio VI, ao Núncio Apostólico em Lisboa, se expressava o contentamento do Santo Padre ao sentir as luminosas provas de religião e piedade, com que os novos soberanos haviam assumido a Monarquia… e augurava os mais felizes e gloriosos progressos… O reinado anterior havia suspendido a admissão às ordens sacras. Tal disposição foi revogada. O novo reinado determinou a devoção do terço para as tropas. E essa tornou-se a oração habitual dos oficiais e soldados que deveriam alargar o tempo que dedicavam aos atos de religião. Pombal, logo após o rompimento das relações com a Santa Sé, determinou que fossem excluídos do hagiológio português os nomes de Santo Inácio de Loiola, de São Francisco Xavier e de São Francisco de Bórgia. A Rainha soberana ordenou o restabelecimento do culto dos Santos jesuítas – tão ligados à História dos Descobrimentos e da Missionação. O Bispo de Coimbra voltou à sua Diocese, num ato de estrita justiça. Dom Miguel da Anunciação, envelhecido e doente após anos de maus tratos e cativeiro, regressou à sede do seu apostolado. Foi reparada a injustiça e a chegada à Diocese de Coimbra foi uma verdadeira apoteose, tendo acorrido todo o Povo fiel, num cortejo que está gravado nos anais da História da cidade do Mondego. E cuja cerimónia na Sé foi marcada pela beleza litúrgica e a imponência na reafirmação dos poderes espirituais daquele exímio e exemplar sucessor dos Apóstolos. Em 1778 foi estabelecida nova Concordata entre Portugal e a Santa Sé. A Rainha ratificou o acordo a 11 de agosto e o Papa Pio VI no dia 10 de setembro. A Concordata corrigiu os abusos do regalismo. Durante quase meio século esteve em vigor e regulou as tão importantes relações que marcam a História de Portugal desde a Manifestis Probatum. *** Impossível não referir, com certa emoção, o culto e a devoção que a Rainha Dona Maria I fomentou em Portugal. O Sagrado Coração de Jesus – que desde o século XVII deveria ter sido venerado em França a partir das aparições em Paray-le-Monial – teve, de fato, o seu dia consagrado no calendário litúrgico português graças à Rainha. Em 6 de Junho de 1777, na Igreja da Bemposta, foi celebrada com grande pompa a primeira festa do Sagrado Coração de Jesus. Mas a Rainha, que formulara voto de mandar edificar um templo que fosse consagrado especialmente ao Sagrado Coração de Jesus, decidiu cumpri-lo e, em 24 de outubro de 1779, foi lançada a primeira pedra, por Dom Pedro III, da hoje famosa Basílica da Estrela.

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A piedosa e magnânima intenção acabou por edificar o primeiro templo consagrado ao Sagrado Coração de Jesus em toda a Cristandade.

Rainha do Brasil O poder espiritual em Portugal, no Reinado de Dona Maria, voltou a ser exercido pelas autoridades legítimas e equilibraram-se as relações com o poder temporal. A doutrina gelasiana, fundamento da publicística cristã, foi recuperada após o interregno do despotismo iluminista. Pode-se ponderar que as duas décadas de hegemonia do regalismo que precederam o novo Reinado haviam rompido com o regime tradicional da Monarquia portuguesa. As normas tradicionais foram relegadas e substituídas pelas normas racionalistas que traduziam a moda jusracionalista importada da Europa protestante. A sociedade orgânica, regida pelas leis tradicionais e pelos bons ofícios do trono e do altar, fora ferida pelas concepções contratualistas que preparavam as grandes conturbações que se aproximavam. As cerimônias de aclamação da Rainha tiveram lugar no Terreiro do Paço a 13 de maio de 1777 – dia em que Dom João completava 10 anos de vida; o Príncipe, durante a cerimônia, tinha a espada desembainhada, pois desempenhava as funções de Condestável nesse dia! A liturgia da aclamação e do juramento reafirmavam todas as concepções de séculos de tradições renovadas. Teorias e doutrinas se manifestavam tendencialmente nos atos e gestos naquele dia esplêndido em Lisboa – como notaram os cronistas. Foi uma Missa pontifical que deu início às festas. Clero, Nobreza e Povo estavam presentes tanto no cortejo quanto na multidão que se aglomerava no Terreiro do Paço. A Rainha vinha imponente e merece leitura a descrição feita pelo cronista: Vinha a Rainha Nossa Senhora riquissimamente vestida com o precioso manto de tafetá tecido com fio de prata, e recamado com lantijolas, canutilhos e palheta; o assento que parecia totalmente coberto de ouro; o peitilho, e corpo interior era todo guarnecido com flores de brilhantes de excessivo preço, e admirável artifício; vendo-se pendente da fita cor de fogo a Cruz da Ordem de Cristo, composta de diamantes brilhantes de uma extraordinária e pasmosa grandeza: igualmente se admirava no mais adorno ricos adereços, e jóias, d´onde pendião diversos, e preciosos fios de brilhantes de inexplicável preço. O toucado fingia uma Coroa Imperial tecida de inumeráveis diamantes, cingindo-lhe com tal

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arte a Regia fronte, que figurava ser de uma so pedra sem similhante na preciosidade, e bom gosto: sobre o mesmo vestido lhe accomodárão o Manto Real de volante carmesim tecido com fio de prata, que pendendo dos hombros, se via forrado da mesma tela, tendo vinte e dous palmos no comprimento da cauda, guarnecido pelas extremidades com renda de ouro: o corpo do manto, bandas e forro erão recamados de ouro, interpostas lantijolas, canutilhos e palheta; vendo-se no grande campo semeados em proporcionadas distancias cento e vinte castelos com as Reaes Quinas, tecidos com fio de ouro: seguravão o dito Manto Real duas presilhas de brilhantes de imponente custo. Ao sentar-se no trono a Rainha recebeu o cetro de ouro esmaltado. O Desembargador do Paço, José Ricalde Pereira de Castro, proferiu a fala da aclamação. O orador invocou a origem divina do poder, doutrina que, na Península, pode remontar-se a Santo Isidoro de Sevilha na época visigótica. Exaltou a piedade e a clemência da soberana… Terminado o discurso passou-se à cerimônia do juramento. A Rainha ajoelhou-se e pôs a mão direita sobre o missal e o crucifixo que segurava o Patriarca, e disse: Juro, e prometo com a graça de Deus vos reger, e governar bem, e direitamente, e vos administrar justiça, quanto a humana fraqueza permite; e de vos guardar vossos bons costumes, privilégios, graças, mercês, liberdades, e franquezas, que pelos Reis Meus Predecessores vos foram dados, outorgados, e confirmados. Foi renovado o pacto entre a Rainha e a nação! As descrições dos festejos impressionam. A aclamação foi marcada pelo entusiasmo. No já citado Elogio Academico da Senhora Dona Maria Primeira José Bonifácio lembrava que nenhum monarca português fora aclamado com mais vivas de alegria, nem maiores esperanças. *** Encerrarei estas breves palavras fazendo alusão ao início da exposição: a criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves! A criação do Reino Unido pelo decreto assinado pelo Príncipe Regente assinalou a elevação do Brasil à posição que merecia no concerto das Nações. Era um imenso Brasil que atingia a maioridade e precisava seguir o seu caminho na

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História da humanidade. Os laços com o Reino de Portugal eram muito fortes, mas era preciso começar a trilhar o caminho que a Providência, desde toda a Eternidade, havia desejado. E é belo, extremamente belo, que a primeira Rainha do Brasil seja Dona Maria, cujo breve reinado – de 16 de dezembro de 1815 a 20 de março de 1816 – simboliza, de tantas maneiras, a piedade, a devoção, a fidelidade e vocação da História de Portugal. Os sofrimentos de Dona Maria podem ser vistos como um sinal para aquele novíssimo Reino do Brasil. Um Reino que já contava com mais de três séculos de História, que terá na elevação da Santa Cruz e na celebração da primeira Missa por Frei Henrique de Coimbra também um sinal da sua vocação. Nascia o Brasil para se tornar o maior país católico do mundo, um país que adora um Deus crucificado. A memória da vida de Dona Maria I, das suas venturas e desventuras, alegrias e sofrimentos, vitórias e derrotas, são, para dizer tudo, a vida de uma Rainha Fidelíssima! No último dia 20 de março estive na Basílica da Estrela e, junto ao túmulo da Rainha, pude pensar em muitas coisas, dentre elas a finalidade da vida. Estou convicto que Dona Maria cumpriu a sua missão.

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D. Maria I: visão geral de um reinado esquecido Armando Alexandre dos Santos

(sócio emérito do IHGSP)

É muito oportuna a homenagem hoje prestada, neste Instituto, à memória da Rainha D. Maria I, de Portugal, do Brasil e dos Algarves. Uma rememoração de seu reinado, de sua figura, de seu papel na história, já nos foi apresentada com rigor pela Dra. Nelly Martins Ferreira Candeias. Os vínculos profundos que teve com o nosso Brasil – como princesa do Brasil, como primeira soberana europeia que atravessou o Atlântico e aqui veio ter, em domínio seu, como Rainha aclamada do Brasil enquanto Reino Unido a Portugal e, por fim, tendo aqui falecido e aqui sido sepultada – já foram recordados por meu amigo Prof. Ibsen Noronha. Antes de ouvirmos o que tem a nos dizer, a respeito dela, seu descendente direto, o Príncipe Imperial D. Bertrand de Orleans e Bragança, gostaria apenas de dizer algumas breves palavras. Não apresentarei senão uma visão geral do seu reinado, apenas para situá-lo na História e destacar a importância enorme que teve para a história de Portugal e do Brasil. O reinado de D. Maria se insere, claro, na História de Portugal, e esta se insere na História da Europa, da Civilização Ocidental e Cristã, do mundo inteiro. Dentro desse amplo espectro, qual o papel de D. Maria e de seu reinado? As monarquias europeias em geral foram minadas, desde o fim da Idade Média, por um longo processo de destruição, que merece ser lembrado. No Medievo, os reis tinham um poder moral muito grande, mas seu poder, em termos de interferência na vida do país, do povo, das pessoas, era extremamente reduzido. O rei não era um gerente, um dono, um ditador, mas era, para usar a metáfora que o Príncipe D. Bertrand gosta de citar em suas conferências e entrevistas, um maestro. Qual o papel do maestro numa orquestra? Não cabe ao maestro tocar os instrumentos; não cabe a ele, nem sequer, tocar um instrumento específico. O maestro apenas coordena os numerosos músicos que tocam, cada qual seu instrumento, garantindo que o conjunto seja harmonioso. Ele zela pelo compasso, para que nenhum se apresse ou se atrase, ele zela para que cada qual faça ouvir seu som na hora certa, nem antes nem depois. Sem maestro, por melhores que fossem os músicos, o conjunto desandaria. Com maestro, tudo se ordena, tudo caminha bem. Para nós, que estamos acostumados a ver, nos dias de hoje, os governos

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interferirem a todo momento na nossa vida sem pedir licença a ninguém, estabelecendo normas que regem a tudo, até nos pormenores, que legislam sobre o que cada um de nós deve fazer até no íntimo do lar, dentro de nossos automóveis, no modo de educar nossos filhos, na comida que podemos ou não podemos consumir, nos remédios que podemos ou não podemos usar etc. etc. – não é fácil fazer ideia de como eram amplas as liberdades individuais nos tempos das antigas monarquias. Um rei de Portugal, por exemplo, no tempo da monarquia absoluta, não podia criar um imposto novo, ou modificar a finalidade de um imposto já existente, sem prévio consentimento da chamada “Casa dos Vinte e Quatro” (organismo que reunia os representantes dos ofícios mecânicos de Lisboa e, como tal, representava o elemento popular do Reino), ou, conforme o caso, das Cortes Gerais (grandes assembleias convocadas de tempos em tempos pelo monarca, da qual participavam representantes das três classes, ou, como se chamavam, dos três Braços ou Estados da nação: Clero, Nobreza e Povo)*. Tão firme e estabelecida era, consuetudinariamente, essa praxe, que causou grande escândalo o fato de o Marquês de Pombal ter, em 1762, restabelecido unilateralmente um antigo imposto, a “décima sobre todos os bens, rendas, ordenados, maneios e ofícios deste Reino para se acudir às despesas da guerra” **. Hoje, segundo a Revista “Veja” noticiou recentemente, 90 novas determinações legais (a nível nacional, estadual ou municipal) são expedidas a cada hora, somente em matéria tributária. Sim, a cada 40 segundos entra em vigor, em alguma parte do Brasil, uma nova norma em matéria tributária – e o sentido geral delas é, invariavelmente, o de aumentar ainda mais a nossa carga tributária. Naqueles tempos, toda a sociedade se estruturava em níveis hierárquicos, com os três Estados, ou Braços da Nação, mas toda integrada harmonicamente, de modo muito familiar. A família era o analogado primário de toda a organização social e política. A nação era, como explica muito bem o historiador francês Frantz Funck-Brentano, uma imensa família, constituída não por indivíduos, mas por famílias, as quais se constituíam por sua vez de indivíduos. E o Pai era, por sua vez, o analogado primário de todas as autoridades. O rei era o Pai dos Pais, o pai do seu povo. Na empresa, a autoridade era do Patrão – palavra que tem origem em pater, pai. O patrão mandava, mas também era como que pai – e isso era geral na Europa, nas corporações de ofício, depois * Cfr. Luiz de Almeida Braga, Paixão e Graça da Terra (Civilização Brasileira, Rio, 2ª ed., s/d, pp. 212 a 217 e 266 a 268); Visconde de Santarém, Memorias para a Historia, e Theoria das Cortes Geraes, que em Portugal se celebrárão pelos Tres Estados do Reino, (Lisboa, Impressão Regia, dois volumes, 1827-1828); António Sardinha, A Teoria das Cortes Gerais, (redigida para servir de prefácio à 2ª. edição da obra clássica do Visconde de Santarém – Biblioteca do Pensamento Político, Lisboa, 1975). ** Cfr. Pe. Joaquim José da Rocha Espanca, Memórias de Vila Viçosa, Vila Viçosa, s/d, vol. 12, pp. 18-19.

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disso nas indústrias manufatureiras, até que a chamada Revolução Industrial, mais ou menos na passagem do século XVIII para o XIX, criou condições novas e revolucionou profundamente os ambientes de trabalho: os operários deixaram de ser filhos, passaram a ser opositores dos seus patrões. Na família, sobretudo, isso se notava de modo muito claro: o pai era o chefe da família, o rei do seu lar. A mãe era a rainha. Que fazia o pai? cuidava do patrimônio, o patrio munus (dever do pai). A mãe cuidava como rainha do lar, da administração doméstica, sobretudo da educação dos filhos. Qual era o dever da mãe? era o matris munus. As palavras patrimônio e matrimônio têm, aí, sua origem. Pois bem, nas antigas monarquias era muito íntimo o relacionamento dos monarcas com seus povos. Não havia um distanciamento que depois se generalizou e que nas atuais repúblicas chega a extremos incríveis. Na França medieval, qualquer popular podia ser atendido pelos reis, diretamente, e pedir justiça. Mesmo nos tempos de Luís XIV, Luís XV e Luís XVI, às vésperas da Revolução Francesa, os palácios reais eram abertos e podiam ser visitados livremente. Uma curiosidade: só podia comparecer diante do rei quem estivesse armado. Por quê? Porque andar armado era privilégio da nobreza e quem estivesse diante do rei ou estivesse dentro do palácio do rei como visitante, mesmo que fosse uma pessoa muito simples, naquele momento se via elevado à dignidade e à categoria de nobre, porque a nobreza pessoal do rei transbordava de sua pessoa e contagiava a todos que se aproximavam dele. Funck-Brentano conta que, na entrada de Versailles, havia até umas barraquinhas de comerciantes que alugavam espadas, para as pessoas do povo que queriam visitar o palácio e somente poderiam entrar se estivessem armadas. Compare-se com as revistas que hoje são feitas em qualquer palácio de governo... Em Portugal, os reis tinham íntimo contato com seu povo. “Justiça, Senhor!” era um brado que o rei, quando ouvia, tinha imediatamente que atender. Qualquer pessoa tinha o direito de solicitar justiça ao rei, diretamente e sem quaisquer intermediários, usando essa fórmula. Ao ouvi-la, o rei era obrigado a parar e atender imediatamente o solicitante. Fazia-se, assim, justiça pronta e sem burocracias, a qualquer pessoa que dela tivesse necessidade. Havia pessoas que se deslocavam até Lisboa, ou até outro local em que estava o rei, apenas para dele obterem um julgamento justo, rápido e sem nenhum ônus econômico. Uma única situação ocorria em que o rei não atendia a esse brado. É quando estava acompanhando alguma procissão ou cortejo em que estivesse sendo levado o Santíssimo Sacramento. Isso era muito comum. Quando um sacerdote era chamado a levar o Viático a algum moribundo, isso se fazia cerimonialmente. O sacerdote ia paramentado, precedido por acólitos que levavam velas e tocavam uma campainha, para todos os passantes se ajoelharem, os homens tirarem o

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chapéu etc. Era muito comum, nessas ocasiões, as pessoas do público se incorporarem ao séquito e acompanharem o Santíssimo até a casa do moribundo, em atitude de respeito e piedade. Quando acontecia de um rei se encontrar com um cortejo desses, ele também descia de seu cavalo ou de sua carruagem e acompanhava a pé o séquito. Nessas ocasiões, ninguém o tratava como rei, porque diante de Jesus Cristo, o Rei dos reis, o soberano terreno não recebia honras especiais. era a única ocasião em que ninguém podia se dirigir ao rei com o brado “Justiça, Senhor!”... Pois bem, esse equilíbrio geral da sociedade, estruturada à maneira de uma imensa família, foi sendo minado lentamente, desde o fim da Idade Média. E foi minado de um modo muito curioso. Inicialmente, numa primeira fase, foi inflado, e desmedidamente, o papel do Rei. A monarquia, de natural, orgânica e familiar, com a soberania não apenas concentrada na pessoa do Rei, mas disseminada em todos os níveis, até nos mais modestos, por toda a sociedade, essa monarquia tornou-se absoluta. Todos os poderes do Estado se foram concentrando, pouco a pouco, na pessoa do Rei. O Rei se identificava com o Estado e com a própria Nação. A nobreza, que no passado era vista como um prolongamento e um desdobramento da autoridade do Rei, passou a ser vista como uma força que se opunha ao Rei, de um lado, e ao povo, de outro. Passou a ser vista como uma classe que devia ser combatida e extinta. E uma nova classe, a burguesa, foi cada vez mais tomando o controle econômico da situação. Essa classe dirigente nova, afinal, tomaria o poder com a Revolução Francesa e mais tarde, na Revolução Comunista, se tornaria, por sua vez, a inimiga número um do povo, a celerada a ser destruída e eliminada... A sociedade tinha deixado de ser familiar, com relações mútuas de afeto e colaboração; tinha se transformado em um ambiente conflituoso, com classes antagônicas em luta. No caso da França, é muito claro o processo. O absolutismo, iniciado com Filipe o Belo, em princípios do século XIV, se acentuou mais e mais e chegou ao seu auge no reinado de Luís XIV, o Rei Sol, o rei ao qual se atribuiu (aliás falsamente) o dito “L’état c’est moi”. Luís XIV parecia todo poderoso. Seus antecessores já haviam subjugado a nobreza, e agora ele, em Versailles, mantinha todos os grandes nomes da antiga nobreza feudal gravitando em seu redor, afastados de seus domínios, onde outrora tinham sido “reizinhos”. Na verdade, o poder de Luís XIV era ilusório, ele estava enfraquecido, porque tinha perdido seus verdadeiros apoios, suas verdadeiras bases de sustentação. No caso de Portugal, o absolutismo se acentuou desmedidamente durante o reinado de D. José, pai de D. Maria. D. José deu carta branca a seu ministro Pombal e, durante 27 anos, ocorreu uma verdadeira ditadura em Portugal e, por tabela no Brasil. Foi um regime policialesco e sanguinário, com centenas de prisões preventivas e arbitrárias. Houve pessoas, especialmente jesuítas e membros

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da alta nobreza, que ficaram mais de 20 anos presos sem nenhuma acusação e sem nenhum processo formal. Com o pretexto do atentado, Pombal isolou o rei. Cometeu atrocidades sem nome, criando um clima de Terror que, a se prolongar um pouco mais do que se prolongou, poderia ter precipitado Portugal numa verdadeira “revolução francesa”. Esse o quadro geral em que se insere D. Maria. Pombal detestava D. Maria, herdeira da Coroa e Princesa do Brasil. Conhecia bem sua personalidade, seu pensamento, sua linha de conduta. Fez tudo para afastá-la da linha de sucessão, instaurando em Portugal a chamada Lei Sálica, que vedava a sucessão feminina. A tradição da monarquia lusa nunca fora a da Lei Sálica, seria mais uma inovação pombalina. Felizmente, ele não conseguiu arrancar de D. José um decreto deserdando a filha. E que fez D. Maria quando chegou ao trono? Aqui é que entramos, finalmente, no tema da nossa fala que já está chegando ao fim. Ela fez a “Viradeira”, a que aludiu a Dra. Nelly. Ela fez um reinado que, em tudo, se opôs a Pombal e procurou restaurar o velho Portugal, familiar e benquerente. Ela exerceu um papel eminentemente contrarrevolucionário – e aqui, Alteza, eu me refiro especificamente ao papel bem descrito, em seu livro Revolução e Contra-Revolução, pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, ao qual V. Alteza e eu, pessoalmente, tanto devemos. Nesse livro, aliás prefaciado pelo pai de V. Alteza, D. Pedro Henrique, é descrito o processo de destruição da Cristandade Medieval ao longo dos últimos séculos, ao qual me referi há pouco. Nesse processo, fica bem claro o papel do absolutismo régio, como preparador da Revolução francesa, que foi a segunda das grandes Revoluções. Encerro esta breve fala convidando aos presentes a fazerem, junto comigo, um exercício daquilo que, nos Estados Unidos, se chama de “história contrafactual”. Que é “história contra-factual”? É um estudo da História não como ela se passou, mas como poderia se ter passado. Ou seja, a partir de um conjunto de dados bem conhecidos num determinado contexto histórico, imaginar-se como poderiam ser decorrido os acontecimentos de algum fato importante tivesse acontecido de modo diferente do que aconteceu. Por exemplo, qual teria sido a evolução da história universal se Roma não tivesse vencido as Guerras Púnicas e, pelo contrário, toda a civilização europeia e ocidental se tivesse desenvolvido sob a égide de Cartago? Que teria acontecido se a Guerra dos 100 Anos tivesse sido vencida pelos ingleses, e não pelos franceses? Que teria acontecido se a Invencível Armada não tivesse sido destruída pelas tempestades marítimas, mas tivesse chegado à Inglaterra, destituindo a Isabel I e colocando no trono Maria Stuart, a rainha legítima? Que teria acontecido no século XX se a Alemanha tivesse vencido a Segun-

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da Guerra Mundial e o nacional socialismo se tivesse imposto ao mundo inteiro, em lugar da outra variante de socialismo, a comunista? São perguntas que podem ser feitas. A tentativa de respondê-las, ou melhor, de divagar livremente sobre elas, é precisamente o que se chama de História contra-factual. É um exercício que não é propriamente história, pertence mais ao campo da imaginação, da literatura. Mas nem por isso deixa de ser interessante, desafiador, apaixonante. E, curiosamente, permite que se tenha uma perspectiva diferente, muito útil até mesmo para os historiadores que estudam história no sentido próprio, metodicamente e sem ceder à imaginação... Um conhecido historiador inglês, Eric Hobsbawm, tem uma frase célebre: o “se” não faz História, mas ajuda muito a entender a História. Façamos, pois, um exercício de história contra-factual. Qual teria sido a história de Portugal e do Brasil se não tivesse existido a Viradeira? Se D. Maria não tivesse sido o que foi, e tivesse, pelo contrário, continuado a política de seu pai, dando livre curso às arbitrariedades de Pombal? Se D. Maria tivesse prosseguido a política de seu pai, se ela tivesse dado sequência ao fluxo absolutista pombalino, o que teria acontecido? No meu modo de entender, Portugal teria seguido os passos da França. Mais cedo ou mais tarde, teria havido uma reação violenta contra os desmandos da ditadura de Pombal ou de algum ministro igualmente prepotente que o sucedesse. O trono, enfraquecido, não teria resistido. Teria por certo ocorrido uma Revolução Portuguesa, muito parecida com a Francesa, talvez pior, ainda mais cruel e sanguinária. A Revolução Francesa foi um rio de sangue que dividiu para todo o sempre a França em duas. Essa afirmação, que já vi atribuída a Michelet, julgo ter se originado nas Mémoires d´outre tombe, de Chateaubriand. Até hoje, contrariamente ao que a propaganda oficial apregoa, a Revolução Francesa é mal vista por pelo menos metade dos franceses. Se tivesse ocorrido uma Revolução Portuguesa igualmente traumática, Portugal não teria um “povo de brandos costumes” de que falava Eça de Queiroz e Sérgio Buarque de Holanda não teria podido cunhar a expressão de “brasileiro cordial”... Se tivesse ocorrido uma Revolução Portuguesa, por certo a Família Real não teria vindo para o Brasil como veio, em 1808. Não teria sido concluída satisfatoriamente a obra de criação de uma nacionalidade brasileira que se separasse da portuguesa sem traumas, dentro da linha geral de continuidade. A História é feita de rupturas – quase sempre traumáticas e cobrando seu preço – e de continuidades. A vinda da Família Real e a Independência do Brasil em 1822 se processaram dentro da linha da continuidade. Manteve-se a fé, manteve-se a língua, manteve-se a forma monárquica de governo, manteve-se a dinastia, manteve-se a unidade nacional.

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Sem a vinda da Família Real, penso que nem a forma de governo, nem a unidade nacional se teriam preservado. Ter-nos-íamos fragmentado numa série de republiquetas, à maneira de nossos vizinhos hispano-americanos. Graças à atuação contrarrevolucionária de D. Maria, esse processo desintegrador foi interrompido. Graças a ela, e a seu filho D. João, que sabiamente deu continuidade à obra materna e com grande visão de estadista soube preparar o Brasil para sua emancipação política que se tornava iminente, evitamos o pior. E aqui estamos hoje, duzentos anos depois, caminhando aos trancos e barrancos, mas sem perder a fé, sem perder a esperança de que, apesar de tudo, ainda somos, como se exprimiu Stephan Zweig, o país do futuro. Isso, muito remotamente, devemos à Viradeira de D. Maria I, a grande mulher, a grande soberana que hoje homenageamos.

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Alguns registros fotográficos da sessão solene de 8-9-2016

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Alguns registros fotográficos da Santa Missa celebrada na Igreja de Nossa Senhora do Brasil, no dia 8/4/2016

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64º. Encontro dos Descobrimentos

A Língua Portuguesa no Mundo Globalizado (5-10-2016) Em iniciativa conjunta com o Centro Internacional de Cultura, de Lisboa, o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo realizou no seu auditório, na manhã e na tarde do dia 5 de outubro de 2016, o 64º Encontro dos Descobrimentos – A Língua Portuguesa no Mundo Globalizado. O ato consistiu numa série de palestras. Além da Presidente do Instituto, Dra. Nelly Martins Ferreira Candeias, e do Presidente do Centro Internacional de Cultura, Dr. Nelson Faria de Oliveira, também participaram do ato, como oradores, a Profa. Dra. Maria Cecília Naclério Homem, os Profs. Drs. Jorge Pimentel Cintra, Alberto Luiz Schneider e Eduardo de Almeida Navarro, e o Prof. Armando Alexandre dos Santos. A seguir, publicamos o texto reconstituído das palestras proferidas na ocasião que chegaram à editoria desta Revista a tempo de serem incluídas no presente número. As duas palestras que não chegaram a tempo – dos Drs. Jorge Pimentel Cintra e Eduardo de Almeida Navarro – serão publicadas em próximos números desta Revista. O conteúdo da palestra da Dra. Maria Cecília Naclério Homem já foi integralmente publicado no volume XCIX, ano 2015, da nossa Revista, sob o título Importância nacional brasileira e internacional da Língua Portuguesa (p. 7-99).

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Mensagem de abertura Nelly Martins Ferreira Candeias

(Presidente do IHGSP)

Na abertura oficial das atividades de hoje, a denominação de A Língua Portuguesa no Mundo Globalizado representa o Sexagésimo Quarto Encontro dos Descobrimentos, realizado pelo Centro Internacional de Cultura. É  um  privilégio, digno do mais justificado orgulho, receber no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo o Dr. Nelson Faria de Oliveira, presidente dessa importante entidade portuguesa, e sua esposa Sra. Gabriela Faria de Oliveira. Esta solenidade reflete a gratidão e o amor que sentimos pelo Brasil e por Portugal, onde desde o século XVI a língua portuguesa contribui para a preservação da memória histórica das nossas duas nações. Quero dar as boas vindas a todos que aqui se encontram, muitos dos quais têm acompanhado de perto nossos esforços para que este Instituto se aproxime das políticas culturais das sociedades modernas. Desejo, neste momento, agradecer a valiosa contribuição dos membros do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Professores Maria Cecília Naclério Homem, Armando Alexandre dos Santos, Eduardo de Almeida Navarro, Jorge Cintra e Alberto Schneider. Reportando-me ao título do evento, A Língua Portuguesa no Mundo Globalizado, optei pelo tema relacionado à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Agostinho da Silva foi um dos inspiradores da criação de uma Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Propôs a criação de um Conselho Internacional de Língua Portuguesa, seguido da criação de Conselhos Internacionais de Economia, de Educação, de Organização Política, de Filosofia, que pudessem revelar elementos comuns da cultura dos povos lusófonos. É preciso, dizia ele, buscar a unidade de pensamento e de ação capazes de contribuir para a construção de um mundo mais humano: é a tarefa dos povos lusófonos. A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa é formada por nove Estados soberanos cuja língua oficial, ou uma delas, é a língua portuguesa. Eles estão espalhados por todos os cinco continentes habitados da Terra, uma vez que há um na América, um na Europa, seis na África e um transcontinental, entre a Ásia e a Oceania.

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São eles: a República de Angola, a República Federativa do Brasil, a República de Cabo Verde, a República da Guiné-Bissau, a República da Guiné Equatorial, a República de Moçambique, a República Portuguesa, a República Democrática de São Tomé e Príncipe e a República Democrática de Timor-Leste. Em resumo, pode-se dizer que, na perspectiva de Agostinho da Silva, é preciso que os países lusófonos comecem a estabelecer relações entre si, por meio de intercâmbios culturais, econômicos e políticos. Depois, é preciso que ampliem esse diálogo, estabelecendo relações com os outros povos ibéricos e com os povos da América Latina; por fim, que estabeleçam relações com os povos que falam as outras línguas do mundo. Assim se cumpra o ideal que Agostinho preconizou: “… talvez o ideal da humanidade, um ideal muito importante, hoje na história, é passarmos do previsível ao imprevisível”. Será, talvez, termos um vazio disponível ao amor, à surpresa, ao tal imprevisível. Passamos a vida a programar a vida, a fazer planos, a depositar sonhos num tempo não válido, que não existe: o futuro. Agostinho é o exemplo de liberdade de escolha de alguém que assume as suas contradições, que aponta para o impossível, e que, como ele próprio dizia, “gostaria de beber da fonte de que brotariam juntas a lógica e a fantasia”. O verso do poeta Hölderlin, que Agostinho conhecia muito bem, pode resumir o grande projeto da lusofonia que ele propôs: “nós, homens, somos um diálogo”.

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Camões, expoente máximo e consolidador da Língua Portuguesa Armando Alexandre dos Santos

(sócio emérito do IHGSP)

Queria, inicialmente, agradecer ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e ao Centro Internacional de Cultura a honra do convite para aqui participar deste 64º. Encontro dos Descobrimentos. Depois de termos ouvido as palavras da nossa Presidente, Dra. Nelly Martins Ferreira Candeias, em sua curta, mas substanciosa mensagem de abertura, e a exposição pormenorizada com que nos brindou a Dra. Maria Cecília Naclério Homem, sobre a evolução histórica e a importância do nosso idioma, cabe-me falar sobre Luís Vaz de Camões, destacando seu papel na afirmação da língua portuguesa – língua que um poeta brasileiro, Olavo Bilac, num soneto célebre, designou como “última flor do Lácio, inculta e bela”. A dificuldade em que me vejo, no caso, é resumir, nos limites muito estreitos de tempo disponível, o que poderia ser matéria de um curso inteiro. De fato, Camões e sua obra principal, Os Lusíadas, constituem tema riquíssimo, cheio de aspectos interessantes que poderiam ser expostos, aprofundados e desdobrados ad infinitum... Vamos, pois, nos limitar a uma introdução ao tema, que permita aos que têm a paciência de me ouvir uma visão de conjunto da matéria. Em primeiro lugar, quem foi Camões? Luís Vaz de Camões nasceu em data incerta, por volta de 1524, e faleceu, com toda a certeza, no dia 10 de junho de 1580. Viveu, portanto, cerca de 56 anos. A documentação escrita e oficial que temos a seu respeito é muito parca. Resumem-se, segundo registra José Hermano Saraiva, a apenas sete os documentos escritos oficiais, autênticos e indiscutidos sobre sua vida. Seria, portanto, impossível conhecermos sua vida se fôssemos aplicar os rígidos esquemas da escola metódica ou positiva, ao gosto do século XIX... Mas temos, a seu respeito, além das obras do próprio Camões, também um grande número de informações que nos chegaram por via de seus numerosos biógrafos, os primeiros dos quais do início do século XVII. Esses biógrafos se basearam em deduções lógicas, a partir de sua obra, e também nas tradições

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orais, muito abundantes no caso de uma vida rica e de grande significado como a de Camões, que rapidamente passou para o âmbito do folclore luso. Essas tradições, embora possam ter sido um tanto romantizadas, permitem que conheçamos e analisemos o Camões da legenda, que não se identifica necessariamente e em tudo com o Camões real, mas, afinal de contas, se foi o Camões real que escreveu e deixou uma obra literária conhecida e apreciada, foi o Camões da legenda que, independente do Camões real, teve importância na História. Camões nasceu muito provavelmente em Lisboa, por volta de 1524, filho de Simão Vaz de Camões, fidalgo de remota origem galega, e Dona Ana de Sá e Macedo, de uma família também fidalga da região de Santarém. Sua família era tipicamente de pequena nobreza. Tinha, portanto status social que lhe permitia frequentar a Corte do rei D. João III e, mais tarde, a de seu neto D. Sebastião. Ele foi designado, num documento do Rei D. Sebastião, como “cavaleiro fidalgo de minha Casa”, mas não era rico. A pobreza o acompanhou ao longo de toda a sua vida. Onde teria recebido sua formação intelectual? Na Universidade de Coimbra, como se afirma, ainda hoje, nas tradições orais dessa universidade, embora sem registros escritos? Em algum mosteiro ou escola eclesiástica, eventualmente sob a orientação de um tio, que era religioso em Coimbra? Autodidaticamente? Não se sabe ao certo. O fato é que sua cultura era muito ampla, como atestam seus escritos. Ele possuía conhecimentos profundos de História, de Literatura clássica e contemporânea, de Latim, de Mitologia, de Astronomia, de Teologia. Parecia dominar o idioma italiano e o francês, além do castelhano, no qual escreveu muitas peças. Era um renascentista, um humanista no sentido pleno do termo, não apenas se destacando como intelectual, mas também fisicamente se mostrando bravo e valente. Viveu na Corte portuguesa, que na época não se limitava a Lisboa. No Portugal seiscentista, a Corte era onde estava o Rei, de modo que a Corte se deslocava, a capital do reino era itinerante. Na Corte, fez o que fez em toda a sua vida: serviu como militar e escreveu como poeta. “Pera servir-vos, braço às armas feito / Pera cantar-vos, mente às Musas dada” (X, 155) – escreveu em Os Lusíadas, dirigindo-se a D. Sebastião. Levou vida aventurosa e cheia de boemia, teve romances e amores mais ou menos passageiros, mas nunca chegou a casar. Afirma-se, embora no campo das meras suposições, que se teria apaixonado por uma infanta de Portugal, irmã do rei D. João III – num amor impossível, devido à diferença de condições. Envolveu-se em brigas, exilou-se por vontade própria de Portugal (ou se viu forçado a exilar-se, não se sabe ao certo). Foi lutar em Ceuta, no Marrocos português. Consta ter sido nessa época que, ferido em combate, perdeu um olho.

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Retornou a Lisboa, novamente retomou a vida aventurosa e turbulenta, novamente se envolveu em rixas. Cometeu, então, falta considerada gravíssima: brigou com um criado do Paço durante a procissão de Corpus Christi, a festa do Corpo de Deus, uma das duas maiores celebrações litúrgicas oficiais e públicas do reino luso (a outra era, no terceiro domingo de Julho, a festa do Anjo Custódio do Reino, que por tradição se identificava com o Arcanjo São Miguel). Não somente brigou, mas feriu com a espada o tal criado, sendo preso por isso. O criado ofendido passou-lhe carta de perdão, pelo que Camões foi libertado, mas com a condição de ir servir a Coroa na Índia. A carta régia, de perdão, na qual se lê que Camões “é um mancebo e pobre que me vai este ano servir à Índia”, é um dos raríssimos documentos oficiais, sobre o poeta, que ainda existem. A pena de degredo não era infamante, como supõem pessoas não familiarizadas com os usos e costumes do antigo Portugal, que acreditam piamente que o Brasil foi povoado por bandidos e criminosos enviados para cá pela Coroa lusa, porque os considerava indesejáveis e queria se ver livre deles... A pena de degredo tinha caráter disciplinador e se aplicava a pessoas de elevada condição sem nenhuma desonra para elas. Foram degredados, lembre-se, os dois maiores poetas da Língua Portuguesa, Camões e Bocage. Essa penalidade trazia, para o Reino, a vantagem suplementar de ajudar o povoamento de regiões distantes, nas quais se fazia necessária a presença de portugueses. Mandado para o Oriente em 1553, Camões somente retornou a Portugal 17 anos depois. Quando partiu para a Índia, já tinha adquirido reputação como poeta lírico, especialmente com suas redondilhas e glosas muito apreciadas. Durante a viagem, pôde vivenciar pessoalmente toda a experiência de Vasco da Gama, que mais tarde cantaria em Os Lusíadas. Viu o Bojador, passou pelo Cabo das Tormentas, onde não lhe faltou nem mesmo a experiência de uma violenta tempestade em alto mar (tão violenta que nela naufragaram vários navios da frota em que viajava), que descreveria de modo muito vivo e realístico no canto VI do seu poema. A descrição pormenorizada e dramatizada de uma tempestade marítima faz parte necessária, aliás, de uma epopeia clássica, inspirada nos seus modelos básicos, que são a Ilíada e a Eneida, modelo esse que Camões seguiu fielmente em Os Lusíadas. A tempestade simboliza e resume, metaforicamente e à maneira de parábola, todo o drama central da epopeia. No Oriente, serviu como soldado em algumas expedições militares, confirmando a reputação que já possuía de valente e corajoso. Compôs duas ou três peças teatrais de cunho humorístico, redigiu na totalidade, ou pelo menos na sua maior parte, o seu monumental poema épico e ocupou um cargo público, atuando como “provedor-mor dos defuntos e ausentes” em Macau. Acusado de malversação dos recursos que devia gerir, foi aprisionado. Numa das viagens que fez, naufragou na costa da China. Salvou-se a nado, como ele próprio narrou, mas, a se acreditar na lenda, salvou-se com a consciência pesada, porque

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precisou sacrificar sua namorada chinesa, que morreu afogada porque o poeta preferiu salvar o manuscrito do seu poema a salvar a amada... Depois de longos e conturbados anos no Oriente, retornou, em 1570, a Portugal, onde publicou seu poema, dedicado ao jovem rei D. Sebastião, no qual o poeta – e, com ele, Portugal inteiro – depositava grandes esperanças. O poema é dedicado ao jovem rei, referido textualmente na dedicatória inicial e no epílogo. O poema foi publicado em 1572. O Rei concedeu a Camões uma pensão, no valor de 15 mil réis anuais, a ser paga durante um triênio, podendo depois ser renovada. Embora habitualmente se afirme que era uma pensão muito reduzida, sabe-se, comparativamente com o rendimento de outras pessoas da época, que até seria uma pensão bastante razoável... se fosse paga com regularidade. Mas o pagamento não foi regular, o que teria feito Camões penar, nos últimos anos da vida, vitimado pela pobreza. Um escravo que trouxera do Oriente, de nome Jau, mendigaria nas ruas de Lisboa, segundo a tradição oral, para alimentar seu amo. Em 1578, o desastre de Alcácer-Quibir, com a morte de D. Sebastião e a perspectiva próxima de Portugal passar a ser governado por um monarca estrangeiro (no caso, Filipe II, de Espanha), abalou profundamente a saúde já combalida do poeta. Ele teria afirmado, então, que amava tanto a sua pátria que não somente tinha retornado a ela para nela morrer, mas para morrer juntamente com ela. De fato, após o breve reinado do Cardeal D. Henrique, em 1580 Filipe tornou-se rei de Portugal, dando início a um período de 60 anos em que as duas coroas ibéricas estiveram unidas sob um mesmo soberano, da Casa d´Áustria. Conta-se que, enquanto o velho cardeal-rei agonizava, a gente do povo cantava, junto ao paço, uns versinhos ofensivos: “Viva el-rei D. Henrique / no inferno muitos anos. / pois deixou em testamento / Portugal aos castelhanos”. Somente em 1º de dezembro de 1640 o Reino luso teria sua independência restaurada, sob a dinastia de Bragança. Camões morreu quase ao mesmo tempo que a independência de Portugal, a 10 de junho de 1580. Foi sepultado como pobre, sem qualquer destaque. Os ossos que jazem no magnífico mausoléu do Mosteiro dos Jerônimos, muito provavelmente não são os verdadeiros de Camões. São ossos de um homem qualquer, desconhecido, que simbolicamente representam o maior poeta da nação e da língua portuguesas. Ainda nesse particular, foi a legenda dourada e grandiosa que tomou o lugar da realidade prosaica. Durante os 60 anos de união ibérica, Camões adquiriu um prestígio enorme, se bem que paradoxal. De um lado, o rei Filipe II de Espanha (e I de Portugal), que era filho de uma infanta portuguesa e falava muito bem nosso idioma, promoveu duas edições de Os Lusíadas, e atribuiu oficialmente a Camões o título de “Príncipe dos Poetas de Espanha”. Com isso, não só procurava captar a benevolência de seus novos súditos, prestigiando o poeta máximo de Portugal, mas

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também intentava, de certa forma, incorporar às glórias da Espanha as glórias da nação portuguesa. Na ótica filipina e castelhana, a incorporação de Portugal à Espanha era definitiva. Mas, por outro lado, naqueles 60 anos, precisamente Camões serviu para a afirmação da língua portuguesa, diferente da castelhana e ciosa de conservar sua alteridade e sua independência. Aqui tocamos exatamente no tema que me foi proposto, ou seja, a importância de Camões para a afirmação da Língua Portuguesa. Camões, com sua literatura, foi um marco divisor de enorme importância para que, naquelas seis décadas, Portugal não perdesse a noção muito clara de sua identidade nacional, de sua completa alteridade em relação a Castela. Sem Camões e sem Os Lusíadas, talvez o reino luso tivesse soçobrado no esquecimento de sua identidade, e desaparecido para sempre, reduzido à condição de mera província da grande Espanha... O paradoxal é que Camões foi um poeta bilíngue. Ele compôs a maior parte de sua obra em português e até determinou a incorporação, a esse idioma, de numerosos neologismos eruditos, derivados ou deduzidos do latim clássico; ele é, por isso, considerado a justo título um renovador e um fixador definitivo da língua portuguesa. Mas Camões também escreveu muitas poesias líricas em castelhano castiço, como era comum entre os grandes intelectuais e literatos lusos do século XVI (inclusive Gil Vicente e Sá de Miranda). Não estava de todo errado, pois, Filipe II ou I, quando o designou Príncipe dos Poetas de Espanha... A obra lírica de Camões, muito volumosa, somente foi publicada postumamente, em 1595, sob o título Rimas. É obra valiosa que, de si, já teria porte suficiente para assegurar a seu autor um grande nome na Literatura, ainda que ele não tivesse escrito sua obra máxima, no gênero épico, a qual o consagraria como um dos maiores mestres da Literatura universal, traduzido para dezenas de idiomas e reconhecido no mundo inteiro. Quanto ao gênero teatral, também nele Camões escreveu algumas obras primorosas, na forma de autos. A mais conhecida é o Auto de Filodemo, representado pela primeira vez na Índia. Muito sumariamente, essa é a vida de Camões, com seus elementos certos e incertos, documentados ou apenas chegados até nós por tradição oral mesclada de muitos elementos folclóricos. Sua imagem é igualmente incerta. Ele teria sido retratado ainda em vida, por um pintor profissional, num famoso “retrato pintado a vermelho”, provavelmente para servir de base à ilustração de uma das edições de Os Lusíadas. Esse quadro já não existe, pois se perdeu num incêndio, mas dele ficou uma cópia fiel, efetuada no início do século XIX. Esse retrato constituiu a base para todas as numerosas representações iconográficas ou escultóricas de Camões, em que ele é invariavelmente representado como um fidalgo renascentista, magro, de fronte alta e nariz aquilino, vestindo

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seu gibão, com a gola engomada de praxe, com a coroa de louros da imortalidade e sempre, como marca registrada, com um olho fechado, precisamente o olho perdido nos combates africanos. Com ligeiras variantes, essa é a figura sempre evocada quando se fala em Luís de Camões. No imaginário popular, tal é a figura que calou fundo e se fixou. Camões viveu numa época de transição, já em pleno Renascimento, mas num ambiente em que ainda estavam vivas, ou pelo menos ainda sobreviviam muitas características psicológicas e culturais da Idade Média. O renascentismo português (como também o espanhol) era, a esse título, bastante sui generis, diferenciando-se do francês e, sobretudo do italiano. Camões era um humanista e mostrava-se muito naturalista, sem embargo do que sua obra está repleta de traços esparsos, mas muito significativos, de espírito autenticamente medieval, tanto em seus aspectos guerreiros, heroicos e, poderíamos dizer um tanto impropriamente, feudais, quanto nos teológicos e místicos. A nota cruzadística e missionária, por exemplo, característica constante da história de Portugal, especialmente no período da Dinastia de Avis, está sempre marcada em Camões. Em numerosas passagens de Os Lusíadas é bem consignada a finalidade religiosa da epopeia marítima. A religiosidade católica, ortodoxa e até inserida no contexto da Contra-Reforma tridentina, está presente e difusa no poema, sem embargo da forte presença mitológica, que não impediu sua aprovação pelo censor eclesiástico do Santo Ofício, que interpretou aquilo como sendo apenas um recurso estilístico, e não uma profissão de fé pagã. Essa coexistência de influências conflitantes, à maneira de vetores, é muito sensível em todo o poema, e mereceria ser mais esmiuçada aqui, se o espaço de que dispomos não fosse tão limitado. Historicamente, o poeta também viveu numa época que foi de transição a outro título. Ele nasceu bem no início do reinado de D. João III, quando ainda estava muito vivo o triunfalismo dos tempos de seu pai, D. Manuel, o Venturoso (falecido em 1521). Pertenceu a uma geração que cresceu embalada pelos sonhos de glória, quando Portugal era uma potência de primeiríssima grandeza, depois de colhidos os frutos de um século de pacientes e laboriosas tentativas de domínio dos mares. Sua geração assistiu, durante o longo reinado de D. João III, a um lento declínio desses sonhos de grandeza, com a nação cada vez mais se ressentindo do esforço hercúleo que fizera e continuava fazendo. O jovem rei D. Sebastião representou, para essa geração, a esperança de uma indispensável renovação, da qual Portugal teria saído ainda maior e mais fortalecido, não fosse o desastre de Alcácer-Quibir. A mesma geração assistiu à débâcle e ao “finis patriae”, ao triste ocaso de um grande ideal. Foi, pois, a geração que presenciou a grande transição, da glória mais elevada para a humilhação mais completa. Uma passagem bem conhecida do poema é a do Velho do Restelo, um an-

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cião “de aspeito venerando / que ficava na praia entre a gente” e “três vezes a cabeça meneando / que nós no mar ouvimos claramente / com um saber só de experiências feito / tais palavras tirou do esperto peito”. Na fala desse Velho do Restelo (Canto IV, Estâncias 94 a 104), personagem sombrio e enigmático que assistiu à partida da frota de Vasco da Gama fazendo sombrios augúrios para o futuro, Camões soube exprimir com genialidade os sentimentos da parcela da nação lusa que não estava de acordo com as Navegações, nelas vendo apenas “... vã cobiça / Desta vaidade a que chamamos Fama”, “sagaz consumidora conhecida / De fazendas, de reinos e de impérios”. “Chamam-te Fama e Glória soberana, / Nomes com quem se o povo néscio engana. / A que novos desastres determinas / De levar estes Reinos e esta gente? / Que perigos, que mortes lhe destinas, / Debaixo dalgum nome preminente? / Que promessas de reinos e de minas / De ouro, que lhe farás tão facilmente? / Que famas lhe prometerás? Que histórias? / Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?”. E, depois de lembrar que o inimigo ismaelita estava tão próximo, no norte da África, censura à Fama a imprudência de lançar Portugal oceano afora: “Deixas criar às portas o inimigo, / Por ires buscar outro de tão longe, / Por quem se despovoe o Reino antigo, / Se enfraqueça e se vá deitando a longe! / Buscas o incerto e incógnito perigo / Por que a fama te exalte e te lisonje / Chamando-te senhor, com larga cópia, / Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!” A longa fala do ancião é uma crítica cerrada à aventura das navegações, que ele considera imprudente e pouco assisada. É um discurso extenso, concatenado e coerente, constituindo o contraponto de toda a epopeia, a negação de todo o heroísmo cantado e decantado ao longo dos dez cantos do poema. Qual o sentido desse contraponto, tão destoante de todo o resto? Segundo alguns camonistas, a fala do Velho do Restelo poderia constituir a clave para a interpretação de todo o poema. De fato, não fica inteiramente claro para que lado propendia o próprio Camões, se para o ideal dos navegadores, que ele cantou com todo o ardor, se para a voz do securitarismo e do senso comum (é de propósito que não falo em bom senso, já que em português são bem distintos os conceitos de senso comum e de bom senso...). Em última análise, seria o Velho do Restelo o alter ego de Camões, que pôs em sua boa o mais recôndito de seu pensamento, ou pelo menos o mais inconfessado dos seus temores? Ou seria uma figura caricata, que o próprio Camões quis deixar registrada para ser rejeitada e escarnecida pelos seus leitores? Esse é um mistério que somente Camões poderia nos esclarecer... É um dos inúmeros mistérios da História que somente no dia do Juízo Universal poderemos ver decifrado. Vejo que, arrastado pelo interesse dessas questões, deixei-me levar por elas e fugi um tanto ao roteiro desta exposição. Retornemos ao nosso roteiro e falemos, rapidamente, das características formais e estruturais de Os Lusíadas.

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O poema, dividido em 10 cantos, tem um total de 1102 estrofes, oitavas rimadas no esquema clássico de ab, ab, ab, cc – ou seja, o primeiro, o terceiro e o quinto versos rimando entre si, e alternadamente, também rimando entre si, o segundo, o quarto e o sexto versos; e, por fim, fechando a oitava, o sétimo e o oitavo também rimados entre si. Na imensa maioria, são versos heroicos, com acentuação na 2ª. ou 3ª., na 6ª. e na 10ª. sílabas; excepcionalmente, encontram-se no poema alguns poucos versos sáficos, decassílabos com acentuação na 4ª. e na 8ª. sílabas. Essa intercalação de alguns sáficos num poema composto por heroicos tempera agradavelmente a homogeneidade rítmica, impedindo que se transforme em monotonia. À maneira das epopeias clássicas, o poema se inicia com a proposição do assunto, expressa nas três primeiras estrofes do canto I: As armas e os Barões assinalados Que da Ocidental praia Lusitana Por mares nunca de antes navegados Passaram ainda além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram; E também as memórias gloriosas Daqueles Reis que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando, E aqueles que por obras valerosas Se vão da lei da Morte libertando, Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte.*

* Note-se que, nesta estrofe, Camões utiliza seguidamente quatro verbos no gerúndio. Os gerúndios são muito frequentes na poesia camoniana, o que demonstra, como salientava o Prof. Gladstone Chaves de Melo, que o português falado no Portugal seiscentista utilizava o gerúndio muito mais do que hoje. No Brasil, conservou-se mais o costume da ampla utilização dos gerúndios, enquanto em Portugal se firmou, nos últimos séculos, a tendência de substituir, nas orações modais, os gerúndios pela forma infinitiva dos verbos, precedida da preposição a: a libertar em lugar de libertando, a cantar ao invés de cantando etc. Nesse sentido, a evolução do português falado em Portugal se afastou mais do modelo seiscentista de Camões do que no Brasil. O mesmo erudito professor destacava ainda que, no português de Portugal, nos últimos séculos, acentuou-se a tendência para que muitas sílabas breves sejam pronunciadas tão

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Cessem do sábio Grego e do Troiano As navegações grandes que fizeram; Cale-se de Alexandro e de Trajano A fama das vitórias que tiveram; Que eu canto o peito ilustre Lusitano, A quem Neptuno e Marte obedeceram. Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Que outro valor mais alto se alevanta. Note-se, já no primeiro verso da primeira estrofe, a claríssima inspiração virgiliana, quase uma repetição da Eneida, que se inicia com as palavras “Arma virumque cano” (canto as armas e o varão). Vêm, depois, nas duas estrofes seguintes, a invocação das Tágides, as ninfas do rio Tejo, instadas a ajudar o poeta e a lhe proporcionar inspiração para seu canto. A seguir, ainda dentro do esquema tradicional dos poemas épicos clássicos, vem a dedicatória, ao Rei D. Sebastião, ao qual é oferecido o poema. São doze estrofes, de números 6 a 18, dirigidas ao monarca, de quem se esperava fosse um guerreiro vitorioso contra as hostes maometanas que então ameaçavam a Cristandade europeia: ... Vós, poderoso Rei, cujo alto Império O Sol, logo em nascendo, vê primeiro, Vê-o também no meio do Hemisfério, E quando desce o deixa derradeiro; Vós, que esperamos jugo e vitupério Do torpe Ismaelita cavaleiro, Do Turco Oriental e do Gentio Que inda bebe o licor do santo Rio: (I, 8) Logo a seguir, tem início a trama da epopeia, com a narrativa da viagem de Vasco da Gama, interrompida a certa altura quando, à maneira de um moderno flashback, é introduzido um longo relato de Vasco da Gama, recordando toda a história gloriosa de Portugal. Outros episódios também intercorrem, introduzindo no poema uma nota de variedade muito agradável ao leitor. Por exemplo, a descrição do concílio dos deuses no Olimpo, debatendo entre si sobre se derapidamente que quase desaparecem: “As armas e os b´rões assinalados” – tende a ler um português de hoje, reduzindo o verso de 10 para 9 sílabas. No Brasil não se verificou essa mesma abreviação dos tempos silabares, o que faz com que, em algumas passagens, um brasileiro leia os versos de Os Lusíadas com ritmo mais correto do que o faz um português.

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veriam ou não ajudar os portugueses em sua navegação (I, 20-41); o episódio dramático do gigante Adamastor (V, 41-59), a descrição igualmente dramática da tempestade, a que já aludi (VI, 70-84); o episódio dos Doze de Inglaterra (VI, 43-69) e muitos mais. O poema, muito constante e regular na forma, é cheio de variações que o tornam extremamente agradável de ser lido. Há nele exemplos muito variados de estilos. Há elementos descritivos bem caracterizados, por exemplo, no relato de batalhas, como na de Aljubarrota, de uma vivacidade extraordinária, em que o leitor tem a nítida impressão de estar assistindo a um filme, tal a força expressiva do poema: Deu sinal a trombeta Castelhana, Horrendo, fero, ingente e temeroso; Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana Atrás tornou as ondas de medroso. Ouviu[-o] o Douro e a terra Transtagana; Correu ao mar o Tejo duvidoso; E as mães, que o som terríbil escuitaram, Aos peitos os filhinhos apertaram. Quantos rostos ali se veem sem cor, Que ao coração acode o sangue amigo! Que, nos perigos grandes, o temor É maior muitas vezes que o perigo. E se o não é, parece-o; que o furor De ofender ou vencer o duro imigo Faz não sentir que é perda grande e rara Dos membros corporais, da vida cara. Começa-se a travar a incerta guerra: De ambas partes se move a primeira ala; Uns leva a defensão da própria terra, Outros as esperanças de ganhá-la. Logo o grande Pereira, em quem se encerra Todo o valor, primeiro se assinala: Derriba e encontra e a terra enfim semeia Dos que a tanto desejam, sendo alheia. Já pelo espesso ar os estridentes Farpões, setas e vários tiros voam; Debaxo dos pés duros dos ardentes

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Cavalos treme a terra, os vales soam. Espedaçam-se as lanças, e as frequentes Quedas co as duras armas tudo atroam. Recrecem os imigos sobre a pouca Gente do fero Nuno, que os apouca. (IV, 28-31) Há trechos de lirismo comovedor, como, no final do canto III, o episódio de Inês de Castro, “a mísera e mesquinha / que depois de morta foi rainha”. Principia com os célebres versos: Estavas, linda Inês, posta em sossego, De teus anos colhendo doce fruito, Naquele engano da alma, ledo e cego, Que a Fortuna não deixa durar muito, Nos saudosos campos do Mondego, De teus fermosos olhos nunca enxuito, Aos montes ensinando e às ervinhas O nome que no peito escrito tinhas. (III, 120) Há passagens que se destacam pela ironia (por exemplo: quando fala que “a terra enfim semeia / dos que a tanto desejam, sendo alheia” ou “Depois do duro Pedro nasce o brando / vede da natureza o desconcerto / remisso e sem cuidado algum Fernando / que todo o reino pôs em grande aperto”) e uma, pelo menos, em que o senso de humor é bem marcado, com o episódio de Veloso, no início do canto V. Esse Veloso era um português muito convencido, ao que parece, de sua valentia, muito seguro de si e um tanto fanfarrão. A certa altura, desceu de sua canoa junto à costa africana e afoitamente se pôs a subir um outeiro, mas, estando envolvido pela vegetação, não via que, no alto do mesmo outeiro, estava um grande número de negros com ares hostis. Os companheiros de Veloso, que estavam avistando perfeitamente o alto da colina, em altos brados, tentavam advertir Veloso do perigo, mas o valentão não ligava, pensando tratar-se de brincadeira dos amigos. Quando chegou ao alto da colina, porém, e se viu diante de tantos homens hostis, deu-se conta do perigo em que estava e desembalou em carreira até à praia, onde conseguiu embarcar na canoa, em meio a uma chuva de flechas... Veloso, descendo a colina, “... ao mar caminha, / Mais apressado do que fora, vinha”, ironiza o poema. E continua: Disse então a Veloso um companheiro (Começando-se todos a sorrir): – “Oulá, Veloso amigo! Aquele outeiro É milhor de decer que de subir!”

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– “Si, é (responde o ousado aventureiro); Mas, quando eu pera cá vi tantos vir Daqueles cães, depressa um pouco vim, Por me lembrar que estáveis cá sem mim. (V, 35) No Canto VII, estrofes 3 a 14, o poeta faz uma análise da Europa de seu tempo, criticando os vários povos esquecidos da fé e do espírito de cruzada, ainda dominante em Portugal. Do ponto de vista político e ideológico – digamos assim – é a passagem mais densa do poema, pois contextualiza o reino português no conjunto da Europa de seu tempo. É também um dos trechos em que os lados medievais – podemos dizer – de Camões mais afloram: Vós, Portugueses, poucos quanto fortes, Que o fraco poder vosso não pesais; Vós, que, à custa de vossas várias mortes, A lei da vida eterna dilatais: Assi do Céu deitadas são as sortes Que vós, por muito poucos que sejais, Muito façais na santa Cristandade. Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade! Vede’los Alemães, soberbo gado, Que por tão largos campos se apacenta; Do sucessor de Pedro rebelado, Novo pastor e nova seita inventa; Vede’lo em feias guerras ocupado, Que inda co cego error se não contenta, Não contra o superbíssimo Otomano, Mas por sair do jugo soberano. Vede’lo duro Inglês, que se nomeia Rei da velha e santíssima Cidade, Que o torpe Ismaelita senhoreia (Quem viu honra tão longe da verdade?), Entre as Boreais neves se recreia, Nova maneira faz de Cristandade: Pera os de Cristo tem a espada nua, Não por tomar a terra que era sua. Guarda-lhe, por entanto, um falso Rei A cidade Hierosólima terreste,

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Enquanto ele não guarda a santa Lei Da cidade Hierosólima celeste. Pois de ti, Galo indino, que direi? Que o nome “Cristianíssimo” quiseste, Não pera defendê-lo nem guardá-lo, Mas pera ser contra ele e derribá-lo!* Achas que tens direito em senhorios De Cristãos, sendo o teu tão largo e tanto, E não contra o Cinífio e Nilo rios, Inimigos do antigo nome santo? Ali se hão-de provar da espada os fios Em quem quer reprovar da Igreja o canto. De Carlos, de Luís**, o nome e a terra Herdaste, e as causas não da justa guerra? Pois que direi daqueles que em delícias, Que o vil ócio no mundo traz consigo, Gastam as vidas, logram as divícias, Esquecidos do seu valor antigo? Nascem da tirania inimicícias, Que o povo forte tem, de si inimigo. Contigo, Itália, falo, já sumersa Em vícios mil, e de ti mesma adversa. Ó míseros Cristãos, pola ventura Sois os dentes, de Cadmo desparzidos, Que uns aos outros se dão à morte dura, Sendo todos de um ventre produzidos?*** Não vedes a divina Sepultura Possuída de Cães, que, sempre unidos, Vos vêm tomar a vossa antiga terra, Fazendo-se famosos pela guerra?

* Alusão a Francisco I, rei da França, que se aliou aos turcos contra príncipes cristãos. ** Alusão a Carlos Magno e ao rei São Luís IX. *** Cadmo: personagem mitológico que matou um dragão e espalhou seus dentes, que se transformaram em guerreiros que imediatamente se puseram a combater entre si até o extermínio.

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Vedes que têm por uso e por decreto, Do qual são tão inteiros observantes, Ajuntarem o exército inquieto Contra os povos que são de Cristo amantes; Entre vós nunca deixa a fera Aleto De semear cizânias repugnantes. Olhai se estais seguros de perigos, Que eles, e vós, sois vossos inimigos. Se cobiça de grandes senhorios Vos faz ir conquistar terras alheias, Não vedes que Pactolo e Hermo rios Ambos volvem auríferas areias? Em Lídia, Assíria, lavram de ouro os fios; África esconde em si luzentes veias; Mova-vos já, sequer, riqueza tanta, Pois mover-vos não pode a Casa Santa. Aquelas invenções, feras e novas, De instrumentos mortais da artelharia Já devem de fazer as duras provas Nos muros de Bizâncio e de Turquia. Fazei que torne lá às silvestres covas Dos Cáspios montes e da Cítia fria A Turca geração, que multiplica Na polícia da vossa Europa rica. Gregos, Traces, Arménios, Georgianos, Bradando vos estão que o povo bruto Lhe obriga os caros filhos aos profanos Preceptos do Alcorão (duro tributo!). Em castigar os feitos inumanos Vos gloriai de peito forte e astuto, E não queirais louvores arrogantes De serdes contra os vossos mui possantes. Mas, entanto que cegos e sedentos Andais de vosso sangue, ó gente insana, Não faltarão Cristãos atrevimentos Nesta pequena casa Lusitana: De África tem marítimos assentos;

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É na Ásia mais que todas soberana; Na quarta parte nova os campos ara; E, se mais mundo houvera, lá chegara. O penúltimo dos versos que acabei de ler (“Na quarta parte nova os campos ara”) refere-se ao Brasil. A “quarta parte nova” é a América. Os Campos de Piratininga, nos quais estava, naquele momento, nascendo a futura cidade de São Paulo e bem no centro dos quais aqui estamos nós, em 2016, foram também cantados na epopeia camoniana... Encontram-se ainda, no poema, duas passagens eróticas muito vivas, uma delas descrevendo o corpo da deusa Vênus com pormenores anatômicos que, mesmo em nossos dias, impressionam; e outra com o extenso episódio da Ilha dos Amores, no canto IX (52-89), com descrições tão realísticas que, nas edições escolares antigas, esse episódio era censurado “ad usum Delphini”. Há também, ao longo do poema, numerosos versos que, pela sua concisão e conteúdo de fundo moral, se transformaram em verdadeiros ditados, repetidos por muita gente que nem mesmo sabe que sua origem está em Os Lusíadas. De memória, cito apenas três: “O fraco rei faz fraca a forte gente”; “inimiga não há, tão dura e fera, / Como a virtude falsa, da sincera” e “Sempre por via irá direita / quem do oportuno tempo se aproveita”. O poema se encerra, no Canto X, com o poeta lamentando que seu cantar não encontra, entre os seus contemporâneos, a receptividade que deveria encontrar: Nõ mais, Musa, nõ mais, que a Lira tenho Destemperada e a voz enrouquecida, E não do canto, mas de ver que venho Cantar a gente surda e endurecida. O favor com que mais se acende o engenho Não no dá a pátria, não, que está metida No gosto da cobiça e na rudeza Dũa austera, apagada e vil tristeza. (X, 145)*

Segue-se, fechando o poema, um epílogo, dirigido ao Rei D. Sebastião, ao qual o poeta se permite dar alguns conselhos**: * Notar, nesta estrofe, que são sáficos os versos 3 e 6. ** Esses conselhos eram explicáveis e não constituíam desrespeito, dada a grande diferença de idades entre o poeta e o jovem rei; eles contêm uma queixa implícita contra o modo de reis anteriores tratarem os seus homens e manifestam a esperança de que D. Sebastião não cometa o mesmo erro dos seus antecessores.

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Por isso vós, ó Rei, que por divino Conselho estais no régio sólio posto, Olhai que sois (e vede as outras gentes) Senhor só de vassalos excelentes. Olhai que ledos vão, por várias vias, Quais rompentes liões e bravos touros, Dando os corpos a fomes e vigias, A ferro, a fogo, a setas e pelouros, A quentes regiões, a plagas frias, A golpes de Idolatras e de Mouros*, A perigos incógnitos do mundo, A naufrágios, a pexes, ao profundo. Por vos servir, a tudo aparelhados; De vós tão longe, sempre obedientes; A quaisquer vossos ásperos mandados, Sem dar reposta, prontos e contentes. Só com saber que são de vós olhados**, Demónios infernais, negros e ardentes, Cometerão convosco, e não duvido Que vencedor vos façam, não vencido. Favorecei-os logo, e alegrai-os Com a presença e leda humanidade; De rigorosas leis desalivai-os, Que assi se abre o caminho à santidade. Os mais exprimentados levantai-os, Se, com a experiência, têm bondade Pera vosso conselho, pois que sabem O como, o quando, e onde as cousas cabem. Todos favorecei em seus ofícios, Segundo têm das vidas o talento; * Notar que o substantivo idolatras é paroxítono e não proparoxítono, para que não fique quebrado o pé do verso heroico, com acentuação tônica na 6ª. sílaba. Essa estrofe costumava estar presente nos antigos exames orais de Literatura. O aluno devia lê-la em voz alta; se tinha ouvido bem apurado no ritmo dos versos, lia “idolátras” e recebia nota mais alta; se lesse “idólatras” quebrava o pé do verso e recebia ponto negativo. ** Verso sáfico.

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Tenham Religiosos exercícios De rogarem, por vosso regimento, Com jejuns, disciplina, pelos vícios Comuns; toda ambição terão por vento, Que o bom Religioso verdadeiro Glória vã não pretende nem dinheiro. Os Cavaleiros tende em muita estima, Pois com seu sangue intrépido e fervente Estendem não somente a Lei de cima, Mas inda vosso Império preminente. Pois aqueles que a tão remoto clima Vos vão servir, com passo diligente, Dous inimigos vencem: uns, os vivos, E (o que é mais) os trabalhos excessivos. Fazei, Senhor, que nunca os admirados Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses, Possam dizer que são pera mandados, Mais que pera mandar, os Portugueses. Tomai conselho só d’ exprimentados, Que viram largos anos, largos meses, Que, posto que em cientes muito cabe, Mais em particular o experto sabe. De Formião, filósofo elegante, Vereis como Anibal escarnecia*, Quando das artes bélicas, diante Dele, com larga voz tratava e lia. A disciplina militar prestante** Não se aprende, Senhor, na fantasia, Sonhando, imaginando ou estudando, Senão vendo, tratando e pelejando.***

* O nome Anibal deve ser pronunciado como oxítono, para que não fique quebrado o pé do verso heroico. ** Verso sáfico. *** Estes últimos quatro versos são bem conhecidos de todos os oficiais do Exército brasileiro, pois foram reproduzidos na entrada da Academia Militar de Agulhas Negras-AMAN. Notar que somente nos dois últimos versos, Camões utiliza nada menos que seis gerúndios.

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O poema prossegue... Fiquemos por aqui, que já passamos de todos os limites do tempo. Muito mais haveria a dizer, mas fica para outra ocasião. Camões foi, sem a menor sombra de dúvida, o maior expoente da língua portuguesa e contribuiu poderosamente para sua afirmação, assim como contribuiu para a afirmação da nacionalidade portuguesa e, por extensão, da brasileira. Papel análogo representou Dante, para o italiano moderno, Shakespeare para o inglês, Cervantes para o castelhano. Embora autores antigos e quase arcaicos, os quatro continuam sendo, e nunca deixarão de ser, referenciais para todos os estudiosos de seus idiomas. Esse o imenso valor das obras clássicas, sempre atuais porque nunca envelhecem. Sempre revelam aspectos novos, a cada releitura. Concluo esta apresentação com um comentário bastante pessoal, acerca de Camões. Nossa tendência é imaginá-lo como um super-homem, sem sentimentos pessoais, quase maneira de um semideus homérico. Não! Ele era homem, tinha as limitações, as fraquezas, os receios, as incertezas, as tentações de desespero de todo homem. Podemos, então, imaginar Camões deprimido, desanimado, morrendo na miséria, sentindo que seu imenso valor não tinha sido devidamente apreciado, sentindo que o Império, pelo qual ele e, antes dele tantos outros, haviam lutado e sacrificado suas vidas, estava desaparecendo, sentindo que juntamente com ele, também Portugal estava morrendo. Nesse momento de depressão, aos olhos de um Camões quase à beira da sepultura, a vida que vivera lhe parecia um fracasso, sua pátria, um sonho e a epopeia que escrevera, um delírio. Não podia imaginar que sua obra se prolongaria post mortem, e que ele realizaria depois de morto, pela irradiação do seu poema épico, incomparavelmente mais do que fizera em vida. Portugal não morreria com ele, mas reviveria porque a obra dele lhe daria forças para tal.

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Ensaio sobre a historicidade da Língua portuguesa Alberto Luiz Schneider

(sócio titular do IHGSP)

Às vezes os homens sonham com pureza, fixidez e permanência, e a nossa humana condição nos devolve mistura, mudança e movimento. O destino de todas as coisas é já não ser, pois nada está imune à corrosão do tempo, que faz e desfaz. Nossa própria língua – que foi a de Camões, Vieira e Machado de Assis e outros milhões que viveram anônimos e padeceram em português – é a encarnação viva do tempo e das mestiçagens que nos constituem. Jorge Luis Borges, em poema de 1960, dedicado a Camões, foi capaz de apreender o tempo da língua: A Luis de Camões Sem lástima e sem ira o tempo vela As heroicas espadas. Pobre e triste Em tua pátria nostálgica te viste, Oh capitão, para enterrar-te nela

A Luis de Camoens Sin lástima y sin ira el tiempo mella las heroicas espadas. Pobre y triste a tu patria nostálgica volviste, oh capitán, para morir en ella

E com ela. No mágico deserto A flor de Portugal tinha perdido E o áspero espanhol, antes vencido, Ameaçava o seu costado aberto.

y con ella. En el mágico desierto la flor de Portugal se había perdido y el áspero español, antes vencido, amenazaba su costado abierto.

Quero saber se aquém dessa ribeira Última compreendeste humildemente Que tudo o que se foi, o Ocidente

Quiero saber si aquende la ribera última comprendiste humildemente que todo lo perdido, el Occidente

E o Oriente, a espada e a bandeira, Perduraria (alheio a toda a humana mudança) na tua Eneida Lusitana.

y el Oriente, el acero y la bandera, perduraría, (ajeno a toda humana mutación) en tu Eneida lusitana. *

BORGES, Jorge Luis. “A Luis de Camões”. In Quase Borges: 20 poemas e uma entrevista. Traduções de Augusto de Campos. São Paulo: Terracota, 2013

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Alberto Luiz Schneider

A língua de Camões se espalhou pelo Oriente, pelas Áfricas e deitou funda e larga raiz no extremo Ocidente, da foz do Amazonas à boca do Prata. Nem é assunto de glórias, porque tudo vai manchado de sangue e escravidão que Cristo algum pôde deter. Como os outros, os portugueses iam se espalhando e espalhando tudo o que havia neles, das coisas de Deus e do diabo, inclusive sua fala. A língua portuguesa, ainda outra, bem diferente dessa que palpita em nossa boca, nasceu n’algum lugar da Ibéria à beira mar plantado. As coisas dos homens nascem dos outros – e a língua que foi a de Camões nasceu do velho latim falado no Império Romano, uma língua que se extinguiu por volta dos anos 500 a 600 d.C. Mas sobreviveu à sua maneira. Findo o Império, as gentes que o falavam não adotaram nenhum outro idioma. Assim, nas antigas províncias romanas do Sul da Europa, um latim modificado por baixo, entre os homens rudes e as mulheres simples, foi parindo outros falares. Lá onde Dom Henrique de Borgonha (1057-1112) comandou o Condado Portucalense, entre o Minho e Mondego, nasceu tímida a língua hoje falada por mais de 250 milhões de pessoas em quatro continentes. Naquele canto da Península os homens e as mulheres falavam uma língua que misturava as antigas falas celtas, ibéricas com o latim do Império. Não o latim cultivado de Cícero, mas o prático dos soldados e comerciantes. Daí a origem da maioria dos vocábulos da língua portuguesa, de raiz latina, porque a coisa do viver e do poder vão juntas. O latim dito vulgar era mais forte que a douta língua de Virgílio. Ironicamente, o latim literário do Império pagão e depois cristão sobreviveria durante toda a Idade Média na Europa Ocidental como a língua oficial da Igreja cristã, a dar unidade cultural e linguística ao Ocidente. Enquanto um latim vulgar declinava, um outro, literariamente mais cultivado, ascendia como a língua eclesiástica. Aos poucos o latim superaria o grego antigo, no qual foi escrito o Novo Testamento. É certo que o latim dos clérigos influenciaria a consolidação dos modernos idiomas neolatinos, emprestando palavras e expressões eruditas a escritores e pensadores a partir dos séculos XIV, XV e XVI. Quando os cristãos, armados de espadas e desejos de conquista, desalojaram os muçulmanos, também a língua do vencedor venceu. Mas não sem tributos. A presença moura nas Espanhas deixou marcas árabes e berberes nas línguas e nas culturas daqueles europeus de fronteira. Ainda no tempo da reconquista cristã, na Península Ibérica, predominava o romance, uma língua que misturava o latim com outras falas. Daí deriva o galaico-português que, como todas as línguas, nascem mestiças, filhas do tempo, das circunstâncias e das armas. Quando expulsos do Sul da Península Ibérica, os árabes deixaram pedaços vivos deles mesmos, nos dialetos moçárabes, que vicejavam entre os sobreviventes, até penetrarem nas línguas dos vencedores. Os primeiros textos oficiais em português, ao menos conhecidos, remontam ao século XII. Em 1279, o rei D. Diniz, ele mesmo poeta, levou a língua das

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pessoas comuns à condição de escrita real. Em 1290 foi criada a universidade na cidade de Lisboa, ali onde o Tejo encontra o mar, e, em 1308, foi transferida para Coimbra. A universidade, além das coisas de Deus, ou mais precisamente, de São Tomás de Aquino, assumiu a missão de organizar, defender e difundir o idioma do rei e de sua gente. O antigo reino de Portugal, no século XIV ao XVI falava um idioma jovem como o próprio Reino, sempre temeroso e vigilante quanto ao poder dos vizinhos castelhanos, católicos como eles, porém, maiores. Não é de hoje que os pequenos temem os grandes. A gramática nasceu para inventar o que é certo e o que é errado. As gentes não têm porque se preocupar com regências, plurais, concordância e que tais. Só doutos o fazem, para gastar o tempo que lhes sobra e organizar o poder. A primeira gramática em português surgiu em 1536, da pena de Fernão de Oliveira. A segunda, em 1540, por João de Barros. Dois eruditos de Portugal. Como se pode ver, a língua de Pedro Álvares Cabral e seus homens embarcados era ainda menina-moça quanto topou com o tupi, que não estava para gramáticas. A língua que aportou no Atlântico Sul, com os colonos de Martim Afonso, em 1532, com toda sua história, velha de guerra, nem remotamente se parece ao português que hoje se fala em Lisboa ou no Porto. Era bem outra, porque entre nós e eles há cinco séculos no meio. A língua que os colonos trouxeram foi-se enraizando no Brasil, deixando-se atravessar pelo Novo Mundo, pois não há como viver sem viver. Por óbvio que seja, convém não esquecermos que o português lusitano é tão filho da história quanto o português do Brasil. Os dois lados do mesmo português foram modificando-se pelas experiências que a vida os cumulou. As pesquisas dos linguistas, com seus documentos e métodos, como deve ser, tem-nos mostrado que o português praticado no Brasil já começou a se diferenciar do lusitano faz quatro séculos. Não fomos nós, os americanos, que mudamos a língua de outrora. Mudamos todos, porque o tempo é o mais universal e inescapável dos fenômenos. Nos tempos coloniais conviviam muitas línguas nas terras que o rei de Portugal chamava de Estado do Brasil. No século XVI, o português enfrentou o francês no Maranhão e no Rio de Janeiro. Ao Norte, no período holandês (16301653), a fala lusa dos colonos conviveu com a língua dos batavos. Também duelou com o castelhano nas porosas e móveis (quase imaginárias) fronteiras coloniais, sobretudo ao Sul. E desde o começo da colonização, em todo território que hoje é o Brasil, o português de colonos e colonizadores convivia com as línguas dos indígenas de tronco tupi-guarani, além de outras 350 falas ameríndias. Nas línguas gerais, de matriz tupi, expressava-se a maioria da população, inclusive mestiços livres e até senhores brancos, sobretudo, em São Paulo de Piratininga. Nessas línguas dava-se o contato entre indígenas de diferentes nações com os portugueses e seus descendentes brasílicos. As línguas gerais funcionavam como uma espécie de língua franca, já pontilhada de vocábulos portugueses,

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ainda indígena em quase tudo. Nossa herança tupi não se separa da história da conversão. Deixemos Gilberto Freyre falar: No Brasil o padre serviu-se principalmente do curumim, para recolher de sua boca o material com que formou a língua tupiguarani – o instrumento mais poderoso de intercomunicação entre as duas culturas: a do invasor e a da raça conquistada. Não somente de intercomunicação moral como comercial e material. Língua que seria, com toda a sua artificialidade, uma das bases mais sólidas da unidade do Brasil. Desde logo, e pela pressão do formidável imperialismo religioso do missionário jesuíta, pela sua tendência para uniformizar e estandardizar valores morais e materiais, o tupi-guarani aproximou entre si tribos e povos indígenas, diversos e distantes em cultura, e até inimigos de guerra, para, em seguida, aproximá-los todos do colonizador europeu. [...]. Quando mais tarde o idioma português – sempre o oficial – predominou sobre o tupi, tornando-se, ao lado deste, língua popular, já o colonizador estava impregnado de agreste influência indígena; já o seu português perdera o ranço ou a dureza do reinol.* O português mesmo era a língua dos brancos mais abastados, reinóis e padres. E muitos dos padres, sobretudo, os mais doutos – como Anchieta e Nóbrega ou Vieira e Antonil – podiam falar em latim. Mas antes desse lastro erudito, nossa fala, como nossa história, tem uma extensão africana. No século XVI os traficantes de escravos depositaram no Brasil 100 mil homens e mulheres escravizados. No XVII foram mais 600 mil. No século XVIII, quando as Minas enriqueceram as burras do rei, foram mais de 1,3 milhão de negros escravizados. E no XIX, até meados do século, quando o nefando comércio declinou, foram tantos mais. Essa massa humana trouxe suas falas e seus ritmos que penetraram no falar dos brasileiros. Ainda é Gilberto Freyre quem nos lembra que, “no ambiente relasso da escravidão brasileira, as línguas africanas, sem motivos para substituírem-se à parte, em oposição a dos brancos, dissolveram-se nela; enriquecendo-a de expressivos modos de dizer”**. Silvio Romero, apesar de empapado de teorias científico-racialistas, não deixou de notar que, nas áreas ricas de açúcar e de escravos, como na Bahia, foi “grandíssimo número de termos de origem africana, como: batuque, cafuné, senzala, cachimbo, maracatu, quiabo,

* FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. 48ª ed. São Paulo: Global, 2000. p 219-220 ** FREYRE, Gilberto. Op. cit. p. 416-417

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munganga, xará, calunga, mocambo, etc. (...) As alterações fonéticas são variadíssimas. As modificações sintáticas também já começam a caracterizar-se*”. Em torno do ano de 1700, na capitania de São Vicente, depois São Paulo, a maioria das pessoas falava a língua geral do Sul. Essa língua deixou sua marca no vocabulário e no modo como certas palavras são pronunciadas. Talvez por influência do geral ou ainda por outras particularidades, os velhos sertanistas de São Paulo falavam porrrta e muié e esse modo de dizer, se espalhou pelo Brasil de dentro, nem melhor nem pior. A língua foi com as bandeiras. A língua vai com a história. Em terra grande como o Brasil a história é larga e os falares variados. Em 1757, Sebastião José de Carvalho e Melo, Secretário de Estado do Reino, depois conhecido como Marquês de Pombal, mandou expulsar os jesuítas. Entre outras razões, expulsou os padres porque pregavam a doutrina cristã nas línguas indígenas. No século XVIII, de ilustração e de razão de Estado, não podia competir com as razões de Cristo, que os inacianos pregavam. Por decreto, fez da língua portuguesa a língua oficial do Brasil. Essa coisa de decretos não move a história sozinha. Naquele século XVIII, quando o ouro brotou nas Minas, muito português das Ilhas Atlânticas e do Reino se jogaram ao mar no sonho de fortuna. E tinha muito mascate reinol no Norte, em São Paulo, em toda parte. As imposições de Pombal, mais o adensamento lusitano foram lentamente vencendo as falas indígenas. O português, na altura da Independência (1822) já tinha se imposto sobre as línguas nativas. Mas o português que venceu não foi a língua do Reino, nem dos reinóis e dos governadores. Era já a língua portuguesa do colono lusobrasílico, gente da terra, já de “sangue infecto”, embora afetasse a “pureza de sangue”. O colono vencedor, com bens de raiz, açucarocrata, já era americano de muitas gerações, embora carregasse dentro dele o colonizador (e o colonizado). A miscigenação se era biológica, era ainda mais cultural e linguística, a refletir a mistura de gentes que formaram o Brasil, não obstante a violência. O falar dos primeiros colonizadores instalados em Olinda ou São Vicente era bem diferente dos modos lisboetas de falar, que aportaram no Rio de Janeiro com D. João VI, em 1808, de onde pode ter vindo o S chiado dos cariocas. Entre 1850 e 1950, o Brasil recebeu quase cinco milhões de imigrantes, a maioria de europeus, mas também asiáticos. Suas falas impactaram as regiões que os acolheram e ainda hoje ecoam em nossos ouvidos, senão mesmo em nossas almas. Já vai distante a nossa língua da de Portugal. Mas ainda nos entendemos – e bem. Os brasileiros leem Antero de Quental e Lobo Antunes com a mesma intimidade emocional com que lemos Machado de Assis e Dalton Trevisan. O português do Brasil foi, como não podia deixar de ser, tributado por sua história. Falamos palavras indígenas, como jururu e cuia; africanas, como bunda e ca* ROMERO, Silvio. História da literatura brasileira. tomo 1. José Olympio, 1953, p. 143

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funé; francesas, como paletó e matinê; inglesas, como trem e futebol; italianas, como soneto e carnaval; espanholas, como bolero e chimarrão; alemãs, como blitz e cuca; japonesas, como quimono e tatame. A língua abrasileirou-se não apenas no vocabulário, mas no modo de dizer, na sintaxe e no som. A nossa língua é um documento vivo de tudo que o tempo imprimiu em nós. Agora demos ouvido a Mário de Andrade, o mais brasileiro dos paulistas. Ele, tão anti-República Velha e tão necessário em tempos de República decaída, de mesóclises extemporaneamente balofas. Mário, em poema oferecido a Carlos Drummond de Andrade, em 1924, soube vazar a historicidade da língua do Brasil e captar o tempo que vai nela: Noites pesadas de cheiros e calores amontoados... Foi o sol que por todo o sítio imenso do Brasil Andou marcando de moreno os brasileiros. Estou pensando nos tempos de antes de eu nascer... A noite era pra descansar. As gargalhadas brancas dos mulatos... Silêncio! O Imperador medita os seus versinhos. Os Caramurus conspiram na sombra das mangueiras ovais. Só o murmurejo dos cre’m-deus-padres irmanava os homens de meu país... Duma feita os canhamboras perceberam que não tinha mais escravos, Por causa disso muita virgem-do-rosário se perdeu... Porém o desastre verdadeiro foi embonecar esta república temporã. A gente inda não sabia se governar... Progredir, progredimos um tiquinho Que o progresso também é uma fatalidade... Será o que Nosso Senhor quiser!... Estou com desejos de desastres... Com desejos do Amazonas e dos ventos muriçocas Se encostando na cangerana dos batentes... Tenho desejos de violas e solidões sem sentido Tenho desejos de gemer e de morrer. Brasil... Mastigado na gostosura quente do amendoim... Falado numa língua corumim De palavras incertas num remeleixo melado melancólico... Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons... Molham meus beiços que dão beijos alastrados E depois semitoam sem malícia as rezas bem nascidas... Brasil amado não porque seja minha pátria, Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der... Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso,

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O gosto dos meus descansos, O balanço das minhas cantigas amores e danças. Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada, Porque é o meu sentimento pachorrento, Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir*. A despeito do brasileirismo afetado de Mário de Andrade, ninguém em Portugal escreveria como ele. O português do Brasil não encheu nossa fala apenas de substratos tupi, quimbundos ou imigrantes, mas também é portador de arcaísmo e formas nascidas no país e já consagradas pelo tempo na imensa vastidão do território brasileiro prenhe de diversidade. São as gentes variadas do Brasil, crivadas de tempo e vivências múltiplas, que explicam a variedade regional do português brasileiro. Vá para Piracicaba (SP), depois desça para Pelotas (RS), volte para Santa Rita do Passa Quatro (MG), salte mais acima para o Crato (CE) e atravesse de volta para Lapa (PR), pule para Cametá (PA) e sentirá toda a unidade e a diversidade da nossa fala. Hierarquia pernóstica à parte, ninguém fala errado, nem pronuncia mal. São diferenças de sintaxe, de vocabulário, de ordenamentos gramaticais e de pronúncia. Mesmo entre aqueles que empregam a norma culta da língua ressoarão diferenças da mesma língua que se faz e refaz, inventando e esquecendo palavras e modos, atravessando os tempos, desde o galaico português medieval.

* ANDRADE, Mário de. “O poeta come Amendoim”. In Poesias Completas. São Paulo: Martins Editora, 1955. p. 157-158.

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Fernando Pessoa e seus heterônimos Nelson Faria de Oliveira*

Fernando Pessoa, ao lado de Luís Vaz de Camões, autor de “Os Lusíadas”, a grande obra épica de Portugal, é considerado o maior poeta da língua Portuguesa e um dos maiores da literatura universal, sendo certo que nasceu em Lisboa, em 13 de junho de 1888 e faleceu na mesma cidade no dia 30 de novembro de 1935, aos 47 anos. Não podemos esquecer. também, da grandeza do Padre Antonio Vieira, aclamado pelo próprio Fernando Pessoa, como “o Imperador da língua Portuguesa”. O Padre Antonio Vieira foi com certeza o maior orador de Portugal e do Brasil de sua época, os seus sermões eram um espetáculo favorito da aristocracia lisboeta, mas com eles conquistou inimigos poderosos por combater a Santa Inquisição e defender os pobres, os oprimidos, as minorias, fossem eles índios, negros ou judeus, e encontrou refúgio no Brasil, notadamente na Bahia, onde faleceu em 18 de julho de 1697. Mas voltemos a Fernando Pessoa. Inês Pedrosa assim se manifesta a respeito dele:  “A minha pátria é a língua portuguesa”, escreveu, profeticamente, Fernando Pessoa. O seu gênio expressou-se também, inúmeras vezes, em língua inglesa – mas aquele que viria a tornarse o mais internacional dos escritores portugueses sabia que cada língua tem a sua cor, a sua luz e a sua música própria, e que a arte da escrita consiste em levar para lá dos limites convencionais os dons expressivos de cada língua. A sua primeira originalidade foi essa: a de se entregar ilimitadamente à sua língua, sem complexos de mando nem de escravo. Por isso escreveu sobre o conhecido e o desconhecido, o alto e o baixo, a estética e o comércio, a política e a astrologia. Criou uma constelação de heterônimos e semi-heterônimos – incluindo uma extraordinária Maria José – que lhe permitiram explorar, visceralmente, as mais diversas possibilidades do ser. E foi, evidentemente, um poeta inultrapassável – o tempo

* Advogado e escritor; Presidente do CIC – Centro Internacional de Cultura; Secretário Geral da CJLP – Comunidade de Juristas de Lingua Portuguesa; membro da UJUCASP – União dos Juristas Católicos de São Paulo e do IDCLB – Instituto de Direito Comparado Luso Brasileiro. E-mail: [email protected]

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paralisa-se diante dos seus textos, sempre inscritos numa verdade futura. Semeador de papéis com um único livro publicado em vida (“Mensagem”), sonhador de impossíveis que jamais se deixou esmagar pela monótona incompreensão do seu tempo, Fernando Pessoa deixou uma obra múltipla e incisiva, que continua a surpreender-nos, a seduzir-nos e, acima de tudo, a desafiar-nos a quebrar as fronteiras do corpo e da alma, da vida e do sonho, da reflexão e dos sentimentos. Uma obra absolutamente universal.  Um poeta com uma cultura e uma inteligência fantástica, conseguia captar e transcrever para as suas obras, aspectos dos mais singelos, sensíveis e importantes da natureza humana, com características de um surrealismo fantástico. Como dizia o critico literário Harold Bloom, a obra de Fernando pessoa é o grande legado da língua portuguesa ao Mundo. Há que se destacar algumas de suas obras, sendo “Mar Português” o poema mais representativo da Conquista portuguesa. Esta sua grande conquista foi enaltecer e dar uma riqueza e um brilho todo especial à minha, à sua, à nossa língua portuguesa:

Mar Português Ó mar salgado, quanto do teu sal
 São lágrimas de Portugal!
 Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
 Quantos filhos em vão rezaram!
 Quantas noivas ficaram por casar
 Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena
se a alma não é pequena.
 Quem quer passar além do Bojador 
 Tem que passar além da dor.
 Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
 Mas nele é que espelhou o céu. (Fernando Pessoa)

  A obra de Fernando Pessoa está essencialmente dispersa por várias revistas e publicações ocasionais.  Um único livro publicado, que foi “Mensagem”, em 1934, foi premiado pelo Secretariado de Propaganda Nacional, na categoria “Poema”.

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 De sua autoria, também, o Orpheu – Revista Trimestral de Literatura – veículo de comunicação publicado em Lisboa, em 1915, teve apenas dois números, O terceiro número foi cancelado devido a dificuldades de financiamento. Apesar disso, a revista exerceu uma notável e duradoura influência: o seu vanguardismo inspirou movimentos literários subsequentes de renovação da literatura portuguesa. Malgrado o impacto negativo que Orpheu causou na crítica do seu tempo, a relevância desta revista literária advém de ter, efetivamente, introduzido em Portugal o movimento modernista, associando nesse projeto importantes nomes das letras e das artes, como Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada-Negreiros ou Santa-Rita Pintor, que ficaram conhecidos como “a geração d’Orpheu”.  

Fernando Pessoa – o ortônimo do Poeta

Seguia, formalmente, os modelos da poesia tradicional portuguesa, em textos de grande suavidade rítmica e musical. Poeta introvertido e meditativo, anti-sentimental, refletia inquietações e estranhezas que questionavam os limites da realidade da sua existência e do mundo. O poema “Mensagem”, exaltação sebastiânica que se cruza com um certo desalento, uma expectativa ansiosa de ressurgimento nacional, revela uma faceta misteriosa e espiritual do poeta, manifestada também nas suas incursões pelas ciências ocultas e pelo rosa-crucianismo.

de;

Características temáticas: – Identidade perdida; – Consciência do absurdo da existência; – Tensão sinceridade/fingimento, consciência/inconsciência, sonho/realida-

– Oposição sentir/pensar, pensamento/vontade, esperança/desilusão; – Anti-sentimentalismo, intelectualização da emoção; – Estados negativos: solidão, cepticismo, tédio, angústia, cansaço, desespero, frustração; – Inquietação metafísica, dor de viver; – Auto-análise.  Características estilísticas: – Musicalidade: aliterações, transportes, ritmo, rimas, tom nasal (que conotam o prolongamento da dor e do sofrimento); – Verso geralmente curto (2 a 7 sílabas métricas); – Predomínio da quadra e da quintilha (utilização de elementos formais tradicionais);

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– Adjetivação expressiva; – Linguagem simples, mas muito expressiva (cheia de significados escondidos); – Pontuação emotiva; – Comparações, metáforas originais, oxímoros (vários paradoxos – pôr lado a lado duas realidades completamente opostas); – Uso de símbolos (por vezes tradicionais, como o rio, a água, o mar, a brisa, a fonte, as rosas, o azul; ou modernos, como o andaime ou o cais); – É fiel à tradição poética lusitana e não longe, muitas vezes, da quadra popular; – Utilização de vários tempos verbais, cada um com o seu significado expressivo, consoante a situação.   É do Cancioneiro um dos poemas mais célebres de Pessoa, “Autopsicografia”, em que reflete sobre o fazer poético: O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que leem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração. (Fernando Pessoa)

Os heterônimos do Poeta São concebidos como individualidades distintas da do autor, este criou-lhes uma biografia e até um horóscopo próprios. Encontram-se ligados a alguns dos problemas centrais da sua obra: a unidade ou a pluralidade do eu, a sinceridade, a noção de realidade e a estranheza da existência. Traduzem a consciência da fragmentação do eu, reduzindo o eu “real” de Pessoa a um papel que não é maior que o de qualquer um dos seus heterônimos na existência literária do

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poeta. São a mentalização de certas emoções e perspectivas, a sua representação irnica. De entre os vários heterónimos de Pessoa destacam-se: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. 1) Alberto Caeiro (1885-1915) Caeiro era, segundo ele próprio, “o único poeta da natureza”, procurando viver a exterioridade das sensações e recusando a metafísica, isto é, recusando saber como eram as coisas na realidade, conhecendo-as apenas pelas sensações, pelo que pareciam ser. Era assim caracterizado pelo seu panteísmo, ou seja, adoração pela natureza e sensacionismo. Era mestre de Ricardo Reis e Álvaro de Campos, tendo-lhes ensinado esta “filosofia do não filosofar, a aprendizagem do desaprender”.  É “o Mestre”, inclusive do próprio Pessoa ortônimo. Nasceu em Lisboa e aí morreu, tuberculoso, embora a maior parte da sua vida tenha decorrido numa quinta no Ribatejo, onde foram escritos quase todos os seus poemas, sendo os do último período da sua vida escritos em Lisboa, quando se encontrava já gravemente doente. Não desempenhava qualquer profissão e era pouco instruído (teria apenas a instrução primária) e, por isso, “escrevendo mal o português”. Era órfão desde muito cedo e vivia de pequenos rendimentos, com uma tia-avó. Características temáticas: – Sensacionismo; – Antimetafísico (recusa do conhecimento das coisas); – Panteísmo naturalista (adoração pela natureza); – Objectivismo. Características estilísticas: – Despreocupação a nível fônico; – Pobreza lexical (linguagem simples, familiar); – Adjetivação objetiva; – Pontuação lógica; – Predomínio do presente do indicativo; – Predomínio da coordenação; – Comparações simples e raras metáforas; – Verso livre, métrica irregular; – Frases simples.

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O Guardador de Rebanhos Sou um guardador de rebanhos. O rebanho é os meus pensamentos E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca. Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido. Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto, E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes, Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz. (Alberto Caeiro)

2) Ricardo Reis (1887-) Apesar de ser formado em Medicina, não exercia a profissão. Dotado de convicções monárquicas, emigrou para o Brasil após a implantação da República. Caracterizava-se por ser um pagão intelectual lúcido e consciente (concebia os deuses como um ideal humano), reflectia uma moral estoico-epicurista, ou seja, limitava-se a viver o momento presente, evitando o sofrimento (“Carpe diem”) e aceitando o caráter efêmero da vida. Nasceu no Porto, em 1887. Foi educado num colégio de Jesuítas, tendo recebido, por isso, uma educação clássica (latina). Estudou (por vontade própria) o helenismo, isto é, o conjunto das ideias e costumes da Grécia antiga (sendo Horácio o seu modelo literário). A referida formação clássica reflete-se, quer a nível formal, quer a nível dos temas por ele tratados e da própria linguagem utilizada, com um purismo que Pessoa considerava exagerado. Características temáticas: – Horacionismo – seguidor literário de Horácio; – Epicurismo – procura do viver, do prazer; – Paganismo – crença em vários deuses; – Neoclacissismo – devido à educação clássica e aos estudos sobre Roma e Grécia antigas; 

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– Estoicismo – crença de que o Homem é insensível a todos os males físicos e morais. Características estilísticas: – Forma métrica: ode; – Estrofes regulares em verso decassílabo alternadas ou não com hexassílabo; – Predomínio da subordinação; – Uso frequente do hipérbato; – Uso frequente do gerúndio e do imperativo; – Uso de latinismos (atro, ínfero, insciente); – Metáforas, eufemismos, comparações; – Estilo construído com muito rigor e muito denso; – Submissão da expressão ao conteúdo: a uma ideia perfeita corresponde uma expressão perfeita; – Verso branco; – Recurso frequente à assonância, à rima interior e à aliteração.

Tenho Mais Almas que Uma Vivem em nós inúmeros; Se penso ou sinto, ignoro Quem é que pensa ou sente. Sou somente o lugar Onde se sente ou pensa. Tenho mais almas que uma. Há mais eus do que eu mesmo. Existo todavia Indiferente a todos. Faço-os calar: eu falo. Os impulsos cruzados Do que sinto ou não sinto Disputam em quem sou. Ignoro-os. Nada ditam A quem me sei: eu ‘screvo. (Ricardo Reis, in “Odes”)

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3) Álvaro de Campos (1890-) Protótipo da defesa do modernismo, era um cultivador da energia bruta e da velocidade, da vertigem agressiva do progresso, de que a “Ode Triunfal” é um dos melhores exemplos, evoluindo depois no sentido de um tédio, de um desencanto e de um cansaço da vida, progressivos e auto-irônicos. Representa a parte mais audaciosa a que Pessoa se permitiu, através das experiências mais “barulhentas” do futurismo português, inclusive com algumas investidas no campo da ação político-social. Nasceu em Tavira em 1890. Era um homem viajado. Depois de uma educação vulgar de liceu formou-se em Engenharia Mecânica e Naval na Escócia e, numas férias, fez uma viagem ao Oriente (de que resultou o poema “Opiário”). Viveu depois em Lisboa, sem exercer a sua profissão. Dedicou-se à literatura, intervindo em polêmicas literárias e políticas. É da sua autoria o “Ultimatum”, manifesto contra os literatos instalados da época. Apesar dos pontos de contato entre ambos, travou com Pessoa ortônimo uma polêmica aberta. Características temáticas: – Futurismo – corte com o passado, exprimindo em arte o dinamismo da vida moderna; o vocabulário onomatopaico pretende exaltar a modernidade; – Pessimismo – última fase, vencidismo; – Decadentismo – cansaço, tédio, busca de novas sensações; – Sensacionismo – corrente literária que considera a sensação como base de toda a arte. Características estilísticas: – Assonâncias, onomatopeias (por vezes ousadas), aliterações (por vezes ousadas); – Grafismos expressivos; – Mistura de níveis de língua; – Enumerações excessivas, exclamações, interjeições, pontuação emotiva; – Estrangeirismos, neologismos; – Subordinação de fonemas; – Construções nominais, infinitivas e gerundivas; – Metáforas ousadas, oxímeros, personificações, hipérboles; – Estática não aristotélica na fase futurista. – Verso livre, em geral, muito longo; – Desvios sintáticos.

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Ode Triunfal À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica Tenho febre e escrevo. Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos. Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno! Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria! Em fúria fora e dentro de mim, Por todos os meus nervos dissecados fora, Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto! Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos, De vos ouvir demasiadamente de perto, E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso De expressão de todas as minhas sensações, Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas! (Álvaro de Campos)

Fernando Pessoa, o Poeta Um símbolo da língua portuguesa, reconhecido em todo o Mundo! A sua influencia se constata na música, na moda, nas artes, enfim na Cultura em geral.

 

Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. (Fernando Pessoa)

Fontes: In Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal, ed. Richard Zenith, Assírio & Alvim, 2003, p. 203-206. http://www.revistabula.com/522-os-10-melhores-poemas-de-fernando-pessoa-2/ http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=2246 https://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

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II – Artigos

A fundação e os primeiros tempos de São Paulo numa carta de São José de Anchieta a Santo Inácio de Loyola The Foundation and the Early Days of São Paulo As Described in a Letter from Saint Joseph of Anchieta to Saint Ignatius of Loyola

Damásio E. de Jesus

(sócio titular do IHGSP)

Resumo: Transcrição e comentário pormenorizado da carta em que São José de Anchieta comunicou a Santo Inácio de Loyola a fundação da missão jesuítica de São Paulo de Piratininga*.

Abstract: Transcript and detailed comment of the letter where Saint Joseph of Anchieta informed Saint Ignatius of Loyola of the Jesuit mission foundation of São Paulo de Piratininga.

Palavras-chave: José de Anchieta; Inácio de Loyola; Companhia de Jesus; fundação de São Paulo.

Keywords: Joseph of Anchieta; Ignatius of Loyola; Company of Jesus; São Paulo foundation

No século XIX, quando, por influência do positivismo então dominante, pretendeu-se estabelecer uma criteriologia unificada para todas as ciências, intentou-se também fixar regras fundamentais para que se pudesse escrever uma “história verdadeira”. É dessa época que nos chegou o axioma básico do historicismo positivo: “Pas de documents, pas d’histoire”. Entendia-se que somente * Comunicação apresentada no Simpósio São José de Anchieta, Apóstolo do Brasil e Artífice da Nacionalidade, realizado no Rio de Janeiro, no dia 18 de março de 2015, pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e pela Academia Fides et Ratio. Texto também incluído em ATAS do Simpósio São José de Anchieta, Apóstolo do Brasil e Artífice da Nacionalidade. Rio de Janeiro: IHGB/AFR, 2016.

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documentos escritos, mormente aqueles de cunho oficial, podiam oferecer garantias seguras de autenticidade e veracidade para que, baseados neles e somente neles, os historiadores “científicos” da “escola metódica” pudessem chegar à verdade histórica, ou seja, à narração objetiva, verossímil e comprovada dos acontecimentos passados. Já no século XX, em consequência da renovação historiográfica desencadeada a partir da famosa École des Annales, com a fundação, em 1929, por Marc Bloch e Lucien Fèbvre, professores da Universidade de Strasbourg, da revista “Annales d’histoire économique et sociale” (mais conhecida como “Revue des Annales”), ampliaram-se consideravelmente os horizontes. Foi colocada em tela de juízo a possibilidade de se atingir uma verdade absoluta, em termos historiográficos. Questionou-se também a suposição de que documentos oficiais são a expressão lídima da objetividade e exprimem sem rebuços a veracidade dos fatos. Afinal, quem poderia ter um retrato objetivo de nosso país atual se limitasse suas fontes informativas à leitura cotidiana dos “Diários oficiais” e à audição, igualmente diuturna, da já octogenária “Voz do Brasil”? Os documentos oficiais geralmente exprimem a versão burocrático-institucional dos fatos, na ótica dos indivíduos e dos grupos que se sucedem no exercício do poder. Também o conceito de documento histórico foi muito ampliado. A Historiografia contemporânea entende como documentos não somente aqueles escritos e preservados nos arquivos e bibliotecas, mas também tudo quanto nos ficou do passado e que pode servir para o conhecimento e interpretação dos tempos que já se foram. Assim, o patrimônio cultural material e imaterial que nos restou dos antigos tempos – monumentos, edificações, ruínas, restos mortuários, resíduos de lixo, desenhos rupestres, tradições orais, costumes, expressões artísticas, práticas culinárias etc. – pode fornecer documentos para a compreensão do passado. Tudo isso é bem aceito, atualmente, entre os historiadores. Mas, apesar de tudo, ainda é muito grande o prestígio e a força que tem, entre eles, um documento escrito, quando de origem e autenticidade garantidas. Poucas cidades sabem com certeza quando e como nasceram. Roma e Lisboa, por exemplo, têm origens nebulosas, mescladas com elementos mitológicos e legendários: a Cidade Eterna teria sido fundada pelos irmãos gêmeos Rômulo e Remo, filhos do deus Marte e de Reia Silvia, a qual descenderia da deusa Vênus e do herói Eneias, e este teria escapado da destruição de Troia levando consigo seu velho pai, Anquises, e seu filho Ascânio; por sua vez, Lisboa ou Ulyssipo, a cidade das sete colinas, teria sido fundada por Ulisses, outro sobrevivente da Guerra de Troia, que depois de terminado o conflito vagou durante dez anos pelos mares, antes de conseguir retornar para o seu pequeno e ansiado reino de Ítaca, onde o esperavam os braços da fidelíssima esposa Penélope. Paris e Londres têm origem muito antiga, mas impossível de fixar com certe-

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za. Provavelmente provêm de aglomerados de casas formados em tempos muito remotos, em função de comodidades estratégicas relacionadas com o abastecimento ou a defesa. Há cidades europeias cujo subsolo, quando aprofundado, revela ruínas e vestígios de agrupamentos urbanos ou pré-urbanos antiquíssimos, alguns remontando até à Idade dos Metais. Nos países fundados nas Américas, na África ou no Oriente em decorrência da expansão europeia do ciclo das grandes navegações, é menos difícil encontrar cidades com fundações historicamente bem comprovadas. Mas, mesmo entre estas, pouquíssimas podem fazê-lo por meio de um documento escrito, formal, daqueles que até os mais rígidos historiadores da escola metódica e positiva admitiriam como válidos para que a História, enquanto ciência, pudesse ser feita. São Paulo, a capital do Estado homônimo, é das raras cidades do planeta Terra que podem se orgulhar de possuir um documento escrito, uma verdadeira “certidão de nascimento” a atestar seu aparecimento na História. E, fato único, tem essa certidão na forma de uma carta escrita por um santo a outro santo. Refiro-me à famosa “Carta do Quadrimestre de maio a setembro de 1554”, escrita por São José de Anchieta (1534-1597) a Santo Inácio de Loyola (14911556), fundador e Padre-Geral da Companhia de Jesus. Pretendo limitar a presente comunicação à análise textual desse documento que constitui fonte primária única sobre a fundação e os primeiros tempos da urbe paulopolitana. Concentrar-me-ei propositadamente na crítica interna desse documento, abstraindo de considerações e comentários que sobre ele fizeram outros autores mais recentes, de diversas escolas e linhas de pensamento. Isso porque não me quero deixar influenciar por estes, mas prefiro convidar os leitores a me acompanharem nesse retorno às fontes, para juntos podermos saborear todo o frescor e toda a imensa riqueza do Brasil nascente, expressos de modo ao mesmo tempo singelo e magnífico na prosa anchietana. Antes de iniciar a análise, gostaria de frisar que, na Companhia de Jesus, foi corrente desde o início, o hábito de registrar suas acta e seus feitos em minuciosos relatórios periódicos elaborados em forma de cartas. Essa prática tinha, em primeiro lugar, evidente interesse prático, com vistas à administração interna da Companhia: era o instrumento de trabalho mais adequado para controle e encaminhamento dos assuntos em trâmite. Mas tinha, também, interesse histórico, com vistas a preservar a memória da Companhia para o futuro. Na realidade, desde os seus primórdios, os membros da Companhia de Jesus tinham bem clara a noção de que não eram apenas mais uma, dentre as numerosas famílias religiosas existentes na Igreja Católica, mas uma ordem muito especial, destinada a desempenhar um papel histórico de grande importância. E, para tal, era indispensável preservar, desde o início, a documentação. Essa característica da Companhia chamou a atenção de Eduardo Prado, que durante anos vasculhou

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sistematicamente a documentação da Companhia, em busca de informações para dois estudos que estava fazendo, sobre os Padres Antônio Vieira e Manoel de Morais. “A Companhia de Jesus foi sempre um modelo admirável de administração e uma boa administração tem como primeiro dever o de conservar a sua história” – dizia ele.* Convém, ainda, ter bem presente quem eram o autor e o destinatário dessa carta – os dois personagens que de certa forma a balizam. Ambos eram, como disse, religiosos da Companhia de Jesus. Loyola era, a essa altura, sacerdote, residia em Roma e ali exercia, junto ao Papa e ao governo central da Igreja Católica, uma influência enorme. Gozava de um prestígio imenso. Tão grande era a influência de Loyola e seus sucessores na Igreja Católica que, a partir de século XVII, os superiores gerais da Companhia eram apelidados de “Papas Negros”, em oposição aos “Papas Brancos”. O negro e o branco, no caso, eram a cor do hábito que ambos usavam, o jesuíta com sua roupeta escura, o Papa com suas vestes alvas. Loyola estava, pois, colocado no ápice da hierarquia da Ordem e num dos postos mais influentes de toda a Igreja. Contava já 63 anos de idade e faleceria dois anos depois, em 1566. Já Anchieta era um simples noviço da Companhia, de 20 anos de idade. Somente 11 anos depois seria ordenado sacerdote. A Companhia não tem pressa em ordenar seus membros. O noviciado e os períodos probatórios são, entre os jesuítas, bem mais prolongados do que em outras ordens e congregações. Em 1554, Anchieta era, pois, um jovem iniciante nas lides missionárias que escrevia ao venerado e respeitado superior geral de sua ordem. Para fazer uma comparação inspirada na estrutura de comando de um exército atual (já que a Companhia de Jesus, por desejo explícito de seu fundador, que fora anteriormente militar, se inspirava na organização e na dinâmica de um exército regular), seria como se um cadete de uma academia militar escrevesse um relatório para o general e supremo comandante militar de seu país. Ambos, Loyola e Anchieta, eram bascos de origem. Loyola pertencia à antiga nobreza das Vascongadas, aquela região do Norte da Espanha limítrofe com a França, tão característica e, até hoje, tão problemática. Anchieta nascera em Tenerife, no Arquipélago das Canárias, para onde fora transferido seu pai, Juan de Anchieta, que era um fidalgo basco da mesma região dos Loyola e até aparentado com eles. Curiosamente, ao que tudo leva a crer, a transferência de Juan de Anchieta para Tenerife se deveu a conflitos internos na nobreza biscainha, ocorridos em princípios do século XVI, mas que já provinham de velhos desen-

* Frase textual, reportada entre aspas por Cândido Motta Filho em A vida de Eduardo Prado, p. 103.

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tendimentos originados na primeira metade do século XV. Nesses conflitos se opuseram Loyolas e Anchietas, que de amigos e parentes se transformaram em antagonistas e adversários. Essa teria sido, segundo registram os historiadores Afrânio Coutinho* e Pe. Hélio Abranches Viotti,** a razão pela qual se transferiu para as Canárias o pai de São José de Anchieta. Anchieta, ao que parece, valorizava muito sua origem basca, pois anos depois, em 1584, quando escreveu do próprio punho uma Informação do Brasil e de suas Capitanias, ao relacionar os sucessivos provinciais da Companhia de Jesus, logo depois de citar o 5º. provincial, que “foi o Padre Inácio Tolosa, Espanhol”, continuou, referindo-se a si próprio: “O sexto Provincial (foi) o Padre José de Anchieta, Biscainho. (n)o ano de 1577 e ainda tem o cargo neste (ano) presente de 1584”. No parágrafo seguinte, refere-se ao “Padre Quirício Caixa, Castelhano”. É curioso que não se tenha designado como espanhol nem como canarino, mas como basco.*** De qualquer forma, a carta de Anchieta a Loyola ignora completamente o parentesco e o antagonismo de suas famílias; entre santos religiosos, os interesses são puramente espirituais e apostólicos. Nada mais conta, nada mais importa. A carta foi escrita em latim, idioma quase sempre usado por Anchieta nas missivas a seus superiores da Companhia de Jesus. Uma primeira tradução dessa carta foi feita por Teixeira de Melo e publicada nos “Anais da Biblioteca Nacional” em 1887.**** Preferi utilizar uma tradução mais recente, feita pelo Pe. Serafim Leite e reproduzida pelo Pe. Hélio Abranches Viotti em Cartas – Correspondência Ativa e Passiva, por me parecer muito mais precisa a ajustada na utilização da linguagem religiosa e teológica. Utilizei apenas complementarmente a primeira tradução, para esclarecimento de um que outro ponto menos claro, mas louvei-me nas informações contidas nas eruditas notas apostas por Afrânio Coutinho. Vamos, pois, à carta, da qual omitirei, por amor à brevidade, os trechos que dizem respeito a outras partes do Brasil, por se limitar ao caso paulista o escopo do presente estudo. Tomarei também a liberdade de entremear alguns comentários e/ou esclarecimentos de utilidade para o leitor de nossos dias, não familiarizado com a linguagem e os costumes do tempo. * Introdução a Cartas – Informações, Fragmentos Históricos e Sermões de José de Anchieta, pp. 31-32. ** Anchieta, o apóstolo do Brasil, pp. 25-27. *** Cartas – Informações, Fragmentos Históricos e Sermões de José de Anchieta, p. 335. **** Essa é a tradução incorporada por Afrânio Coutinho a Cartas – Informações, Fragmentos Históricos e Sermões de José de Anchieta.

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Carta do quadrimestre de maio a setembro de 1554, dirigida por Anchieta a Santo Inácio de Loyola, em Roma. São Paulo do Piratininga, (1º de setembro de) 1554. Jesus Maria A paz de Nosso Senhor Jesus Cristo seja sempre em nossos corações. Amém. Julgo que na outra carta ficou explicado suficientemente o que se passa nestes lugares e sobretudo nesta nova povoação de cristãos. Mas, julgando que é pouco conhecido de V. R. Paternidade como vai cada uma das coisas que se fazem aqui onde estamos, e levados também pela carta de V. R. Paternidade, há pouco recebida, procuraremos informá-lo de tudo aquilo que escreve ser-lhe necessário conhecer, ainda que há de ter melhor e mais clara notícia pelo P. Leonardo (Nunes), que partiu de cá para aí há poucos dias. Comentário – Após a fórmula piedosa de início, Anchieta entra diretamente e sem mais preâmbulos no tema, referindo-se na primeira linha a uma carta anterior, correspondente ao primeiro quadrimestre do ano, carta essa que, infelizmente, perdeu-se e não foi conservada, apesar do costume que tinham os jesuítas de expedir duas ou três cópias da mesma missiva, por embarcações diferentes, para diminuir o risco de extravio. Era, com efeito, muito elevado o número de navios que se perdiam no mar, por naufrágios ou em decorrência de ataques de corsários inimigos. Os riscos eram muito grandes. Algumas estimativas feitas com base em crônicas e relatos da época apontam que, de cada 10 portugueses que embarcavam para a Índia, somente cinco conseguiam retornar com vida à terra natal. As viagens por mar eram por vezes muito lucrativas, mas embutiam um fator de risco muito elevado. Eu às vezes me pergunto qual o aventureiro de nossos dias que estaria disposto a fazer uma viagem arriscada na esperança de grandes lucros, sabendo que as possibilidades de retorno com vida eram de apenas 50%. Vivemos nessa Índia Brasílica dispersos em quatro partes, sob a obediência do Reverendo em Cristo P. Manoel da Nóbrega. Na Bahia de Todos os Santos, que também se chama Cidade do Salvador, onde reside o Governador com os nobres, está o P. Luis da Grã com o Ir. João Gonçalves e o P. Antônio Pires, que lá chegou há pouco vindo de Pernambuco, distante daquela Cidade 300 milhas. Ocupam-se em pregações e o Irmão a ensinar os meninos. Outro Irmão nosso, de nome Domingos Pecorella, intérprete dos índios, admitido aqui na Companhia, passou há pouco ao Senhor.

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Comentário – Anchieta é bastante sumário nas referências à Bahia, limitando-se a falar genericamente das pregações e ensino aos meninos, e a noticiar a morte do Ir. Domingos Pecorella. Presumivelmente supôs que o Padre-Geral já tinha recebido, da Bahia, informações pormenorizadas. A seguir, estende-se um pouco mais sobre a segunda das capitanias, a de Porto Seguro, mas também não se detém em pormenores, e passa a falar da terceira, a do Espírito Santo, sobre a qual é menos parco em informações, estendendo-se por alguns parágrafos nos quais fala das atividades dos missionários e dos progressos obtidos na evangelização dos nativos, assim como entre os povoadores portugueses. Vem, a seguir, o que nos interessa, no âmbito do presente estudo: Falta só a quarta Capitania de Portugueses, separada 720 milhas da Cidade do Salvador. Está dividida em seis vilas, numa das quais, chamada São Vicente, moraram até agora os irmãos da nossa Companhia: o Reverendo em Cristo P. Manoel da Nóbrega, o P. Manuel de Paiva, o P. Francisco Pires, o P. Vicente Rodrigues, o P. Afonso Brás, e o P. Leonardo (Nunes), que partiu este ano para Portugal a fim de poder lá haver conhecimento mais exato e mais certo das coisas que se fazem cá; e também o Ir. Diogo Jácome, Gregório Serrão e eu, todos mandados de Portugal. Comentário – Em primeiro lugar, note-se que Salvador já não é mais vila, é cidade. Na tradição lusa, a diferença entre vilas e cidades era puramente honorífica. Tanto as vilas quanto as cidades eram municipalidades autônomas e autogeridas pelas respectivas Câmaras municipais, numa espécie de democracia local que foi estudada pelo Prof. Waldemar Martins Ferreira.* Não havia nenhum privilégio jurídico ou institucional que diferenciasse vilas de cidades. Apenas era concedida honorificamente a designação de cidade às municipalidades que fossem sedes de bispados ou arcebispados. Salvador era, desde 1551, a sede do Bispado do Brasil. Desde então, Salvador passou a receber a designação de cidade. As vilas (ou povoações) que então existiam na Capitania eram: São Vicente, Santos, Bertioga, Nossa Senhora da Conceição de Itanhaém, Santo André da Borda do Campo e a recém-nascida São Paulo de Piratininga. Note-se, também, o extremo respeito com que Anchieta se refere a seu superior, o Pe. Manoel da Nóbrega. É o único ao qual, pela segunda vez na carta, designa como “Reverendo em Cristo”, distinguindo-o assim de todos os demais sacerdotes. Por fim, é ainda de notar a delicadeza e humildade com que se coloca no fim de todos, como o último. * História do Direito Brasileiro, tomo I; ver também As repúblicas municipais do Brasil(1532-1820), de Manoel Gomes Ferreira Filho.

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Cá foram admitidos na Companhia Pero Correia, dos nobres deste reino, muito conhecedor da língua dos índios, que trouxe o maior auxílio à conversão dos infiéis com a grandíssima autoridade que tem junto deles e com o conhecimento exatíssimo da língua; Antônio Rodrigues e Manoel de Chaves, Fabiano (de Lucena) e Antônio (Gonçalves) – todos intérpretes dos índios –; Mateus Nogueira, João de Sousa, Gonçalo (de Oliveira), Antonio (de Atouguia). Todos estes, como disse acima, residiam em São Vicente entre os portugueses, onde tinham juntado muitos filhos dos índios de diversas partes e os instruíam muito bem nos rudimentos da fé cristã, nas primeiras letras e na escrita. Comentário – A largueza de horizontes e a visão muito além do seu tempo, demonstradas pelos primeiros jesuítas, impressionam profundamente a quem estuda desapaixonadamente sua atividade missionária e educativa nos primórdios da nação brasileira. Considere-se que na Europa do século XVI, o índice de analfabetismo superava muito a faixa dos 50%, se tomada a população como um todo, sendo a maior parte das pessoas iletradas. Nessa mesma época, entretanto, os missionários da Companhia de Jesus não se limitavam a fazer, entre os índios, um ensinamento oral, mas já se preocupavam em ensinar os curumins a ler e escrever! Como meio de promoção humana, isso é mais do que surpreendente. Os jesuítas foram, na realidade, os precursores da instituição do ensino público, universal e gratuito no Brasil. Nóbrega, que foi sem dúvida um genial estrategista político e possuía uma visão de verdadeiro estadista, também quis instituir no Brasil escolas femininas,* chegando a solicitar licença para isso à Regente D. Catarina, que governava em nome de seu neto D. Sebastião, mas não obteve despacho favorável ao seu pedido. Para sustento destes meninos, a farinha de pau era trazida do interior, da distância de 30 milhas. Como era muito trabalhoso e difícil por causa da grande aspereza do caminho, ao nosso Padre (Nóbrega) pareceu melhor no Senhor mudarmo-nos para esta povoação de índios, que se chama Piratininga. Isto por muitas razões: primeiro, por causa dos mantimentos; depois, porque se fazia nos portugueses menos fruto do que se devia, ainda que logo ao princípio o trato do padre lhes trouxe a maior vantagem, como será fácil entender do P. Leonardo, que foi o primeiro da Companhia a vir * “Não teria por desacertado adquirir-se para casa de meninas dos gentios, de que tivessem cargo mulheres virtuosas, com as quais depois casassem estes moços que doutrinássemos” – escreveu Nóbrega ao Pe. Diego Lainez, 2º. Padre-Geral da Companhia de Jesus em 12/6/1561 (Novas Cartas Jesuíticas, p. 112).

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para aqui; e especialmente porque se abriu por aqui a entrada para inúmeras nações, sujeitas ao jugo da razão. Comentário – neste trecho, Anchieta alude aos motivos que levaram “nosso Padre” – ou seja, Manoel da Nóbrega – a decidir a transferência dos jesuítas para o altiplano, no local em que hoje se situa o Pátio do Colégio. Em primeiro lugar, refere que a farinha de pau vinha de muito longe, do interior, a cerca de 30 milhas (perto de 50 km) de São Vicente. Provavelmente vinha da região de Santo André da Borda do Campo, onde João Ramalho e os seus numerosos descendentes já estavam constituídos em vila. Fala, em seguida, do fato de não estar sendo tão frutífera quanto se esperava a missão junto aos portugueses de São Vicente (“porque se fazia nos portugueses menos fruto do que se devia”). Mas a mais importante das razões é que a fundação de Piratininga abria “a entrada para inúmeras nações, sujeitas ao jugo da razão”. Que inúmeras nações são essas, “sujeitas ao jugo da razão”? As cartas de Anchieta revelam constante preocupação com as tribos indígenas que não se haviam deixado decair até ao canibalismo, à poligamia, à bebedeira e outras formas de desvio do “jugo da razão”, mas obedeciam à lei natural, ao Direito Natural “impresso pelo próprio dedo do Criador nas tábuas do coração humano, e que a sã razão humana não obscurecida por pecados e paixões é capaz de descobrir”.* Encontrar essas tribos e levar até elas o Evangelho parece ter sido constante preocupação dos inacianos no Brasil. Foi a esperança de se facilitar o acesso a elas que constituiu a principal razão para a fundação de São Paulo. Por isso, alguns dos irmãos mandados para esta aldeia no ano do Senhor de 1554, chegamos a ela a 25 de janeiro e celebramos a primeira missa numa casa pobrezinha e muito pequena no dia da conversão de S. Paulo, e por isso dedicamos ao mesmo nome esta Casa. De tudo isto escrevi por miúdo na carta precedente que abrangeu até o mês de junho. Falta continuar brevemente o que depois se passou. * O texto entre aspas é tirado de um documento histórico de grande importância histórica, se bem que não muito conhecido. Trata-se da encíclica Mit brennender Sorge, de 14-3-1937, com a qual o Papa Pio XI condenou as graves ofensas ao Direito Natural perpetradas pelo regime nazista que então dominava a Alemanha. A noção de uma Lei Natural e de um Direito decorrente dessa Lei não é, na realidade, uma inovação inteiramente original do cristianismo. Já em Platão, em Aristóteles e, sobretudo, em Cícero, se encontram as origens dessa concepção, que foi aceita pelo Cristianismo e incorporada ao ensinamento da Igreja Católica (cfr. Catecismo da Igreja Católica, tópicos 1954 a 1960). Em aula magna que tive ocasião de proferir na Universidade de Estudos de Salerno, em 2004, quando ali recebi o título de Doutor honoris causa, estendi-me largamente sobre o Direito Natural e sobre o jusnaturalismo, corrente jurídica que teve e ainda tem grande influência.

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Comentário – Mais uma vez Anchieta alude à carta precedente, perdida talvez no fundo do oceano, talvez desaparecida em algum arquivo... Que teria ele escrito “por miúdo” nessa carta preciosa? Residimos aqui ao presente oito da Companhia, aplicando-nos a doutrinar estas almas e pedindo à misericórdia de Deus Nosso Senhor que finalmente nos conceda acesso a outras mais gerações, para serem subjugadas pela sua palavra. Julgamos que todas elas se hão de converter muito facilmente à fé, se lha pregarem. Comentário – “Para serem subjugadas pela sua palavra”: aqui Anchieta faz clara referência às palavras de Jesus Cristo “o meu jugo é suave, o meu peso é leve” (Mt, 11,30). Estes, entre os quais vivemos, entregam-nos de boa vontade os filhos para serem ensinados, os quais depois, sucedendo a seus pais poderão constituir um povo agradável a Cristo. Na Escola, muito bem ensinados pelo mestre Antônio Rodrigues, encontram-se 15 já batizados e outros, em maior número, ainda catecúmenos. Os quais, depois de rezarem de manhã ladainhas em coro na Igreja, a seguir à lição, e de cantarem à tarde a Salve Rainha, são mandados para suas casas; e todas as sextas-feiras fazem procissões com grande devoção, disciplinando-se até o sangue. Comentário – “Disciplinando-se até o sangue”: na nossa cultura atual, essa auto-mortificação é algo que choca profundamente. Não devemos, entretanto, ignorar que no século XVI ainda se aceitavam e praticavam métodos de fortificação da vontade remotamente provenientes do antigo estoicismo. “Disciplinar-se” (ou seja, chicotear-se a si mesmo, nas costas) e “usar de disciplinas” (ou seja, mortificar a carne atando nos braços, nas pernas ou na cintura laços de metal com pontas que feriam a pele e causavam dor) eram procedimentos comuns, adotados como normais. Muita gente os praticava até mesmo sem motivação religiosa, mas apenas para fortificar a própria vontade. Em Portugal, no Brasil e em toda a Europa esses instrumentos eram muito comuns naquele tempo e costumavam ser vendidos nos mesmos estabelecimentos comerciais que vendiam martelos, serrotes, pás, picaretas, ferramentas em geral... Como mudaram os tempos! Nesta aldeia foram admitidos para o catecismo 130 e para o batismo 36, de toda idade e de ambos os sexos. Ensina-se-lhes todos os dias duas vezes a doutrina cristã, e aprendem as orações em

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Português e na língua própria deles. A frequência e concurso das mulheres é maior. Todos os domingos se lhes celebra missa; mas muitos dos catecúmenos levam a mal serem mandados embora depois do Ofertório e pedem-nos assiduamente que admitamos ao batismo. Se o não fazemos é por precaução, para que não voltem ao vômito dos antigos costumes, pois pensamos que o batismo não lhes deve ser concedido senão depois de longa prova. Comentário – Note-se, inicialmente, que o ensino do catecismo era ministrado a ambos os sexos, sendo maior “a frequência e o concurso das mulheres”. “Serem mandados embora depois do Ofertório”: no século XVI ainda se praticava o antigo costume, que vinha dos tempos da Igreja primitiva das catacumbas, de somente poderem assistir à Consagração e ao rito da Comunhão os batizados. Os catecúmenos somente eram autorizados a assistir à Missa até o final do Ofertório. A expressão “para que não voltem ao vômito” remete a um trecho da Segunda Epístola de São Pedro (2,22), que utiliza essa expressão enérgica para designar os cristãos que abandonam a fé e retornam aos costumes e práticas do paganismo. Vendo o Senhor que se aproximavam agora do verdadeiro estado e prática da fé, começou a privar muitos desta vida, para os levar para a eterna, segundo cremos. Cuidou-se com a maior diligência e zelo que morressem muitos firmes na fé. Entre estes também alguns inocentes passaram ao Senhor, depois de recebido o batismo. Comentário – De acordo com o ensinamento e a crença da Igreja Católica, os “inocentes” (ou seja, as crianças pequenas que ainda não atingiram o uso da razão) que morrem batizados são premiados com a vida eterna no Paraíso não por merecimento próprio, mas em virtude dos méritos infinitos alcançados pelo próprio Jesus Cristo com sua Paixão. Um dos principais que, deixando a pátria, distante daqui mais de 300 milhas, viera a ter conosco, acompanhado do Ir. Pero Correia, a fim de receber os preceitos da lei divina e a doutrina da fé cristã, tendo ido um dia à povoação dos portugueses afastada de nós 9 milhas, e sendo convidado por um cristão a beber, respondeu que determinara deixar os antigos costumes e que isso lhe estava proibido por nós. Insistiu o outro: não tenhas medo, que eles não virão a saber. Vencido afinal por longa importunação, consentiu e

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deu-se à bebida. Por causa dela, caiu em gravíssima doença, a que se seguiu a morte. Faleceu, porém, confessado e contrito, depois de recebido o batismo. Este costumava repetir-nos a cada passo que muitas vezes era chamado do céu e incitado a vir ter conosco por um filho seu inocente, falecido depois do batismo, e que não duvidava ter sido trazido aqui pelo filho. Outro, que fora há muito feito cristão pelos portugueses, que habitaram outrora nesta vila, mas se apartara de nós para poder seguir com mais liberdade os costumes gentílicos, viu-se atingido de grave doença e (manifesto juízo de Deus!) não pôde aproveitarse do auxílio dos irmãos. Pois, quando chegamos, já tinha perdido o uso da fala; e vindo a morrer, para terror dos outros, privamo-lo de sepultura eclesiástica, e se sepultou como gentio quem como gentio vivera. Nem parece menos digno de admiração outro caso. Tendo o nosso Padre (Nóbrega) decidido que levássemos à sua terra alguns índios, que chamam carijós, para que ajudassem os restantes a converter-se à fé de Cristo, atacou-os doença súbita de que morreram quase todos. Ora soubemos depois que eles não estavam bem dispostos conosco e tinham assentado apartar-se de nós, quando estivessem na própria terra, ou fazer-nos outro mal maior. Mas, sem ajuda deles, se alguma vez formos àquela nação ou a outras muitas, vizinhas desta, esperamos colher maior fruto. Comentário – Os carijós, índios que habitavam o Litoral do Brasil, desde o extremo sul do Estado de São Paulo até o atual Rio Grande do Sul, eram aparentados com os guaranis, do Paraguai. Eram mais abertos à evangelização e, ao que parece, tinham índole pacífica e não estavam habituados ao canibalismo, à poligamia e ao vício da embriaguez. São frequentes, nas cartas jesuíticas dos primeiros tempos, tanto luso-brasileiras quanto hispano-paraguaias, as referências simpáticas e favoráveis aos carijós. Ao escrever esta carta, Anchieta ainda não os conhecia bem, e não parece ter tido boa impressão, a julgar pelo procedimento furtivo e pouco leal que esses primeiros carijós teriam demonstrado, pelo que vieram, no seu entendimento, a morrer. Mais tarde, Anchieta tomaria mais contato com os carijós e viria a amá-los de modo especial, tomando-os sob sua proteção e até ameaçando severamente os portugueses que, atraídos pela natural docilidade dos índios daquela tribo, queriam escravizá-los.* Estes, com quem vivemos, têm muito antigas inimizades com * Cfr. Charles Sainte-Foy, São José de Anchieta, o Apóstolo do Brasil, p. 164.

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outros da mesma nação e por isso frequentissimamente há guerra entre uns e outros para a qual se juntam muitos de diversas partes; e até quando nós estávamos entre eles, partiram contra os inimigos. Na véspera de entrarem em luta, os que tinham vindo doutras partes, como é costume deles, construíram uma pequena cabana [e] começaram a oferecer sacrifício aos feiticeiros (a quem chamam pajés), perguntando-lhes que lhes iria suceder no combate. Sendo convidados para isso também os nossos catecúmenos e outros entre os quais a palavra de Deus já fora semeada por meio dos irmãos da Companhia, responderam que não queriam prestar fé àquelas mentiras, que traziam o seu Deus nos próprios corações e que fiados no seu auxílio haviam de ganhar maior vitória do que eles com seus sacrifícios imundos. Travando-se a batalha e aparecendo grande multidão de inimigos, os nossos, tomados de medo e terror, começaram a perder o ânimo. Vendo isto, a mulher do principal desta aldeia (Tibiriçá), já batizada, a qual partira para a guerra juntamente com o marido, como é costume deles, exortou a todos com espírito viril a que, perdendo o medo, fizessem o sinal da cruz na fronte. E deste modo só dois que o deixaram de fazer, foram feridos e um morreu. Os inimigos foram dispersos e postos em fuga pelos restantes; e, sendo alguns tomados pelos nossos catecúmenos, foram mortos e sepultados à maneira dos cristãos. Antes costumavam comê-los com a maior alegria e grandes vozerias e cantos. E pouco depois de se afastarem, vieram os contrários e, encontrando sepultados os que julgavam ser inimigos, desenterraram-nos e levaram-nos para comer. Regressando da guerra, não encontrando um deles a mulher em casa e ouvindo dizer que ela o tinha deixado, aceso no maior furor veio à Igreja onde ela aprendia a doutrina e tratou-a indignamente, puxando-a para fora pelos cabelos diante de todos e dandolhe grandes punhadas e bofetadas. Tendo notícia disto o principal, prendeu-o, pedindo-nos que mandássemos fazer algemas, pois dizia ter desejo de lançar na prisão todos os criminosos e, sobretudo, aquele que cometera tão grande crueldade no templo de Deus. Mas, sendo afinal solto por nossa intercessão, pediu-nos perdão, tendo feito aquilo, não por própria determinação, mas levado por alguns maus conselheiros. A sujeição deste índio é muito para admirar, não vivendo eles obrigados a nenhumas leis, nem direito, e não obedecendo à autoridade de ninguém.

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Comentário – O episódio demonstra a crescente influência dos jesuítas entre os índios, a ponto de obterem a modificação do entranhado costume de devorar os inimigos. Mostra também o respeito e a ascendência que obtinham junto aos índios, até mesmo entre os chefes, em substituição dos antigos pajés. Aqueles feiticeiros, de que já falei, são tidos em grande estima. De fato, chupam os outros quando estes sofrem alguma dor, e afirmam que os livram da doença e que têm sob seu poder a vida e a morte. Nenhum destes aparece entre nós, porque lhes descobrimos os enganos e as mentiras. Um dos catecúmenos, porém, apresentou-se para ser curado a um, que passava por aqui com os demais a caminho da guerra. Tendo-o sabido um filho, que se encontra entre nós na escola, repreendeu-o duramente, dizendo que ele havia de ser um demônio e que não entrasse mais na Igreja, pois recusou a acreditar em nós para se fiar num feiticeiro. Uma menina de quatro ou cinco anos, caída em doença grave pedia muitas vezes com lágrimas à mãe que a levasse à Igreja; e gemendo diante do altar, dizia na própria língua: ”Ó Pai, sara-me”. Interrogada pelo seu pai se queria lhe trouxesse aquele feiticeiro para lhe dar remédio, rompendo em grande pranto lançou-se ao chão, dizendo que queria voltar à antiga saúde não com o auxílio do feiticeiro, mas com o de Deus; e o próprio Senhor o fez, pois tratada pelos nossos irmãos com certa mezinha, ela recuperou inesperadamente a saúde. Comentário – Os dois episódios narrados por Anchieta são ilustrativos da confrontação sistemática havida entre os pajés e os jesuítas, ou seja, dos ministros das duas religiões em oposição. Em toda a história da Igreja, a maior oposição à sua expansão sempre foi feita pelos sacerdotes dos cultos pagãos. Camões chega a glosar esse fato quando comenta, no Canto X de Os Lusíadas, a oposição que teria encontrado São Tomé na sua pregação na Índia, onde um sacerdote pagão matou o próprio filho para acusar, dessa morte, o apóstolo: “inimiga não há, tão dura e fera, / Como a virtude falsa, da sincera”.* A única exceção conhecida a essa regra deu-se na Irlanda, com seu evangelizador São Patrício, que iniciou seu trabalho de modo inverso: instruiu e converteu ao cristianismo os sacerdotes célticos (druidas), transformou-os em monges e sacerdotes católicos fervorosos e, com o auxílio deles, evangelizou o restante da população. Esperamos com a graça e favor divino, que se hão de recolher * Os Lusíadas, Canto X, 113.

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ubérrimos frutos por meio dos operários que o Senhor mandará para esta vinha tão fecunda; mas julgamos que já não é pouco fruto o maior benefício de Deus, que entre tanta multidão de infiéis, algumas poucas ovelhas se abstenham ao menos de comer seus próximos. Com o Reverendo em Cristo P. Manoel da Nóbrega moramos presentemente aqui sete irmãos, separados do convívio dos portugueses e unicamente aplicados à conversão dos índios. Temos também em casa conosco alguns filhos dos gentios, que atraímos a nós de diversas partes. Estes apartam-se tanto dos costumes dos pais, que, passando aqui perto de nós o pai de um, e visitando o filho, este muito longe esteve de lhe mostrar qualquer amor filial e terno, de maneira que só por pouco tempo, contra a vontade e obrigado por nós, é que falou com o pai; e outro, estando já há muito separado dos pais, indo de caminho uma vez com nossos irmãos pela aldeia que a mãe habitava, e dando-lhe estes licença a ir visitar se quisesse, passou sem saudar a mãe; deste modo põem muito acima do amor dos pais o amor que nos têm. Louvor e glória a Deus, de quem deriva todo o bem. Desde janeiro até o presente, estivemos às vezes mais de vinte numa casa pobrezinha, feita de barro e paus e coberta de palha, de 14 passos de comprimento e 10 de largura, que é ao mesmo tempo escola, enfermaria, dormitório, refeitório, cozinha e despensa; mas não temos saudades das casas amplas que os nossos habitam noutras partes. Com efeito, em mais estreito lugar foi posto Nosso Senhor Jesus Cristo, quando se dignou nascer num pobre presépio entre dois brutos animais e em estreitíssimo morrer por nós na cruz. Esta casa construíram-na os próprios índios para nosso uso, mas agora preparamo-nos para fazer outra um pouco maior, de que nós seremos operários com o suor de nosso rosto e o auxílio dos índios. Comentário – Esta é a descrição física, muito conhecida porque muitas vezes citada, que Anchieta faz da primeiríssima “casa pobrezinha” de taipa de madeira (“feita de barro e paus”), embrião da gigantesca metrópole paulopolitana. A descrição é simples e despretensiosa, mas a referência ao presépio em que nasceu Jesus Cristo e à cruz em que morreu por nós lhe confere uma elevação e até mesmo uma grandeza literária sublimes. Encontramo-nos de fato em tal estreiteza, que muitas vezes é necessário dar ao ar livre a lição de gramática aos irmãos e, aper-

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tando frequentemente fora o frio e dentro o fumo, antes queremos sofrer fora o frio do que dentro o fumo. Quanto aos meninos que andam na Escola, quem não se comoverá vendo-os expostos ao vento e ao frio, aquecendo-se ao calor dum tição aceso, e aplicar-se à lição numa pobríssima e velhíssima, e, no entanto, feliz cabana? Comentário – A narração adquire, aqui, um realismo e uma vivacidade dignos de nota. O leitor se sente psicologicamente transportado para o ambiente descrito, participando do estado de espírito ali reinante... O principal alimento desta terra é farinha de pau, que se faz de certas raízes que se plantam, e chamam mandioca, as quais – quando comidas cruas, assadas ou cozidas – matam. É necessário deitá-las na água até apodrecerem; apodrecidas, desfazem-se em farinha, que se come, depois de torrada em vasos de barro bastante grandes. Isto substitui entre nós o trigo. Outra parte do mantimento fornecem-na carnes do mato, como são macacos, gamos, certos animais semelhantes a lagartos, pássaros e outros animais selvagens, e ainda peixes de rio, mas estas coisas raras vezes. A parte principal da alimentação consiste, portanto, em legumes, como favas, abóboras e outros que se podem colher da terra, folhas de mostarda e outras ervas cozidas; em vez de vinho, bebemos água cozida com milho, ao qual se mistura mel, se o há. Assim sempre bebemos tisanas ou remédios; e se há isto, não nos parece sermos pobres. Comentário – Minucioso na sua descrição, como se requeria numa carta da natureza do relatório quadrimestral, Anchieta fornece nessa passagem elementos importantes para o historiador moderno conhecer e avaliar o dia-a-dia e o passadio dos primeiros missionários. A dimensão científica, naturalística, até mesmo antropológica do jovem José de Anchieta é notável. O canarino – ou, como preferia ser designado, biscainho – foi, de todos os pontos de vista, um homem à frente de seu tempo. As coisas necessárias para a conservação de nossa vida adquirimo-las com o trabalho de nossas mãos, como o Apóstolo S. Paulo, para não sermos pesados a nenhum destes. Devemo-las principalmente às mãos de um irmão nosso, ferreiro, ainda que nada peça, oferecem-lhe os índios, em paga das coisas que lhes faz, farinha e legume e às vezes carne e peixe. A isto ajuntam-se também

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outras esmolas que eles, movidos pelo amor de Deus, nos dão, e assim muitas vezes o Senhor, a cujo cuidado nos entregamos, nos provê até donde menos esperávamos, a nós que nos encontramos faltos de todas as coisas. Comentário – “Como o Apóstolo S. Paulo”: alusão ao fato de o Apóstolo não querer ser oneroso para os fiéis de Tessalônica (I Tess. 2,7) e de exercer sua profissão de fabricante de tendas como meio de manutenção da própria vida, ainda durante seu trabalho apostólico. Este último fato é registrado em Atos dos Apóstolos (18,3-4). Não podemos, portanto, deixar de admirar muito a grandíssima bondade de Deus conosco, que nos conserva perfeitamente a saúde do corpo, carecendo nós por completo de todos os mimos, sendo o alimento indispensável muito insípido e de pouca substância e não nos deixando a terra viver em delícias. Assim, um irmão nosso, que viera doente de Portugal, e vivia numa aldeia distante desta nossa 90 milhas, tinha por alimento diário uma galinha, que se lhe ia buscar a diversos lugares com não pouco trabalho ainda que por baixo preço; e o estômago não a podia conservar e logo vomitava. Quando, porém, veio para aqui e começou a alimentarse das nossas comidas pobríssimas, pôs-se robusto. Comentário – A galinha cozida em água e acompanhada de grãos ou vegetais, a famosa “canja”, era reputada entre os portugueses do século XVI como o mais saudável e eficaz dos medicamentos. Era o tratamento dado aos doentes, às parturientes, aos que se restabeleciam de qualquer doença ou ferimento. O costume perdurou e todos nós ainda fomos tratados por nossas mães ou avós com ele. Recentes estudos científicos descobriram substâncias maravilhosas na canja, dando, assim, embasamento racional e científico ao que parecia simples crendice herdada de geração em geração... Na outra aldeia de índios estão semeando a palavra de Deus o P. Francisco Pires e o P. Vicente Rodrigues com outros irmãos; fazem, contudo, pouco fruto por causa da dureza deles. Esta parte da região do Brasil que habitamos está, segundo dizem, a 22 graus de latitude sul. Mas, desde Pernambuco, que é a primeira povoação de cristãos até aqui e mais além, toda esta costa marítima, na extensão de 900 milhas, é habitada por índios que, sem exceção, comem carne humana; nisso sentem tanto prazer e doçura que frequentemente percorrem mais de 300 milhas quan-

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do vão à guerra. E se cativarem quatro ou cinco inimigos, sem cuidarem de mais nada, regressam para com grandes vozearias e festas e copiosíssimos vinhos, que fabricam com raízes, os comerem, de maneira que não perdem nem sequer a menor unha, e toda vida se gloriam daquela egrégia vitória. Até os cativos julgam que lhes sucede nisso coisa nobre e digna, deparando-se-lhes morte tão gloriosa, como eles julgam, pois dizem que é próprio de ânimo tímido e impróprio para a guerra morrer de maneira que tenham de suportar na sepultura o peso da terra, que julgam ser muito grande. Estes, entre os quais trabalhamos, estão espalhados pelo interior na extensão de 300 milhas, como julgamos, e todos comem carne humana, andam nus e habitam casas de madeira e barro, cobertas de palha ou cascas de árvores. Não estão sujeitos a nenhum rei ou chefe e só têm alguma estima aqueles que fizeram algum feito digno de homem forte. Por isso frequentemente, quando os julgamos ganhos, recalcitram, porque não há quem os obrigue pela força a obedecer; os filhos obedecem aos pais conforme lhes parece; e finalmente cada um é rei em sua casa e vive como quer: por isso nenhum fruto, ou não menos pequeníssimo, se pode colher deles, se não se juntar a força do braço secular, que os dome e sujeite ao jugo da obediência. Vivendo sem leis nem autoridade, segue-se que não se podem conservar em paz e concórdia, de maneira que cada aldeia consta de só seis ou sete casas, nas quais, se não fosse o laço e união do sangue, não podiam permanecer juntos, mas comer-se-iam uns aos outros, como vemos que acontece em muitos outros lugares, onde eles não dominam essa paixão insaciável, nem sequer para se absterem de devorar abominavelmente os consanguíneos. Comentário – Neste trecho, Anchieta descreve com horror os costumes indígenas no que eles tinham de mais censuráveis, porque mais opostos à lei natural (o “jugo da razão”, a que mais acima aludira): as contínuas guerras sem motivo, o canibalismo, a poligamia, o nudismo, o nomadismo. Nesses pontos, é muito categórica a rejeição de Anchieta, muito enfática a sua crítica às práticas indígenas. Não se pense, porém, que Anchieta rejeitasse in totum a cultura tupi, tal como ela existia e se apresentava diante de seus olhos. Na verdade, Anchieta descobria nela belezas e virtualidades muito marcantes. Do idioma tupi, que era designado pelos missionários jesuítas como “o grego da terra”, Anchieta foi não apenas um estudioso e um sistematizador de sua estrutura gramatical, mas um verdadeiro entusiasta. Via no tupi belezas e sutilezas comparáveis às do grego clássico, que era então objeto da generalizada admiração de todos os renas-

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centistas cultos da Europa. Anchieta não desejava pura e simplesmente abolir a cultura indígena, substituindo-a pela europeia e cristã, mas desejava escoimar a cultura indígena de tudo quando tivesse de contrário ao Direito Natural, de modo que, sem deixar de ser indígena e com as peculiaridades e características boas próprias dos “brasis”, fosse uma autêntica cultura índio-luso-cristã. Esse ideal anchietano está difuso, mas suficientemente claro nos numerosos escritos que deixou, os quais foram coligidos e publicados pelos grandes anchietólogos do século XX, como os Padres Serafim Leite, Armando Cardoso, Hélio Abranches Viotti e Murillo Moutinho – todos jesuítas e membros do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, entidade com mais de 120 anos de existência, à qual me honro de também pertencer. Juntam-se a isto os matrimônios contraídos com os mesmos consanguíneos até primos diretos, de maneira que, se queremos receber algum para o batismo, por causa do laço de sangue, é dificílimo encontrar-lhe mulher com a qual possa casar. O que é para nós não pequeno impedimento, pois não podemos admitir ninguém à recepção do batismo conservando a concubina; por isso parecenos sumamente necessário que se mitigue nestas partes todo o direito positivo, de maneira que possam contrair-se matrimônios em todos os graus, exceto de irmãos com irmãs. O mesmo é necessário também fazer-se noutras leis da Santa Madre Igreja, pois, se os quiséssemos obrigar a elas no presente, não há dúvida que não quereriam dispor-se a seguir a fé cristã. Comentário – Esta passagem é muito importante para se entender a ótica que tinha Anchieta no seu trabalho missionário. Embora ainda muito jovem – tinha 20 anos quando escreveu essa missiva – demonstrava maturidade de espírito, experiência de vida, senso prático e de oportunidades e, também, uma visão jurídica fora do comum. Compreendia perfeitamente que sem transigir com o dogma e com pontos considerados essenciais pela Teologia cristã, o bom senso recomendava que fossem legitimamente abrandadas certas normas eclesiásticas do direito positivo, sem o que muito dificilmente se conseguiria evangelizar o Brasil. Na Europa, a Igreja durante séculos se empenhara para evitar ao máximo os casamentos de parentes consanguíneos, que se sabia serem causa de frequentes doenças degenerativas. Havia, por isso, fixado regras muito estritas. Muitas dessas regras não eram de Direito Natural, nem eram de Direito revelado pelas Escrituras; eram simplesmente leis eclesiásticas estabelecidas pela Igreja visando a um bem específico, em determinadas circunstâncias. Numa sociedade tribal, entretanto, como a dos índios brasileiros, as circunstâncias eram outras; na prática, tornava-se difícil encontrar alguém que não fosse parente num grau

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que, na Europa, constituía impedimento. Embora com respeito e submissão às decisões de Roma, Anchieta e Nóbrega consideravam “sumamente necessário que se mitigue nestas partes todo o direito positivo”. Que Nóbrega, que fizera profundos estudos jurídicos e era respeitado como jurista, assim pensasse e o propusesse, nada mais natural. Mas que Anchieta, um jovem noviço de 20 anos de idade, se permitisse dar tais conselhos ao Superior Geral de sua Ordem, mostra bem a santa ousadia e espírito arrojado do, entretanto, tão humilde Irmão José de Anchieta. São tão bárbaros e indômitos que parecem estar mais perto da natureza das feras do que da dos homens. O que não é tanto de admirar como a tremenda malícia dos próprios cristãos, nos quais encontram, não só exemplo de vida, mas também favor e auxílio para praticarem más ações. De fato, alguns cristãos nascidos de pai português e mãe brasílica, que estão apartados de nós 9 milhas numa povoação de portugueses, não cessam nunca de esforçar-se, juntamente com o seu pai, por lançar à terra a obra que procuramos edificar com a ajuda de Deus, pois exortam repetida e criminosamente os catecúmenos a apartarem-se de nós e a crerem neles, que usam arco e flechas como os índios, e a não se fiarem de nós que fomos mandados para aqui por causa da nossa maldade. Com estas e semelhantes coisas conseguem que uns não creiam na pregação da palavra de Deus e que outros, que parecia já termos encerrado no redil de Cristo, voltem aos antigos costumes e se apartem de nós, para poderem viver mais livremente. Os nossos irmãos tinham gasto quase um ano inteiro em doutrinar uns que distam de nós 90 milhas, e eles, renunciando aos costumes gentílicos, tinham resolvido seguir os nossos e tinham-nos prometido nem matar nunca os inimigos nem comer carne humana. Agora, porém, convencidos por estes cristãos e levados pelo exemplo duma nefanda e abominável depravação, preparam-se, não só para os matar, mas também para os comer. Comentário – A povoação distante 9 milhas do Colégio era Santo André da Borda do Campo, vida da qual era alcaide João Ramalho. Anchieta aponta o mau exemplo dado por ele (que não chega a nomear pessoalmente) e seus numerosos descendentes mamelucos, como o principal obstáculo à evangelização dos índios. Da guerra, a que me referi acima, tendo um destes cristãos trazido um cativo, entregou-o a um irmão dele para o matar. E matou-

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o de fato com a maior crueldade, tingindo as próprias pernas de vermelho e tomando o nome de quem matara em sinal de honra, como é costume dos gentios; e se não comeu, deu-o ao menos a comer aos índios, exortando-os a que não deixassem perder quem ele matara, mas assassem e levassem para comer. Outro irmão do mesmo, advertindo-se de que tivesse cuidado com a Santa inquisição por seguir alguns costumes gentílicos, respondeu que vararia com flechas duas inquisições. E são cristãos, nascidos de pai cristão, que sendo espinho não pode produzir uvas. Comentário – “Sendo espinho, não pode produzir uvas” – trata-se de alusão ao texto bíblico: “Pelos seus frutos os conhecereis. Porventura colhem-se uvas dos espinhos, ou figos dos abrolhos? Assim, toda a árvore boa dá bons frutos, e toda a árvore má dá maus frutos” (Mt., 7,16-17). Este [João Ramalho] passou quase 50 anos nesta região, junto com uma concubina brasílica, e gerou muitos filhos: a salválos dedicaram os irmãos da nossa Companhia todos os cuidados e canseiras, pedindo-lhes com toda a mansidão e incitando-os em espírito de brandura a apartarem-se da má vida. Tanto que o P. Manoel de Paiva se valeu muito do laço de sangue bem chegado, que reconheceu existir entre si e o pai deles, e julgou que se poderia conseguir deste modo alguma coisa em favor do mesmo homem. Notando, porém, que nenhum fruto se obtinha dele, mas que pelo contrário continuavam os maiores escândalos – por causa da maneira de viver torpe e dissoluta tanto do pai como dos filhos, que estão unidos com duas e duas filhas do mesmo pai – começaram os irmãos a exercer sobre eles algum rigor e violência, sobretudo separando-os da comunhão da Igreja. Mas eles, que deveriam ter mudado com esta medida, estão a tal ponto depravados que nos têm o maior ódio e procuram prejudicar-nos por todos os modos, ameaçando-nos até de morte, mas principalmente esforçando-se por inutilizar a doutrina em que instruímos e educamos os índios, e por concitar o ódio deles contra nós. E assim, se não se extinguir completamente esta peste tão perniciosa, não só não poderá progredir a conversão dos infiéis, mas terá de debilitar-se e diminuir cada vez mais. Mas, dito isto de passo volto ao meu propósito. Comentário – Anchieta tratou do problema representado por Ramalho e seus descendentes, exprimindo-se com linguagem veemente e dura, e pedindo o apoio do “braço secular”, ou seja, a força legal das autoridades para pôr cobro

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àquela “peste tão perniciosa”. Não estava a se referir às pessoas, não estava propondo que fossem elas extintas. O que propunha é que fossem punidas e coibidas, de modo a se extinguir a oposição que faziam contra a expansão missionária. A confrontação entre Ramalho e os jesuítas é bem estudada, até nos seus pormenores, pelo Pe. Hélio Abranches Viotti, historiador consciencioso que tinha tudo para ser, no caso imparcial, já que era membro da Companhia de Jesus e, também, descendente direto de João Ramalho. Ramalho, que dera apoio total aos portugueses quando acolhera Martim Afonso de Sousa, que recebera de bom grado os primeiros jesuítas, sendo até parente próximo do Pe. Manuel de Paiva, e que constituíra regularmente a vila de Santo André da Borda do Campo de acordo com os costumes do Direito luso, estava, desde 1551, em franca oposição aos jesuítas e se tinha tornado obstáculo ao trabalho apostólico destes. O motivo da oposição se deve ao fato da situação conjugal irregular de Ramalho, que, ao que parece, ainda tinha mulher viva em Portugal, mas aqui no Brasil vivera maritalmente durante várias décadas com Bartira, filha de Tibiriçá e, devido a essa situação, durante mais de 20 anos não cumprira os seus deveres pascais. Durante muito tempo, o problema moral e canônico foi elidido porque se supunha mais provável que a esposa de Ramalho, àquela altura, já estivesse morta. Mas, em determinada ocasião, ocorreu que o Padre Leonardo Nunes entendeu que não mais poderia contemporizar, e julgou de seu dever moral tomar medidas mais sérias, declarando que Ramalho somente poderia voltar à prática religiosa depois de regularizar sua situação moral. Foi essa a razão do rompimento de Ramalho e seus filhos com os jesuítas. Num primeiro momento de ira, um dos filhos de Ramalho quis matar o Padre Leonardo Nunes, sendo impedido pela mãe, a índia Bartira, que tinha sido batizada com o nome de Isabel e era cristã fervorosa. Bartira, aliás, tão logo ciente da irregularidade de sua situação, deixou de coabitar com Ramalho, mas continuou governando como matriarca sua imensa família, constituída por numerosos filhos e muitas dezenas de netos e bisnetos. Era muito respeitada pelos portugueses porque, sendo filha do chefe Tibiriçá, recebia honras de nobre, quase como princesa. Quando morreu, foi sepultada com todas as honras na igreja dos jesuítas. Na altura em que escreveu esta carta, Anchieta ainda estava recém-chegado da Europa e, informado da situação pelos outros jesuítas, traçou um quadro extremamente desfavorável do patriarca Ramalho. Alguns anos depois, entretanto, tudo se resolveu. A atitude decidida do Pe. Leonardo Nunes, que quase lhe custou a vida, abalou profundamente a consciência de Ramalho, que conservava muito viva a fé de seus ancestrais, o que o levou a se reconciliar com os jesuítas e regularizar sua situação canônica. O próprio Anchieta, nessa ocasião já ordenado, teria sido, segundo deduz Viotti, o sacerdote que lhe ministrou os sacramentos, em 1568. A virtuosa Bartira teve grande papel na conversão de Ra-

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malho, que passou os últimos 12 anos de sua vida muito cristãmente, morrendo centenário e com fama de alta virtude em 1580. Foi sepultado, também com honras, pelos jesuítas na igreja do seu colégio. “Completa-se com este remate histórico a reabilitação cristã do patriarca dos bandeirantes. E avulta perante a nossa admiração a grandeza humana do primeiro paulista” – escreve Viotti.* E conclui seu capítulo com um belo período que não é demais transcrever aqui: “Impossível não admirar, diante desse epílogo, os misericordiosos e insondáveis desígnios da Providência. Ali, naquele chão sagrado do Pátio do Colégio, foram novamente reunidos pela morte e dormem lado a lado o sono dos justos Bartira e João Ramalho. Dali, lado a lado, hão de ressurgir do pó, quando soar a trombeta do juízo final, para encarar face a face, serenamente, o olhar do Juiz supremo de todos nós”.** Além destes índios, há outro gentio espalhado ao longe e ao largo, a que chamam carijós, nada distinto destes quanto à alimentação, modo de viver e língua, mas muito mais manso e mais propenso às coisas de Deus, como ficamos sabendo claramente da experiência feita com alguns que morreram aqui entre nós, bastante firmes e constantes na fé. Estes estão sob o domínio dos castelhanos, a quem de boa vontade constroem as casas e de boa mente ajudam a obter as coisas necessárias à vida. Comentário – Aqui, mais uma vez se vê uma alusão simpática aos carijós, a despeito da falsidade de uns poucos que mais acima noticiara. A estes seguem-se inumeráveis outras gentes a ocidente, pelo interior até à Província do Peru, quase todas as quais percorreu um irmão nosso. São mansas, chegam-se mais perto da razão, estão todas sujeitas a um só chefe, vive cada um com a mulher e os filhos separadamente em sua casa, e de maneira nenhuma comem carne humana. Se a palavra de Deus lhes for anunciada, não há dúvida que há de aproveitar mais com eles num mês do que com estes num ano. E outra infinita multidão de nações está vizinha destes, chamados pelo próprio nome escravos [“Servi”] (Tapuias) por meio dos quais se vai até o Amazonas, e julgamos que vivem etíopes na outra banda do mar. * Anchieta, o apóstolo do Brasil, p. 157. ** Op. cit, p. 158.

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Foi agora enviado o Irmão Pero Correia, com dois outros irmãos, a umas aldeias de índios, que estão ao longo do mar, para lhes pregar a palavra de Deus e sobretudo, se puder ser, para abrir caminho até certos povos que chamam ibiraiaras, os quais julgamos que se avantajam a todos estes no uso da razão, na inteligência e mansidão dos costumes. Todos estes obedecem a um só senhor, têm horror a comer carne humana, contentam-se com uma só mulher, guardam diligentemente as filhas virgens – coisa de que os outros não cuidam – não as entregam a ninguém senão ao próprio marido, e se a esposa comete adultério o marido mata-a. Mas se esta, fugindo às mãos do marido, se refugia na casa do chefe, é recebida por ele com bondade e é conservada lá até se aplacar completamente a ira do marido. Se alguém se apodera duma coisa alheia, é levado diante do chefe e ele manda-o açoitar por um algoz. Não creem em nenhuma idolatria ou feiticeiro, e avantajamse a muitíssimos outros nos bons costumes, de maneira que parecem muito próximos da lei da natureza. Só parecem neles digno de repreensão matarem às vezes na guerra os cativos e guardarem as cabeças deles como troféus. Comentário – Neste trecho, encontramos duas passagens em que Anchieta se refere a índios que guardavam a Lei Natural e deviam ser preferencialmente atendidos pelos pouco numerosos missionários. Primeiramente, ele fala de tribos existentes no interior, para os lados da “Província do Peru”, as quais “são mansas, chegam-se mais perto da razão, estão todas sujeitas a um só chefe, vive cada um com a mulher e os filhos separadamente em sua casa, e de maneira nenhuma comem carne humana”. Depois, ele faz referência a “certos povos que chamam ibiraiaras”, que parecem os melhores e mais promissores de todos (“os quais julgamos que se avantajam a todos estes no uso da razão, na inteligência e mansidão dos costumes”), porque observantes do Direito Natural (“muito próximos da lei da natureza”). Só lhes exprobra o costume de reduzirem e conservarem como troféus as cabeças dos inimigos abatidos... Esperamos agora a chegada do P. Luis da Grã, para se deliberar com o seu conselho o que se há de afinal fazer e se hão de mandar alguns dos irmãos para aquelas nações, no caso de os haver. Temos grande falta deles, por isso muita obrigação tem V. R. Paternidade de mandar operários para tão fecunda messe. Esperamos confiadamente que o faça, porque Deus, pelo cuidado que tem desta região, a entregou à particular administração de V. R. Paternidade.

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Comentário – Anchieta insiste, respeitosamente, no pedido constante de todas as cartas de seus companheiros: que venham da Europa mais missionários, porque “a messe é grande, mas os operários são poucos” (Lc, 10,2). Embora respeitosa, humilde e filial, a carta é veemente: chega a lembrar a Santo Inácio que ele tem obrigação moral de mandar operários para a messe brasílica. Mais uma vez, Anchieta dá aqui mostra de ousadia e intrepidez. A isto acrescenta-se também que, tendo-se dirigido todas as orações e gemidos dos nossos Irmãos, desde que estão cá, a pedirem continua e fervorosamente a Deus se dignasse mostrar claramente o caminho, pelo qual estes gentios se haviam de levar à fé, agora acabou Ele por mostrar grandíssima abundância de ouro, prata, ferro e outros metais antes bastante desconhecida, como todos dizem, e esta abundância julgamos que será ótimo e facílimo meio, como já nos ensinou a experiência. Pois, vindo para aqui muitos cristãos, sujeitarão os gentios ao jugo de Cristo, assim estes serão obrigados a fazer por força, aquilo que não é possível leválos por amor. Comentário – Embora santo e movido interiormente, acima de tudo, por razões de ordem espiritual, Anchieta não deixa de ser homem do seu tempo e, com espírito prático, julga oportuno acenar com a perspectiva de metais preciosos e riquezas para atrair europeus. É no fim da carta, de modo complementar e acessório que o faz... mas não deixa de o fazer. Resta que peçamos humildemente sermos encomendados, nós e estas almas, nas orações de V. R. Paternidade e de todos os nossos Irmãos. Piratininga, Casa de São Paulo, 1554. O último da Companhia de Jesus, José. Comentário – Como fecho da linda carta, uma derradeira manifestação da humildade do missivista. É como o “último da Companhia de Jesus” que a assina. * * * Com a carta, também se encerra este artigo. Que maior glória poderia ter a cidade de São Paulo, do que possuir uma “certidão de nascimento” lavrada por um santo que se dirigia a outro santo?

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Damásio E. de Jesus

Fontes: ANCHIETA, José de. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Belo Horizonte: Itatiaia/EDUSP, 1988. ANCHIETA S. J., José de. Cartas – Correspondência Ativa e Passiva (Pesquisa, introdução e notas de VIOTTI S. J., Hélio Abranches). São Paulo: Loyola, 2ª. edição, 6º. volume, 1984. Disponível em: https://books.google.com.br/ LEITE S. J., Serafim. Novas Cartas Jesuíticas (de Nóbrega a Vieira). São Paulo: Companhia Editora Nacional, Série Brasiliana, vol. 194, 1940.

Obras consultadas ou citadas: VIOTTI S. J., Hélio Abranches. Anchieta, o apóstolo do Brasil. São Paulo: Loyola, 1966. VIOTTI S. J., Hélio Abranches; MOUTINHO S. J., Murillo. Anchieta nas Artes. São Paulo: Loyola, 1991. SAINTE-FOY, Charles. São José de Anchieta, o Apóstolo do Brasil – Vida, obra e milagres. Trad. de Armando Alexandre dos Santos. São Paulo: Petrus, 2014. VASCONCELOS S. J., Simão de. Crônica da Companhia de Jesus. Petrópolis: Vozes/Instituto Nacional do Livro, 3ª. ed., 2 vols, 1977. CASTRO S. J., Fernando Pedreira de. Crónica da Igreja no Brasil – Período Pre-Anchietano (1500-1553). Rio de Janeiro: Editora ABC, 1938. GALANTI S. J., Raphael M.. Historia do Brasil. São Paulo: Duprat & Comp., 2ª. edição, 1911. MOTTA FILHO, Cândido. A vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Coleção Documentos Brasileiros, n. 129, 1967. JESUS, Damásio de. Lectio Doctoralis (aula proferida na Universidade de Estudos de Salerno, Itália). São Paulo: Ed. Damásio de Jesus, 2004. FERREIRA, Waldemar Martins. História do Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1951, tomo I. FERREIRA FILHO, Manoel Rodrigues. As repúblicas municipais do Brasil (1532-1820). São Paulo: Prefeitura Municipal/Secretaria Municipal de Cultura, 1980. CNBB (Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros). Catecismo da Igreja Católica (edição revisada de acordo com o texto oficial em latim). São Paulo: Vozes, 1998.

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Nos escritos de Anchieta, a arquitetura de uma Nação The Architecture of a Nation in the Writings of Anchieta

Maria Ascenção Ferreira Apolônia

(sócia titular do IHGSP)

Resumo

Abstract

Este artigo é o resultado de uma releitura dos escritos históricos de Anchieta, em particular de suas Cartas, no intuito de dar a conhecer a Província Brasílica a partir do olhar e das experiências do jesuíta canarino. Extraímos dos registros históricos, passando pelos Sermões, dados da maior relevância para delinear os primeiros retratos do Brasil, os costumes indígenas dos primórdios da colonização e a implantação do projeto real de ensino e catequese para a Terra de Santa Cruz. Detivemo-nos, com especial atenção, no relato das pequenas iniciativas e na descrição das ações e celebrações habituais que, não obstante a normalidade, contribuíram para a formação de um substrato moral de valores intangíveis e de paradigmas de comportamento sem os quais dificilmente chegaríamos a ser o povo e a Nação que somos.

This article is the result of another reading of Anchieta´s historical writings, mainly of his Letters, in order to make the Brazilian Indian Province known from the Canarian jesuit´s view and experiences. Starting from the historical registers, and going over his Sermons, we took very relevant data to delineate the first portraits of Brazil, the Indian conventions in the early times of colonization, and the implementation of the real project of education and catechesis for the Land of Santa Cruz. We were very attentive to both the report of little initiatives and the descriptions of habitual actions and celebrations that (despite the normality) contributed to the formation of a moral substrate of intangible values, as well as of behavioral paradigms. Without such substrate and paradigms we would hardly be the people and the nation we are nowadays.

Palavras-chave: Literatura de Informação. História. Cristianismo. Antropologia.

Keywords: Information literature. History. Christianity. Anthropology.

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Maria Ascenção Ferreira Apolônia

Introdução Este artigo* é o resultado de uma nova leitura dos escritos históricos de Anchieta, em particular de suas Cartas, no intuito de dar a conhecer a Província Brasílica a partir do olhar e das experiências do jesuíta canarino. Para levar a cabo a proposta, apresentaremos a partir dos registros históricos, passando pelos Sermões, dados da maior relevância para delinear os primeiros retratos do Brasil, os costumes indígenas dos primórdios da colonização e a implantação do projeto real de ensino e catequese para a Terra de Santa Cruz. Nós nos deteremos ainda no relato das pequenas iniciativas e na descrição das ações e celebrações habituais dos jesuítas que, não obstante a normalidade, contribuíram para a formação de um substrato moral de valores intangíveis e de paradigmas de comportamento sem os quais dificilmente chegaríamos a ser o povo e a Nação que somos. A subdivisão das partes deste trabalho obedeceu à sequência de temas mencionada. No fragmento sobre o ensino e a catequese, comentaremos alguns apontamentos de Anchieta sobre a adesão dos indígenas à formação cristã; eles evidenciam ser incongruente a proposição de que a catequese estaria à margem da cultura indígena, e não viria ao encontro das aspirações dos brasis. Convém ainda ressaltar que a última parte (“A formação do povo”) assume um caráter conclusivo, uma vez que os temas anteriores convergem para elucidar algumas das contingências histórico-culturais que propiciaram a aliança entre a unidade e a diversidade étnica do povo no processo de construção da Nação brasileira.

Retratos do Brasil Nas páginas iniciais de “Informações” sobre a Província Brasílica (1584), José de Anchieta reúne alguns dados sobre o número e a localização das primeiras capitanias. Dá-nos, assim, uma visão de conjunto do povoamento e da deslocação dos primeiros núcleos habitados, geralmente em razão das contingências de defesa do território e de atendimento aos portugueses e indígenas nas primeiras décadas da colonização: (...) Tem a Província do Brasil sete capitanias nomeadas, scilicet: Pernambuco, Baía, Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Vicente. (...) A Baía e Rio de Janeiro são d’El Rei * Comunicação apresentada no Simpósio São José de Anchieta, Apóstolo do Brasil e Artífice da Nacionalidade, realizado no Rio de Janeiro, no dia 18 de março de 2015, pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e pela Academia Fides et Ratio. Texto também incluído em ATAS do Simpósio São José de Anchieta, Apóstolo do Brasil e Artífice da Nacionalidade. Rio de Janeiro: IHGB/AFR, 2016.

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e cidades e todas as mais capitanias são senhorio e vilas. De Pernambuco que é a primeira capitania, está em oito graus, até São Vicente, que é a última e está no trópico de Capricórnio quase em 24º, póde haver 350 léguas por costa correndo-se de Norte-Sul, Nordeste-Sudoeste, e de São Vicente até a lagoa dos Patos, onde começa a nação dos Carijós, que sempre foram da conquista de Castela, póde haver 90 léguas pelo mesmo rumo.* (p.310) Quando se reporta a São Vicente, cita a ilha de Santo Amaro, que foi povoada por “seu capitão e moradores e um engenho de açúcar, mas com a perseguição contínua dos Tamoios, Índios do Rio de Janeiro, despovoou, nem tem justiça particular, tudo se reputa por São Vicente” (p. 309). Tendo como pano de fundo esse singelo mapeamento delineado pelo canarino, podemos nos ater às Cartas, que constituem o corpus mais relevante deste artigo sobre a arquitetura da Nação brasileira. Na Carta X, de maio de 1560, dirigida ao Padre Geral Diogo Laínez, Anchieta obedece às expectativas dos irmãos jesuítas e de muitos europeus desejosos de conhecer o que no Brasil é “digno de admiração ou desconhecido nessa parte do mundo [Península Ibérica]” (p. 113). Esse gênero de literatura, denominada de informação, conheceu ampla difusão nos países que tiveram a iniciativa dos descobrimentos e nas Cortes vizinhas, ansiosas por conhecer e explorar o Novo Mundo. Os diários de bordo, as crônicas e os relatos sobre as regiões antes desconhecidas circulavam e competiam, com crescente vantagem, com as novelas de cavalaria no interesse da sociedade quinhentista que, em pouco tempo, passou dos Mirabilia da Idade Média para a Literatura de Viagens e de Informação. Anchieta, em suas diversas Cartas, revela os dotes de cronista e agudo observador da natureza brasileira. A Carta X, tal como a missiva de Pero Vaz de Caminha, chama-nos a atenção pelo realismo e a riqueza de detalhes com que o jesuíta caracteriza o clima e a localização dos primitivos aldeamentos. Sua linguagem é concreta, concisa e flexível; resultado do esforço de extrair, dos parcos mecanismos de linguagem disponíveis, a expressão de realidades e circunstâncias ainda não experimentadas, de modo a se fazer compreender pelo interlocutor europeu. Os trovões, no entanto, fazem tão grande estampido, que causam muito terror mas raramente arremessam raios; os relâmpagos * Escolhemos, para estudo dos escritos históricos de Anchieta, a edição de Afrânio Peixoto com Posfácio de Antônio Alcântara Machado, editada por Itatiaia e Edusp (1988), a partir das Cartas Jesuíticas III (1933), organizadas por Capristano de Abreu.

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lançam tanta luz, que diminuem e ofuscam totalmente a vista, e parecem disputar com o dia na claridade; a isto se ajuntam os violentos e furiosos pegões de vento, que sopra com ímpeto tão forte, que nos leva a ajuntarmo-nos alta noite e corrermos às armas da oração contra o assalto da tempestade, e a sairmos algumas vezes de casa por fugir ao perigo de sua queda; vacilam as habitações abaladas pelos trovões, caem as árvores e todos se aterram. (p. 114) Em poucas pinceladas, ele nos descreve o fenômeno das chuvas tropicais, alternando a plasticidade do cenário com uma rápida nota narrativa, para exprimir paralelamente a violência da tempestade e a consequente repercussão do fenômeno nos religiosos. Em outro excerto, que poderíamos considerar cinematográfico, delineia passo a passo a alteração do vento e da cor das nuvens para relatar, com a vivacidade de quem testemunhou o acontecimento, a formação de uma tempestade devastadora em São Paulo: Não há muitos dias, estando nós em Piratininga, começou depois do pôr do sol, o ar a turvar-se de repente, a enublar-se o céu, a amiudarem-se os relâmpagos e trovões, levantando-se então o vento sul a envolver, pouco a pouco a terra, até que, chegando ao Nordeste de onde quase sempre costuma vir a tempestade, caiu com tanta violência que parecia ameaçar-nos o Senhor com a destruição (...). (p.114-5) Importa destacar que Anchieta, homem à altura das transformações da Idade Moderna, está também impregnado da mentalidade dos navegadores e cronistas do século XVI, que buscaram empiricamente transcrever o que viam e observavam; alguns sem toda a consciência do valor histórico do seu registro, em que se abriam amplos e novos caminhos para o conhecimento científico. Para completar o quadro, e fiel ao objetivo de divulgar tudo o que causaria impacto aos olhos do Velho Mundo, Anchieta descreve os efeitos aterradores da tempestade, ao lado da reação, para ele inusitada, dos índios: (...) arrebatou telhados e derribou as matas; a árvores de colossal altura arrancou pelas raízes, partiu pelo meio outras menores, despedaçou outras, de tal maneira que ficaram obstruídas as estradas e nenhuma passagem havia pelos bosques: era para admirar quantos estragos de casa e árvores produziu no espaço de meia hora (pois não durou mais do que isso). (...) o que, porém, no meio de tudo isso, se tornou mais digno de admiração, é que os Índios,

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que nessa ocasião se compraziam em bebidas e cantares (como costumam), não se aterraram com tanta confusão de cousas, nem deixaram de dançar e beber, como se tudo estivesse em completa tranquilidade. (p.115) Por meio da gradação e da rápida sequência de verbos de ação, Anchieta imprime à frase um ritmo rápido, tenso e vibrante, que reflete a dramaticidade da experiência vivida. Com efeito, o religioso agrega à narração o ingrediente subjetivo de quem sofreu o assombro de presenciar, provavelmente pela primeira vez, a destruição desencadeada em pouco tempo pela chuva tropical; em contraste com a serenidade dos índios, certamente habituados às devastações do verão brasileiro. Depois dos registros geográficos e climatológicos, em especial, de São Paulo e São Vicente, o prosador expõe uma lista, bastante exaustiva para o gênero carta, dos animais, das plantas, das ervas e raízes com propriedades medicinais. Acompanhemos a forma cuidadosa como delimita, para o interlocutor europeu, o tamanho, a cor e a serventia do peixe-boi; muitas vezes, fazendo uso de comparações para descrever o desconhecido: Há um certo peixe a que chamamos boi-marinho, os Índios o denominam iguaraguâ, frequente na capitania do Espírito Santo e em outras localidades para o Norte, onde o frio ou não é tão rigoroso, ou é algo tanto diminuto e menos que entre nós; este peixe de um tamanho imenso; alimenta-se de ervas como indicam as gramas mastigadas presas nas rochas banhadas por mangues. Excede ao boi na corpulência; é coberto de uma pele dura assemelhando-se na cor à do elefante; tem junto aos peitos, uns como dois braços, com que nada, e embaixo deles tetas com que aleita os próprios filhos; tem a boca inteiramente semelhante à do boi. (p.117-8) Atentemos para o rigor próprio do naturalista que não só fornece as informações sobre a alimentação do peixe-boi, mas ainda acrescenta as circunstâncias que o levaram a inferir que o animal se alimentava de ervas. Em seguida, servindo-se de sua condição de missionário, em luta pela sobrevivência e bem adaptado aos costumes da terra, tece considerações sobre a utilidade do peixeboi, enaltecendo as propriedades do animal brasileiro ao confrontá-las com a manteiga da Península Ibérica: É, excelente para comer-se, não saberias, porém discernir se deve ser considerado como carne ou antes como peixe: da sua gordura, que está inerente à pele e mormente em torno da cauda, leva-

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da ao fogo faz-se um molho, que pode bem comparar-se à manteiga e não sei se a excederá; o seu óleo serve para temperar todas as comidas: todo seu corpo é cheio de ossos sólidos e duríssimos, tais que podem fazer as vezes de marfim. (p. 118) Em alguns parágrafos é possível surpreender o deslumbramento daquele olhar originário que acompanha o crescimento e a transformação das aves, e que se deixa fascinar pela exuberância de cores e formas que compõem a fauna tropical: Há ainda uma ave marinha, por nome ‘guará’, igual ao mergulhão, porém de pernas mais compridas, de pescoço igualmente alongado, de bico comprido e adunco; alimenta-se de caranguejos e é muito voraz. Passa por uma metamorfose, como que perpétua, pois na primeira idade cobre-se de penas brancas, que depois se transformam em cor de cinza, e, passado algum tempo, tornam-se segunda vez brancas, de menos alvura todavia das da primeira; por fim ornam-se de uma cor purpúrea lindíssima; estas penas são de grande estimação, entre os índios, que usam delas para enfeitar os cabelos e braços em suas festas. (p. 134) É, sem dúvida, um desafio descrever a fauna e a flora brasileiras para quem nunca as contemplou em sua superabundância de espécies e variações. José de Anchieta vê-se obrigado a recorrer a um leque de analogias para que o leitor, a tão grande distância física e intelectual, possa ter uma ideia aproximada da variedade de árvores e frutos que enriquecem o retrato do Brasil. Eis a caracterização da jaçapucaia*: Na povoação que se chama Espírito Santo é muito comum uma certa árvore muito alta, cujo fruto é admirável. Este é semelhante a uma panela, cuja tampa, como que trabalhada a torno, com que está pendente da árvore, se abre por si mesma quando está maduro: aparecem então dentro muitos frutos semelhantes a castanhas, separadas por delgadas tiras como interpostos septos, muitíssimo agradáveis ao paladar. O vaso ou urna, em que estão encerrados, não é menos duro que a pedra, e pode-se facilmente julgar do seu tamanho pelas castanhas que contém, que passam de cinquenta. (p. 136) * Trata-se da Sapucaia, termo que se originou do termo tupi  ïasapuka’i, que significa “fruto que faz saltar o olho”. Lecythis pisonis,  popularmente conhecida  como  sapucaia,  sapucaieira,  cumbuca-de-macaco, quatetê  e  cabeça-de-macaco. http://pt.wikipedia.org/wiki/ Lecythis_pisonis, acessado em 5/3/2015.

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Em primeiro plano, a perfeição e a magnificência da natureza brasileira, descritas num tom eminentemente valorativo, quer na adjetivação, quer no confronto com as referências europeias. De fato, nessa outra certidão da Terra de Santa Cruz, o jesuíta revela ao Velho Mundo os vários retratos físicos do vir a ser Brasil, ao mesmo tempo em que inaugura, em sua versão preliminar, a literatura brasileira cujo pressuposto básico é a consciência da especificidade da terra e de sua gente. Quanto aos índios, são inúmeras as cartas em que apresenta aspectos físicos e comportamentais dos tupis, tamoios, tupinambás, carijós etc. Na Carta X, em análise, comenta quase ao concluir: “Destes Brasis direi, em último lugar, que quase nenhum se encontra entre eles afetado de deformidade alguma natural; acha-se raramente um cego, um surdo, um mudo ou um coxo, nenhum nascido fora de tempo”. (p. 139) Em mensagem posterior, de número XV, acrescenta o porquê dessa perfeição física: os indígenas enterravam, tal como fazem alguns animais, os filhos nascidos “com alguma falta ou deformidade, e por isso mui raramente se acha algum coxo, torto ou mudo em esta nação”. (p. 249) Não nos deve causar espanto o fato de os brasis praticarem o aborto ou enterrarem, muitas vezes, vivas, as crianças defeituosas; também a civilização grega e a romana, anteriores ao cristianismo, consideravam os filhos posse e propriedade dos pais (PERNOUD, 1980: 20). Cabia ao patriarca decidir os filhos que queria criar e, nesse caso, sobretudo as meninas já nasciam com desvantagem na luta pela vida: frequentemente expostas ao relento, devido à maior rejeição dos pais, ou ao incentivo do Estado ao aumento da população masculina. Na maior parte das sociedades pagãs, a vida não é um valor em si. E o hábito dos brasis de matar filhos e inimigos constituirá um dos mais árduos obstáculos a ser removido para a formação da Nação brasileira. Para finalizar esta parte do artigo, não poderíamos omitir os dois últimos parágrafos, em que Anchieta torna mais explícita a relação: locutor-interlocutor, sutilmente presente, no entanto, no decorrer da enunciação da Carta X: Narrei essas cousas brevemente, como pude, posto que não duvides que haja muitas outras dignas de menção, que são desconhecidas a nós, ainda aqui pouco práticos. Rogamos entretanto aos que acham prazer em ler e ouvir estas cousas, queiram tomar o trabalho de orar por nós e pela conversão deste país. Escrito em São Vicente, que é a última povoação dos Portugueses na Índia Brasílica voltada para o Sul, no ano do Senhor de 1560, no fim do mês de maio. O mínimo da Companhia de Jesus. ( p. 139)

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Com simplicidade e realismo, o jesuíta nos apresenta alguns traços físicos da terra e da gente brasileira, isto é, da Nação, sem outra igual, a se fundar.

A delimitação dos costumes No conjunto das Cartas que chegaram até nós, dentre os temas recorrentes, considerados por Anchieta a partir de vários ângulos, estão os costumes indígenas. Por vezes, são comentários rápidos sobre a forma de pescar, sobre os hábitos alimentares ou as relações interpessoais, em que fica patente o quanto os índios igualmente enriqueceram o conhecimento prático dos missionários e os ajudaram na empreitada de construir uma igreja ou uma escola de que os brasis seriam os principais beneficiários. Em carta datada de 1555, escrita em Piratininga, o canarino discorre mais pormenorizadamente sobre a mandioca e a colaboração dos indígenas, atendidos no Colégio, para completar a precária alimentação dos religiosos. O comentário final permite-nos entrever uma das faces do convívio entre índios e jesuítas: O principal mantimento desta terra é uma farinha de pau, que se faz de certas raízes, que se chamam mandioca, as quais são plantadas e lavradas a este fim, e se se comem cruas ou assadas ou cozidas matam, porque é necessário deixá-las em água até que apodreçam e depois de apodrecidas se fazem em farinha: este é o principal mantimento, com alguns legumes e folhas de mostarda. Também os índios nos dão algumas vezes alguma carne de caça e alguns peixes. ( p. 85) A respeito da prática da pesca, ainda na Carta X, o jesuíta assinala o hábito de os índios capturarem os peixes na piracema. Cai por terra a teoria – inerente ao Indianismo Romântico, como desdobramento do “bom selvagem” de Rousseau – de que a convivência entre o indígena e a natureza era sempre harmoniosa. Ao contrário, o estudo e o conhecimento são indispensáveis para a preservação das espécies. “Em certa quadra do ano apanha-se uma infinita quantidade de peixes; a isso os Índios chamam ‘pirá-iquê’, isto é, ‘entrada dos peixes’; porquanto vêm inúmeros deles de diversas partes do mar, entram para os lugares estreitos e de pouco fundo do mar, a fim de porem as ovas”. ( p.120) Esse gênero de pesca obedece a um planejamento. Quando a multidão de peixes está encurralada e embriagada “com o suco de um certo lenho que os Índios chamam ‘timbó’, são apanhados sem o mínimo trabalho muitas vezes mais de doze mil peixes grandes. Isso é de tal sorte comum em muitos lugares que, quando os apanham em abundância, os deixam atirados na praia”. (p. 120-121) Nesses trechos, destaca-se o realismo de quem tudo observa e quantifica, ao lado das

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notações hiperbólicas, que traduzem as impressões daquele que se maravilha com a fecundidade da fauna brasileira. Se considerarmos a totalidade das Cartas, cerca de vinte oito, sobressaem as alusões ao hábito que tinham os índios, excetuando-se os carijós e ibirajáras, de matar os inimigos e comê-los. Esse costume era motivo de grande comemoração, regada a bebidas e acompanhada de danças durante vários dias. Guerrear, matar e comer inimigos é um privilégio, e morrer como herói, sem medo da morte e por vingança dos “contrários”, razão de orgulho e um ideal de vida. José de Anchieta enquanto refém dos tamoios em Iperoig, tentou oferecer a oportunidade de se batizar a um índio condenado à morte. O relato do canarino e a argumentação do indígena ilustram bem a representação que os brasis faziam da morte: “(...) ele não quis ser cristão, dizendo que os que nós outros batizávamos não morriam como valentes, e ele queria morrer morte formosa e mostrar sua valentia”. (p. 233) Igualmente Fernão Cardim no item “Do modo como este gentio tem acerca de matar e comer carne humana”, – que figura nos Tratados da terra e gente do Brasil – confirma as considerações de Anchieta sobre a carnificina: “De todas as honras e gostos da vida, nenhum é tamanho para este gentio como matar e tomar nomes nas cabeças de seus contrários”. (2009:190) Na cultura indígena, tanto a maturidade do jovem e a consequente possibilidade de se casar se garantiam com a morte de um adversário (ANCHIETA, 1988:442); com o mesmo critério era avaliada a heroicidade, que dependia do número de “contrários” que se lograva capturar e matar. Esse feito legava ao agressor o direito de incluir, em seu nome, o do inimigo; o que o honrava perante seus iguais. Não pensemos, como frequentemente se divulga, que a prática de comer carne humana* fosse pontual na “Índia Brasílica”, restrita a algumas tribos mais isoladas. Num dos mapeamentos dos lugares habitados pelos brasis, Anchieta informa-nos sobre a extensão geográfica da prática da antropofagia: Esta Piratininga em que agora estamos, está 24 graus para o meio-dia e toda está, desde a primeira habitação dos portugueses que é em Pernambuco, até aqui e ainda mais adiante, é de 300 lé* Muito se tem sublimado a antropofagia dos índios brasileiros, em detrimento dos registros históricos que a descrevem. Na Carta XV, em que Anchieta relata a sua experiência de refém, encontramos uma descrição pormenorizada de como se praticava a “carnificina”, tal como a denominava o jesuíta canarino: “ (...) levaram [o índio] fora e lhe quebraram a cabeça, e junto com ele mataram outro seu contrário, os quais logo despedaçaram com grandíssimo regozijo, maximè das mulheres, as quais andavam cantando e bailando, umas lhe espetavam com paus agudos os membros cortados, outras untavam as mãos com a gordura deles e andavam untando as caras e bocas às outras, e tal havia que colhia o sangue com as mãos e o lambia, espetáculo abominável, de maneira que tiveram uma boa carniçaria com que se fartar”. (p.226)

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guas povoada de Índios que têm por sumo deleite comer-se uns aos outros, e muitas vezes vão à guerra e havendo andado 100 léguas, se cativam três ou quatro, se tornam com eles e com grandes festas e cantares os matam e usam de muitas cerimônias gentílicas, e assim os comem bebendo muito vinho, que o fazem de raízes, e os miseráveis dos cativos se têm por mui honrados por morrer morte, que ao seu parecer, é mui gloriosa”. (p. 84) No que diz respeito ao matrimônio, tanto nas Cartas quanto nas Informações e Fragmentos Históricos, Anchieta se refere às várias mulheres adotadas pelos índios – exceção feita aos carijós – e à naturalidade com que as rejeitadas admitiam as novas uniões. Não há ciúmes entre as mulheres de um único índio e, quando mais velhas, chegam a oferecer índias jovens para fazer o marido mais feliz. Comenta ainda Anchieta sobre as relações conjugais entre idades distintas: “[os índios] às vezes tomam alguma velha de que não esperam filhos, porque não acham outra, somente para que lhes faça de comer, porque se acertam de não terem mãe ou irmãs, que tenham cuidado deles, são coitados, e contentam-se por então com qualquer velha, com que estão bem agasalhados, sempre com olho de tomarem outras de que tenham filhos, como depois fazem, ou deixando a primeira, ou retendo-a, se ela quer, para o efeito sobredito”. (p. 461) Também era costume, entre os ameríndios, oferecer mulheres como prêmio aos amigos e aos inimigos capturados. O índio “contrário”, condenado à morte, tinha direito a uma mulher que o serviria em todas as suas necessidades (CARDIM, 2009: 191). A notável inferioridade da mulher na cultura indígena não é prerrogativa das tribos brasileiras. A hegemonia masculina e a inferioridade do feminino estavam presentes nas civilizações mais desenvolvidas da Antiguidade. A mulher não figura no Direito Romano, porque não tinha direitos (PERNOUD, 1980:20). Estava sempre sob a tutela de um homem, do pai ou irmão mais velho, quando solteira; ou do marido, depois do casamento (MASSEY, s/d:1). Quando se casava, tanto em Esparta e Atenas, quanto em Roma, a mulher deveria ser portadora de um dote para compensar as despesas que o marido teria com ela. Na Grécia, o marido não incluía a mulher em suas relações sociais e de lazer; e dela prescindia quando recebia os amigos em sua casa; à mulher cabia a ala interior e doméstica da residência. Em Esparta, o marido poderia oferecer sua mulher a um amigo, para com ela gerar filhos, se ele próprio já tivesse um número suficiente de herdeiros (VRISSIMSTZ, s/d:43). Segundo Le Goff e outros historiadores da condição feminina, o grande salto de qualidade na valorização da mulher só se daria com o casamento monogâmico e cristão, responsável pela simetria de direitos entre os consortes; e ao qual se reconheceu o status de sacramento (2008: 23; TOURBET, 1986:137).

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Nas Cartas, além da poligamia, outro costume indígena, apontado por Anchieta como obstáculo à catequese, era a falta de limites na bebedeira, que costumava se arrastar por muitos dias, enquanto duravam as festas, culminando frequentemente no completo desregramento sexual ou na violência contra a mulher. Encontramos referências a esses hábitos também nos autos do canarino. Na Peça da aldeia de Guaraparim, Anchieta, põe na boca do Diabo, a interpretação da origem desses vícios: “À noite, / depois de eles beberem muito, / vou cochichar aos ouvidos dos homens, / ajudando-os acerca das mulheres, incitando-os a desejarem-nas, / fazendo-os agredir a elas”. (v.114-119) E Aimberé, um dos diabos da mesma peça, para mostrar seu poderio sobre os índios incrimina-os perante S. Sebastião, que os defende: “E esses rapazes / que perseguem mulheres, / cobiçam escravas / nas casas dos brancos / e fogem depois ?”. (v. 415419) Em outro fragmento, um dos diabos salienta a prática da violência contra a mulher, via de regra, decorrente de estar o índio “envenenado de bebida”. “Pois então, apesar de arrependido, / agredias mulheres? / Embora não fosse briguenta, / tu espancaste a pau tua esposa”. (v. 540-545) A violência contra a mulher, em suas várias modalidades, foi presença constante tanto nas sociedades grega e romana, quanto nas tribos bárbaras, que povoaram a Europa a partir do século V. Na Grécia e em Roma, com o intuito de divorciar-se e reter o dote da mulher, o marido podia caluniar a esposa como adúltera; o que lhe dava o direito de repudiá-la e despojá-la de seus bens, mesmo sem a devida comprovação legal de adultério (BALDSON, 1998:217). Em decorrência, era frequente a pobreza entre as mulheres viúvas e divorciadas: os seres mais vulneráveis das sociedades antigas. Igualmente na Idade Média, não obstante o fato de a Igreja divulgar e propor, como paradigma para o casal, uma relação de amor e respeito, e considerar procedimento hediondo a violência contra a mulher; ainda assim, muitas esposas foram assassinadas na cozinha, local em que se dispunha dos instrumentos necessários para esquartejar os animais (VERDON, 2006; 53). A respeito do comportamento violento de jovens escandinavos do ano 1000, comenta Duby que a sociedade de origem os expulsava para os países vizinhos, para lá fazerem suas arruaças, pois “de tal jorro de violência, as mulheres eram naturalmente as primeiras vítimas. Sobre elas se lançavam os piratas, inflamados de todos os fogos da luxúria”. (1997, p. 63) É fundamental acrescentar que há algo em comum entre os hábitos de o indígena matar o inimigo e comê-lo, e de oferecer a mulher como prêmio ou espancá-la. Numa cultura fundamentada na guerra, portanto, na força física, há pouco espaço para a liberdade individual e a valorização da mulher. Por isso, encontram sentido simultaneamente a poligamia e os rituais antropofágicos: o essencial é procriar para gerar guerreiros, e comer os “contrários”, para enriquecer-se com a bravura e a destreza do inimigo. A própria construção das casas indígenas: um cômodo amplo, onde habitavam muitos homens com suas mu-

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lheres e filhos, assinala o predomínio do agrupamento sobre a individualidade. Em resumo, a vida dos brasis não ultrapassava os limites impostos pela tribo: vivia-se e morria-se segundo os ideais bélicos do grupo a que se pertencia. Merece destaque o fato de as qualidades morais, inerentes à personalidade e ao foro íntimo, serem projetadas para fora na cultura indígena, corporificandose na figura física do inimigo. Ingere-se e assimila-se a coragem do “contrário”. Embora a filosofia grega, especialmente com Platão, já tivesse proposto a transcendência e a primazia da interioridade sobre o corpo e as inclinações instintivas, o hábito da exteriorização dos sentimentos sob a forma de entidade é uma constante nas epopeias gregas, ao lado da tendência à corporificação dos deuses nas várias formas de mitologias. Somente com o advento do cristianismo, a percepção e o cultivo da interioridade ganharão mais espaço e relevo em todas as camadas sociais. O hábito do exame de consciência e a prática da confissão estimularam a análise do coração, isto é, da vida interior, de onde procedem o bem e o mal, propiciando ao homem um domínio maior sobre a violência e os impulsos instintivos. O cristão passou a ter certeza de que a vida é um dom de Deus, portanto, um valor em si; pois o homem é mais do que um corpo que se corrompe e acaba; ele é também, à semelhança do Filho de Deus, pessoa: ser único e insubstituível, dotado de livre-arbítrio e destinado à imortalidade. Segundo Fustel de Coulanges, com o cristianismo a religião deixou de ser exterior, para ser espiritual (2003: 305); e a própria oração abandonou a condição de fórmula de magia para se transformar em diálogo íntimo, impregnado de fé e de humildade, de um filho com seu pai: “(...) o temor dos deuses foi substituído pelo amor de Deus” (loc. cit.). E a vida e a correspondência de Anchieta são um testemunho eloquente de como foi grande o desafio, assumido pelos jesuítas, de conduzir o indígena brasileiro, de uma cultura da guerra, para uma cultura da vida; recurso, no entanto, indispensável para que os brasis pudessem alcançar o pleno desenvolvimento de suas potencialidades.

O quotidiano, o ensino e a catequese O projeto de ensinar os índios a contar, a escrever em sua própria língua e de, a eles, transmitir a doutrina cristã não foi apenas uma iniciativa eclesiástica, da Companhia de Jesus para o Brasil, fez parte de um ideal de expansão do cristianismo de que participou, como protagonista, a realeza em Portugal. Sob o estímulo e o patrocínio do Rei D. João III e de D. Sebastião, Nóbrega lançou as bases do ensino público e gratuito na Terra de Santa Cruz. As ordens de D. João III à Companhia de Jesus, dirigidas com frequência a Inácio de Loyola, deixam clara a intenção real de um amplo programa de educação e catequização cristã na Índia, no Japão, na China e no Estado do Brasil; neste caso, dirigido aos

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brasis e aos filhos de portugueses. Ao tratar do assunto, Nóbrega comenta em carta de agosto de 1552, dirigida a Simão Rodrigues, “Trabalhamos para dar princípio a casas que fiquem enquanto o mundo durar”. (Apud FERREIRA, 1966:35) No fim de 1549, Nóbrega já tinha emitido ordem ao Padre Leonardo Nunes para se fundarem os Reais Colégios de Porto Seguro, Ilhéus, Espírito Santo e São Vicente. E em Carta de julho de 1552, o jesuíta informa que já se instaurara “(...) aqui uma espécie de seminário ou escola média, onde além de aula de ler, escrever e contar, havia outra de língua portuguesa e até latina”. (loc. cit., 28-9) Sem dúvida, é impressionante a visão de futuro do estrategista e pedagogo Manuel de Nóbrega, se levarmos em conta as condições precárias em que se moviam os religiosos, e os obstáculos interpostos por índios e colonizadores ao projeto de educação e catequese. Esse empreendimento real e eclesiástico, que poderíamos humanamente considerar temerário e mesmo inviável, ganharia fundamento e força no ideal cristão de divulgar o Evangelho em todas as partes do mundo, enunciado como último mandato de Cristo aos seus discípulos antes de sua ascensão aos céus: “Ide, pois, e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt, 28,19-20). O vigor desse propósito universal explica as iniciativas dos jesuítas e o seu respectivo devotamento ao ensino e à catequização dos índios. Tanto o clero quanto o rei humanista, D. João III, tinham consciência da importância dos Colégios para tornar possível a gestação de uma sociedade coesa e organizada. As disciplinas propostas no programa de Educação luso-brasileira atestam a qualidade e a amplitude do projeto, e o seu vínculo com a cultura greco-latina (FERREIRA, 1966;51), que já servira de fundamento à instrução nos colégios e nas universidades europeias. Na perspectiva cristã, ensinar passou a ser obra de misericórdia. E os conventos e mosteiros concretizaram esse ideal, ao longo de toda a Idade Média, fomentando a preservação da cultura antiga, a pesquisa científica e o cultivo da arte no interior dos edifícios eclesiásticos. Contígua aos mosteiros e abadias, sempre surgia uma escola de ler, escrever e contar, em que se aprendia também a catequese, o canto e a língua latina (Opus cit., 28-9). Imbuídos desse mesmo espírito, e qualificados nos moldes dessa tradição, os jesuítas radicados no Brasil deram início àquelas primeiras escolas, verdadeiras choupanas, que constituiriam, entretanto, o prenúncio das escolas e das universidades do Brasil. É nesse contexto histórico-cultural de promoção humana e apreço pelo conhecimento, que se inserem os empreendimentos descritos nas Cartas pastorais de Anchieta a Santo Inácio de Loyola, a São Francisco de Borja, ou aos Diretores e Provinciais da Companhia de Jesus, para lhes relatar o andamento do ensino e da catequese, além de pedir orações e mais missionários. Essas cartas

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narram, com frequência, as pequenas ações e as decisões modestas do quotidiano; e, não obstante a normalidade e a concretude desses afazeres, não podemos deixar de neles reconhecer a gênese de uma Nação e a formação de um povo. Ler os comentários de Anchieta sobre a assistência às parturientes e aos enfermos, sobre o sustento dos órfãos, sobre as aulas dadas aos índios e indiazinhas em Piratininga, ou sobre a fundação de igrejas e cidades é acompanhar, à distância de cinco séculos, a implantação dos alicerces sobre os quais se assentariam as Casas de Misericórdia, as Santas Casas, os Colégios, os Orfanatos; isto é, a Saúde e a Educação no Brasil. Em algumas Cartas pastorais vêm à tona episódios extraordinários, de cunho épico, cheios de dramaticidade, como o assalto ao colégio de Piratininga e a fundação do Rio de Janeiro. Eles emanam da escrita como cenas de um filme a que assistimos com o coração na mão, na fronteira entre a catástrofe e a intervenção divina. No fragmento a seguir, em que ganha vulto o confronto em Piratininga, podemos apalpar a alegria contida de Anchieta, natural em quem vislumbra a vitória iminente, mas não omite o assombro com a destruição perpetrada pelo inimigo: Ao segundo dia de combate, [os inimigos], vendo-se mui feridos e maltratados, e perdida a esperança de nos poderem entrar, deram-se a matar as vacas dos Cristãos, e mataram muitas, destruindo grande parte dos mantimentos dos campos, e puseram-se a fugir já sobre a tarde, com tanta pressa que não esperava pai por filho, nem irmão por irmão, em cujo alcance saíram os nossos discípulos e tomaram dois deles, um dos quais quis ter por padrinhos os padres chamados por ele, dizendo que o haviam ensinado e catequisado, que seria seu escravo, mas pouco lhe aproveitou, pois sem nos dar conta disso Martim Afonso logo lhe quebrou a cabeça com sua espada de pau pintada e emplumada que para isso tinha já erguida com a bandeira, e assim fez para no mínimo apartar-se dos seus, que tão injustamente vinham para o matar, e a nós outros se Deus o permitisse. (XIV, p. 195) Em foco, o engenho de Anchieta, repórter e cronista, capaz de interpretar diligentemente os fatos e exprimir a rica experiência humana de estar em linha de batalha sem perder a dimensão sobrenatural dos acontecimentos. Em outras passagens, narra a labuta dos missionários percorrendo léguas e léguas, entre povoações distantes, para atender os doentes, assistir os agonizantes ou ouvir as confissões de escravos e de portugueses. Os religiosos iam ao encontro dos necessitados, não se importando com o perigo das emboscadas dos inimigos e das tribos hostis. Por vezes, nesses relatos, aflora a subjetividade, tal

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como no trecho emblemático de 1555, no qual o ainda irmão José transcreve o que lhe vai na alma, entrelaçando o foro íntimo com a descrição da penúria em que viviam na casa de Piratininga: (...) e creiam, caríssimos Irmãos, que ainda em estas partes há faltas das cousas exteriores, que Nosso Senhor, a quem as quer assim, por seu amor dá muita alegria interior, o que se vê bem aqui, que desde Janeiro até agora estamos, sendo algumas vezes 20 pessoas, em uma casa feita de madeira e palha, a qual terá de comprido 14 passos e 10 de largo, que nos serve de escola, dormitório e refeitório, enfermaria e cozinha e despensa e com recordar-nos que N. Senhor Jesus Cristo nasceu em um pobre presepe, entre dous animais e morreu em outro lugar mui mais estreito, estamos mui contentes nela e muitas vezes lemos a lição de gramática no campo. (p. 53) De fato, antes da casa maior, edificada para o ensino e a catequese, mestres e alunos enfrentaram as intempéries e toda sorte de privação; em contrapartida, era visível o interesse dos índios na aprendizagem da escrita tupi, dos rudimentos da aritmética e da catequese. E a pena de Anchieta, ao transcrever a adesão dos brasis, não deixa de traduzir, à sombra das palavras, a ternura íntima do mestre que acompanha com o olhar atento os nativos: (...) e como ordinariamente o frio nos incomoda da parte de fora, e, dentro da casa, o fumo; preferimos sofrer o incômodo do frio de fora, do que o do fumo de dentro. Já os meninos que frequentam a escola, cujo ânimo não se abala, expostos ao vento e ao frio, agora também aquentando-se ao calor da fogueira, em paupérrima e antiquíssima, porém, decerto, feliz cabanazinha, vemos que se aplicam à lição. (loc. cit.) Sobre os trabalhos internos e habituais dos jesuítas, comenta o canarino na Carta XI, de 1560: Para não deixar de dizer, pois, o que vem a propósito, quase nenhuma arte das necessárias para o comum uso da vida deixam de fazer os Irmãos; fazemos vestidos, sapatos principalmente alpercatas de um fio como cânhamo, que outros tiramos de uns cardos lançados n’água e curtidos, cujas alpercatas são mui necessárias pela aspereza das selvas e das grandes enchentes d’água: é necessário passar muitas vezes por grande espaço até a cinta, e algumas até o

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peito, barbear, curar feridas, sangrar, fazer casas e cousas de barro, e outras semelhantes cousas não se buscam fora, de sorte que a ociosidade não tem lugar algum na casa. (p. 161) É difícil discernir onde começa ou termina a heroicidade desses religiosos: se nos perigos e no risco de vida afrontados, decorrentes da traição de índios e falsos cristãos; se na disponibilidade incondicional de tudo aprender, de a tudo arrostar e de abrir-se com desassombro à mais rigorosa adversidade. Os entraves ao ensino e à catequese e, por isso, motivo de contínua apreensão, resultavam da deserção de grupos de índios. Esses alunos, já batizados, quando retornavam ao convívio anterior com seus iguais, quase sempre reassumiam os velhos hábitos: a bebedeira, o desregramento e o adultério, com exceção da antropofagia, que inclusive os desertores passaram a repudiar. Em algumas passagens das Cartas, o jesuíta alude à falta de perseverança dos indígenas, apontando, como uma de suas causas, a vida nômade a que estavam acostumados por causa dos conflitos tribais e da sobrevivência com os roçados, a caça e a pesca. Assim comenta o canarino na Carta IX: De maneira que os meninos que antes aprendiam, andam de cá para lá, e não somente não aprendem nada de novo, mas antes perdem o já aprendido; mas não é isso maravilha porque quase é natural desses índios nunca morar em um lugar certo, senão que depois de haver aqui vivido algum tempo se passam a outro lugar. (p. 103) Em contrapartida, o jesuíta, ainda na Carta IX, refere-se ao bom aproveitamento de alguns índios que, interpelados quanto às verdades da fé, mostram saber mais do que outros alunos de família cristã. A esses brasis se reporta, ao acrescentar que: muitos são assaz aptos para receber o Santíssimo Sacramento da Eucaristia, principalmente dos que chamam Carijós, dos quais muitos se ajuntaram aqui por amor da nossa doutrina; nestes reluz mais fervor e prontidão às cousas divinas, e são muito mais aparelhados para todas as cousas que estes com que vivemos, os quais não por ignorância porque assaz capacidade de juízo há neles, senão por malícia e pelo longo costume que têm em os males, se deixam de chegar à fé. (p. 104) Em outra Carta, de número I, esclarece-nos as razões por que os carijós e “ibirajáras” estavam mais bem preparados para entender e praticar a doutrina

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cristã, pois essas tribos “(...) são na verdade muito mansas e facilmente se chegam à razão; são todas sujeitas a um principal, vive cada um separadamente em sua casa com mulher e filhos, não se alimentam por maneira alguma de carne humana”. E mais especificamente sobre os “ibirajáras”, discorre no mesmo texto: “vivem satisfeitos com uma só mulher, e resguardam cuidadosamente as filhas virgens (o que outros não curam) e a ninguém, senão ao próprio marido, as entregam”. (p.58) O jesuíta, certamente leitor de São Tomás de Aquino, conclui suas reflexões sobre os carijós e “ibirajáras” referindo-se à lei natural: “Não creem em idolatria alguma ou feiticeiro, e levam vantagem a muitíssimos outros em bons costumes, de sorte que parecem aproximar-se da lei mais conforme à natureza”. (loc.cit.) O êxito do ensino e da catequese, no entanto, estendeu-se a outras tribos e as Cartas do missionário relatam inúmeras experiências de conversão e de reconhecimento do trabalho desenvolvido pelos jesuítas. É digno de nota o testemunho do índio Caubi – “principal de Jeribatiba” (p. 185), um dos que auxiliaram os jesuítas na fundação de São Paulo – já com mais de cem anos, deixou sua roça e fazendas que ficavam a duas léguas de Piratininga, para aprender “as cousas de Deus”, sendo um dos que povoaram a vila de São Paulo. Quando retornava às suas terras, antes se dirigia à igreja para se despedir de Deus e, posto de joelhos, dialogava em sua língua: “Senhor, eu vou buscar de comer, hei de tardar tantos dias, guardai-me, que não me aconteça algum mal”, e continua Anchieta: e [fazia] muitas cousas desta maneira, as quais falava com tanta simplicidade, falava com Deus como falava com os outros, a quem sempre pedia licença antes de ir à jornada (...). E nesta fé e simplicidade permaneceu sempre, ouvindo cada dia missa, e pregando continuamente a seus filhos e netos, que tinha muitos, para que fossem bons, para que cressem em Deus e guardassem o que lhes ensinássemos. (p. 177-8) Na perspectiva cristã, a maior perfeição não reside na complexa elucubração do adulto ou na intricada sofisticação do suposto intelectual, mas na simplicidade e na transparência da criança, mais apta ao Reino dos Céus. (Mt 11,25) Deus é simples.* Nessa linha de raciocínio, podemos inferir que Caubi foi um contemplativo que, tal como Santa Teresa de Lisieux séculos depois, viveu a infância espiritual. Testemunhos como o do “principal de Jeritiba” ajudam-nos * Em Deus não há composição, pois é perfeito. Etienne Gilson, ao resumir o pensamento de São Tomás de Aquino, ressalta: Deus é o ato puro de existir. “Ego sum qui sum”. (Êxodo 3, 13) (2001: 661).

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a entender por que não tem sentido a tese de que a cristianização era estranha à índole dos índios; ao contrário, havia nos brasis, da mesma forma do que em outras culturas, uma predisposição intrínseca de abrir-se à instância religiosa e ao amor de um Deus único e universal, o que se manifesta na espiritualidade de Caubi, e esteve igualmente presente na conversão dos celtas, godos, visigodos, escandinavos etc., que povoaram a Europa. De fato, em suas Cartas e, com maior ênfase, na Informação do Brasil e de suas capitanias (1584), Anchieta reporta-se a um obstáculo externo, o mais grave, ao ensino e à conversão dos indígenas, com forte ressonância na sociedade em formação: Por aqui se vê que os maiores impedimentos nascem dos Portugueses, e o primeiro é não haver neles zelo da salvação dos Índios etiam naqueles incumbit ex officio, antes os têm por selvagens e, ao que mostram, lhes pesa de ouvir dizer que sabem eles alguma cousa da lei de Deus (...). ( p. 342) A seguir Anchieta se faz porta-voz do indígena, abrindo espaço à imagem que infelizmente os brasis faziam do colonizador: O que mais espanta aos Índios e os faz fugir dos Portugueses e por consequência das igrejas, são as tiranias que com eles se usam obrigando-os a servir toda a sua vida como escravos, apartando mulheres de maridos, pais de filhos, ferrando-os, vendendo-os etc., e se algum, usando de sua liberdade, se vai para as igrejas de seus parentes que são cristãos, não o consentem lá estar, de onde muitas vezes os índios, por não tornarem ao seu poder, fogem pelos matos, e quando mais não podem, antes se vão dar a comer a seus contrários; de maneira que estas injustiças e sem razões foram a causa da destruição das igrejas que estavam congregadas e o são agora de muita perdição dos que estão em seu poder. (loc.cit.) Sobre o assunto, em Fragmentos Históricos, Anchieta acrescenta, referindo-se ao Padre Manuel da Nóbrega, de quem foi fiel companheiro nos empreendimentos mais relevantes na Terra de Santa Cruz: Era acérrimo defensor da liberdade dos brasis, sem querer admitir na confissão alguém que nisso fosse culpado. Sentia sumamente os roubos e assaltos que se faziam neles; chorava-os, bradava sobre isso publicamente e para remediar o que podia de sua parte, se meteu com os tamoios, como dito é, para fazer pazes

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com eles e aplacar a justa ira de Deus contra os portugueses (...). (p. 477) Na contramão do cristianismo e em constante conflito com os ideais do Evangelho, a escravidão será sempre um escândalo e, na Província do Brasil, a maior barreira à conversão dos indígenas e à catequização dos negros. As Cartas de Anchieta registram traições, ameaças e emboscadas de tribos que se tornaram hostis por causa do procedimento vil de alguns colonizadores, movidos exclusivamente pela ganância e sede de poder, tão bem caracterizados na fala do Velho do Restelo, em Os Lusíadas, como aqueles que à bruta crueza e feridade, chamam esforço e valentia (canto IV, 101-102). Não há solução de continuidade entre a vã cobiça e a glória de mandar e, o diametralmente oposto, o projeto de ensino gratuito e de catequização, instituídos como dom.

A formação de um povo A formação de um povo não se improvisa. É obra do tempo, larga e profunda; para ela concorrem vários fatores históricos e culturais, sempre diversos e dinâmicos, de difícil delimitação. Mas alguns elementos fundadores da integração social se deixam entrever, quando acompanhamos o percurso das ocorrências históricas de uma Nação, não só nos acontecimentos de vulto, mas nas ações correntes, à primeira vista, irrelevantes. É o ocorre na leitura das Cartas de Anchieta. Em algumas passagens, é possível tocar aqueles momentos de solidariedade em que os habitantes de uma região se tornam povo. Uma dessas conjunturas se dá logo após o assalto e o duro combate de Piratininga; passado já o perigo, com a alegria da vitória em forma de cruz, todos os que defenderam o Colégio: índios, portugueses, escravos e jesuítas se uniram ainda mais: muitos alunos do Colégio regressaram ao convívio com os Padres; os escravos foram atendidos em suas necessidades de saúde e conhecimento das “cousas de Deus”, igualando-se aos demais no combate e na comemoração da vitória, enquanto os portugueses consolidaram a adesão a um objetivo maior do que a busca da sobrevivência ou do enriquecimento nas terras brasileiras. Notamos que essa adesão se fez notar desde a preparação para a defesa da vila e, como desdobramento, na batalha e no enterro de Tibiriçá, também conhecido pelo nome de batismo, como Martim Afonso de Sousa. Ele foi o grande herói da guerra contra os inimigos de Piratininga. Conclamou todos a socorrer a escola e o que ela representava: (...) o qual juntou logo toda a sua gente, que estava repartida por três aldeias pequenas, desmanchando suas casas, e deixando todas as suas lavouras para serem destruídas pelos inimigos; e era

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tanto o cuidado que tinha de todos os portugueses, que nunca outra cousa fez em cinco dias que estivemos à espera do combate. (p. 197) Transparece na atuação abnegada de Tibiriçá a consciência de que ele lutava por algo maior do que ele mesmo (CAMPBELL, 1990:131), por um ideal que transcendia os limites de seus bens, de sua etnia e de sua vida: (...) pregando continuamente de noite e de dia aos seus pelas ruas (como é costume) que defendessem a igreja que os Padres haviam feito para os ensinar a eles e a seus filhos, que Deus lhes daria vitória contra seus inimigos, que tão sem razão lhes queriam dar guerra: e ainda que alguns de seus irmãos e sobrinhos ficaram em uma aldeia sem o querer seguir, e um deles vinha juntamente com os inimigos, e lhe mandou incutir grande medo, que eram muitos e haviam de destruir a vila, teve em mais o amor de nós outros e dos cristãos. (p. 194) O grande protetor do Colégio priorizou os laços que o ligavam aos Padres e a Cristo em prejuízo do pacto tribal. De forma intuitiva, ou em decorrência das aulas de doutrina e do batismo, ele se constituiu membro da grande família espiritual de Cristo, que é a Igreja. O próprio Tibiriçá deixou clara essa inserção, na altura em que morrera o Padre Pero Correia: “(...) já morreu o senhor do falar, aquele que nos falava a verdade, aquele que com o coração nos amava, já morreu nosso pai, nosso irmão, nosso amigo”. (p. 87) Por outro lado, há um sentido de justiça e de gratidão nas decisões de Tibiriçá, que pressupõe uma atitude de isenção relativamente aos seus: não havia motivo para que se destruísse a vila e o projeto de promoção humana e cristã que desenvolvia em favor dos nativos e dos demais. O caráter universal da cristianização, em sua vertente de ensino e catequese, alargava-se à sua gente, que o índio, com acerto, convocara para salvaguardar Piratininga. Tibiriçá, logo após a contenda contra os adversários do Colégio, vítima de “uma doença de câmaras de sangue”,* veio a falecer. Recebeu nas exéquias uma comovida homenagem dos aliados de Piratininga; o que contribuiu para fortalecer a unidade entre os beneficiários e colaboradores da vila. Com efeito, o ritual e a simbologia do enterro cristão conferiram outra significação àquela solicitude, que excedia o aqui e o agora, para inaugurar as páginas da memória de um povo: * Doença equivalente, nos dias atuais, à diarreia com fluxo de sangue.

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Foi enterrado em nossa igreja com muita honra, acompanhando-o todos os cristãos portugueses com a cera de sua confraria. Ficou toda a Capitania com grande sentimento de sua morte, pela falta que sentem, porque este era o que sustentava todos os outros, conhecendo-se-lhe muitos obrigados pelo trabalho que tomou em defender a terra; mais que todos creio que lhe devemos nós os da Companhia, e por isso determinou dar-lhe em conta não só de benfeitor, mas ainda de fundador e conservador da casa de Piratininga e de nossas vidas; porque havendo ele ajudado a fazê-la com suas próprias mãos, e havendo-nos ajudado a sustentar logo em princípio de sua fundação, quando Também aqui nos ocupamos em a doutrina dos escravos e mulheres dos Portugueses, a qual sempre se continua duas vezes não haviam portugueses alguns, agora o quis fazer Deus nosso defensor(...). ( p.197) É necessário considerar que essas formações esparsas de unificação dos núcleos habitados não se restringiram aos eventos insólitos, mas se realizaram em pequenas iniciativas e incidentes do dia a dia, cuja ressonância sobrepuja a dimensão factual, para introduzir valores e sugerir mudanças de comportamento, ainda que a longo prazo. É o caso das visitas efetuadas pelos jesuítas a lugares mais distantes para prestar assistência aos escravos tanto na saúde quanto na vida espiritual: Partindo dali voltámos pela praia buscando almas perdidas e desamparadas dos escravos dos cristãos que estão guardando suas lavouras; e achamos em diversos lugares cinco ou seis, e algumas em extrema necessidade de medicina espiritual, uma aqui, outra ali, em pobres cabanas metidas pelas selvas onde fazem seus mantimentos. (p. 202) As referências ao cuidado com os escravos são contínuas em muitas das Cartas: Nossa conversação com os próximos é costumada: ocupamonos na doutrina das cousas da fé e mandamentos de Deus com as mulheres dos cristãos, e seus escravos e escravas, nestes lugares em que dispargidos sempre se colhe algum fruto pela bondade do Senhor. (p. 187) Há uma instância em que os escravos têm os mesmos direitos e deveres dos demais: a relação com Deus; por isso, foram objeto de incansável diligência.

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E aqui já se começa a preparar o caminho para a abolição da escravatura, que se daria em 1888 por iniciativa real. Se em Deus não há acepção de pessoas, e todas são chamadas igualmente à salvação e à filiação divina, a escravidão é um acinte incompatível com a dignidade do ser humano, por quem Cristo derramou seu sangue. O percurso seria longo do ponto de vista legal, mas o grito de liberdade uma vez semeado na espiritualidade, certamente daria seus frutos no âmbito político e social no decorrer do tempo. Há um sermão do Padre José de Anchieta, proferido em 26 de outubro de 1567, em que é proposto, à reflexão do colonizador, um novo protótipo da relação: senhor-escravo, pautado na vida de Jesus Cristo. Na homilia, Anchieta ressalta a solicitude do Mestre em curar o servo do centurião, dispondo-se a ir pessoalmente até ele, quando não manifestara a mesma deferência com um doente de estirpe real, que curou à distância. É brilhante a transposição da atitude de Cristo para a realidade do público-ouvinte: Esta é a causa porque Cristo Nosso Senhor deixou de ir curar o filho do rei e se ofereceu tão liberalmente para ir sarar o escravo, para condenar a negligência do homens do Brasil que tão pouco caso fazem de seus escravos, que os deixam estar amancebados e morrer às vezes sem o batismo e sem confissão, e para que saibamos estimar as coisas segundo seu valor, não olhando no escravo, que é boçal e bestial e que me custou meu dinheiro, senão vendo nele representada a imagem de Cristo Nosso Senhor que se fez escravo para salvar este escravo, e me servir como escravo trinta e três anos, por me salvar a mim, que era escravo do diabo, para que eu também me faça agora seu escravo, trabalhando por seu serviço, em salvar-me a mim e a alma do meu escravo. ( p. 511) Cristo e seu intérprete, Anchieta, instauram uma outra lógica na apreciação do ser humano, que se contrapõe à hierarquia social baseada no poder, na riqueza e na aparência. Em consonância, Jerôme Basquet, ao estudar a sociedade feudal e a colonização da América, refere-se à força igualitária do cristianismo, capaz de inaugurar novos modelos nas relações sociais e políticas (BASCHET, 2006, p. 478). Por sua vez, Coulanges nos aponta a frase de Cristo que mudou o mundo antigo e tornou possível a união de etnias distintas: “Amai os vossos inimigos” (Mt 5,44), e que encerra um contínuo apelo de comunhão entre os homens; não oriundo do poder dos exércitos ou da opressão do Império, mas das relações interpessoais e políticas impregnadas de caridade. Os empreendimentos dos jesuítas são um exemplo da eficácia desse novo paradigma de relacionamento humano; em grande parte, responsável pela solução de conflitos e o fomento da

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justiça e da paz nos tempos turbulentos da colonização. Aqueles religiosos, sem o poder de legislar ou governar a capitania, detinham, no entanto, a autoridade moral perante índios, portugueses e escravos. Com efeito, em Iperoig, a delegação para o armistício foi bem recebida pelos tamoios, aliados dos franceses contra os portugueses, por causa da presença do Padres: “(...) [as duas partes] praticaram largamente até ficarem satisfeitos, sem suspeita de nenhuma mentira sabendo que iam os Padres, dos quais eles têm notícia de que não tratam, senão de ensinar a palavra de Deus”. (p.208) Foi graças à intervenção de Nóbrega e à abnegação de Anchieta, tornado refém dos tamoios, que se viabilizou um acordo de paz entre essa tribo e os portugueses, sem o qual provavelmente não se teria assentado o padrão de Portugal na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Anchieta e outros irmãos intermediaram várias “gestões diplomáticas” desse teor, que fortaleceram a unidade entre as nações indígenas e os portugueses: importante processo para instaurar um clima de concórdia e entendimento, que está na origem da formação de um povo com distintas matrizes étnicas. É claro que os casamentos formais e sacramentados de raças diferentes, sob o impulso dos religiosos, sempre atentos à mancebia entre brancos e negros, colaboraram para sugerir que era possível a integração entre as etnias. A miscigenação foi uma importante conquista rumo à brasilidade. Importa lembrar que os Colégios e Casas dos jesuítas, em sua dimensão de assistência aos enfermos, favoreceram igualmente a criação de um espaço de convergência em que todos eram assistidos. Não se tratava apenas de atender e curar os doentes, mas de acolher cada um com amizade e consideração, com o carinho próprio de família. Os laços da afetividade estabelecem vínculos mais eficazes e duradouros, e predispõem àquela congregação em que o agrupamento ensaia ser povo. Há um comentário de Anchieta sobre os assistidos na enfermaria do Colégio de São Vicente (1565) que expressa, com particular beleza, o ambiente propício à gestação de uma Pátria: É gente miserável, que em semelhantes enfermidades nem sabem nem têm com que se curem, e assim todos confugem a não nós outros demandando ajuda, e é necessário socorrê-los não só com as medicinas, mas muitas vezes com lhes mandar a levar de comer e a dar-lho por nossas mãos, e não é muito isto em os índios, que são paupérrimos, mesmo os portugueses parece que não sabem viver sem nós outros, assim em suas enfermidades próprias como de seus escravos: em nós outros têm médicos, boticários e enfermeiros; nossa casa é a botica de todos, poucos momentos está quieta a campainha da portaria, uns indo, outros vindo a pedir diversas cousas (,,,). (p. 250)

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Aos olhos do século XXI, a dedicação incansável de Anchieta pode parecer natural, mas perante os escravos e indígenas chamava muito a atenção. Desconcertava. Determinados gestos de apreço no atendimento aos enfermos, e de cuidado com quem fora injusto com os religiosos, e mesmo inimigo, fugiam completamente ao padrão de comportamento dos brasis. A educação por meio do exemplo é a mais eficiente, quando se trata de sugerir modelos de comportamento que promovem a unidade entre as etnias. Também os pequenos tijolos constroem, ao longo dos anos, o edifício da Nação. Sobre o tema, vale a pena ler, embora longo, o relato de Anchieta em que se apresenta um outro tipo de heroicidade, que as tribos agora tinham a oportunidade de conhecer: De maneira que os índios me tinham muito crédito, maximè porque eu lhes ocorria a suas enfermidades, e como algum enfermava logo me chamavam, aos quais eu curava (...). Entre esses enfermos foi um que aí estava dos do Rio, que porventura também veio com intenção de me matar, ao qual se inchou uma mão em tanta maneira que toda se corrompeu, a qual eu lhe abri em duas partes com uma lanceta, e a uma foi quase em meio da palma, em que podia bem fechar os olhos às mãos de Cristo Nosso Senhor e junto com isso se lhe empolou o braço até os ombros de umas inflamações tão feias, que os outros não se ousavam de chegar a ele, mas mirando-o de longe, me diziam que o curasse e fizesse não estendesse aquele mal pelos outros, e todos o desampararam sem se doer dele, nem dar-lhe de comer, nem houve entre todos seus parentes quem me buscasse um pouco de mel com que eu o curasse, e ainda que eu lho pagava; eu rompi uma camisa que tinha e curei-o com azeite, buscando-lhe de comer e dando-lhe por minha mão, porque ele não podia, a tudo o qual me ajudava meu companheiro com muita caridade, e às vezes tirávamos da boca esse pouco que podíamos haver, para lho dar, de que os índios se edificavam e contavam-o a outros que vinham de fora (...). (p. 237-8) Como podemos depreender, a compaixão não é espontânea no ser humano: os índios não a conheciam. Sua manifestação é cultural. Dela temos notícia, com maior evidência, nas livros do Antigo Testamento, mas foi Cristo quem, nas páginas do Evangelho, elevou a misericórdia à plenitude. Não é cristão presenciar o sofrimento do outro, sem padecer com ele, sem experimentar um pouco da sua dor. Na compaixão de Anchieta com quem tentou matá-lo, vira verdade aquela frase sempre desconcertante: “Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos [maltratam] e perseguem(...)” ( Mt 5, 44). Porém, paralelamente à catequese da vida, implantou-se a catequese da doutrina, indis-

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pensável para a formação de uma sociedade coesa, em que direitos e deveres se harmonizam. Sem o substrato de valores morais proposto pela catequese as incipientes e frágeis instituições do Estado do Brasil teriam enorme dificuldade para garantir a justiça e o bem comum. Como fundar uma Nação sem esse conjunto de convicções éticas que afiançam as relações políticas e sociais? De igual modo, no âmbito da catequização e do ensino, a unificação social se construiu com ações diárias, aparentemente de pouca ressonância, mas na realidade vigorosas e constantes, com o poder de conjugar a unidade com a diversidade étnica e cultural, inerente ao povo brasileiro. Os encontros diários ou semanais para difundir as verdades da fé fortaleciam os laços de fraternidade, enquanto convívio de presença física e como descoberta de que Deus estabeleceu com o homem uma aliança de amor; de pai para filhos, e de filhos entre si. O conteúdo desse pacto com a humanidade se concretizou nos mandamentos confiados a Moisés, que Cristo aperfeiçoou de modo cabal no Sermão da Montanha. Ora, o paradigma de comportamento e de ideal de vida sugerido pelo Mestre sempre fomentou atitudes pertinentes para gerar a paz entre os homens e, num plano mais amplo, entre os povos: o desprendimento dos bens, a justiça, a misericórdia, a retidão, a fidelidade ao bem em sua paradoxal dimensão de alegria e sofrimento. Ao lado das aulas, as cerimônias religiosas, em particular a missa aos domingos, de que as povoações participavam, reunia as etnias em torno do altar, propondo aos ouvintes, como diretrizes da existência, os desdobramentos do “Amar ao próximo como a si mesmo”. Em vários momentos da celebração todos eram convidados a contemplar e interpretar a própria vida na perspectiva do amor de Cristo. E as homilias de Anchieta não eram uma paráfrase abstrata da perfeição cristã, mas admoestações incisivas que intimavam à correção de certos costumes vigentes naquela sociedade sem rei nem lei: (...) todas as vezes que andas subtilizando maneiras, com que lhe leves o seu [do índio] ou lhe tires o ganho que podia haver cristãmente, a Cristo persegues e roubas todo o tempo; todas as vezes que tens a fazenda do pobre órfão e não lha queres pagar, podendo, a Cristo persegues, e lhe bebes o sangue, como lobo faminto. (Sermão da conversão de São Paulo, p. 530-1) Tal como a pedra arremessada às águas de um lago produz círculos cada vez mais largos, o paradigma preconizado por Cristo se difundia, por meio das leituras e homilias das missas, como elemento formador da opinião pública e chamamento contínuo à justiça e à paz.

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Conclusão Ao longo da leitura e comentário das Cartas, passando algumas vezes pelos Sermões e Fragmentos Históricos, tivemos a oportunidade de retroceder aos primórdios da fundação do Brasil. Foi enriquecedor acompanhar as observações de Anchieta nos momentos de descoberta e assombro perante o desconhecido e o insólito. Nesse sentido, a Carta X contribuiu para dar a conhecer ao mundo a exuberância da natureza tropical e a especificidade de sua gente, constituindo-se como versão preliminar da Literatura Brasileira. Seus escritos permitiram-nos conviver com os costumes indígenas e revê-los sob o olhar daquele que os conheceu de perto e lhes confiou os anos de seu inteiro existir. O Padre José, como era chamado, apresentou-se ao leitor, isento de preconceitos, em permanente atitude de valorização dos brasis, aos quais dedicou seus conhecimentos de apóstolo, gramático, médico e artista, facultando a todos e, de modo particular, aos índios a possibilidade de transpor os limites de uma cultura da guerra para adentrar a civilização do amor, não obstante os fatos dolorosos que a negavam. Não cometeu a injustiça de segregá-los e deles desistir em função dos riscos que enfrentou ou da esterilidade de algumas iniciativas. Ao contrário, concedeu aos brasis o conhecimento das letras, da aritmética, das artes e da doutrina, garantindo-lhes o pleno desenvolvimento de suas potencialidades. Foi heroico no intento de não abandoná-los a si mesmos, negando-lhes o direito de conhecer o cristianismo e de cultivar a interioridade, onde se dá o conflito entre vícios e virtudes. O usufruir da liberdade humana passa pelo foro íntimo e conduz a caminhos que não se confundem com a lei da sobrevivência das espécies: é um processo lento, incentivado pelo estudo, pela percepção das paixões e pelo domínio dos impulsos instintivos. E o ganho é inestimável: a posse de si mesmo, o convívio com a alteridade e a integração social, de que depende a formação de um povo e a arquitetura de uma Nação. A conquista da liberdade nos moldes cristãos é elevada, pressupõe conhecimento, formação e fidelidade aos desígnios de Deus, mas o homem certamente não merece menos do que ela.

Bibliografia de referência: ANCHIETA, José de. Cartas, Fragmentos Históricos e Sermões (Cartas Jesuíticas 3). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade São Paulo, 1988.

Poesias. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade São Paulo, 1989.

BALDSON, Johon Percy Vyvian Drace. Roman women: their history and habits. New York: Barnes&Noble, 1998.

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Postal da Fazenda Morro Azul, situada em Iracemápolis, SP, adaptado pela artista plástica Beatriz Bueno de Miranda R. V. de Azevedo, com base no antigo cartão de visitas de um dos proprietários da fazenda, Luiz Bueno de Miranda, impresso em Paris.

“Passarinhos Na casa que ainda espera o Imperador As antenas palmeiras escutam Buenos Aires Pelo telefone sem fios Pedaços de céu nos campos Ladrilhos no céu O ar sem veneno O fazendeiro na rede E a Torre Eiffel noturna e sideral” (Oswald de Andrade: Pau Brasil, poesia, 1925)

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Fazenda Imperial Morro Azul: tradição e vanguarda (1817-2017) Imperial Farm Morro Azul: Tradition and avant-garde (1817-2017)

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(sócia titular do IHGSP)

Resumo: A Fazenda Morro Azul, situada em Iracemápolis, SP, possui valor histórico e artístico. Sua atual sede, concluída em 1877, no estilo eclético, é considerada das mais requintadas dessa rica região. O Imperador D. Pedro II visitou-a por duas vezes, em 1876 e 1886. No século XX, o Mal. Rondon, Santos Dumont etc., em especial os intelectuais e artistas modernistas, além de escritores franceses. Em 1914, seu terceiro proprietário, Luiz Bueno de Miranda, identificou, entre as palmeiras que a cercam, a Torre Eiffel Sideral, desenhada por dez estrelas. A Fazenda Morro Azul foi cantada em prosa e versos, em francês e em português.

Abstract: Morro Azul Farm, located in Iracemápolis, São Paulo, has historical and artistic importance. Its current farmhouse, concluded in 1877, in eclectic style, is considered as one of the most exquisite in that rich region. Emperor D. Pedro II visited it twice, in 1876 and 1886. In the 20th Century, Marshall Rondon, Santos Dumont, etc., especially modernist artists and intellectuals, as well as French writers have visited it. In 1914, its third proprietor, Luiz Bueno de Miranda, identified, among the palm trees that surround the farmhouse, the Sidereal Eiffel Tower, drawn by ten stars. Morro Azul Farm has been sung in verse and prose, both in French and Portuguese. Keywords: farm, writers, artists, modernists, paulistas (São Paulo State inhabitants), French people.

Palavras-chave: fazenda, escritores, artistas, modernistas, paulistas, franceses.

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Podemos dizer que a Fazenda Morro Azul*, no que se refere à sua concepção espacial, tanto com respeito à sua função agrícola quanto de moradia, traz em seu bojo elementos da tradição e das vanguardas paulistas, quer agrárias quer culturais, considerando-se as diversas épocas que atravessou ao longo de seus duzentos anos de vida: Império, República, Modernismo, crises de 19291930, até nossos dias. Trata-se de um importante documento de nossa História econômica e cultural, história essa quase inverossímil, onde ficou gravada a grande afinidade existente entre o Brasil e a França. Situada no atual Município de Iracemápolis que, até 1953, fazia parte da Comarca de Limeira, a Fazenda Morro Azul – morro que, ao longe, é verdadeiramente azul – insere-se na sempre rica e próspera Zona Oeste do estado de São Paulo. A atual casa sede da Fazenda é considerada uma das mais luxuosas e requintadas dessa região compreendida entre Jundiaí, Itu, Porto Feliz, Campinas, Mogi Mirim, Piracicaba etc., cuja prosperiFazenda Morro Azul, na antiga Comarca dade começou ainda em finais do de Limeira, SP: no centro, a casa sede século XVIII, graças à produção concluída em 1877, por iniciativa de Silvério do açúcar, seguida pela do café, Rodrigues Jordão, e, à direita, o antigo solar depois, da laranja, e novamente, do Brigadeiro Jordão. Foto de Guilherme do açúcar e do café. Gaensly, 1895, reproduzida pela fotógrafa Renata Carvalhaes C.R. Faustino, 2016, do A partir de 1769, quando teve álbum digital pertencente à família Jordão. início a escassez do ouro das minas, concomitante ao desaparecimento do grande interesse pela preação dos índios, a exploração agrícola passou a ser intensa na região de Piracicaba, antiga Vila Nova da Constituição. O povoamento começa pelo processo das sesmarias cuja exploração se baseou, principalmente, na mão de obra escrava. As terras férteis atraíram também rendeiros, posseiros e empregados rurais.** A Fazenda Morro Azul procede da sesmaria do mesmo nome (envolvendo o Ibicaba), outorgada em 13 de janeiro de 1817, por D. João VI, a Joaquim Galvão de França, José Galvão de França e Manoel * A palavra “Imperial” foi acrescentada no título deste artigo, dados os vínculos históricos e culturais que a Fazenda Morro Azul manteve com o Império do Brasil e com a pessoa de D. Pedro II. ** Neme, Mário. História da Fundação de Piracicaba. Piracicaba-SP: Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, 2ª. ed., 1974, p. 23.

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de Barros Ferraz, tendo “légua e meia em quadra na freguesia de Piracicaba, na cabeceira do ribeirão Pinhal, fazendo pião no cume do lugar denominado Morro Azul”. Foi a sesmaria mais importante e de maior significado para o desenvolvimento de Limeira, devido à qualidade das terras, à produtividade e ao desenvolvimento populacional do Município.* Dela provêm, ainda, as Fazendas Ibicaba, Paraguassu, Paramirim e Laranja Azeda ou Santa Gertrudes. Cada engenho, fazenda ou sítio possuía seu caminho particular mais ou menos precário, interligando a propriedade com as vilas de Constituição (Piracicaba), Mogi Mirim e São Carlos (Campinas)**. Os engenhos do Ibicaba, Morro Azul, Geada e Cascalho tinham grande produção de açúcar, enviado ao exterior pelo porto de Santos e transportado por troSede da Fazenda Morro Azul: fachada pas de mulas. Para tanto, fazia-se social. Foto MCNHomem, por ocasião do necessária uma estrada via Camcolóquio Internacional realizado na USP: pinas, direta para a capital. O “A Utupialândia de Blaise Cendrars”, ag. 1997, capitão-general João Carlos Aucujos participantes foram recepcionados gusto de Oeynhausen Gravenburg na Fazenda. (1776-1838), último capitão-general e governador de São Paulo, autorizou, em 1820, a abertura de uma nova estrada que ia de Jundiaí a Campinas e desta ao Morro Azul, por onde já passava a estrada de Piracicaba para São João do Rio Claro. Essa iniciativa, concretizada em 1823, realizou-se com a cooperação dos proprietários lindeiros, que cediam seus escravos para atender à notificação do governo. Entre os primeiros povoadores daquelas terras, citam-se Manoel Rodrigues Jordão, proprietário do Morro Azul, por volta de 1820, assessorado por Antônio José da Silva (Gordo), também juiz de paz, que administrou esse engenho a partir de 1821; Nicolau de Campos Vergueiro, no Ibicaba; Antônio Ferraz de Campos, no Cascalho; João Antônio da Silva e Joaquim Antônio da Silva; Bento Manoel de Barros e o capitão Manoel Ferraz de Campos, nas encostas do Morro Azul; José da Cunha Maciel, na Geada; José Joaquim de

* Livro das Sesmarias, V. IV, p.264, Departamento do Arquivo do Estado, in: Busch, Reynaldo Kunst. História de Limeira. Limeira-SP: Prefeitura Municipal de Limeira, 1967, p. 25 ** Busch, op.cit., p. 24

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S. Paio (sic), na Lagoa Nova; e o capitão Manoel da Cunha Bastos, no Tatu e na Lagoa Nova*. No recenseamento de 1822, realizado em Constituição, aparece o Brigadeiro Manoel Rodrigues Jordão como proprietário da Fazenda Morro Azul e possuidor de 64 escravos, o qual teria disponibilizado 20 trabalhadores para a construção da referida estrada. Comerciante e agricultor, o Brigadeiro, filho do homônimo: Tenente Manoel Rodrigues Jordão era natural de São Paulo, onde nasceu em 1781. Foi dono de uma das maiores fortunas de sua época, a ponto de suprir os cofres públicos em algumas de suas necessidades. O Brigadeiro possuía um total de dez fazendas. Fazenda Morro Azul: casas da colônia, Além da Morro Azul, o Engenho com portas e janelas em arco, influência de Nossa Senhora do Rosário, em do neoclássico, e diversos trabalhadores, Itu, o Retiro Dois Corações, as Favendo-se o capataz em frente à primeira. Foto Guilherme Gaensly, 1895, reprodução zendas Benfica e Paiol, em Itapetida fotógrafa Renata Carvalhaes C.R. ninga, tendo doado parte das terras Faustino, 2016, do álbum digital desta última (112,5 alqueires) para pertencente à família Jordão. a construção da cidade de Tatuí; a Fazenda Paraíso, em Piracicaba; a Laranja Azeda ou Santa Gertrudes, em Rio Claro; as Fazendas Ribeirão Santo Antônio, em Areias; Fazenda Bonfim, em Caçapava e Taubaté; Fazenda Felipe, em Pindamonhangaba e a Fazenda Natal, grande propriedade agrícola, no local denominado Baú, o que ligou seu nome à estância de Campos do Jordão e a São Bento do Sapucaí. Na capital, o Brigadeiro Jordão residiu num amplo sobrado de taipa, situado no local denominado “Quatro Cantos”, isto é, na Rua Direita (n. 26), esquina com a Rua de São Bento, depois transformado no Hotel Maragliano e no Hotel de França. Gozava de muito prestígio. Ele e seu sobrinho Antônio da Silva Prado, futuro Barão de Iguape, hospedaram o príncipe D. Pedro quando de sua vinda a São Paulo, em agosto de 1822. Foi nas terras da Fazenda das Palmeiras, no Ipiranga, pertencentes ao Brigadeiro Jordão, que se deu a Proclamação da Inde* Idem, ibidem, citado por: FORJAZ, Djalma. Senador Vergueiro, 1924.

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pendência, no dia 7 de setembro de 1822, episódio no qual figura ao lado de D. Pedro, no famoso quadro alusivo àquela, realizado pelo pintor Pedro Américo*. Como político, o Brigadeiro Jordão também exerceu muita influência, na capital, em Jundiaí e Itu, e prestou grandes serviços ao país. Com Martim Francisco, liberal, foi contra o movimento de cunho conservador, conhecido como a Bernarda de Francisco Inácio de Souza Queirós. Deputado do Comércio, foi o último Morgado de São Paulo, título hereditário, extinto por lei portuguesa, em 1821. Foi membro do governo provisório da Província, aclamado pelo povo em 23 de junho de 1821, e do Conselho do Governo, eleito para a primeira legislatura. Designado por José Bonifácio, redigiu as “Instruções” que os deputados paulistas levaram às cortes de Lisboa, em 1821, cujo primeiro grupo lá chegou, a 11 de fevereiro de 1822**. Ao falecer, em 1827, deixou quatro filhos de seu casamento com D. Gertrudes de Oliveira Lacerda, filha do Brigadeiro José Pedro de Moura Lacerda, contraído em 1820. Seu último filho, Silvério Rodrigues Jordão (1826–1882), herdou a Fazenda Morro Azul, tendo ficado com a parte onde se encontra a atual sede. Calcula-se que o herdeiro tivesse apenas oito meses de vida quando o pai faleceu. Silvério Rodrigues Jordão casou-se em São Paulo em 1850, com Maria Benedita Cananea, filha do Major Joaquim de Souza Guimarães Cananea e de Francisca Carolina Gomes de Almeida (Registro de Casamentos da Sé, livro 5, fls. 79), com quem teve quinze filhos. Dez anos antes, Silvério já iniciara com sucesso a plantação de café na fazenda Morro Azul, em substituição à cana de açúcar. Valia-se da mão de obra dos imigrantes europeus que residiam na colônia que fizera construir. Bem sucedido, tornou-se pessoa influente em Limeira, tendo sido eleito chefe do partido liberal do município e da zona subsidiária. Em 1870, foram desmembradas duas áreas da fazenda que deram origem às fazendas Quilombo e Iracema. A sede da fazenda foi erguida posteriormente por Silvério, em homenagem à sua esposa. Não se sabe o ano do início da sua edificação, que terminou em 1877, conforme ele fez gravar numa placa de mármore na entrada, onde a oferece à sua mulher. Esse momento coincidia com a ida da maioria dos fazendeiros e dos comissários de café para as cidades, de preferência para a capital paulista, onde começariam a edificar seus palacetes em meio a jardins, afastados das divisas dos lotes. * Ribeiro, Maria José. “Notas biográficas do Brigadeiro Manoel Rodrigues Jordão”, coletadas pela socióloga, ex-proprietária da Fazenda Quilombo, Limeira, SP. Paulo Filho, Pedro. Campos do Jordão. Onde Sempre é Estação. São Paulo, Noovha América, 2003, p.8. (Col. Conto, canto e encanto com a minha história...). ** Minhoto Júnior, Laurindo. “Brigadeiro Manoel Rodrigues Jordão”, in: Revista do IHGSP, v. XXV, p. 201-214; Amaral, Antônio Barreto do. Dicionário de História de São Paulo,.São Paulo: IMESP, 2006, Coleção Paulística, p. 358, 218-220.

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Sede da Fazenda Morro Azul: passagem da sala de visitas para a de jantar, vendo-se a porta de um dos dormitórios, indicativa de que a falta de privacidade persistia em muitas residências do Ecletismo, tanto rurais quanto urbanas. Foto MCNHomem, 2001.

Sala de jantar da sede da Fazenda Morro Azul, a mais ampla, dominando a composição, e ponto de encontro da família. Mobiliada com cadeiras Thonet, possui janelas com bandeiras no estilo neoclássico, e saída para o pátio dos fundos, ajardinado, voltado para uma gruta de pedra. Foto MCNHomem, de 2001.

Tanto a arquitetura quanto o programa das necessidades da casa da Fazenda Morro Azul apresentam uma série de inovações, mas persistem alguns elementos das casas rurais do período colonial. Foi realizada com preocupação estética, em estilo eclético, predominando o neoclássico de gosto fluminense, introduzido pela Missão Artística Francesa, presente no Rio de Janeiro desde 1816. Em seus vínculos com a corte, a nova sede teria paralelo com as fazendas mais luxuosas do Vale do Paraíba, como a do Secretário, em Vassouras-RJ, construída em 1830, a Resgate, em 1828, e São Luís da Boa Sorte, 1840, ambas em Bananal-SP, embora anteriores à sede da Morro Azul. Trata-se de uma construção feita em tijolos e com materiais importados: ferro, pinho-de-Riga, mármores etc., ostentando na fachada azulejos provenientes de Portugal, Holanda e da Inglaterra, mais balaústres, além de outros elementos pré-fabricados: portas, bandeiras, vidros, caixilhos, canos, azulejos, calhas, torneiras, lavatórios, sifões, peças sanitárias como banheiras, pias e semicúpios etc. A sede foi dotada de edículas, com W.C. e banheiras de mármores, de água encanada e corrente nas pias e lavatórios providos de torneiras douradas. São

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materiais que se vulgarizaram com a Revolução Industrial, parte foi importada, parte veio das cidades, recebidos, primeiro, em carros de boi, que percorreram 120 km, desde Campinas até o destino, e, já em 1876, pelos trens da Companhia Paulista de Estrada de Ferro. Nesse período foram introduzidas máquinas de beneficiamento mais modernas, não só nas grandes plantações como também no comércio urbano de grãos, farinhas e açúcar. Os melhoramentos não pararam por aí. A Fazenda Morro Azul seria uma das propriedades rurais favorecidas pelo progresso material. A casa, que mede 1200 m2, é assobradada e sua implantação está em desnível, aproveitando-se da topografia irregular, tradição herdada de Portugal, que permitia o porão no subsolo da parte fronteira, a ser utilizado para oficinas, depósito e outras finalidades, e a moradia no térreo, dito andar nobre. Planta retangular, na zona social, com duas alas nos fundos, cujo centro adquire a forma de um bico avançando sobre o pátio interno. O conjunto lembra um pássaro pronto para voar, com toda a probabilidade consoante o gosto do terceiro proprietário, o qual, amante dos pássaros, proibia que os colonos, imigrantes em sua maioria, os caçassem na fazenda. A planta 1920: Visita do Mal. Cândido Rondon à ora apresentada foi levantada pelo Fazenda Morro Azul, recepcionado pelo proprietário, Luiz Bueno de Miranda. Os Condephaat, em 1976, na época do azulejos são amostra de um dos tipos tombamento do imóvel.* Refere-se a que recobrem a fachada da Fazenda. uma reforma posterior, realizada por Fotomontagem de Beatriz Bueno de volta de 1911, por Luiz Bueno de MiMiranda R. V. de Azevedo, do Álbum randa, o qual procurou modernizá-la, de Família: Beatriz, Eduardo e Fábio, como veremos adiante. reproduzida por Renata Carvalhaes C. R. Faustino, 2016. Palmeiras imperiais emolduram o palacete e complementam seus vínculos com a corte. Segundo os atuais proprietários, foram presente do Imperador D. Pedro II, que visitou a Fazenda por duas vezes, em 1876 e em 1886, quando de passagem para Poços de Caldas, com o objetivo de se tratar com as águas termais por ter contraído malária. Numa dessas ocasiões, doou o sino de * Está baseada no levantamento preliminar feito pelas arquitetas Vera Ferraz e Sonia Hagge, pertencentes ao pessoal técnico do Condephaat.

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bronze da fazenda, que hoje se encontra na Igreja de Nossa Senhora do Brasil, São Paulo, ofertado em 1954, por D. Laura Sá Leite Bueno de Miranda, então proprietária da Morro Azul. O renque de palmeiras que ora margeia a avenida que conduz à atual sede foi plantado pelo Marechal Rondon, que aí esteve em 1920, e foi recebido por Bueno de Miranda. Essa visita deixou forte impressão no Marechal que assim se refere à fazenda: ... Com a velha aristocracia da riqueza que representou a ainda representa a formação e o desenvolvimento do poder paulista, Morro Azul se mantém erecto (sic), com o seu quasi (sic) meio século de existência, ensombrado pelas esbeltas palmeiras cujas folhagens bem alto contam a beleza da terra brasileira.* A fachada principal compõe-se de patamares superpostos, cercados por balaústres, cujo corpo central avança, encimado por uma cúpula. A escadaria fronteira conduz ao porão e, em seguida, ao grande patamar do andar nobre, onde um hall, com quatro portas, se situa entre dois terraços. Internamente, a disposição dos cômodos alterou-se. Por influência das casas urbanas, o palacete apresenta uma grande sala de visitas junto à entrada, mas persistem a capela à direita, e escritório ou dormitório de hóspede, à esquerda, conforme a tradição rural. Neste, uma luneta Um dos dormitórios da Fazenda Morro Azul, evoca o proprietário que era astrômostrando o lavatório de madeira, com pia nomo amador, uma mesa antiga de mármore e torneira dourada, modelo do que pertenceu ao Regente Feijó, e século XIX. Foto MCNHomem, 2001. uma cadeira de balanço. Desaparecem as alcovas, substituídas por uma sucessão de dormitórios e alguns quartos de banhos e banheiro dando para essa sala, todos eles dotados de lavatórios. A sala de visitas é mobiliada com móveis de palhinha, ao gosto do século XIX: um sofá com três assentos, seis cadeiras e duas poltronas, lustre de cristal e bronze e uma grande vitrine recheada de objetos antigos, porcelanas e cristais.

* Registrado no Álbum de Família: Beatriz, Eduardo e Fábio.

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Na parede, sobressai a foto de D. Pedro II com a família, em Poços de Caldas, datada de 1887, evocando sua presença na propriedade*. A seguir, nos fundos, em posição central, a grande sala de jantar, ampla mesa com cadeiras de madeira entalhadas, tendo como tema algumas das principais cidades italianas e a entrada do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, obra do artista italiano Teodoro Bellucca, radicado em São Paulo. Duas pias de mármore e três janelas e porta voltadas para o pátio dos fundos, ajardinado. Junto à sala, a copa e saídas laterais que conduzem aos dois terraços. A bela porta central abre-se para o pátio ajardinado. Na ala esquerda, despensa, ampla cozinha com fogão a lenha e dois dormitórios. Na direita, uma bateria de dormitórios, dois banheiros, terminando com um apartamento independente, hoje destinado ao caseiro, provavelmente antiga ala utilizada para negócios e para hospedar viajantes. Uma enfilade, isto é, sucessão de portas ordenadas em ângulo reto, com bandeiras ao gosto palladiano, adotado pelos ingleses, senhores do comércio internacional. Os terreiros não ficavam na frente da residência, como a maioria das fazendas escravistas – que os colocava na posição dianteira para melhor controlar a mão de obra – mas afastados, substituídos por jardins que se estenderam até os fundos, junto aos serviços, e ao pátio voltado para uma gruta de pedra, também circundada por jardins. Estes, quando em posição fronteira, seriam de período posterior, em que Conjunto das termas revestidas de a fazenda foi adquirida por Luiz mármore, servidas por água mineral, Bueno de Miranda, em 1911. Secanalizada diretamente da fonte. Foram gundo a atual família proprietária, construídas na Fazenda Morro Azul para são de autoria do professor belga uso de D. Pedro II e da Imperatriz, em 1877 e 1886. A banheira, no segundo plano, foi Arsène Puttemans (1873-1937), esculpida num só bloco desse material. patologista de plantas que lecionou Foto MCNHomem, de 1997. na Escola Politécnica de São Paulo (1903-1910), tendo realizado, entre outros, os projetos dos jardins do Ipiranga, da Várzea do Brás, do Instituto Bio-

* Cf. depoimento de Beatriz Romeiro Bueno de Miranda, uma das atuais proprietárias da Fazenda Morro Azul.

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lógico de São Paulo e do Parque da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz - ESALQ, Piracicaba.* Atualmente, podemos ver também outros símbolos da maçonaria e elementos que evocam a história dos hebreus. Lá se encontram, ainda, os dois pavilhões de banhos, o “do Imperador” e da Imperatriz, D. Tereza Cristina, que eram dotados de torneiras de ouro e servidos por água mineral encanada proveniente das nascentes do Morro Azul. O primeiro, mais preservado, dispõe de W.C., piso e banheira de mármore em bloco único, para uso de Sua Majestade. No segundo, gêmeo do primeiro, havia outra banheira de mármore em bloco único, que teria feito parte do pavilhão destinado à Imperatriz, posteriormente deslocada, ora no centro do pequeno espelho de água, situado abaixo do caminho de entrada, em frente à casa principal. Esse pavilhão é hoje utilizado como subestação elétrica, dito, na planta, “casa do tronco”, nome que evoca os castigos corporais característicos do período da escravidão. Existe acima dos banhos mais um pavilhão que se assemelha a uma capela, hoje cabine de força.** Dois anos após o falecimento de Silvério Rodrigues Jordão, a propriedade foi dividida entre seus filhos. Mas a crise econômica de 1908-1909 levou-os a dificuldades financeiras, de modo que ela acabou leiloada, juntamente com a Fazenda Morro Alto, para pagamento de execução alfandegária que lhes moveram a Prado Chaves &Companhia. O edital de 24 de agosto de 1908, expedido pela Comarca de Limeira, informa que os herdeiros eram em número de dez, além de genros, noras e netos. Cada fazenda possuía 300 alqueires de terras. A Morro Azul dispunha de uma série de benfeitorias. Entre outras, salientamos: cafezal com onze mil pés de café novos e 61.497 ordinários, pastagens e capoeiras, diversas cabeças de gado vacum e cavalar, 60 carros de milho, pomar, galinheiro, quatro carroções velhos, carrocinha, carretão, arados, oficinas, torradores e moinhos de café, alambique etc. e uma colônia composta de 27 lances de casas. O referido edital ainda menciona engenho de cana, engenho mecânico, máquina a vapor, cocho para garapa, moinho d´água, gruta, casa de máquina, serraria, máquina para beneficiar café, moinho etc. A Fazenda estava equipada com cinco cultivadores “Luiz Bueno” e dez “Antonio Prado”, dois arados e cinco carpideiras. Pouco se conheceu acerca da primeira sede da Fazenda Morro Azul, construída pelo Brigadeiro Jordão. Situada em patamar elevado, ficava ao lado da * http://www.esalq.usp.br/parque/toppage1.htm; Climino, Marli de Souza Saraiva. Iluminar a Terra pela Inteligência: Trajetória do Aprendizado Agrícola de Barbacena, MG (1910-1933). Tese (Doutorado), Rio de Janeiro, Universidade do Rio de Janeiro – Faculdade de Educação, 2013. ** Kehl, Luiz, engenheiro, A Fazenda Morro Azul: Reativação do Conjunto Hidráulico (As Termas do Imperador), relatório 01/97 – A (Parcial), 4 de agosto de 1997.

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atual. Teria tido dois mil metros quadrados de área construída, cujos vestígios arquitetônicos foram localizados em toda a área vizinha, onde se encontram hoje as aleias e os espelhos de água do “jardim velho”, envoltório da atual sede. O engenheiro Luiz Kehl, que realizou uma prospecção no lugar, em vista da recuperação do conjunto hidráulico das Termas Imperiais, construídas para a hospedagem do Imperador D. Pedro II, calcula que também tenha sido sofisticada, servida por um sistema de canaletas para a entrada de água corrente na propriedade. Escreveu ele, em seu relatório datado de 4 de agosto de 1997: Observamos também que a Fazenda Morro Azul é, na verdade, um tríplice objeto: a que Silvério Jordão construiu e dedicou à sua esposa, em 1877; a que Luiz Bueno de Miranda modernizou e reformou, em 1911, criando espelhos d´água do “jardim velho”; e, sob tudo isso, repousam silenciosas as fundações da velha casa do Brigadeiro.* Os descendentes de Luiz Bueno de Miranda e de sua esposa D. Laura Sá Leite de Miranda guardam uma foto da primitiva sede, tirada pelo fotógrafo suíço Guilherme Gaensly (1843-1928), em 1895, raridade que temos o prazer de mostrar neste trabalho.** Pode ter se transformado em casa das máquinas, antes de sua demolição. No começo do século XX, a Fazenda passou às mãos da Cia. Prado & Chaves, firma exportadora de café, fundada em 1887 e administrada por Paulo Prado. Nesse período, a Cia. recebeu 14 fazendas, num total de quatro mil alqueires de terra e cerca de três milhões de pés de café, além das respectivas benfeitorias. Luiz Bueno de Miranda (1868-1948), ligado à família Prado pelos negócios de café, acabou gerenciando esse acervo, o qual tornaria lucrativo. Natural de

Avenida Mal. Rondon: renque de palmeiras guarnecendo a estrada que leva à sede da Fazenda Morro Azul, doadas pelo Marechal quando a visitou, em 1920. Foto do Álbum de Família: Beatriz, Eduardo e Fábio, reproduzida pela fotógrafa Renata Carvalhaes C. R. Faustino, 2016.

* Cf. cópia do relatório em poder de Fabio Bueno Romeiro Filho, um dos proprietários atuais da Fazenda. ** Gaensly, Guilherme: https://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme Gaensly

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Campinas, era filho de Francisco Bueno de Miranda e Amélia Leopoldina Alves Bueno de Miranda. Nasceu na antiga residência do parque conhecido como Bosque dos Jequitibás, que foi arruado pelo arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo, hoje tombado pela prefeitura de Campinas. Agricultor e jornalista, Luiz Bueno provinha de uma das regiões onde se iniciara a modernização do processo produtivo do café, que contava com sólida estrutura de pesquisa e assistência agronômica.* Comprou máquinas para modernizar a lavoura, arados de disco, cultivadoras, carpideira, grades etc. que resultaram econômicas, manejadas por um só trabalhador e puxadas por um só cavalo. Luiz acabou aperfeiçoando o rendimento das máquinas, criou os cultivadores “Paulo Prado” e “Luiz Bueno”, que podiam ser manejados por mulher. O primeiro, puxado por dois cavalos, conseguia fazer em média, mil pés de café por dia. O segundo, com oito discos, também puxado por dois animais, atingia um rendimento de dois mil pés de café por dia e era destinado ao trato do cafezal, impedindo o crescimento de ervas daninhas. Dessa forma, Luiz Bueno de Miranda conseguiu restaurar a lavoura e as boas safras. Com o tempo, passou a cultivar laranja, transformando-se no segundo maior exportador de laranja do Brasil, providência que o teria livrado da crise de 1929-1930.** Diversos acionistas da Cia. Prado & Chaves acabaram comprando algumas dessas fazendas. Em janeiro de 1911, o próprio Luiz adquiriu a Fazenda Morro Azul, a qual reformou e nela introduziu outras benfeitorias, embora sempre respeitando o seu valor histórico. Muito bem relacionado, a Fazenda tornar-se-ia um importante ponto de encontro de políticos, intelectuais e diplomatas estrangeiros, além de escritores e artistas ligados ao movimento Modernista, que passaram a visitá-la ou nela se hospedar. Vinham de São Paulo, Campinas, Limeira, Piracicaba, Rio de Janeiro etc. ou do exterior, em especial da França e da Argentina. As visitas começaram ainda naquele ano: Alexandre Malfatti, tio da artista plástica Anita Malfatti, Família Florence; Pedro Luís Pereira de Souza, Pedro Gad, cônsul da Noruega. Barão de Vampré e família, pessoas ligadas ao clã Silva Prado: Ernesto Ramos, 1916-1917 e William J. Sheldon, 1916. Salientam-se, ainda, o Maestro Souza Lima, 1912; os franceses M. de Chabaleyret e M. de Montgolfier, o arquiteto Samuel das Neves, 1918; Carl e Ilse Reibel, cônsules * Os fazendeiros locais, detentores do poder econômico e político, pressionaram o governo federal e viabilizaram em Campinas, centro nevrálgico da cafeicultura, a criação de um importante complexo de ciência e tecnologia, especializado em agricultura, tendo como base o Instituto Agronômico de Campinas, criado em 1887, e a Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Estado de São Paulo. Argollo Ferrão, André Munhoz, Arquitetura do Café, Campinas, SP, Ed. Unicamp, São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004, p. 44. ** Idem, ibidem, p. 134.

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da Áustria, 1923; e o pioneiro da aviação, Alberto Santos Dumont, com quem o fazendeiro se correspondia, além do já citado Mal. Cândido Rondon. O proprietário da Fazenda Morro Azul era francófilo, como a maioria dos intelectuais da época, em que o francês, língua da ciência, da diplomacia e das cortes europeias, era o segundo idioma do Brasil, ministrado em todas as escolas e universidades. Apaixonado por Sarah Bernhardt, foi quem a recebeu quando aqui esteve, em sua segunda temporada, em São Paulo, no Teatro São José. Ela deu-lhe, em troca, um pedaço de seu vestido amarelo.* Astrônomo amador, descobre a constelação da Torre Eiffel Sideral, perfeita e elegante, na noite de 6 a 7 de setembro de 1914, em plena Primeira Grande Guerra, quando a França parecia perecer no Marne. Em 1924, teve a oportunidade de contar esse fato ao poeta e escritor francosuíço Blaise Cendrars**, que veio ao Brasil a convite de seu amigo Paulo Prado, o qual hospedara Cendrars em sua casa da Avenida Higienópolis.*** (...) La nuit du 6 au 7 septembre 1914, alors qu´il pleurait à chaudes larmes en pensant aux malheurs de Paris, sous les obus allemands, et au danger ménaçant “la divine”, il découvrit tout à coup au ciel, une constellation: Il y a quatre grosses étoiles qui marquent les pilliers de la tour Eiffel, puis, un peu plus haut, trois étoiles qui marquent la première plate-forme de la Tours Eiffel, puis, deux encore, bien au-dessus, un peu moins brillantes, qui marquent la deuxième plate-forme, et au sommet, à bonne distance, cette belle étoile éclatante mais à eclipse, le phare de la Tour Eiffel...**** * Alexandre Eulálio. A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars. São Paulo: Edusp, 1978, p. 52. ** Blaise Cendrars é pseudônimo de Frédéric Louis Suser, mutilado da Primeira Guerra Mundial, autor de varias obras escritas em francês. Entre outras línguas, conhecia também português, tendo realizado uma das traduções de nosso idioma para o francês, do livro A Selva, de autoria do escritor luso Ferreira de Castro. *** Paulo Prado, que foi o Mecenas da Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, em fevereiro de 1922, reunia em sua casa da Avenida Higienópolis, os artistas e intelectuais modernistas: Oswaldo de Andrade, Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Sérgio Milliet, Guilherme de Almeida, René Thiollier, D. Olívia Guedes Penteado e outros, os quais puderam se aproximar do poeta franco-suíço Blaise Cendrars e até com ele visitar as cidades históricas de Minas Gerais. Em sua casa nasceu a ideia de se realizar a Semana de Arte Moderna, de 11 a 18 de fevereiro daquele ano, para mostrar ao público o que havia de rigorosamente contemporâneo, no país, em matéria de artes plásticas, arquitetura, música e literatura. Ver: Amaral, Aracy. Artes Plásticas na Semana de 22. “Exposição”, São Paulo, Perspectiva, 2ª ed. 1972 (Debates), pp. 129-195. **** Roig, Adrien. Blaise Cendrars et Le Brésil: Le Grand Film Brésilien, La Traduction de“A Selva” et “La Tour Eiffel Sidérale”. Paris : Fondation Calouste Gulbenkian, Centre Culturel Portugais, 1988, p. 286.

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Na noite de 6 a 7 de setembro de 1914, enquanto eu me afogava em lágrimas, pensando na infelicidade de Paris, rendida pelas baionetas alemãs, e no perigo que ameaçava “a divina” (Sarah Bernardt), descobri, de repente, no céu, uma constelação: quatro grandes estrelas compõem os pilares da Torre Eiffel, um pouco mais alto, três estrelas desenham a primeira plataforma da Torre Eiffel, depois, duas, bem acima, pouco menos brilhantes, assinalam a segunda plataforma e, no cume, a pouca distância, a bela estrela luminosa, embora em eclipse, o farol da Torre Eiffel... (Tradução da autora) Paulo Prado levou-o, então, a visitar a Fazenda Morro Azul, no dia 31 de março de 1924, em companhia de Oswald de Andrade. Luiz recebe Paulo Prado na Morro Azul e seus amigos modernistas: Blaise Cendrars e Oswald de Andrade, os quais se impressionam imediatamente com a Fazenda, experiência que deixará um marco indelével em suas obras. Oswald de Andrade, com a poesia “Morro Azul”, da fase Pau-Brasil. Para Cendrars, a partir dessa primeira viagem que fez a nosso país, o Brasil passou a exercer uma atração muito forte sobre o poeta, que o denominou “tonnerre de Dieu” (trovão de Deus). Cendrars, e tornou-se tema de três de suas obras literárias: Le Morro Azul, “La Tour Eiffel Sidérale”, 1949, narrativa de Le Lôtissement du Ciel e ETC...,ETC...(Um film 100% brésilien)”, 1924. Blaise Cendrars criou a personagem Oswaldo Padroso para referir-se ao fazendeiro Luiz Bueno. Oswaldo seria uma analogia com o nome do poeta Oswald de Andrade que aparece como protagonista do “Romance do Morro Azul”. O nome Bueno foi dado por fantasia de Cendrars, “ao mordomo do doutor, um negro gigantesco e rubicundo”.* Quanto à Torre Eiffel Sideral, Luiz Bueno de Miranda mostra sua descoberta no Observatório Nacional do Rio de Janeiro, em agosto de 1923, fato que vai impressionar outro escritor, Adrien Roig, professor da Universidade Paul Valéry de Montpellier, França, o qual era especialista em Blaise Cendrars. Roig participa do Colóquio “Portugal, Brasil, França: História e Cultura”, realizado em Paris, de 25 a 27 de maio de 1987, e confirma a importância que o Brasil representou para a obra de Cendrars, tendo sido, por isso mesmo, objeto de numerosos estudos. Luiz casa-se depois com Dona Laura Sá Leite Bueno de Miranda e quando falece, em 14 de julho de 1948, deixa seus bens para ela. Em 14 de outubro de 1974, faleceu D. Laura, que deixou a Fazenda para os sobrinhos: Yolanda Orcesi * Idem, ibidem

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da Costa, Marina Orcesi Bueno, Alberto Sá Leite Orcesi, filhos de sua irmã Georgina, casada com Dr. Nazareno Orcesi e são representados pelo inventariante Dr. Carlos Celso Orcesi da Costa. Deixa a Fazenda também para Lavínia Bueno de Miranda Romeiro, filha de sua irmã Clarisse e seu cunhado Antônio Bueno de Miranda, irmão de Luiz. Com a morte de Lavínia, em 14 de julho de 1974, sua parte fica para seus filhos Beatriz Bueno de Miranda Romeiro Vicente de Azevedo, Eduardo Bueno de Miranda Romeiro e Fabio Bueno Romeiro Filho. Um ano antes do falecimento de D. Laura, em 1973, o Professor Vinício Stein de Campos, membro do Conselho do Condephaat, solicitou o tombamento do solar da Fazenda Morro Azul, bem como de toda a área envoltória, mediante o seguinte argumento: Realmente, a fazenda em causa constitui documento da maior importância porque representa uma solução Verso do cartão postal arquitetônica erudita e de bom gosto da Fazenda Morro Azul, numa fase de fastígio proporcionada reproduzindo a Torre Eiffel pelo café em São Paulo, na segunda Sideral, localizada nos metade do século XIX, onde nem sem- céus da Fazenda por Luiz Bueno de Miranda, em pre as instalações cafezistas primam maio de 1914. pelo acerto nos agenciamentos e correção na intenção plástica...* (...) O solar, embora tenha sido bastante desfalcado dos bens móveis que o guarneciam, conserva ainda importante documentário da época do Imperador, como os valiosíssimos móveis da sala de visitas, da sala de jantar, dos dormitórios, as decorações da capela e das demais peças, as instalações das dependências de serviços, dos quartos de banho, o interessante aproveitamento das nascentes da serra nas dependências do solar e os exemplares florísticos que compõem a sua bela paisagem.** O tombamento foi concedido no dia 8 de janeiro de 1974. A área tombada inclui a sede e 500m a seu redor, cujo bosque, remanescente da Mata Atlântica, conta com um jequitibá de seiscentos anos e dará “a garantia de permanente * Processo 320/73, Condephaat, fls.2, 9, 11 e s. ; ** Informação do Prof. Vinícius Stein de Campos: STCR-68/76. p. 45.

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adequação paisagística. (...) Aliás, tal bosque, dada a idade e qualidade das plantas ornamentais, sozinho já poderia merecer um tombamento...” O tombamento teve a anuência do arquiteto Carlos Lemos, diretor técnico do Condephaat.* No inicio de 1992, os herdeiros, representados pelo inventariante Dr. Carlos Celso Orcesi da Costa, iniciam a recuperação da Fazenda. Em outubro de 1994, receberam a visita de D. Miriam Cendrars, filha do poeta. Em abril de 1996, ela foi visitada por D. João e Dona Stella de Orleans e Bragança e, em agosto de 1997, pelos professores participantes do Colóquio Internacional na USP: “A Utupialândia de Blaise Cendrars”, que foram recepcionados com uma feijoada. No bicentenário do nascimento de D. Pedro I, ocorreu o encerramento dos festejos na Fazenda, quando também foi oferecida uma feijoada aos convidados. Todos esses fatos foram devidamente acompanhados pelos jornais de São Paulo e da região. A Fazenda Morro Azul seguiu cantada em prosa e verso. Em 2006, constituiu tema de uma crônica de autoria de Paulo Bomfim, o “Príncipe dos Poetas Brasileiros”, da qual extraímos uma chave-de-ouro para encerrarmos, ainda que temporariamente, esta bela história. Escreveu ele: ... Morro Azul e seu firmamento fazem parte da literatura universal. O achado sideral do fazendeiro paulista Luiz Bueno de Miranda, astrônomo amador, apaixonado, também, pela estrela Sarah Bernardt, brilha sobre a casa-grande, as palmeiras e o jequitibá de cinco séculos da propriedade fundada pelo Brigadeiro Jordão. Ali, a história e a lenda se amam em paz.** E assim, de poesia em poesia, de canto e encanto, de magia em magia, a Fazenda Morro Azul continua!

* Processo 320/73, Condephaat, fls. 10-11. ** Bomfim, Paulo, Janeiros de Meu São Paulo, São Paulo: Book Mix, 2006, p.17

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Extraída do levantamento realizado pelo Condephaat, 1976.

CONDEPHAAT – Iracemápolis, SP, Fachadas de Edículas da Fazenda Morro Azul. Levantamento métrico e arquitetônico. Março, 1979: Natal Zavaloni, José Pereira, Elias Castilho e Julio Souto.

CONDEPHAAT- Iracemápolis, SP – Fazenda Morro Azul. Planta Arquitetônica das Edificações, Andar nobre. Maio 1976. Levantamento Natal Zavaloni, José Pereira, Elias Castilho e Julio Souto. Levantamento anterior: Vera Ferraz e Sônia Hagge.

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Bibliografia AMARAL, Antônio Barreto do. Dicionário de História de São Paulo. São Paulo: IMESP, 2006, Coleção Paulística, p. 358, 218-220. AMARAL, Aracy. Artes Plásticas na Semana de 22. “Exposição”. São Paulo: Perspectiva, 2ª ed., 1972 (Debates). ANDRADE, Oswald. Pau-Brasil. 1925. ARGOLLO FERRÃO, André Munhoz. Arquitetura do Café. Campinas-SP: Ed. Unicamp; São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004, p.134.; BENINCASA, Vladimir. Velhas Fazendas: Arquitetura e cotidiano nos campos de Araraquara, 1830-1930. São Carlos: EDUSFSCar; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2003. BOMFIM, Paulo. Janeiros de Meu São Paulo. São Paulo: Book Mix, 2006. BUSCH, Reynaldo Kunst. História de Limeira. Limeira: Prefeitura Municipal de Limeira, 1967. CLIMINO, Marli de Souza Saraiva. Iluminar a Terra pela Inteligência: Trajetória do Aprendizado Agrícola de Barbacena, MG (1910-1933). Tese (Doutorado). Rio de Janeiro: Universidade do Rio de Janeiro – Faculdade de Educação, 2013. EULÁLIO, Alexandre. A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars. São Paulo: Edusp, 1978, p. 52 FERRÃO, André Munhoz. Arquitetura do Café. Campinas- SP: Ed. Unicamp; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004, p. 44. FORJAZ, Djalma. Senador Vergueiro, 1924. GAENSLY, Guilherme. Reprodução digital do Álbum da Família Jordão, em mãos da Família Bueno de Miranda. KEHL, Luiz, engenheiro. A Fazenda Morro Azul: Reativação do Conjunto Hidráulico (As Termas do Imperador), relatório 01/97 – A (Parcial), 4 de agosto de 1997. LEMOS, Carlos A. C. Casa Paulista: História das moradias anteriores ao ecletismo trazido pelo café. São Paulo: Edusp, 1999. MINHOTO JÚNIOR, Laurindo. Brigadeiro Manoel Rodrigues Jordão, in: “Revista do IHGSP”, v. XXV, p. 201-214. NEME, Mário. História da Fundação de Piracicaba. Piracicaba-SP: ed. 2ª, Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, 1974, p. 23. REALE, Ebe. Brás, Pinheiros, Jardins: Três Bairros, Três Mundos; São Paulo: Pioneira Edusp, 1982. RIBEIRO, Maria José. Notas biográficas do Brigadeiro Manoel Rodrigues Jordão, coletadas pela socióloga, ex-proprietária da Fazenda Quilombo, Limeira, SP. ROIG, Adrien: Blaise Cendrars et Le Brésil: Le Grand Film Brésilien, La Traduction de“A Selva” et  “La Tour Eiffel Sidérale”. Paris: Fondation Calouste Gulbenkian, Centre Culturel Portugais, 1988, p. 273-290. SOUSA, Pedro Luís Pereira. Casa Barão de Iguape. São Paulo: Ed. do Autor, 1959.

Meus Cinquenta Anos na Companhia Prado Chaves. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1950.

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Depoimentos: Depoimentos de Beatriz Romeiro Bueno de Miranda, uma das atuais proprietárias da Fazenda Morro Azul, junho de 2016. Depoimentos de Fabio Bueno Romeiro Filho, um dos proprietários atuais da Fazenda, junho de 2016.

Documentos: Processo 320/73, Condephaat, fls.9 e s. Sites: http://www.esalq.usp.br/parque/toppage1.htm.  Acesso: 21 jun. 2016.   https://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme Gaensly. Acesso: 27 jun. 2016.

Artigos não assinados: Anuário Político, Histórico e Estatístico do Brasil, Rio de Janeiro, Casa de Firmin Didot Irmãos, 1846. Folha de S. Paulo. “Imagens do Tempo do Império”, Sexta-feira, 5 de abril de 1985. Edital de 1ª Praça contendo listagem e avaliação (para fins de pagamento hipotecário) das instalações da fazenda “Morro Azul”. Gazeta de Limeira, Parte Oficial, 24 de agosto de 1908. Gazeta de Limeira: “Limeira e a Independência”, São Paulo 5 de setembro de 1993. O Estado de S. Paulo, Caderno Cidades, “Município restaura pousada de D. Pedro II”, São Paulo, 28 de dezembro de 1992.      ISTO É, “Viagem à era do Café”, 12 de dezembro de 1984. O Estado de São Paulo, “Descendentes de senhor e de escravos trazem à tona a saga dos Vallim”, São Paulo, 18 de junho de 1995. O Estado de São Paulo, “Fazenda Histórica começa a se recuperar” (Caderno Cidades), São Paulo, 19 de maio de 1996. Folha de São Paulo,“Colóquio sobre poeta acaba em feijoada”. (Ref. A Blaise Cendrars, Torre Eiffel Sideral), São Paulo, 9 de agosto de 1997. O Estado de São Paulo, Caderno Negócios e Oportunidades, “Arquitetura resgata a milenar taipa”, São Paulo, 16 de fevereiro de 1997. O Estado de São Paulo, Caderno Cidades: “Fazenda Histórica será reinaugurada”, São Paulo, 19 de abril de 1996. O Farol Paulistano, São Paulo, 7 de fevereiro de 1829. A Phênix, São Paulo, p. 4, 19 de outubro de 1839.

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Os intelectuais de São Paulo na crise do Império: repertório de ideias e ação política (1875-1889) The intellectuals of São Paulo in the crisis of the Empire: repertoire of ideas and political action (1875-1889)

Rubens Arantes Corrêa* Resumo: Este trabalho visa dar conta do repertório de ideias construído por um grupo de intelectuais de São Paulo no contexto da crise política do Império. Trabalha-se com a hipótese de que “república” funcionou como estratégia retórica e de ação política para o enfrentamento do status político imperial dominante. Toma-se como referencial teórico para pensar a hipótese, os conceitos de repertório de ideias e ação política a partir das noções desenvolvidas no âmbito da sociologia política norte-americana, especialmente os trabalhos de Charles Tilly. Interessa conhecer quem verbalizou as demandas de São Paulo naquele contexto; quais as palavraschave que compuseram o repertório verbalizado e como esse repertório fora utilizado como estratégia de ação contra o status dominante.

Abstract: This work aims to explain the repertoire of ideas constructed by a group of intellectuals from São Paulo in the context of the political crisis of the Empire. We work with the hypothesis that «republic» functioned as a rhetorical strategy and political action to confront the dominant imperial political status. Take It is taken as a theoretical reference to think the hypothesis, concepts of repertoire of ideas and political action from the notions developed in the scope of North American political sociology, especially the works of Charles Tilly. It is of interest to know who verbalized the demands of St. Paul in that context; What keywords were composed of the verbalized repertoire and how this repertoire was used as a strategy of action against the dominant status.

Palavras-chave: Intelectuais. Repertório de Ideias. Ação Política. República.

Keywords: Intellectuals. Repertory of Ideas. Political Action. Republic.

* Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e Professor do Instituto Federal de São Paulo (IFSP). Autor de O Pensamento Político de Raul Pompéia (Editora ExLibris, 2006); de Raul Pompéia – Coleção Pensamento Americano (Ícone Editora, 2010); e de Intelectuais de São Paulo e a Crise do Império: itinerários, repertório de ideias e ação política (no prelo).

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Rubens Arantes Corrêa

Introdução Os estudos sobre São Paulo no contexto de crise do Império, de um modo geral, procuram abordar a questão a partir de duas linhas de estudos: uma primeira que destaca o papel das “grandes estruturas”, fossem políticas ou econômicas, normalmente destacando a atuação do Partido Republicano de São Paulo, da Convenção de Itu, dos fazendeiros do oeste paulista, da pujança econômica do café de São Paulo, exemplificados pelos trabalhos de Célio Debes (1975), Maria Emília Zimmermann (1986) e Iraci Galvão Salles (1986). Outra linha de estudos são os esboços biográficos de personalidades que tiveram participação nos embates e nas lutas políticas daquele contexto histórico tais como os contornos biográficos de Manuel Ferraz de Campos Salles, escrito por Célio Debes (1978), Salles Junior (1944) e Menezes (1974); Bernardino de Campos, composto por Santos (1960) e Cintra (1953); Prudente José de Moraes, de autoria de Assis (1976), João Alberto Sales, traçado por Vita (1965) entre outros integrantes do chamado “movimento republicano paulista” e consagrado pela historiografia como fase da propaganda em São Paulo. Percebe-se, claramente, nestes perfis biográficos a tentativa da idealização do biografado como figura indispensável do movimento político que culminou com a mudança do regime monárquico para o republicano, acentuando suas convicções republicanas, abolicionistas ou explorando suas crenças doutrinárias bebidas na filosofia positivista. Sem desconsiderar a importância desses mesmos trabalhos, toma-se no âmbito deste artigo outra perspectiva, no sentido de se apropriar do contexto da crise do Império a partir da ótica dos movimentos sociais que estavam em curso. Em outras palavras, não é o “partido”, a “classe” ou o “indivíduo” que explica o movimento de oposição ao regime, mas, os grupos constituídos que criam mecanismos de ação (partidos políticos, lojas maçônicas, instituições de ensino, órgãos de imprensa como jornais e revistas) a partir de suas relações de sociabilidades (relações de parentesco e matrimoniais, convivência acadêmica, compartilhamento e solidariedade mútua em irmandades e organizações sociais) apropriando-se dos conceitos disponíveis naquela conjuntura específica para gerarem um repertório de ideias. O grupo de intelectuais paulistas, estudado no âmbito deste trabalho, encontra-se inserido nesses movimentos sociais de contestação ao regime monárquico. Constituiu-se a partir de uma formação acadêmica em comum junto à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da maioria de seus integrantes – Américo Brasiliense de Almeida e Melo (1833-1896), Francisco Rangel Pestana (1839-1903), Américo Brasílio de Campos (1835-1900), Prudente José de Moraes Barros (1841-1902), Manuel Ferraz de Campos Sales (1841-1913), Francisco Quirino dos Santos (1842-1886), João Alberto Sales (1857-1904). In-

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tegrava o grupo, também, José Maria Lisboa (1838-1918), tipógrafo e editor português, radicado em São Paulo desde os anos 1850, idealizador do Almanaque Literário de São Paulo; Luiz Pereira Barreto (1840-1923), formado em medicina pela Universidade de Bruxelas e divulgador da filosofia positivista no Brasil da segunda metade do século XIX; além daqueles com formação técnica e científica como João Tibiriçá Piratininga (1829-1888), com formação em mineralogia e geologia, e Antônio Francisco de Paula Souza (1843-1917), formado em engenharia na Europa, autores de publicações relativas a procedimentos científicos aplicados à prática agrícola e ao trabalho. A propositura que se toma, nos contornos deste artigo, é o de desvendar a fala desses intelectuais expressas por eles mesmos, ou seja, tomar outro posicionamento diferente do adotado pela historiografia que prefere a adoção de estruturas como “fazendeiros do oeste paulista”, ou “partido republicano paulista”, ou “pujança econômica de São Paulo” como agentes mobilizadoras da história. Prefere-se desvendar o movimento da história a partir da própria ação de seus atores, neste caso particular, intelectuais paulistas que em busca de prestigio e visibilidade social forjam espaços de compartilhamento e sociabilidade – jornais, almanaques, instituições de ensino, lojas maçônicas, partidos políticos – e constroem seus projetos de poder verbalizados em repertórios de ideias e ação política. O ponto de partida tomado é o entendimento de que os intelectuais paulistas constituíram parte de um movimento social mais amplo formado no contexto de crise do Império. Ângela Alonso, analisando a chamada “geração 1870”, qualifica-a como forma de movimentos intelectuais que surgiu, exatamente, como forma de expressão de um contexto de crise política: Movimentos intelectuais são uma modalidade de movimento social. Por sua vez, movimentos sociais são uma das formas modernas de ação coletiva, que surgem com o enfraquecimento das formas tradicionais de expressar demandas, seja por sua ineficácia, seja pelo aumento da participação política. (ALONSO, 2002:41) Todo movimento social, incluso os capitaneados por intelectuais, afirma Alonso (2002:41), se forma a partir de contextos históricos próprios e particulares, como forma de resposta às demandas de variadas espécies de uma época e de uma sociedade, cujas estruturas políticas dominantes encontram-se em crise. Neste sentido, pode-se afirmar que o grupo de intelectuais de São Paulo constituiu um movimento social e político visando aproveitar do break-down ocorrido no sistema político imperial a partir de 1868 com a queda do Gabinete

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Zacarias de Góes e aprofundado a partir do fim da Guerra do Paraguai (18651870). A “quebra” do sistema hegemônico abriu espaço para a emergência de movimentos constituídos por grupos descontentes ou marginalizados que para fazerem frente ao momento histórico específico produzem um contra-discurso oportunizado pela construção de um repertório de ideias e ação política de confronto. Por repertório de ideias toma-se a definição dada por Charles Tilly* que considera repertórios como: criações culturais aprendidas, mas elas não descendem de uma filosofia abstrata ou ganham forma como resultado de propaganda política; eles emergem da luta (...) e designam (...) um conjunto limitado de esquemas que são aprendidos, compartilhados e postos em prática através de um processo relativamente deliberado de escolha. (TILLY, 1993:264 apud ALONSO, 2002:39) Em outras palavras, repertório é um mecanismo intelectual construído historicamente – portanto, localizado em tempo e espaço específicos – através do qual os atores sociais envolvidos lançam mão de “padrões analíticos; argumentos; conceitos; teorias; esquemas explicativos; formas estilísticas; figuras de linguagem” para intervirem na cena política e histórica daquela dada sociedade e daquele dado tempo.** De acordo com esta análise, pouco importa o nível de coerência e solidez desse repertório, pois os intelectuais que o instrumentalizam não estão busca de explicações sofisticadas e abstratas da realidade. Ainda nessa mesma direção, podemos afirmar que a compreensão de um repertório político requer sua vinculação com os processos práticos da própria ação política. O repertório, enquanto aporte de opiniões, alimenta a ação e vice-versa, constituindo um sistema de circuitos. No caso do grupo de intelectuais em estudo percebemos, de fato, a inexistência de uma produção bibliográfica de vulto – excetuando, talvez, algumas obras de Luís Pereira Barreto e João Alberto Sales, os dois membros do grupo com melhor formação filosófica –, o que não impede de encará-los como intelectuais produtores de literatura de ideias, ainda que de circunstâncias. Neste particular, se faz necessário lembrar que o Brasil, em geral, e São Paulo, em * Charles Tilly, (1929-2008), sociólogo norte-americano, professor das Universidades Michigan e Colúmbia, teve sua obra marcada por estudos sobre movimentos sociais aos quais procurou dimensionar aspectos culturais como parte do entendimento da ação política. Sobre a importância de sua obra ver ALONSO, Ângela. “Repertório, segundo Charles Tilly: história de um conceito”. Sociologia & Antropologia. V.02-03:21-41, 2012. ** SWINDLER, 1986, citado por ALONSO, 2002, p. 39.

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particular, da segunda metade do século XIX não dispõe, ainda, de um campo intelectual próprio com funcionamento sistematizado e com lógica própria, a despeito da presença da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, fundada em 1827. O repertório do grupo de intelectuais de São Paulo foi construído, basicamente, em publicações na imprensa diária, prática a que todos os membros do grupo dão início já nos tempos de estudantes de Direito junto à imprensa acadêmica, tão prolífica quanto efêmera. Concluída a formação acadêmica dão, esses intelectuais, continuidade a atuação não só como colaboradores como, também, como empreendedores no ramo da imprensa com a fundação em 1869 do jornal Gazeta de Campinas, em 1875 do jornal A Província de São Paulo, em 1884 do jornal O Diário Popular, além da publicação de Almanaque Literário de São Paulo, entre 1876 e 1885. Outro espaço de construção do repertório deu-se por meio de manifestos e circulares do Partido Republicano Paulista, organização que reuniu os membros deste grupo de intelectuais. Por outro lado, formas de pensar estão articuladas a formas de agir, de tal sorte que repertório de ideias alimenta ação política emprestando substância ao entendimento do que estamos chamando de grupo de intelectuais paulistas: para entender por que o movimento “intelectual” recorreu a certas maneiras de pensar não basta a análise de seus discursos. É preciso também compreender suas práticas. Isso impõe inscrever o movimento na estrutura de relações de poder da sociedade em que nasce. Formas de pensar e formas de agir em íntima conexão, de sorte que não é possível compreendê-las separadamente. A interpretação, por isso, exige uma análise fina, empírica, do modo pelo qual uma experiência social concreta plasma certas formas de pensar. (ALONSO, 2002:40) Ann Swidler*, lançando luz sobre a relação entre cultura e ação, afirma que repertórios funcionam como ferramentas culturais através das quais se edificam formas de ação: Culture influences action not by providing the ultimate values toward which action is oriented, but by shaping a repertoire or “tool kit” of habits, skills, and styles from which people “construct “strategies of action. (SWINDLER, 1986:273) * Ann Swidler, professora do Departamento de Sociologia da Universidade Berkeley e autora de artigo clássico “Culture in Action: Symbols and Strategies”, American Sociological Review, 1986.

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De onde se pode concluir que os intelectuais paulistas no contexto de crise do Império não construíram seu repertório e ação por uma crença absoluta nos valores e cultura republicana, ainda que em diversas oportunidades tenham se reportados a modelos republicanos históricos, como o norte-americano. Em outras palavras: não se trata de partir de generalizações estruturais como “republicanos paulistas” ou “porta-vozes dos fazendeiros de São Paulo” tal como a historiografia tem feito; trata-se de compreender o apelo à “república” como estratégia de luta política de um grupo de intelectuais que possuía um projeto de poder. Por meio de repertório e ação muito próprios os intelectuais de São Paulo construíram um vocabulário particular que ficou circunscrito, estrategicamente, sob a bandeira de “república”.

O Repertório O repertório manejado pelos intelectuais paulistas no contexto de crise do Império foi construído a partir da intersecção entre as leituras de cunho “filosófico-científica” importada, em grande medida da Europa, e a realidade nacional daquele contexto. Na realidade, fazem uma leitura pontual de questões mais abstratas das correntes filosóficas e cientificistas da época aplicando-as ao entendimento dos “problemas nacionais” de seu tempo. Produzem aquilo que Altamarino (2007) chama de “literatura de ideias”, ou seja, conjunto de ideias que visavam a construção de um programa de ação política. Outra característica do repertório dos intelectuais paulistas é a sua forma de circulação. Tendo em vista a fragilidade do sistema intelectual brasileiro e mesmo a ausência de um campo intelectual, como já apontado anteriormente, a produção-circulação intelectual fica restrita aos órgãos de imprensa. A produção de livros, na segunda metade do século XIX, ainda é bastante precária, em geral, bancada por seus próprios autores e com circulação muito restrita. O conteúdo do repertório constituía-se de palavras-chave que funcionavam como start no âmbito de sua literatura de ideias. O vocabulário era articulado de tal modo que servia para combater os parâmetros políticos de sustentação do sistema monárquico, confluindo, sempre, para a mesma direção: república. Do recurso à república, funcionando como estratégia de combate e de luta política, derivaram palavras-chave, amplamente utilizados pelos autores em editoriais, artigos e notas dirigidas ao público leitor. Uma das palavras-chave do repertório dos intelectuais paulistas era “naturalização”. Na edição de 5 de janeiro de 1875 de A Província de S. Paulo, Manuel Ferraz de Campos Salles assina artigo sob o título geral de “Naturalização” (o primeiro de uma série de três artigos sob o mesmo título sendo que o segundo foi publicado na edição de 06.01.1875 e o terceiro na de 12.01.1875). “Naturalização” é entendida, aqui, como sinônimo de imigração,

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tema recorrente. A urgência do tema, para Campos Salles se devia ao fato daquilo que entendia por “problema econômico de elevada importância”, visto que diante da legislação abolicionista em andamento, o suprimento de mão-deobra para a “indústria nacional” atingiria um ponto insustentável: Este problema que de larga data começa a afetar as forças produtivas do país, anuncia sérias e graves perturbações no sistema de trabalho, porque pressagiava uma época de transição mais ou menos próxima, foi afinal francamente proposto aos nossos agricultores com a promulgação da lei de 28 de Setembro, cujos efeitos serão, sem dúvida, mais rápidos do que se pensa”. (A Província de S. Paulo, 5.1.1875) Campos Salles faz referência, nesta passagem, à lei Rio Branco, de 28 de setembro de 1871, que concedia liberdade a filhos de escravos nascidos a partir daquela data. A abordagem dada por Campos Salles ao problema não é a de declarar posicionamento pró ou contra a abolição da escravidão (questão muito pouco abordada pelo grupo, com exceção de Américo de Campos e Francisco Quirino dos Santos). A “questão servil”, como se costumava tratar na imprensa sobre a escravidão, estava subordinada ao problema da mão-de-obra (escassez, custo, qualificação). Se para Campos Salles a questão da “naturalização” era tratada como sinônimo de oferta de mão-de-obra, para Luís Pereira Barreto tratava-se de uma questão mais ampla relaciona à secularização do Estado, representação eleitoral e garantias de direitos individuais. Através de uma série de artigos inicialmente publicada em A Província de São Paulo e posteriormente reunida em livro, Pereira Barreto* toma a questão da “naturalização” à luz de sua particular leitura dos princípios da doutrina positivista. Na edição de 29 de outubro de 1879 de A Província de São Paulo, Pereira Barreto publica “A elegibilidade dos acatólicos e o parecer do Conselho de Estado”, no qual ataca a Constituição do Império que declarava a religião católica apostólica romana como religião de Estado. Para Pereira Barreto a Constituição do Império ao declarar preferência por uma religião em particular impedia, na prática, a igualdade de “direitos do homem e igualdade de direitos entre todos os cidadãos”, tornando-se obstáculo para a incorpora* Sobre a questão da “naturalização” Luís Pereira Barreto publicou em A Província de São Paulo os seguintes artigos: “A elegibilidade dos acatólicos e o parecer do Conselho de Estado” (edição de 29 de outubro de 1879), “A grande naturalização – Ordem e Progresso” (desdobrado em sete artigos e inseridos nas edições de fevereiro de 1880). Posteriormente, esta série de artigos foi publicada em livro sob o título Soluções Positivas da Política Brasileira.

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ção dos estrangeiros residentes no país aos direitos civis e políticos desfrutados pelos nacionais. Desta constatação estabelecia uma comparação com os Estados Unidos para defender com veemência sua tese favorável à “grande naturalização”: [...] não querem reconhecer que todos os segredos da civilização norte-americana consistem simplesmente na liberdade de pensamento e na perfeita igualdade de direitos civis e políticos de todos os habitantes, sejam quais forem as suas crenças, seja qual for a sua primitiva nacionalidade. (A Província de S. Paulo, 29.10.1879) Pereira Barreto volta a debater a questão da naturalização a partir da edição de 15 de fevereiro de 1880 da Província de São Paulo em artigo intitulado “A grande naturalização I – Ordem e Progresso”, estendendo sua argumentação em outros seis artigos publicados nas edições posteriores do mês de fevereiro daquele ano. Nesta série de artigos, o autor faz, inicialmente, um apanhado histórico sobre o povoamento do Brasil desde os tempos coloniais dando ênfase a aspectos raciais e morais constitutivos dos tipos humanos que povoaram o território brasileiro. No tocante aos aspectos da “árvore genealógica” de onde originou-se o Brasil, Pereira Barreto estabelece uma curiosa comparação entre fatos históricos e constituições patológicas (exercício típico da influência positivista) envolvendo povos europeus diversos para concluir que alemães, franceses e ingleses tinham vantagens sobre os lusitanos visto que aqueles surgiram no contexto do reformismo religioso europeu e das “primeiras conquistas da ciência”, ao passo que Portugal continuava preso ao espírito retrógrado da Igreja católica dos tempos da Inquisição, fato que teria causado “lesão cerebral” irreversível dos colonizadores do Brasil: Os povos mais novos, aqueles que apareceram mais tarde na cena da história, e, talvez por esse motivo, como que dotados de uma maior reserva de energia, atravessaram incólumes essa fase de perigo e fizeram redundar em benefício do progresso os destroços da antiga mentalidade. [...] Nesse caso estão os alemães, os francos, os anglo-saxões. O mesmo não aconteceu com as raças mais mescladas de sangue romano. (A Província de S. Paulo, 15.02.1880) Por “raças mais mescladas”, Pereira Barreto inclui os portugueses, a quem atribuiu o pecado de origem no processo de formação histórica do Brasil. Res-

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salta a avareza do português como fator motivador da colonização e a propensão ao atavismo criminoso como traços dos primeiros colonizadores do Brasil (daí a defesa intransigente da entrada de imigrantes de outras nacionalidades no Brasil). Na análise histórica empreendida por Pereira Barreto a incapacidade do português em absorver os fundamentos filosóficos mais condizentes com o “espírito do tempo” tais como os “dogmas fundamentais da economia política moderna” bem como os princípios da “liberdade de pensamento, liberdade de consciência e liberdade de culto” comprometeu decisivamente o futuro da nação brasileira. Assim dos tempos coloniais, passando pela presença da Corte de D. João VI no Brasil e pelos movimentos de emancipação que culminaram com a Independência, até o reinado de D. Pedro II, imperou o “espírito retrógrado de Portugal” associado a fé católica que apenas “impunha a obediência passiva, a humildade e a privação de todos os gozos terrestres, como condição da salvação eterna.” De quebra, legaram os colonizadores a instituição da escravidão: Falharam todos os cálculos dos nossos bons avós [os portugueses colonizadores]; o problema do povoamento continua de pé; a escravidão e o catolicismo (que para o espírito é uma outra forma de escravidão), impediram a imigração; o país continua deserto; não conseguimos aclimar entre nós o trabalho e a indústria. (A Província de S. Paulo, 17.02.1880) Diante do quadro social, econômico e moral constatado por meio de seu entendimento da marcha histórica humana regida por “leis irrefutáveis”, Pereira Barreto vislumbrava na entrada de levas de imigrantes europeus a alternativa para o país superar a herança deixada pelos colonizadores. A imigração era a chave para que se desenvolvesse no país a mentalidade típica do cidadão, portador de direitos e nobilitados para o trabalho, símbolos da ideia de progresso tão em voga àquela conjuntura, condição indispensável para romper com o passado. Contudo, argumenta Pereira Barreto, ainda que alguns “espíritos do regime” reconhecessem o estágio de atraso material e moral em que o país se encontrava em comparação com outras nações (sobretudo as europeias), ainda havia forte resistência à adoção de medidas práticas para superação de tal quadro, fato que atribui às instituições monárquicas representadas pelo Conselho de Estado e pela Constituição de 1824, representantes, naquele instante, do passado herdado. Promover a imigração efetivamente, conforme Pereira Barreto significava não só integrar o estrangeiro ao mercado de trabalho, mas, também, ao exercício da cidadania, por meio da concessão do direito ao voto e à liberdade de

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culto. Mas isso esbarrava no fato de que a própria constituição em vigor, além do sistema eleitoral, representava uma barreira para a incorporação desse contingente populacional já residente no país e por extensão aos que pretendessem imigrar para o Brasil. Pereira Barreto serve-se do dispositivo constitucional para desenvolver uma curiosa teoria segundo a qual o catolicismo oficial, “caduco, exausto e repudiado na Europa”, serviu para afastar o Brasil dos Estados Unidos em termos de “evolução social e histórica”. Enquanto os norte-americanos valorizavam o “capital populacional”, fator determinante para impulsionar o país para o campo do progresso, o Brasil, preso a tradições “insensatas” e “estéreis”, afastou-se completamente de seus compromissos históricos: O efeito da religião do estado foi para nós puramente negativo: só serviu para fazer a fortuna dos Estados Unidos, inclinando para lá o grosso da corrente emigratória, ao mesmo tempo em que dentro do país esterilizava todos os germes da ciência importada e impedia o aparecimento de um só brasileiro notável, quer em matemáticas, quer em astronomia, quer em física, quer em química, quer em biologia. (A Província de S. Paulo, 22.02.1880) No vocabulário dos intelectuais paulistas a defesa da naturalização de imigrantes era uma forma de incentivar a vinda de trabalhadores europeus considerados de melhor qualificação e aptidão para o trabalho. Portanto, não se tratava apenas de se posicionar em relação à questão da ausência de mão de obra, mas, também, de promover a capacitação desses trabalhadores. Ao lado da questão da naturalização do imigrante, o repertório dos intelectuais de São Paulo, no contexto da crise do Império, dava, ainda, grande repercussão e importância ao emprego de procedimentos científicos à vida política, econômica e social. A defesa desse método era uma forma de crítica ao regime monárquico, entendido como incompatível com as transformações científicas da época. Por sua vez, a república, no vocabulário dos intelectuais paulistas, seria a alternativa de “modernização” do país em consonância com as conquistas da ciência, sobretudo, aquela aplicada aos processos produtivos (máquinas, métodos de produção, qualificação da mão-de-obra). As próprias publicações nas quais os membros do grupo mantinham colaborações com frequência, em especial A Província de São Paulo e o Almanaque Literário de São Paulo, destacam artigos e seções tratando de questões de natureza científica. A Província, a título de exemplo, mantinha a “Secção Scientifica” onde u m de seus frequentes colaboradores era João Tibiriçá

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Piratininga*, formado em Geologia, Agricultura e Mineralogia em escolas europeias, atuante na militância de clube e partido republicano na região de Itu e proprietário de terras nesta região. Tratando de temas científicos, publicou uma série de artigos sob o título geral “Considerações geológicas e agronômicas”. Experiências adquiridas em viagens ao exterior eram, posteriormente, motivos de exposição de procedimentos técnicos aplicados ao processo produtivo econômico e, neste particular, os Estados Unidos eram tidos como exemplares em matéria de racionalização técnica tanto no campo da produção como circulação de mercadorias. É o caso de Antônio Francisco de Paula Souza** que na edição de 1876 do Almanaque Literário de São Paulo publica um relato exemplar sobre o entendimento que o grupo de intelectuais de São Paulo na crise do Império tinha a respeito da aplicação de procedimentos técnico-científicos ao processo de produção agrícola e circulação de mercadorias. Constata A. F. de Paula Souza que, ao contrário do norte-americano, o brasileiro àquela altura ainda não havia desenvolvido o “espírito industrial e comercial”, fato que nos deixava em desvantagem em relação aos países mais centrais do capitalismo e reconhecia que a ausência de iniciativa era fruto de uma população “habituada a ser tutelada constantemente e em tudo”, condenando-nos ao atraso e constata que: A ausência de boas estradas, as poucas empresas de transporte de gente e mercadorias, a reconhecida impontualidade de nossos correios, a quase ausência de estabelecimentos de crédito e de transporte de dinheiro, etc., etc., provam mais que necessário que nos falta ainda o verdadeiro espírito comercial. Tivéssemos ele, não admitiríamos essa centralização esmagadora que nos atrofia e sufoca: nossas estradas seriam melhores, e a população inteira fiscalizaria melhor sua construção e conservação. (Almanaque Literário de São Paulo para o ano de 1876:50) Nesta linha de crítica ao sistema político imperial, o tema dos “procedimentos científicos” se intersecciona com outras palavras-chave do repertório dos * João Tibiriçá Piratininga (1829-1888) frequentou o grupo de intelectuais paulistas. Autor de diversos ensaios sobre geologia e mineralogia, sua área de formação adquirida em cursos superiores realizados na Europa, foi ativista político vindo a ser o presidente do Congresso Republicano de Itu, de 1873, de onde surgiu o Partido Republicano Paulista. ** Antônio Francisco de Paula Souza (1863-1917) gravitou no entorno do grupo de intelectuais paulistas à época da crise do Império. Formado em engenharia na Alemanha e ativo integrante da Convenção de Itu, exerceu cargos públicos após a proclamação da República, além de empenhar-se para a criação da Escola Politécnica de São Paulo.

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intelectuais paulistas como a crítica a centralização política gerando, no corpo social, uma situação de passividade e de pouca iniciativa, espírito de empreendimento, tão necessário, na concepção dos membros do grupo, para a efetivação de um projeto modernizante de país. A ausência de um “espírito industrial”, de acordo com A. F. de Paula Souza, reflexo de um sistema político centralizador, comprometia a abertura de estradas de ferro, condição para baratear a produção e comercialização de mercadorias; da introdução de máquinas na produção, fator indispensável para a elevação produtiva; da divisão do trabalho, princípio econômico ausente no Brasil; e falta de organismos públicos ou privados que pudessem catalogar e divulgar dados estatísticos sobre “produção e consumo de cada município”.* Paula Souza volta ao assunto na edição de 1878 do Almanaque Literário de São Paulo agora tomando a biografia de John Deere, fabricante de instrumentos agrícolas nos Estados Unidos, para ilustrar sua exposição comparativa entre o espírito de iniciativa e de perseverança do norte-americano e a ausência de “tino prático” do homem brasileiro. Deere, exemplo acabado do self made man americano, começara a vida como um simples ferreiro e, aos poucos, construíra um empreendimento agrícola fundado na combinação entre “espírito de iniciativa” e “procedimentos técnicos científicos de trabalho”. Da trajetória de empreendedor tem A. F. de Paula Souza apenas a lamentar um aspecto: não ser imitada pelos brasileiros: Entre nós o geral é o inverso: grandiosos projetos pululam por toda a parte e se por ventura alguns deles são postos em execução a regra é vê-los malogrados. Principiamos sempre por onde os americanos acabam, e por isso também acabamos por onde eles começam. (Almanaque Literário de São Paulo para o ano de 1878, pp.65-70) A estratégia vocabular é utilizar exemplos de povos que alcançaram a “elevação espiritual e material” por meio da iniciativa particular dos indivíduos para chegar ao cerne central do repertório de enfrentamento: criticar o sistema político monárquico tido como antiquado com um mundo regido pela ciência, pela máquina e demais símbolos da civilização moderna. A monarquia tornar-se-ia incompatível com as necessidades de uma sociedade que almejava alcançar o patamar das nações “progressistas” e “civilizadas”. E continua Paula Souza com sua narrativa ao apontar o fator decisivo e crucial que teria levado os norte-americanos a se diferenciarem dos brasileiros: a valorização da educação como condição para alavancar uma nação rumo ao “progresso moral e material”. * Almanaque Literário de São Paulo para o ano de 1876, p.50.

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O desalento, observa A. F. de Paula Souza, encontrava-se no fato de o Brasil, também, ser capaz de realizar tal êxito, mas, que para que viesse a se concretizar haveria de ser superada a condição de súditos: era mister vencermos primeiro um obstáculo, e esse enorme; faltanos o elemento principal, a liberdade. Conquistá-la seria o primeiro passo a dar, e parece que não temos ainda a coragem suficiente para semelhante cometimento. Um país escravo não é digno do progresso, enquanto o povo não for senhor soberano de seus destinos, enquanto ele for súdito, rebanho ou propriedade de alguém, chame-se este governo constitucional, rei ou imperador; quaisquer que sejam os esforços destes, por maiores que sejam os gastos de dinheiros públicos para esse fim, mesmo o entusiasmo aparente que manifestem os imperantes ou senhores em prol da instrução, ele não será instruído e portanto não progredirá. (Almanaque Literário de São Paulo para o ano de 1878:65-70) Os “procedimentos científicos” eram recomendados não só para tornar a economia e o trabalho uma prática mais produtiva e racional; mas, também, no processo de compreensão da influência dos elementos naturais sobre a própria ação humana, tema recorrente nas correntes e doutrinas filosóficas daquele final do século XIX, produzidas na Europa e consumidas no Brasil, sobretudo, o organicismo, o evolucionismo, o determinismo geográfico e o positivismo. E os intelectuais de São Paulo, antenados com as ideias de seu tempo, buscam por meio de uma leitura muito particular dessas teorias, analisar e compreender o ambiente social, político e econômico do Brasil daquele fin de siecle. Nesse particular, João Alberto Salles* foi, dentro do grupo de intelectuais aqui estudados, o que mais se dedicou ao estudo das ideias cientificistas da época realizando um processo muito próprio de “colagem” dos princípios organicistas com leis darwinistas visando desenvolver teoria acerca da influência específica do clima da província de São Paulo sobre o paulista. Na edição de 1880 do Almanaque Literário de São Paulo, publica um longo estudo no qual procura responder ao questionamento que faz ao leitor sobre a relação entre o clima da província e a “índole empreendedora do paulista”. Ancorado numa leitura muito particular das teses deterministas de Buckle, Alberto Salles destaca os fatores naturais positivos à província de São Paulo * João Alberto Salles (1855-1904), ativo intelectual, bacharel em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco, atuante na imprensa paulista como colaborador, redator e sócio-proprietário de A Província de São Paulo; foi professor do Colégio Culto à Ciência, em Campinas, e da Escola Normal de São Paulo. Publicou obra nas áreas de filosofia, direito e história marcadas pela influência do positivismo comteano.

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como clima favorável, rede hidrográfica sem a grandiosidade do Amazonas e do São Francisco, além de florestas “sem o caráter imponente” encontrado nas demais províncias. Tudo se devia à presença da serra do Cubatão, elemento geográfico determinante para que São Paulo tivesse clima e correntes de ventos adequados para o desenvolvimento das atividades humanas neste território. Desta combinação de fatores naturais, segundo o determinismo geográfico de Alberto Salles teria nascido a “índole empreendedora do paulista”, característica própria de um homem “que em face de uma natureza pequena, sente-se grande, forte e caminha”: Em S. Paulo não há como no Amazonas e no Pará, superioridade das forças físicas sobre a energia humana; aqui o clima é regulado de modo a incutir vigor no ânimo do homem e não desalento; os agentes físicos são inferiores aos estímulos da inteligência. [...] Daí a proverbial energia dos paulistas, revelada desde os tempos coloniais. Homens de temperamento enérgico [...] incapazes de viverem em ociosidade, tinham necessidade de dar expansão a seu espírito empreendedor. (Almanaque Literário de São Paulo para o Ano de 1880:173-187) E arrebata sua teoria sobre a influência do clima sobre o homem paulista, revelando o outro elemento, agora não somente advindo da natureza, favorável ao desenvolvimento material de São Paulo estampado em suas ferrovias e suas lavouras de café: “o elemento étnico”. Para Alberto Salles a maior presença de “sangue europeu” na província de São Paulo conjugado aos fatores naturais explica o “espírito empreendedor” do paulista. O comportamento criativo e laborioso do paulista não combinava com o sistema político Imperial acusado pelos intelectuais de São Paulo como centralizador e anti-científico. A tática dos membros do grupo era atacar, ainda que no nível da retórica, o regime monárquico em todos os flancos. É o caso da realidade político-partidária vivida pelo país à época do Império, objeto de apreciação e crítica por parte dos intelectuais de São Paulo em diversas oportunidades. O tema foi abordado de forma mais sistematizada no livro de Américo Brasiliense – O programa dos partidos e o Segundo Império.* * Américo Brasiliense de Almeida e Melo (1833-1896), figura em torno do qual se juntaram os demais membros desse grupo de intelectuais paulistas reunindo-se em sua própria residência para acalorados debates; formado em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco desenvolveu atividade política tanto no Império, como presidente de províncias e vereador e deputado provincial, como na República, quando exerceu o cargo de presidente interino do Estado de São Paulo; sua obra Os Programas dos Partidos e o Segundo Império foi publicada originalmente em 1878 pela Tipografia de Jorge Stockler.

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Mas é na imprensa diária que o tema dos partidos políticos foi amplamente debatido por membros do grupo. Francisco Rangel Pestana em sua coluna “Notas e Respingos” em A Província de São Paulo tratava frequentemente da questão partidária apontando para a fragilidade e falta de representatividade dos partidos. Na edição de 7 de junho de 1883 critica a falta de entendimento entre os políticos liberais e conservadores, acusando o sistema partidário de encontrar-se imerso em uma “anarquia moral” e concluindo que regime monárquico era regime político deteriorado patologicamente.* O entendimento de Rangel Pestana da política como uma “questão moral” vinha ao encontro de outro artigo intitulado de “Mais Moral e Menos Política” publicado na mesma Província de São Paulo na edição de 07 de junho de 1885 de e assinado por Alberto Salles. Nele, o autor estabelece relações entre patologias médico-psíquicas com as patologias sociais identificadas como a falta de caráter, a desonestidade, a imoralidade e a corrupção. Para concluir que o corpo social do país encontrava-se enfermo em boa medida devido à forma como as classes dirigentes governam o país: Câmara dos deputados, senado, ministérios, família imperial, tudo está corrompido e caminha para a dissolução. [...] O patronato, o filhotismo e a advocacia administrativa, são os sintomas desta enfermidade social. [...] O império abafou a consciência pública e a política divorciou-se da moral e a nação segue-se nas agonias de uma morte prematura. (A Província de São Paulo, 07.06.1885.) Na realidade, Alberto Salles chegou mesmo a esboçar uma teoria dos partidos políticos à luz de sua leitura das doutrinas filosóficas de sua época, utilizando-as pontualmente quando as mesmas pudessem corresponder aos seus propósitos analíticos**. Na edição de 15 de outubro de 1884 de A Província de São Paulo, expõe as mazelas dos partidos monárquicos por terem se transformados em organizações excludentes da opinião pública e em “instrumentos

* Francisco Rangel Pestana (1839-1903) formado em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco exerceu intensa atividade jornalística e educacional respondendo pela redação do jornal A Província de São Paulo e por diversas iniciativas no campo da educação em São Paulo seja como professor seja como diretor e proprietário de estabelecimentos de ensino; foi membro do grupo intelectual aqui estudado. ** João Alberto Salles a propósito de partidos políticos escreveu especificamente duas obras – Política Republicana de 1882 e Estudo Científico sobre disciplina e organização partidária de 1888. Alberto Salles foi objeto de dois estudos acadêmicos de relevância: RIBEIRO, JR., J. Alberto Salles: trajetória intelectual e pensamento político. São Paulo, Convívio, 1983; VITA, L. W. Alberto Sales, ideólogo da República. São Paulo, Nacional, 1965.

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de exploração material do poder” e não como “agentes das grandes reformas” servindo para em seguida defender a existência de partidos políticos. No entendimento de Alberto Salles os partidos monárquicos haviam se transformados em “oligarquias” comandadas por chefes cujos interesses pessoais se sobrepunham aos interesses da opinião pública. Submetidos ao poder egoístico de chefes políticos os partidos do Império viviam a reboque de interesses pessoais, sem expressão pública. Em contraposição a esta realidade dos partidos políticos do regime monárquico, defende a organização de partidos como forma de “organização social” capaz de evitar a dispersão dos diferentes interesses individuais. Os partidos seriam, pois, a realização plena da busca de entendimento entre interesses individuais diversos formando um organismo social funcional, ou seja, partidos políticos cumprem uma função na sociedade: Sendo assim, ninguém poderá negar que os partidos políticos sejam poderosos instrumentos, para o desenvolvimento do progresso nacional. [...] Centro de convergência de uma soma extraordinária de esforços, eles, não somente impedem a sua dispersão e evitam a anarquia, como também se constituem poderosos elementos de progresso. (A Província de São Paulo, 16.10.1884) A retórica “republicana” dos intelectuais de São Paulo na conjuntura de crise do sistema político monárquico incluía, também, em seu escopo a preocupação com a educação escolar constituindo-se em diversas manifestações por parte dos membros do grupo de intelectuais paulistas. Tratava-se não só de uma questão de reflexão como, também, de iniciativas neste campo. Diversos membros do grupo exerceram funções docentes em diferentes níveis de ensino bem como chegaram até a fundar estabelecimentos escolares, como foi o caso de Francisco Rangel Pestana que ao lado de sua esposa, Damiana Pestana, abriu, em São Paulo, o Colégio Pestana, destinado a educação de meninas.* Para os intelectuais paulistas a propagação da educação tinha uma função “civilizadora”, no sentido de formar novas gerações de brasileiros, dentro do espírito “científico”, exigência considerada fundamental para se alcançar um novo estágio de desenvolvimento do país. Outro argumento para justificar o apelo a instrução pública era o de que por meio dela se concluiria a grande obra * Sobre a atuação educacional de Rangel Pestana ver HILSDORF, Maria Lúcia Spedo - Francisco Rangel Pestana: Jornalista, Político, Educador. Tese (Doutorado), Faculdade de Educação da USP, 1987; MENEZES, Roni Cleber Dias de - O grupo do Almanaque Literário de São Paulo: paradigmas da sociabilidade republicana nos tempos da propaganda (1876-1885. Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação, Dissertação (Mestrado) em Educação, 2006.

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de separação entre a educação laica e a educação religiosa. A educação, portanto, entra no repertório como ferramenta de laicização da sociedade brasileira e de equiparação da nação àquelas que já haviam atingido estágios civilizacionais mais adiantados. Nesta perspectiva afirmava Rangel Pestana: Como monumento, o estabelecimento de ensino é incontestavelmente significativo e útil. A sua influência na formação da nacionalidade, pelas lições que as gerações aí receberão, segundo o desenvolvimento das ciências, deve perpetuar gloriosa e proficuamente a data e o fato que determinaram a existência dessa mesma nacionalidade até hoje ainda mal definida por falta de instrução. (A Província de São Paulo, 27 de julho de 1882) A preocupação com a educação estava presente em chamadas publicitárias, notícias e notas envolvendo as atividades de estabelecimentos de ensino tanto na capital como no interior da província, divulgadas nas páginas de A Província de São Paulo e do Almanaque Literário de São Paulo, dois dos principais microclimas de sociabilidade dos intelectuais aqui estudados. Além do Colégio Pestana, de São Paulo, são reiterados os anúncios relativos ao Colégio Florence, de Campinas, dirigido pelo francês Hércules Florence e pela alemã Carolina Krug Florence; Colégio Culto à Ciência, de Campinas; Liceu de Artes e Ofícios, em São Paulo; Colégio Internacional, de Campinas, dirigido por religiosos presbiterianos; Escola Modelo, em São Paulo, que se orgulhava de utilizar o método “racional e científico” desenvolvido por João Kopke*; Colégio Luso-Brasileiro, de Araraquara, sob a direção de Liberato da Silva; Colégio Moretz-Sohn, de São Paulo, sob a direção de Francisco Xavier Moretz-Sohn, entre outros. “Instrução como civilização” torna-se um apelo fundamental dentro do repertório dos intelectuais paulistas no contexto de crise do Império. Campos Salles escrevendo sobre o Colégio Culto à Ciência, fundado em Campinas em 1869, a partir de iniciativa do fazendeiro Antônio Pompeu de Camargo e que concorreu com o apoio de outros homens de negócios. No ideário dos intelectuais paulistas o lugar ocupado pela educação era o de proporcionar a “elevação dos espíritos” no sentido de proporcionar ao educando as ferramentas para o entendimento da realidade por meio da ciência. Para atingir essa finalidade faziase urgente, segundo Campos Salles iniciativas particulares a fim de integrar a escola ao processo de formação de “cidadãos úteis à pátria”:

* João Kopke (1852-1926), bacharel em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco, dedicou-se profissionalmente ao magistério na condição de professor, proprietário de estabelecimento de ensino, criador de método pedagógico de alfabetização e autor de livros didáticos.

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[...] só na escola é que se pode formar cidadãos úteis à pátria. A iniciativa individual que hoje vai oferecendo o salutar concurso de seus primeiros e por ora muito minguados esforços, até bem pouco tempo não saía da perniciosa inação em que jazia, senão impelida por um impulso estranho à própria deliberação, ou movida por um estímulo que nem sempre era só o desejo de facilitar a instrução a todas as classes da sociedade brasileira”. (Almanaque Literário de São Paulo para o ano de 1876:180) Na mesma direção é o artigo intitulado “A instrução pública nos Estados Unidos e no Brasil”, de Alberto Salles, publicado na edição de 1879 do Almanaque Literário de São Paulo, dentro da perspectiva comparativa entre as duas nações como já ocorrera em outras palavras-chave do repertório político do grupo. A escola como fundamento grandioso sobre o qual erigia o “edifício da república”, fonte de onde se derivaria a “luz” para combater o “fogo sinistro da superstição” (que para ele marcava os regimes políticos fundados na “metafísica” tais como a monarquia) e ferramenta indispensável para a abertura dos “caminhos do futuro”: É dela, da escola, que parte esplêndida luz da verdade e da certeza, para iluminar com seus raios divinos a senda infinita do progresso. É dela que nasce imprevista essa força misteriosa que conduz os povos à conquista de um direito ou de um privilégio ambicionados, porque é dela que sai altiva a consciência da liberdade, o grandioso sentimento da igualdade e da fraternidade dos homens. (Almanaque Literário de São Paulo para o Ano de 1879:152-169.) Por fim, uma das palavras-chave mais constantes no repertório dos intelectuais de São Paulo no contexto de crise do Império: “federalismo”, também, associada a “descentralização”. Federalismo e descentralização tornam-se, ao mesmo, em pilar da crítica ao sistema político imperial e de argumentação para a elaboração de um projeto político de poder no qual o apelo a modelos doutrinários diversos era a constante, embora o modelo norte-americano fosse tomado de parâmetro. O apelo ao federalismo foi recorrente nas lutas políticas no decorrer do século XIX estando presente no repertório das cisões intra-elite no período regencial (1831-1840), mas, com poucos efeitos práticos, exceto com a aprovação em 1834 do Ato Adicional que modificou em alguns aspectos, a Constituição de 1824, visando acomodar interesses locais e regionais. A Maioridade restabeleceu o modelo político-administrativo em vigência antes de 1834, reintroduzindo o Conselho de Ministros e o Poder Moderador.

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A forma mais acabada da defesa do federalismo dentro do grupo de intelectuais de São Paulo foi esboçada por Alberto Salles que discorreu sobre o tema em diversos momentos de sua produção intelectual. Em artigo intitulado “Descentralização” publicado em 7 de outubro de 1885 em A Província de São Paulo, Alberto Salles apresenta argumentos, à luz de suas leituras da doutrina organicista, destacando os efeitos que considera nocivos ao corpo social quando as “partes” são afetadas pelo “todo”, causando um desequilíbrio no organismo: [...] descentralização! É um verdadeiro processo científico, que tem a sua razão de ser, o seu fundamento natural, nas próprias condições especiais da organização política do Estado. Considerá-la como uma simples criação abstrata, produto desregrado da fantasia incandescente dos estadistas, não é somente cometer um erro grosseiro de doutrina política – é revelar igualmente uma profunda ignorância dos mais comezinhos princípios da ciência. (A Província de São Paulo, 7.10.1885) Alberto Salles sustentava que descentralizar não significava como afirmavam os liberais brasileiros daquela conjuntura, simplesmente “tirar impensadamente do poder geral, para dar às províncias”. Tratava-se de compreendê-la como um mecanismo científico de exercício do poder político estabelecendo criteriosamente as competências e atribuições de cada agente do poder não havendo, portanto, diferença entre suas supostas naturezas, ou seja, se administrativa ou política. Descentralização, no conceito de Alberto Salles, só pode ser entendida “cientificamente” como política: Estabelece, ainda, correlação entre “organismo biológico” e “organismo político” para condenar a excessiva centralização imposta pelo regime monárquico. Neste entendimento as partes (órgãos na biologia e estruturas administrativas na política) estavam, no caso brasileiro, com suas funções comprometidas devido à asfixia imposta pelo todo (órgão central na biologia e o governo geral no caso da política). Desta forma de análise da questão, Alberto Salles não encontra correlação entre federalismo e sistema monárquico de Estado. A monarquia, enquanto forma de governo, é incompatível com a federação, não existindo possibilidade alguma de harmonização, pois, ambas se excluem, segundo Alberto Salles, devido ao caráter não científico de sua organização governamental.

Considerações finais A crise do Império abriu oportunidades de ação política por parte de grupos sociais que se encontravam à margem do sistema político dominante. Neste ce-

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nário espaço-temporal os intelectuais e São Paulo vão construir suas trajetórias tendo em comum às possibilidades de um projeto de poder dentro do qual o repertório de ideias funciona como agente catalisador de adesões e apoios. A construção do repertório e da ação está colocada nas próprias fissuras do edifício político Imperial em crise, ou seja, à medida que as contradições tornam-se evidentes, mais combustível oferecem no processo de alimentação vocabular dos grupos opositores do regime. Em outras palavras: o vocabulário constitutivo do repertório dos intelectuais paulistas funciona como estratégia de luta e de enfrentamento, independentemente da existência efetiva, no corpo social, de uma cultura republicana arraigada. Oriundos por nascimento ou por ligações familiares e profissionais adquiridas das classes economicamente emergentes da província de São Paulo da segunda metade do século XIX, os intelectuais paulistas vão percorrer itinerários característicos do homem de letras brasileiro oitocentista: formação em Direito (à exceção de Pereiro Barreto e José Maria Lisboa) e atuação intelectual em órgãos de imprensa, além de publicações livrescas esparsas. Em meio à precariedade da vida urbana e intelectual daquela São Paulo de fim de século restava pouca alternativa de prestígio social e intelectual. Ainda que esboçassem tentativas de integrar o status quo dominante através do ingresso em partidos monárquicos, lançamento de candidaturas a pleitos eleitorais e, até mesmo, do ingresso no aparato burocrático do Estado através das carreiras jurídicas, os intelectuais de São Paulo optaram por aproveitar as oportunidades abertas pelas cisões internas ao próprio sistema monárquico. Diferentemente da geração de intelectuais precedente, plasmada pelo ideário romântico e proveniente das velhas elites econômicas das províncias nordestinas, os intelectuais de São Paulo pertencem a uma geração não só geograficamente deslocada daquela mas, também, consumidora de novas atitudes estéticas e filosóficas. O diferencial dos intelectuais paulistas naquela conjuntura foi saber aproveitar-se extraordinariamente das condições históricas que se apresentaram: tiraram da circulação (ainda que precária) dos novos preceitos e conceitos filosóficos, as ferramentas indispensáveis para a elaboração de um repertório de confronto; e, por outro lado, souberam encaixá-lo nas fissuras abertas do próprio sistema imperial. O apelo à república, dentro deste contexto, não funciona como uma correia de continuidade de eventos históricos precedentes, mas como estratégia de luta e cooptação de grupos descontentes com o regime monárquico. “República” é um recurso discursivo e verbal capaz de agregar descontentes e marginalizados pelo sistema político hegemônico, articulando redes de fidelidades pessoais e dando sentido para o projeto de poder construído pelo grupo. A historiografia e demais áreas de estudos que se ocuparam do contexto de transição monarquia-república enfatizaram a perspectiva de um movimento republicano dado e acabado, onde uma classe social economicamente emergen-

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te realiza seu papel histórico de conquista do Estado. Daí ser recorrente, nesta perspectiva de análise, o foco nas estruturas econômicas como fator desestruturante do regime político, a classe dos fazendeiros de café e seu braço partidário como agentes do processo histórico embalados na “propaganda republicana” (expressão tomada dos próprios atores sociais daquele contexto). Procura-se colocar o foco em outra perspectiva: tomar a crise do Império a partir da experiência compartilhada de um grupo de intelectuais que soube tomar partido das estruturas de oportunidades surgidas a partir do próprio centro de poder em crise construindo redes de sociabilidade e cooptação por meio de iniciativas públicas fundando instituições de ensino, irmandades maçônicas, órgãos de imprensa e partido político. Dessa experiência forjam um repertório no qual as palavras-chave derivam de enunciado geral – “república”. Dentro do projeto de poder de construído pelos intelectuais paulistas – e que se procurou demonstrar no decorrer da pesquisa – república funciona como um apelo do qual derivam outras palavras-chave utilizadas insistentemente, tais como “federalismo”, “descentralização”, “apoio à lavoura”, “questão servil”, “instrução pública”, “reforma eleitoral”, “procedimentos científicos”, “reforma do judiciário”, enfim, verbetes que sustentaram a ação política dos membros do grupo através de inserções públicas em jornais, circulares e manifestos de congressos e partidos. Ao final do processo de disputa político, culminado com a proclamação da república em 15 de novembro de 1889, viu-se que os membros do grupo de intelectuais paulistas souberam impor seu projeto de poder – não necessariamente um projeto republicano de nação – momento em que tomam para si as rédeas do aparato estatal tanto em nível de província como nacional. Todos os membros do grupo de intelectuais paulistas (à exceção de Francisco Quirino dos Santos que falecera em 1886) vão ocupar cargos de expressão política, como governador de Estado (casos de Rangel Pestana, Américo Brasiliense, Campos Salles), diplomacia (casos de Américo de Campos e Campos Salles), mandatos legislativos (casos de Rangel Pestana, Campos Salles, Prudente de Morais, Luís Pereira Barreto), Ministro de Estado (casos de Campos Salles e Prudente de Morais) e presidência da República (casos de Campos Salles e Prudente de Morais). Consolidava-se, assim, um projeto de poder construído a partir de fins dos anos 1860 e conduzido estrategicamente ao longo dos debates públicos no transcorrer das décadas de 1870 e 1880.

Fontes primárias: A Província de S. Paulo (1875 a 1889). Acervo Digital de O Estado de S. Paulo. Almanach Litterario de São Paulo (1876 a 1885). Organizado por José Maria Lisboa e originalmente publicado pela Tipografia de “A Província”. Edição Fac-símile pela Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo e Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, 1982.

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Prudente de Morais - Sua

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A importância do Eng. Joaquim Branco na História de São Paulo The importance of the engineer Joaquim Branco in São Paulo`s history

Aristides Almeida Rocha

(sócio emérito do IHGSP)

Resumo: O Eng. Joaquim Branco na história de São Paulo, abolicionista e republicano, sertanista e folclorista.

Abstract: The importance of Joaquim Branco engineer, abolitionist, folklorist and sertanista (someone who explores some Brazilian rural areas) in São Paulo’s history.

Palavras-chave: História de São Paulo; Abolição; Sertanista

Keywords: São Paulo’s history, Abolition, Sertanista (someone who explores some Brazilian rural areas)

“Pessoas há que vivem a História, outros para a História e, ainda outros para fazer a História”. (Hernâni Donato)

Introdução No dia 25 de janeiro de 2001, ao tomar posse como membro titular do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, fiz referência a aspectos da vida daquele que escolhi como patrono, o cidadão brasileiro nascido no século XIX, Coronel e Engenheiro Joaquim Branco. Por se tratar de alguém pouco conhecido, diria quase anônimo, mas que teve decisiva participação em períodos cruciais da história do Brasil, sendo abolicionista convicto e republicano da primeira hora, penso ser fundamental para a história do país, e tarefa inerente a este tradicional sodalício, resgatar a trajetória, talvez a saga, daquele que também ajudou a desbravar os sertões no território paranaense e paulista, tendo uma vida fascinante.

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Dados biográficos Joaquim Branco era natural de um lugarejo chamado Palmeira, próximo a Ponta Grossa, no Paraná, onde nasceu por volta de 1860 e faleceu na cidade de São Paulo, no ano de 1945. A data de seu nascimento é imprecisa, pois possuía três documentos de identidade, cada qual indicando uma data diferente. O pai, Joaquim Matheus Branco, falecido em 1872, era abastado proprietário de terras na região paranaense local de nascimento de Joaquim Branco, e possuía escravaria. As suas posses compreendiam também o atual Parque de Vila Velha (com as peculiares formações geológicas, como a Taça, o Navio, a Noiva e outras decorrentes do desgaste produzido pelos ventos nas rochas areníticas), e também a intrigante e famosa Lagoa Dourada. Foi em meio a esse bucólico cenário paisagístico que o meu patrono passaria a infância. Penúltimo de dezessete irmãos, perdeu a mãe ainda ao beirar dois anos de idade, e aos doze também já era órfão de pai. O seu tutor o envia então à cidade de Campinas, no interior do estado de São Paulo, sede na época do “império do café” e ativo centro cultural. Na chamada “terra das andorinhas” e berço do consagrado maestro Carlos Gomes, fez o curso secundário no famoso “Ginásio Culto à Ciência”, tendo como mestres, dentre outros os eminentes, Santos Saraiva, professor de Português e autor do “Novíssimo Dicionário Latino Português”, e o Dr. Júlio Ribeiro, professor de latim, homem de vasta cultura, introdutor no Brasil do movimento literário “Escola Naturalista de Emile Zola”, com o romance “A Carne”, além de ser autor de outros livros, como “Uma Potência Célebre”, coletânea de artigos em que contestava o Padre Senna Freitas, a quem chamava de o “Urubu Senna Freitas”, por haver-lhe chamado o romance “A Carne” de “A Carniça”; tendo escrito ainda “Procelárias” e “Cartas Sertanejas”. Estes, portanto, foram alguns dos intelectuais responsáveis pela formação básica de Joaquim Branco. Deixando Campinas, Joaquim Branco matricula-se na Escola de Engenharia, no então Distrito Federal, na cidade do Rio de Janeiro. Estudante aplicado, assíduo e brilhante, termina aí sua graduação em Engenharia. Porém, ao completar dezoito anos, o tutor, após ter dissipado todo o patrimônio deixado por seu pai Joaquim Matheus Branco, o despediu. O que restou foi uma pequena gleba de terra, no Paraná, destituída de valor, denominada Sítio Itaqui (que pelo abandono havia sido ocupada por serrarias e moradias, e foi a leilão para pagamento de impostos atrasados), e um escravo que contava exatamente a sua idade, que foi imediatamente libertado. O Coronel antiescravagista e engajado na campanha da abolição alforriou o negro Sebastião que, entretanto, jamais o deixaria, pois, laços de amizade e muita afeição os prendiam desde os tempos em que aquele fora o seu pajem. Contudo, Sebastião morreria cirrótico.

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Ao redor dos vinte anos, Joaquim Branco contraiu núpcias no Paraná, mas enviuvou no ano seguinte, possivelmente em consequência do nascimento da filha Olívia; esta seria criada pela avó materna.

As múltiplas atividades Joaquim Branco começa então nesse período a sua saga de sertanista, aliada a uma mescla de folclorista, etnógrafo, geógrafo e historiador. De espírito aventureiro e empreendedor, e talvez desgostoso pelo infausto sucedido com a mulher, embrenha-se nas matas do Paraná, trabalhando ao lado do conceituado geólogo Gonzaga Campos, no traçado de uma linha telegráfica, atravessando a pé e em lombo de burro, toda a largura do Estado. O geólogo Gonzaga Campos, considerado o pai da Geologia brasileira, tornar-se-ia seu amigo e companheiro, não só na árdua tarefa de desbravar os sertões, rasgando os chãos para expandir e difundir a comunicação no país, como também nas lutas abolicionistas e republicanas. Nesse período Joaquim Branco aprimorou seus conhecimentos de Geologia, Botânica e Zoologia. Aprendeu em contato com os índios o idioma tupi (antes conhecido como tupi-guarani), vindo a publicar nos anos 1930, o “Dicionário Etimológico do Abañeeng” (abañeeng quer dizer a fala do homem, nome que os próprios índios guaranis davam ao seu idioma); essa obra foi editada pela “Revista do Arquivo Municipal de São Paulo”. Joaquim Branco, crítico e observador arguto, não se furtava a uma polêmica ou debate, e tampouco em contar jocosas passagens e peculiaridades dos amigos. Assim, de Gonzaga Campos assinalava que lhe apetecia sempre um trago. Ao deparar com uma simples estalagem na beira das poeirentas estradas, não titubeava em apear, e logo batendo seu martelo de geólogo no balcão pedia a caninha da boa. Ao mesmo tempo encomendava uma bacia ou balde de cerveja que era servida à sua montaria. A mula terminou por viciar-se, e então Gonzaga Campos sempre afirmava não ser ele que parava nos bares, mas a mula que empacava. Outro grande amigo de Joaquim Branco era o Eng. Teodoro Sampaio e, talvez o sertanista o tenha estimulado nos estudos da língua indígena, a este que, dentre outros livros, publicou “O Tupi na Geografia Nacional”. Joaquim Branco faz uma referência ao amigo Gonzaga Campos no livro de sua autoria publicado em 1919, sob o título “Sugestão do Paraná”, dedicado ao projeto de construção de uma linha férrea, seguindo o mesmo trajeto do fio telegráfico, ligando a costa, Bacia do Paranaguá ao Rio Paraná, junto ao Salto Guaíra (a extinta Cachoeira de Sete Quedas, submersa pelas águas represadas de Itaipu).

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Joaquim Branco, com visão futurista, vaticinava então “ponto destinado ao que será, em não longínquo futuro, o maior empório comercial da América do Sul”. Como previa, por ser servido por via navegável poderia drenar toda a produção do interior aos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. Por sinal, é de se lembrar que esse constitui o objetivo principal da hidrovia Tietê-Paraná já implantada. O livro, apesar do relato de um projeto de engenharia, está escrito em linguagem poética, ressaltando aspectos da paisagem. Assim, a respeito da hoje saudosa Cachoeira de Sete Quedas, a pena fácil de Joaquim Branco exprimiu: “Num dos seus dias de gala, num dos grandes dias de esforço criacionista, a Natureza concebeu e executou essa obra monumental e ciclópica, essa que é uma das maravilhas do mundo e que, como tal, cativa, enaltece e magnifica a imaginação de todos os viajantes”. E completa mais adiante: “A esse coro de cantores do belo, para cuja embrionária partitura surgirá algum dia um novo Wagner, que fixará na brancura da pauta a sinfonia empolgante das Sete Quedas”. Ainda por essa época foi Joaquim Branco agraciado com a patente de honorífica de Coronel da Guarda Nacional. Mas, contrário às posturas militares, contava seu neto, Prof. Dr. Samuel Murgel Branco, que vestiu a farda uma única vez e, inadvertidamente, prestou continência à sentinela. Mais tarde presenteou a farda a um cacique Guarani que lhe salvou a vida ao ser acometido de febre tifoide, quando este o carregou às costas desde o Guaíra até a cidade de Guarapuava, para receber o devido atendimento médico. Dizia que o índio apreciou o dólmã, os alamares e a espada, mas... detestou as calças.

A vida em São Paulo Depois de tantas aventuras regressou a São Paulo para participar das campanhas abolicionista e republicana, aliando-se aos amigos e companheiros: Gonzaga Campos, já referido, Gabriel Prestes, Vicente de Carvalho, Júlio Mesquita, Hipólito Silva, este que veio a tornar-se seu cunhado, Bueno de Andrada, Euclides da Cunha e outros. Nesse tempo redigiu panfletos e jornais clandestinos, e com os companheiros organizou mutirões para a fuga de escravos, conduzindo-os aos quilombos. A história, penso, deve a Joaquim Branco o seu tributo, pois sua participação nesses movimentos passou despercebida e quase anônima. Porém, novamente recorro a seu neto, Prof. Samuel Murgel Branco, para dar conta de que uma notícia ainda que tardia, publicada no jornal “A Folha da Noite”, de 13 de setembro de 1933, a qual a propósito da denominação de Alfredo Porchat a uma rua da cidade de Santos, relembra o fato de que esse engenheiro, republicano histórico e entusiasta “foi quem primeiro içou a bandeira paulista no mastro do Palácio do Governo, em companhia de Joaquim Branco, no grave momento em

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que a Junta Provisória, composta por Prudente de Morais, Rangel Pestana e o Coronel Mursa, assumiu o governo do Estado, depondo o último presidente da Província, general Couto de Magalhães”. O Coronel e Engenheiro Joaquim Branco, ao iniciar os anos 1890, quando beirava pouco mais de trinta anos, estava morando em São Bernardo do Campo, e ali se casou novamente. A nova mulher, Olímpia Flaquer, pianista, de apenas catorze anos de idade, pertencia à abastada família Flaquer, que exercia a liderança política local. Curiosamente o Coronel era inimigo dos Flaquer, especialmente do Senador Flaquer, o Dr. Juca médico e seu cunhado. Na sua trincheira ou reduto contestatório, Joaquim Branco editava jornais. Foram três os “pasquins” que circularam na cidade, até que acabassem empastelados em represália às críticas aos Flaquer; o último chamava-se “ferrão”. As desavenças foram tantas que obrigaram Joaquim Branco a se mudar para São Paulo, deixando para trás todos os seus haveres e pertences. Finalmente, na cidade de São Paulo permaneceria até sua morte, mais de cinquenta anos depois. Alternava curtos períodos estagiando em estudos na Bélgica, e visitando seus filhos, como o também Engenheiro Plínio Branco, que estudou na capital da Bélgica, Bruxelas; este que posteriormente por longos anos dedicou seu trabalho à Prefeitura do Município de São Paulo. Por um ano, Joaquim Branco viveu na Ilhabela, no litoral norte de São Paulo, aproveitando para observar e acompanhar a vida dos caiçaras, pescadores que saiam à noite para lançar suas redes. Artesão de grande talento, chegou a produzir em certa época treze violinos de excelente qualidade. Bibliófilo, era amigo dos donos de sebos, que frequentou com assiduidade à procura de raridades literárias, tendo formado mais de uma biblioteca. Além da de São Paulo, teve uma no Paraná e outra na Bélgica. A desse país europeu confiou ao amigo M. Blanc para que a enviasse ao Brasil, assim que terminasse a guerra de 1914, e que havia motivado o retorno da família; do amigo e dos livros, contudo, nunca mais teve notícias. O que restou da biblioteca de São Paulo, ainda que desfalcada (devido a empréstimos jamais devolvidos) ficou de posse de seu já referido neto, o notável biólogo, sanitarista, professor Samuel Murgel Branco, Titular na Universidade de São Paulo e Professor Emérito da Universidade do Peru. Essa biblioteca contém preciosidades autografadas pelos autores, Teodoro Sampaio, Vital Brasil, Vicente de Carvalho. A primeira edição de os Sertões, com dedicatória de Euclides da Cunha, infelizmente está extraviada. Mas Joaquim Branco tinha também, como visto, veia poética. No livro “Paranduba Paulistano”, uma coletânea de cartas que escrevera anos antes, relatando uma viagem ao interior, quando se hospedou na casa de uma família de caboclos, assim descreve:

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Pouco mais de um mês fará Fui ao bairro do Tinguí Onde habita uma família A mais feia que já vi... E assim vai narrando a história real de uma família rural, na qual o pai e duas filhas padecem pela morte da esposa e mãe, além de outras fatalidades e misérias. Por volta dos anos 20 do século XX, Joaquim Branco (após visita realizada em 1917), concebeu um plano de desenvolvimento da cidade de Itanhaém, no litoral sul de São Paulo, propondo ao alcaide da municipalidade, cidadão Antônio Mendes da Silva Júnior, elaborar um traçado, realizar algumas melhorias, fortalecer as instituições públicas e construir casas. O prefeito encampou a ideia, mas ponderou que com um orçamento minguado de somente 50.000 réis anuais, não teria como pagar os serviços... a não ser que fossem aceitas terras como pagamento. Efetivamente assim ocorreu e Joaquim Branco recebeu como soldo dos serviços prestados, uma gleba de terra de 700 metros de frente para o Oceano Atlântico e cerca de 3 km de fundo, terminando na barranca do Rio Branco, afluente principal do Rio Itanhaém, terreno paludoso em grande parte, mas que seria posteriormente loteado, embora parcela tenha permanecido com seus descendentes na localidade de Suarão. Do plano apresentado por Joaquim Branco, surgiria a Companhia Melhoramentos de Itanhaém, liderada pelo próprio Joaquim Branco, Horácio de Carvalho, João Vianna Bittencourt e Henrique Albertino. O Programa da Companhia foi estabelecido por Lei de Concessão decretada e promulgada pelos poderes competentes de Itanhaém, a 17 de julho de 1920, e a Escritura de Contrato de Concessão, lavrada no Livro de Notas nº 341, do 2º Tabelião de São Paulo, do Sr. Antenor Liberato de Macedo, e previa a construção de prédios, os quais, reza o texto do documento, “terão os esgotos, pelo sistema mais aperfeiçoado das fossas biológicas, para as quais se escoarão, por meio de encanamentos, todas as águas residuais do consumo privado, detritos, materiais fecais etc., não sendo permitida a rede de esgotos com despejo no mar ou no rio, para evitar que estes poluam”. Na construção do Mercado Municipal preconizava-se “uma garagem de automóveis, para atender às necessidades do público, inclusive para viagens a Santos e Peruíbe” e “balsa para passagem de pessoas e veículos, inclusive automóveis, cobrando as taxas que forem estabelecidas”... e finalmente “a construção de uma casa de diversões em que explorem o cinema, teatro, hotel etc.” Na verdade Joaquim Branco tinha visão futurista, mostrando ser um urbanista nato. Além do mais era um sanitarista, pois tinha mesmo trabalhado com

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o patrono da Engenharia Sanitária nacional, o Engenheiro Francisco Rodrigues Saturnino de Brito, nas obras de saneamento da cidade de Santos, quando foram abertos os canais até hoje existentes. Veja-se, pois, que ao invés de uma visão puramente mercadológica e elitista, os planos da Companhia por Joaquim Branco liderada, eram o de atender a toda a população, um verdadeiro exercício de cidadania. No próprio opúsculo de lançamento da Companhia de Melhoramentos de Itanhaém se pode ler: Claro está que a Nova Itanhaém virá preencher a grande lacuna social que ainda existe em nossa balneaterapia marítima – qual a de não estarem as nossas atuais praias de banhos ao alcance de todas as bolsas nem das condições do despreocupado repouso que a medicina recomenda aos banhista – e isso devido, primeiro, ao excessivo custo de vida, e de todo incompatíveis com a coexistência do bem estar, do sossego, da liberdade e, portanto, da conquista da saúde. Assim, pois, ao lado das praias de luxo, internacionalmente necessárias, e até também necessárias à nossa classe milionária, que dia a dia se avoluma com a pujança comercial e industrial do Estado, terá a grande massa comum do povo paulista, no município de Itanhaém, as praias de toda a gente, as praias tanto do pobre quanto do rico, para banhos de luz e mar, na mais simples, confortável, bela, grandiosa e tônica majestade da Natureza. Como já havia dito antes, o Coronel e Engenheiro Joaquim Branco partiu deste mundo em 1945, mas deixou além de sua imensa cultura e humanidades e de realizações magníficas, inúmeros descendentes que viriam posteriormente, até o presente, prestar serviços à nossa Pátria e, em especial, a São Paulo. Dentre seus filhos, estão os engenheiros Catulo Branco e Plínio Branco; o primeiro foi atuante na defesa intransigente dos recursos hídricos e tem o nome perpetuado em uma das barragens em represa do Rio Tietê; o segundo militou incansavelmente na Prefeitura Municipal de São Paulo, procurando organizar o setor público e participando ativamente da Comissão Federal de Regulamentação dos Serviços de Utilidade Pública. Ambos deixaram publicações técnicas que constituem modelo nos âmbitos de suas atuações. Entre os netos, o Engenheiro Adriano Murgel Branco foi Secretário Estadual de Transportes, tendo pavimentado, recuperado e construído um sem número de rodovias e, o biólogo Prof. Samuel Murgel Branco, já mais de uma vez aqui referido, foi um dos idealizadores e ativo participante do Sistema Estadual de Controle Ambiental vigente no Estado de São Paulo, dedicando-se até sua morte a escrever livros de conscientização ecológica, especialmente para crianças, atividade na qual foi recordista em edições. O seu bisneto, Marcelo Cardinale

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Branco, foi também Secretário da Habitação e dos Transportes da Prefeitura Municipal de São Paulo. Creio que em breves linhas trago à luz os traços biográficos do Engenheiro Joaquim Branco, que embora tenha tido seu nome homenageado em uma pequena rodovia do Estado de São Paulo, em Itanhaém, não tem ainda suas realizações conhecidas.

Material bibliográfico consultado: Exame dos escritos disponíveis do próprio Joaquim Branco. Entrevistas com membros da família. Consulta à publicação inédita e particular, sem data, do Prof. Samuel Murgel Branco, “Crônicas de Minha Memória – História e Aventuras de uma Família Singular”.

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Notas sobre a Tradição Notes on Tradition

Victor Emanuel Vilela Barbuy

(sócio titular do IHGSP)

Resumo: Fio que une o Presente ao Passado e ao Futuro e a atual geração às gerações que a precederam e àquelas que a sucederão, a Tradição pode ser definida como a transmissão, a entrega constante, de geração para geração, de um patrimônio de cultura e de valores substanciais de uma Sociedade. “Caráter da Nação” e “medula dos povos”, é a Tradição a base do autêntico Progresso e o baluarte da independência nacional.

Abstract: Thread which unites the Present to the Past and to the Future and the current generation to the generations that preceded it and to those that will follow, the Tradition can be defined as the transmission, the constant delivery, from generation to generation, of a heritage of culture and values that are substantial to a Society. “Character of the Nation” and “marrow of the peoples”, Tradition is the basis of genuine Progress and the bulwark of national independence.

Palavras-chave: Tradição. Pátria. Nação. Progresso. História.

Keywords: Tradition. Fatherland. Nation. Progress. History.

Introdução Desde a sua fundação, no dia 1º de novembro de 1894, o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo tem sido um farol e uma atalaia da Tradição e da História de São Paulo e do Brasil e, como tal, um farol e uma atalaia da Terra Bandeirante e da Terra de Santa Cruz profunda, autêntica e verdadeira. Do mesmo modo, a Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, criada em 1895, tem sido, desde o início, um magno repositório da Tradição e da História paulista e brasileira, que muito honra não apenas o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, como também a Terra Paulista, a Nação Brasileira e todo o Mundo Lusíada. Por tais motivos, julgamos oportuno publicar nesta Revista o presente ensaio sobre a Tradição, que também trata, ainda que brevemente, da História. Neste singelo trabalho, nos propomos a demonstrar a relevância da Tra-

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dição, partindo do pressuposto de que uma Nação que rejeita sua Tradição e despreza sua História é uma Nação que sacrifica o seu futuro e se afasta do verdadeiro Progresso, estando, em última análise, fadada ao ocaso.

1. A Tradição O homem, embora não seja um mero produto do meio em que se encontra inserido, muito deve, em sua maneira de ser individual e concreta, ao momento histórico no qual vive, ao ambiente em que nasce, cresce e é educado e também ao atavismo, elo que o liga até aos mais remotos ancestrais.1 Assim, podemos dizer que o homem é um ser não apenas político e social, mas também histórico e tradicional, sendo cada ente humano, com efeito, uma “tradição acumulada”, conforme bem salientou Vázquez de Mella.2 Pilar e seiva da Pátria e da Nação, a Tradição é a transmissão, a entrega constante de um patrimônio de valores espirituais, culturais e religiosos essenciais a uma comunidade de uma geração a outra, ou, no dizer de Marcello Veneziani, “de pai para filho”.3 A palavra Tradição deriva do vocábulo latino traditio, que, por seu turno, deriva de tradere, termo que possui o significado de entregar ou de dar e, por sua vez, procede da raiz indo-europeia do, que podemos traduzir como dar. Como escreveu Ricardo Dip, ao primitivo do indo-europeu se antepôs a preposição latina  trans, que significa além, ir além ou de um lado a outro e que, a um tempo, se pronunciava tras, o que permitiu a redução para tra, como aparece em palavras como tradere e traditio.4 A este último termo latino corresponde o vocábulo grego παράδοσις (parádosis), que igualmente possui o significado de “transmissão”.5 Tanto pela preposição latina trans quanto pelo termo indo europeu do, significa o termo traditio “algo que transita de alguém, ou de algo, para além; alguma coisa que se dá ou se entrega de um lado a outro”. Este essencial dinamismo do significado da palavra traditio é, em verdade, muitíssimo relevante, 1. Cf. SOUSA, José Pedro Galvão de, A historicidade do Direito e a elaboração legislativa, São Paulo, Edição do autor, 1970, p. 25. 2. El concepto dinámico de la tradición (Discurso del Parque de la Salud de Barcelona, de 17 de maio de 1903). Disponível em: http://hispanismo.org/politica-y-sociedad/976-discursos-de-vazquez-de-mella.html. Acesso em 29 de junho de 2016. Tradução nossa. 3. De pai para filho: elogio da Tradição, Tradução de Orlando Soares Moreira, São Paulo, Edições Loyola, 2005. Obra originalmente escrita em italiano. 4. Segurança jurídica e crise pós-moderna, São Paulo, Quartier Latin, 2012, p. 35. 5. Cf. LAMAS, Félix Adolfo, Tradición, tradiciones y tradicionalismos, in DIP, Ricardo (Organizador), Tradição, revolução e pós-modernidade, Campinas, Millennium, 2001, p. 26.

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consoante ponderou Dip, para acentuar o absurdo erro no entendimento que reserva ao vocábulo “tradição” a nota, incondicional, de estaticidade, de oposição ao progresso ou de conservação total. Assim, a Tradição, que se elabora incessantemente, vem a ser, como há pouco assinalamos, a entrega constante, ao longo das gerações, de um patrimônio de cultura e de valores substanciais de uma Sociedade, mantidos na sua essência, corrigidos sempre que necessário e incessantemente aprimorados,6 representando, nas palavras de António Sardinha, a “continuidade no desenvolvimento” e a “permanência na renovação”.7 Alhures definida por nós, em paráfrase a José de Alencar, como a “arca veneranda da sabedoria de nossos maiores, consolidada pelos séculos e apurada pelas gerações”,8 a Tradição não é todo o Passado, mas tão somente aquela porção do Passado que, na expressão de Víctor Pradera, “qualifica suficientemente os fundamentos doutrinais da vida humana de relação”, isto é, “o passado que sobrevive e tem virtude para fazer-se futuro”,9 ou, no dizer de Plínio Salgado, o “Passado Vivo”, ou, ainda, nas palavras de Ribeiro Couto, num de seus mais belos sonetos, o “Passado que é presente e que é futuro”. Neste sentido, assim distinguiu Hélio Rocha a Tradição do Passado: Tradição não é simplesmente o passado. O passado é o marco. A Tradição é a continuidade. O passado é o acontecimento que fica. A Tradição é o fermento que prossegue. O passado é a paisagem que passa. A Tradição é a corrente que continua. O passado é a mera estratificação dos fatos históricos já realizados. A Tradição é a dinamização das condições

6. Cf. BARBUY, Victor Emanuel Vilela, Idealismo utópico e idealismo orgânico (Comunicação apresentada em 29 de novembro de 2011, durante o III Simpósio de Filologia e Cultura Latino-Americana, realizado na Universidade de São Paulo). Disponível em: http://tradicaoehistoria. blogspot.com.br/2016/06/idealismo-utopico-e-idealismo-organico_26.html. Acesso em 30 de junho de 2016; SOUSA, José Pedro Galvão de; GARCIA, Clovis Lema e CARVALHO, José Fraga Teixeira de, Dicionário de Política, São Paulo, T.A. Queiroz, 1998, p. 533. 7. Ao princípio era o Verbo, 2ª edição, Lisboa, Editorial Restauração, 1959, p. 10. 8. Idealismo utópico e idealismo orgânico, cit. O trecho de José de Alencar por nós parafraseado se encontra em A propriedade, Prefação do Conselheiro Dr. Antônio Joaquim Ribas, Rio de Janeiro, B. L. Garnier – Livreiro-Editor, 1883, p. 2. 9. O ritmo da História, 3ª edição (em verdade 4ª), São Paulo, Voz do Oeste; Brasília, INL (Instituto Nacional do Livro), 1978, p. 205.

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propulsoras de novos fatos. O passado é estéril, intransmissível. A Tradição é essencialmente fecundadora e energética. O passado é a flor e o fruto que findaram. A tradição é a semente que perpetua. O passado é o começo, as raízes. A Tradição é a seiva circulante, o prosseguimento. O passado explica o ponto de partida de uma comunidade histórica. A tradição condiciona o seu ponto de chegada.10 O passado é a fotografia dos acontecimentos. A tradição é a sua cinematografia. Enfim: Tradição é tudo aquilo que do passado não morreu.11 Destarte, a Tradição é, como prelecionou Francisco Elías de Tejada y Spínola, “a entrega daquilo que possui forças vitais suficientes para influir em nossos atual acontecer”,12 ou, no dizer de José Pedro Galvão de Sousa, “o passado que não passa, por encerrar uma força vivificadora que se projeta para o futuro”,13 não se confundindo, pois, com o passadismo, o imobilismo e o conservantismo estático. Compreendendo o termo “saudosismo” como sinônimo de passadismo, assim o distinguiu Gustavo Barroso da Tradição: Tradição é uma coisa; saudosismo, outra. A tradição vivifica; o saudosismo mata. A tradição é um olhar que se deita para trás, a fim de buscar inspiração no que os nossos maiores fizeram de grande e imitá-los ou superá-los. O saudosismo é o olhar condenado da mulher de Lot, que transforma em estátua de sal. A tradição 10. Cumpre ressaltar que, diversamente de Hélio Rocha, consideramos que a Tradição, embora sendo a “seiva circulante” e o “prosseguimento”, representando a “continuidade” e condicionando o “ponto de chegada” de uma comunidade, não deixa também de ser, como o Passado, um “marco”, e de representar também o “começo”, as “raízes” de uma comunidade. 11. Apud GRAMACHO, Derval Cardoso, Toré: uma tradição inventada na etnogênese dos Kiriri, Dissertação apresentada ao Colegiado do Curso de Mestrado em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional, do Campus V da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), como requisito para obtenção do grau de Mestre, Santo Antônio de Jesus, Bahia, 2010, p. 7. 12. La causa diferenciadora de las comunidades políticas – Tradición, Nación e Imperio, Madrid, Instituto Editorial Reus, 1943, p. 16. Tradução nossa. 13. Dicionário de Política, São Paulo, T.A. Queiroz, 1998, p. 535.

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é um impulso que vem do fundo das idades mortas dado pelas grandes ações dos que permanecem vivos no nosso culto patriótico. O saudosismo é um perfume de flores fanadas que envenena e enerva. A tradição educa. O saudosismo esteriliza. Amar as tradições da terra, da raça, dos heróis é buscar nos exemplos do passado a fé construtiva do futuro. Mergulhar dentro delas para carpir a pequenez do presente diante de sua grandeza é confessar a própria impotência e a própria incapacidade. Da tradição nos vêm gritos de incitamento. Do saudosismo nos vêm lamentos e jeremiadas. Uma nação se constrói com aqueles gritos e se perde com essas lamentações.14 Deste modo, como salientamos algures,15 o verdadeiro tradicionalista, ao contrário do passadista, aceita do Ontem apenas as forças capazes de influir sobre o Hoje e, em larga medida, sobre o Amanhã, defendendo, pois, a necessidade de um retorno não ao Passado enquanto tal, mas aos valores eternos que floresceram nos melhores tempos do Passado, que nos deve interessar como “base e matriz do Porvir”, como escreveu Gustave Thibon,16 assim como aos valores do Pretérito que, embora não eternos, são duradouros e permanecem vivos no Presente. Do mesmo modo, o tradicionalista autêntico, ao contrário do conservantista estático, rejeita os elementos contrários à Tradição e as tradições espúrias presentes nos tempos que correm, não se agarrando, pois, nem ao Passado nem ao Presente como a uma tábua de salvação, e sendo, em verdade, o único verdadeiro senhor do Porvir. E se o homem moderno é, segundo Chesterton, “um viandante que se perdeu na estrada” e que “tem de regressar ao ponto de partida, se quiser se lembrar de onde veio e para onde vai”,17 o tradicionalista, consciente de onde veio e para onde vai, tem a honra de ser, nos tenebrosos tempos presentes, um homem contra a corrente, ou, por outras palavras, um extemporâneo, um inatual no sentido de não se enquadrar na mentalidade ora vigente, sendo, no entanto, atual no sentido de portar ideias sempre novas em razão de sua perenidade. Isto porque a Tradição, por mais antiga que seja, é sempre nova, ou, na expressão de Chesterton, “sempre moderna”, sendo uma tradição, conforme ressaltou o 14. Espírito do século XX, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira S/A, 1936, pp. 263-264. 15. A Tradição (Comunicação apresentada em 5 de maio de 2015, durante a X Semana de Filologia na USP). Disponível em: http://tradicaoehistoria.blogspot.com.br/2015/05/a-tradicaoi. html. Acesso em 30 de junho de 2016. 16. Les hommes de l’éternel, Paris, Editions Mame, 2012, p. 115. Tradução nossa. 17. The New Jerusalem, London, Hodder & Stoughton, 1920, p. I. Tradução nossa.

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autor de Ortodoxia, uma coisa viva e não morta e que é mantida porque é boa e não porque é antiga, sendo, ademais, sempre sentida como algo recente e não remoto.18 Tratando do pensamento de Charles Péguy, Daniel Rops escreveu que havia no patriotismo do escritor, poeta e ensaísta a noção da continuidade histórica, que o tornou infinitamente mais tradicionalista do que a maioria daqueles que se vangloriam de tal título, salientando que “o tradicionalismo de Péguy não contempla com desespero um passado morto; propõe ao homem razões de caminhar para a frente”.19 Em nosso sentir, todo tradicionalismo verdadeiramente digno de tal nome possui a noção da continuidade histórica e não é um pranto nostálgico ou de desespero sobre as ruínas, os escombros de um Passado perdido para sempre, mas uma doutrina sólida e viva, capaz de dar ao homem razões para seguir em frente em sua caminhada histórica. Isto posto, faz-se mister salientar que julgamos que todo legítimo tradicionalista possa afirmar, como Gustave Thibon, que quando lamenta o rompimento de uma tradição é sobretudo no Futuro que pensa, assim como quando vê secar a raiz de uma planta sente pena das flores que, por falta de seiva, não desabrocharão amanhã.20 Vista por alguns como figadal inimiga do progresso, é a Tradição, ao contrário, a base, o alicerce de todo progresso autêntico e estável, havendo sido denominada, com efeito, “progresso hereditário” por Vázquez de Mella.21 Nesta mesma linha de raciocínio, escreveu Michele Federico Sciacca que “não há progresso verdadeiro ou construtivo sem tradição”, do mesmo modo que “não há tradição viva e operante sem progresso”,22 e Plínio Salgado, em estudo sobre a obra de Francisco Elías de Tejada, sublinhou que “Tradição e Progresso estão de tal sorte unidos, que este não pode existir sem aquela nem

18. A tradition is a live thing, not a dead one (citação retirada de artigo de Chesterton publicado no jornal Daily News, em 24 de dezembro de 1910). Disponível em: http://platitudesundone. blogspot.com.br/2016/04/a-tradition-is-live-thing-not-dead-one_8.html. Acesso em 30 de junho de 2016. 19. Péguy, Tradução de Afrânio Coutinho, Rio de Janeiro, Livraria AGIR Editora, 1947, pp. 104105. Obra originalmente escrita em francês. 20. L’uomo maschera di Dio, Tradução italiana de Giovanni Visentin, Torino, SEI, 1971, p. 258. Obra originalmente escrita em francês. 21. Vázquez de Mella (antologia), Seleção, estudo preliminar e notas de Rafael Gambra, s/d, p. 22. Disponível em: http://www.scribd.com/doc/29642956/Vzquez-de-Mella-Antologia. Acesso em 30 de junho de 2015.Tradução nossa. 22. Revolución, Conservadurismo, Tradición, in Verbo, série XIII, número 123, Madrid, Março de 1964, p. 293. Tradução nossa.

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aquela sem este”.23 No mesmo diapasão, em ensaio sobre o Quarto Centenário da cidade de São Paulo, o mesmo Plínio Salgado, pouco depois de haver ressaltado que “a tradição do povo bandeirante vai buscar raízes na capacidade de expansão lusíada e no caráter cristão dos nossos primeiros aglomerados humanos”, escreveu que se pode dizer que a palavra “tradição” é sinônimo de “progresso”. Isto porque, como observou o escritor e pensador patrício, “se, etimologicamente, ‘tradição’ significa transmitir do passado para o futuro, também ‘progresso’, sendo, ao contrário de ‘regresso’, a propulsão para a frente”, pressupõe, logicamente, “uma posição anterior determinando uma posição posterior, o que, em última análise, é movimento do passado para o futuro”.24 Assim, a Tradição é o alicerce de todo Progresso digno deste nome, da mesma forma que o respeito ao Passado é a base sobre a qual se assenta todo Futuro grande e sólido, ou, nas palavras de Arlindo Veiga dos Santos, “o pretenso progresso que renega a tradição é eterno recomeço, perpétua imperfeição”,25 do mesmo modo que “o Presente que nega o Passado não terá Futuro”.26 Fio ou cadeia que nos liga aos nossos antepassados e aos nossos descendentes e patrimônio que herdamos de nossos pais e devemos transmitir, aprimorado e engradecido, a nossos filhos nascidos ou por nascer,27 deve ser a Tradição, pois, compreendida não como uma relíquia de museu ou um ser fossilizado, mas sim como uma força viva, dinâmica e atuante, em permanente e contínuo movimento, que não se constitui na antítese do Progresso, mas em seu pressuposto. “Fonte de permanente renovação”, na frase de Alfredo Buzaid, a Tradição nos subministra, conforme enfatizou este, “o passado vivo, com os seus exemplos, as suas aspirações, o seu legado de saber e de experiências”.28 Realidade viva e dinâmica, a Tradição tem importância central na estruturação das instituições políticas de uma nação, e define a identidade, o caráter

23. O ritmo da História, 3ª edição (em verdade 4ª), São Paulo, Voz do Oeste; Brasília, INL (Instituto Nacional do Livro), 1978, p. 205. 24. Atualidades brasileiras, 2ª edição, in Obras completas, 2ª edição, volume 16, São Paulo, Editora das Américas, 1959, p. 371. 25. Sob o signo da fidelidade: considerações históricas, São Paulo, Pátria-Nova, s/d, p. 4. 26. Ideias que marcham no silêncio, São Paulo, Pátria-Nova, 1962, p. 76. 27. Cf. BARBUY, Victor Emanuel Vilela, O nosso nacionalismo, in DOREA, Gumercindo Rocha (Organizador), “Existe um pensamento político brasileiro?” Existe, sim, Raymundo Faoro: o Integralismo!: uma nova geração analisa e interpreta o Manifesto de Outubro de 1932 de Plínio Salgado, São Paulo, Edições GRD, 2015, p. 79. 28. A missão da Faculdade de Direito na conjuntura política atual, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Vol. 63, São Paulo, 1968, p. 110.

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desta, assim como a sua missão histórica, conforme assinalou Heraldo Barbuy.29 Neste sentido, no estudo há pouco citado sobre Francisco Elías de Tejada, ponderou Plínio Salgado que “a Tradição é o caráter da Nação” e, assim como para o homem isolado o caráter vem a ser, em última análise, a memória de cada ato individual e do conjunto dos atos individuais na sua vida de relação com outros homens e com o conjunto social, informando permanentemente o “fazer” e o ‘que fazer’ no presente e no futuro, também o caráter de uma Nação consiste nessa faculdade de lembrar, de trazer em dia as atitudes pretéritas, para harmonizar o que foi, o que é e o que virá, num sentido de afirmação de personalidade.30 Pouco adiante, havendo ressaltado que não se utilizava, num caso como no outro, do termo “memória” somente no sentido naturalista ou experimentalista da psicologia, mas também com um “sentido espiritual de permanência” e mesmo de “consciência de vocação”, o autor de Reconstrução do Homem, de O ritmo da História e de Como nasceram as cidades do Brasil asseverou que “perder a Tradição, para os indivíduos, como para os povos, é perder a memória e, com esta, a noção do seu próprio ser e do seu definido que-fazer”. É, em uma palavra, “o embrutecimento, que prepara o homem, como as coletividades humanas, para a abdicação de toda liberdade e a extrema degradação dos cativeiros políticos, econômicos e morais.”31 Afastada da Tradição, a política acabou dominada pelo “idealismo utópico” de que nos falou Oliveira Vianna32 e que corresponde à “política silogística” denunciada por Joaquim Nabuco33 e à “política abstrata” de que nos falou José Pedro Galvão de Sousa.34 Este idealismo, de ruinosas consequências para todo o chamado tecido social, também pode ser denominado idealismo inorgânico e

29. A Nação e o Romantismo, in O problema do ser e outros ensaios, São Paulo, Convívio, Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP), 1984, p. 276. 30. O ritmo da História, 3ª edição (em verdade 4ª), São Paulo, Voz do Oeste; Brasília, INL (Instituto Nacional do Livro), 1978, p. 209. 31. Idem, pp. 209-210. 32. Sobre o idealismo utópico, assim como sobre seu oposto, o idealismo orgânico: BARBUY, Victor Emanuel Vilela BARBUY, Idealismo utópico e idealismo orgânico, cit. 33. Balmaceda, São Paulo, Companhia Editora Nacional; Rio de Janeiro, Civilização Brasileira S.A., 1937, p. 15. 34. Valores eternos, in Reconquista, ano I, volume I, número 2, São Paulo, 1950, p. 138.

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vem a ser o idealismo que não toma em consideração os dados da experiência,35 ou, noutros termos, da Tradição e da História, podendo ser definido como sendo “todo e qualquer conjunto de aspirações políticas em íntimo desacordo com as condições reais e orgânicas da sociedade que pretende reger e dirigir”.36 Ao idealismo utópico, os verdadeiros tradicionalistas e realistas devem opor o “idealismo orgânico”, de que igualmente nos falou Oliveira Vianna e que corresponde, por sua vez, ao “idealismo fundado na experiência” de que nos falou José Ingenieros37 e ao “idealismo construtor” sustentado por Gustavo Barroso38 e Plínio Salgado.39 É este, consoante escrevemos alhures,40 o idealismo consciente de que as instituições devem brotar da Tradição e da História dos povos e não da cabeça de ideólogos forjadores de quimeras e utopias, isto é, o idealismo que extrai da História uma Tradição sólida e viva, um coeficiente espiritual de edificação moral, social e cívica, um desenvolvimento estável e verdadeiro, transmissor e enriquecedor do patrimônio de pensamento e de costumes herdado de nossos maiores. Como bem lecionou Francisco Elías de Tejada, é a Tradição a “causa diferenciadora das comunidades políticas”41 e a “medula dos povos”, assim como uma excelente “filosofia política”, a “filosofia do homem concreto” e das liberdades concretas e limitadas,42 em oposição à ideologia liberal do homem abstrato e da liberdade abstrata. Inserida, na expressão de Alberto Buela, “como coisa valiosa no sangue vivo dos povos”,43 a Tradição, cujos protagonistas, como enfatizou Álvaro D’Ors, são os atualmente vivos e não os mortos,44 vem a ser o baluarte da identidade e da independência das comunidades nacionais. 35. Cf. VIANNA, Oliveira, O idealismo da Constituição, 2ª edição aumentada, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1939, p. 12. 36. Idem, p. 10. 37. O homem medíocre, Tradução não assinada, São Paulo: Cultura Moderna, 1936, p. 14. Obra originalmente escrita em castelhano. 38. Carta à Mocidade Brasileira, in O Integralismo em marcha, 1ª edição, Rio de Janeiro, Schmidt, Editor, 1933, p. 12. 39. Discursos, 3º edição, in Obras Completas, 2ª edição, volume 10, São Paulo, Editora das Américas, 1957, p. 357. 40. Idealismo utópico e idealismo orgânico, cit. 41. La causa diferenciadora de las comunidades políticas – Tradición, Nación e Imperio, cit. 42. La lección política de Navarra, in Reconquista, ano I, volume I, n. 2, São Paulo, 1950, p. 127. Tradução nossa. 43. Metapolitica y tradicionalismo. Disponível em: http://disenso.info/?p=1949. Acesso em 30 de junho de 2016. Tradução nossa. 44. Cambio y Tradición, in Verbo, nº 231-232, Madrid, 1985, p. 114.

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Assim, consideramos válida a observação de Alfredo Pimenta segundo a qual “Nação que rejeita a Tradição é Nação que se suicida, que se nega a si própria”,45 fazendo nossas, ainda, as seguintes palavras de Jacinto Ferreira: “Se é certo que não há ciência sem experiência, também não há Pátria sem Tradição”.46 No mesmo sentido, em maio de 1967, no discurso de saudação ao então Príncipe Herdeiro e atual Imperador do Japão, Akihito, e à sua esposa Michiko, Plínio Salgado assim disse: Cumpre preservar o que há de próprio na personalidade nacional, pois um povo que faz tábula rasa de suas características, de suas peculiaridades, de sua tradição, destrói as energias defensivas do seu organismo e prepara-se – através de um mal-entendido internacionalismo e cosmopolitismo dissolvente – para se tornar escravo daqueles que souberam conservar sua tradicionalidade.47

Perdendo sua autonomia e vitalidade, bem como a consciência de sua missão histórica, a Nação que renega a Tradição é, pois, como uma planta sem raiz atirada a um rodamoinho ou uma folha amarelada, morta e desprendida de seu galho que o vento leva para lá e traz para cá, ao seu bel prazer. Havendo falado em Pátria e Tradição, reputamos ser oportuno sublinhar que, como fez ver Marcello Veneziani, nenhum outro lema sintetiza melhor a Tradição do que “Deus, Pátria e Família”, tríade que o pensador italiano denominou a “trindade tradicional”48 e que é, na expressão de Afonso de Escragnolle Taunay, uma tríade “grandiosa como nenhuma outra”.49 Partindo do pressuposto de que o chamado Poder Moderador seria, como aduziu Braz Florentino Henriques de Souza, “o princípio conservador por excelência das sociedades”,50 observou Ítalo Dal’Mas, no pórtico da obra Nossas Raízes, que “a Raiz simboliza a Tradição, aquele elo que ligo o passado ao presente, aquela força espiritual transmitida de uma geração a outra”, consti45. In CAMPOS, Fernando (Organizador), Os nossos mestres ou Breviário da Contra-revolução: juízos e depoimentos, Lisboa, Portugália Editora, 1924, p. 147. 46. Poder local e corpos intermédios, Lisboa, Edições Cultura Monárquica, 1987, p. 48. 47. Homenagem ao Príncipe Herdeiro do Japão, S.A. Imperial Akihito, e sua esposa Michiko, in Discursos parlamentares (Perfis parlamentares 18 – Plínio Salgado), Seleção e introdução de Gumercindo Rocha Dorea, Brasília, Câmara dos Deputados, 1982, p. 451. 48. De pai para filho: Elogio da Tradição, cit., p. 138. 49. Algumas palavras, in SANTOS, Lúcio José dos. Philosophia, Pedagogia, Religião, São Paulo, Companhia Melhoramentos, 1936, p. 7. 50. Do Poder Moderador: ensaio de Direito Constitucional, 2ª edição, Brasília, Senado Federal, 1978, pp. 38-39.

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tuindo-se numa “espécie de poder moderador ou fonte de inesgotável diálogo entre o ontem, o hoje e o amanhã”.51 A Tradição conserva a Sociedade, além de fecundá-la e robustecê-la, mantendo-a dentro do curso da Ordem Natural,52 o que representa algo de suma importância, uma vez que, consoante sentenciou Heraldo Barbuy, a violação da Ordem Natural é sempre “punida pela desgraça geral, pela desordem, pela instabilidade, pela revolta e pelo caos”.53 Antes de encerrar as presentes páginas a propósito da Tradição, julgamos ser mister salientar que, à luz do tradicionalismo político, doutrina que inspirou este ensaio, é a Tradição algo essencialmente histórico e, como tal, indissociável da História. Esta, por sua vez, quando apartada da Tradição, “é um túmulo”, no dizer de Plínio Salgado. No entender deste, é a História corpo, enquanto a Tradição é espírito, espírito que se renova, se atualiza, se dirige para o Porvir,54 e, evidentemente, deve reger o corpo. Por fim, cumpre sublinhar que a fidelidade às raízes, raízes do Homem enquanto ser essencialmente histórico e tradicional, exprime o mais profundo sentido de Tradição, que não exclui, de forma alguma, a razão criadora.55 Com efeito, podemos dizer que não há doutrina política mais racional do que o tradicionalismo, do mesmo modo que podemos dizer que inexiste doutrina política mais renovadora do que essa. Assim, conhecedores da Tradição, da História e de suas lições e conscientes de que, como asseverou Martin Heidegger, “tudo o que é essencial e grande surgiu do fato de que o homem tinha uma pátria e estava radicado em uma tradição”,56 bem como do fato de que fora da Tradição não há autêntico Progresso nem efetiva renovação, mas apenas decadência e anarquia, os defensores da Tradição, “homens do eterno”, na expressão de Thibon,57 e, destarte, os únicos verdadeiros senhores do Futuro, devem lutar, com todas as suas forças e sem nada esperar em troca, para manter viva a chama da Tradição.

51. Nossas Raízes, São Caetano do Sul, Edição do Autor, 2009, epígrafe. 52. Cf. FERREIRA, Jacinto, Poder local e corpos intermédios, cit., p. 50. 53. A Ordem Natural, in Ecos Universitários (Órgão Oficial do Centro Acadêmico Sedes Sapientiae), Ano III, nº 13, São Paulo, setembro de 1950, p. 1. 54. O ritmo da História, cit., p. 205. 55. Cf. SOUSA, José Pedro Galvão de; GARCIA, Clovis Lema e CARVALHO, José Fraga Teixeira de, Dicionário de Política, cit., p. 533. 56. Ormai solo un dio ci si può salvare. Intervista con lo “Spiegel”. Trad. italiana de A. Marini. Parma: Guanda, 1987, p. 135. Tradução nossa. Texto originalmente publicado em alemão. 57. Les hommes de l’éternel, Paris, Editions Mame, 2012.

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III – Depoimentos para a História

Os conturbados dias que levaram ao Movimento de 1964 Ives Gandra da Silva Martins

(sócio emérito do IHGSP)

Presidi o Partido Libertador de São Paulo, Diretório Metropolitano, de 1962 a 1964. Havia, à época, divergências entre a direção nacional do Partido e o diretório presidido pelo Dr. Rodrigues Alves. Soube da divergência em almoço com o Senador Mem de Sá, a convite de meu sócio, à época, João Pessoa de Albuquerque, presidente do diretório regional do Partido. Neste almoço – eu, que nunca fizera política universitária ou de qualquer outra natureza, como em associações sociais ou estudantis – expus ao Senador minha preferência pelo sistema parlamentar de Governo, desde os bancos acadêmicos, falando sobre os motivos que me levaram à opção por aquele sistema. Para minha surpresa, algumas semanas depois, recebi um telefonema do Senador, pedindo para almoçarmos novamente com João. Foi nessa oportunidade que ele me convidou para sair candidato à presidência do diretório metropolitano contra o então presidente, apoiado pela direção nacional. Aceitei o convite e terminei concorrendo sozinho, pois o presidente anterior desistiu de enfrentar a direção nacional. Eleito em 1962, vivíamos um sistema parlamentar de governo, que não me agradava, o que era irrelevante, mas também não agradava à direção nacional, e, principalmente, ao deputado Raul Pilla, presidente nacional do Partido, o que era relevante. O País estava, então, sob a presidência de Jango e num sistema semiparlamentar de governo. Tinha sido, na época, aprovado o horário eleitoral gratuito. Conseguiu, o presidente da República, através de uma lei ordinária, convocar plebiscito para que o povo decidisse sobre voltar ou não ao presidencialismo. A direção nacional do PL tomou, em face do desafio, a decisão de não defender o parlamentarismo, que, de rigor, não era aquele comprovadamente bem sucedido na Europa, mas uma desfigurada forma de duplo comando (1º Ministro e Presidente). A consequência foi o aconselhamento a todos os diretórios do partido que

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se abstivessem da defesa do sistema brasileiro, não apoiando, por outro lado, a solução presidencialista. Eu, pessoalmente, defendi, nos horários gratuitos, a inconstitucionalidade do plebiscito, visto que lei ordinária não poderia mudar sistema de governo, instituído por Emenda à Constituição, tendo, inclusive, não votado, justificando que não o fazia por considerar inconstitucional a convocação. Causou-me espécie que a Justiça Eleitoral tenha aceitado a justificação, tanto que não aplicou qualquer punição, talvez por não ter examinado o argumento. Nos últimos dias, fui alertado pelo presidente do TSE, o Desembargador Fernando Euler Bueno, de que, se continuasse a pregar a abstenção e insistisse na inconstitucionalidade da lei, o TRE iria proibir minha manifestação, no horário concedido ao PL. Tinha e tenho pelo desembargador Euler Bueno profunda admiração. Nos contatos que mantivemos naqueles tempos, sempre admirei sua serenidade e elegância no trato com os diversos presidentes de partidos. Tendo apenas 27 anos, todavia, irritado com o desrespeito à lei suprema, fui ao último programa de TV e comecei dizendo que fora proibido de pregar a abstenção no plebiscito; que fora proibido de sustentar que a lei era inconstitucional e com esta introdução de que “fora proibido”, disse tudo o que queria. Liguei, depois, para o Desembargador, informando-lhe como agira e que estava à disposição para as sanções que julgasse aplicáveis. Respondeu-me ele: “Ives, você disse que estava proibido de falar sobre certos temas; declarou repetidas vezes, sobre que temas você não poderia falar. Logo, você cumpriu a proibição”. Que falta fazem homens como Fernando Euler, neste Brasil de hoje! Aprovada a volta ao presidencialismo, o País passou a viver momentos conturbados, que narro em romance editado pela MP Editora, intitulado “Um advogado em Brasília”. Tínhamos a eleição municipal pela frente e decidi com meu diretório – quase todos de minha faixa etária, entre 25 a 30 anos – indicar os candidatos para a aprovação pela Assembleia do Partido, mediante exame vestibular, constituindo uma banca examinadora de notáveis professores presidida por Theodoro Maurer, professor da USP. Examinamos mais de 150 candidatos para escolher 60. Em uma das questões, pedíamos aos candidatos que, em 20 linhas, indicassem a razão pela qual optara pelo Partido Libertador. Houve respostas curiosíssimas. Um dos candidatos escreveu “por ser a legenda mais respeitada entre as demais” e repetiu nas outras 19 linhas a mesma frase. Outro, disse que, abrindo a lista telefônica, simpatizara com o nome da legenda. O idioma, era, às vezes, bem maltratado. Este último candidato começou a frase dizendo: “Bem! abrindo a lista telefônica ...”. Roberto de Abreu Sodré, que veio a ser governador de São Paulo, disse-me

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que eu estava pretendendo criar uma Academia de Política e não dirigir um partido político. O certo é que a boa seleção que fizemos – havendo, como nos concursos de magistratura, perguntas sobre conhecimentos gerais, o passado do candidato e pesquisas sobre sua idoneidade – permitiu que o PL fosse o partido com maior número de candidatos participando nos horários gratuitos (em que ainda não havia participação de marqueteiros), e com discursos consistentes. Havíamos criado uma outra Comissão destinada a ensinar aos candidatos os princípios do partido, suas diretrizes, sua história lastreada no Partido Liberal fundado no Império, em 1861, assim como o programa para a cidade em que iriam concorrer. Por fim, presidi um Conselho informal de presidentes do partido para enfrentar as emissoras de TV, que queriam colocar-nos em horários pela madrugada. Conseguimos do TRE que os horários fossem definidos pelo Tribunal, ainda aqui com a colaboração do Des. Fernando Euler Bueno. O resultado foi surpreendente. O PL, quando assumi a presidência, era o décimo terceiro dos treze partidos, em número de votos e edis. Tínhamos apenas um em quarenta e cinco. Na eleição, conseguimos formar a terceira maior bancada, com três vereadores, perdendo para a UDN, que fez cinco, e para o PSP, do Governador de São Paulo, Adhemar de Barros, que fez seis. Alguns partidos fizeram 3 vereadores, também, mas tivemos mais votos que o PSD e PTB, partidos que apoiavam o presidente Jango. Quando da minha posse como presidente, Mem de Sá brincou que o PL, em São Paulo, não era um partido político, mas um jardim da infância. Com os resultados de 1963, recebeu, o diretório metropolitano, todos os elogios da direção nacional, passando a ser um referencial, principalmente para outros Estados em que o partido era mais forte (Rio Grande do Sul). Nesta época, surgiu a sólida amizade que me liga, até hoje, a Paulo Brossard, então secretário geral do diretório regional do PL naquele Estado. Contatos com Pilla, Mem de Sá, o fantástico e insuperável deputado Brito Velho – o maior orador que tive oportunidade de conhecer na vida – eram para mim uma escola, preciosos momentos de aprendizagem. Neste ínterim, a situação do país se deteriorava de tal forma, que culminou com a revolta dos sargentos, em 13 de março de 1964. Tínhamos tido, antes, a eleição para a presidência da mesa da Câmara Municipal de São Paulo. Alegrou-me termos perdido, mas, dos treze partidos, o PL foi o único cuja bancada votou de acordo com a orientação do partido (Paulo Soares Cintra, Jayme Rodrigues e João Lemos). Os demais racharam, o que irritou principalmente Sodré, que acompanhou a votação a meu lado. Os acontecimentos de 13 de março levaram os partidos “anti-Jango” a uma reunião de emergência, em São Paulo. Não sei se houve outras em outros Esta-

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dos. Foi quando senhoras procuraram-nos para dizer que iriam promover uma passeata da Família com Deus e contra a desfiguração do Poder Executivo, que apoiara os sargentos contra os oficiais, sobre ter nomeado para a Marinha oficial subalterno e da reserva, desafiando um dos dois principais requisitos das Forças Armadas, que são hierarquia e obediência. Demos-lhes apoio PSP, UDN, PL, PRP e o próprio PSD. No dia 19 de março, pela manhã, reunimo-nos, os presidentes dos diretórios regionais e metropolitanos, na Assembleia Legislativa. Tínhamos a impressão de que a marcha não seria bem-sucedida, pela falta de tempo, de organização e pela dificuldade dos partidos políticos de se unirem. Desconhecíamos a capacidade das mulheres paulistas. À tarde, já na Praça da Sé, eu não acreditava ver aquela multidão. Era o povo na rua, com as mulheres à frente, sem nenhuma liderança partidária destacando-se, porque o movimento era autêntico e popular. Basta olhar as fotografias da época, estampadas em todos os jornais. No dia 31 de março, estava proferindo uma palestra no Elos Clube de São Paulo, na hora do almoço, quando recebemos a notícia de que as tropas do General Mourão, em Minas, que estavam inicialmente avançando, haviam recuado, quando o 1º Exército, sediado no Rio, começou a deslocar-se para Minas. Comuniquei aos presentes, fui à sede do partido e convoquei uma reunião do diretório metropolitano, tendo João Pessoa de Albuquerque, presidente do diretório regional, convocado reunião de seu diretório. Fizemos, na sede do Partido, uma reunião conjunta. Jango cortou as ligações com o Congresso Nacional e não tivemos condições, portanto, de receber orientação da direção nacional, nem de Pilla, nem de Brito Velho, nem de Mem de Sá. Como a sede do Partido era na Rua Caio Prado, de meia em meia hora, um dos nossos dirigia-se até o jornal “O Estado de São Paulo” para saber o que estava ocorrendo em Brasília. Depois de horas de indecisão, o General Kruel, comandante do 2º Exército, decidiu opor-se ao comando do 1º Exército, notícia que me foi dada pelo próprio Júlio Mesquita Filho, e marchar para o Rio. Percebendo a insustentabilidade de manter–se em Brasília, de um lado, pela adesão de diversos setores militares ao movimento, apoiados pela reação popular, e, de outro, pela fracassada tentativa de instauração de uma república sindicalista no País, com apoio nas tropas (a revolução dos sargentos), o presidente foi para o Rio Grande do Sul de avião para garantir-se na presidência com apoio do 3º. Exército na fronteira, mais numeroso que o de São Paulo. Mas, ao sentir que também lá não conseguiria controlar as Forças Armadas – foi fatal o apoio aos sargentos contra os oficias para as pretensões de Jango – refugiou-se no Uruguai.

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De madrugada, ao sairmos do partido, tendo passado pelo “O Estado de São Paulo”, fomos todos os dirigentes jantar, tendo definido que a nossa posição a ser levada ao diretório nacional era de que a queda de um presidente regularmente eleito só se justificara pela tentativa de golpe que pretendeu impor ao país o regime sindical e que o regime de exceção, que se instalava, deveria ser provisório, com convocação de eleições de imediato. A direção nacional comunicou-nos que também seria essa a sua posição. E o Presidente Castelo Branco, eleito indiretamente, assegurou que as eleições programadas para 1965 iriam se realizar, conforme a Constituição de 1946 e seriam antecedidas daquela dos prefeitos. Saíram dois candidatos à presidência. Pelo PL, fomos os primeiros a lançar Carlos Lacerda, antes da UDN, e, pela Coligação PTB-PSD, Juscelino Kubitschek. A candidatura de Carlos Lacerda foi aprovada em São Paulo, na convenção nacional do PL. Já a esta altura, em fim de mandato, escolhi para meu sucessor nosso vereador mais votado, Paulo Soares Cintra, que aceitou, tendo coordenado a adesão do PL à candidatura de Laudo Natel à prefeitura de São Paulo, por sugestão minha e de João Pessoa. Continuei militando no partido e preparando a transição, em São Paulo, para a união com a UDN, de iniciativa da direção nacional, desde que se colocasse no programa desse partido o ideal parlamentarista. Os acontecimentos, após a eleição no Rio de Janeiro, em que o candidato do governo foi derrotado (creio que era Flexa Ribeiro) precipitou a edição do Ato Institucional n. 2/65, que dissolveu todos os partidos e criou duas legendas, ou melhor dois conglomerados de políticos (Arena e MDB). Nessa oportunidade, escrevi uma carta ao Senador Mem de Sá, que, segundo creio, era então Ministro da Justiça, dizendo-lhe que, com a extinção do PL, decidira nunca mais fazer política na vida – o que tenho cumprido, rigorosamente, até hoje. É que o fechamento de um partido programático como o PL, que defendia a “responsabilidade dos governos a prazo incerto” (irresponsáveis, nos governos parlamentares, não recebem voto de confiança do Parlamento e caem sem traumas institucionais) e não à “irresponsabilidade a prazo certo” (eleito um presidente irresponsável, os únicos caminhos para afastá-lo são o “impeachment” ou um golpe de Estado, como ocorrera com Jango), tirara-me toda a ilusão de que, através da política partidária, eu poderia fazer algo pelo meu País. Assim, comuniquei-lhe que decidira ser apenas advogado e professor, e, nesta condição, exercer a cidadania. É o que tenho feito em livros, palestras e artigos, desde então. Nunca me arrependi da decisão.

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O concreto armado no Brasil – Notas de um engenheiro civil Rogério Ribeiro da Luz

(sócio emérito do IHGSP)

As etapas iniciais, importantes e inovadoras, dos usos do concreto como significativo elemento estrutural, ou seja, combinado com o aço (liga ferro-carbono), surgiram entre o século XIX e o XX na nossa pátria. É preciso acrescentar antes que o cimento Portland já estava sendo utilizado em construções desde 1830-1840 na Europa. No Brasil, o emprego desse cimento, normalmente de procedência belga, inglesa ou alemã, já era algo frequente, mas somente no último quartel do século XIX, em 1897, ele passou a ser produzido aqui: foi instalada em Sorocaba a Fábrica de Cal e Cimento Rodovalho, por iniciativa do Comendador Antonio Proost Rodovalho. Sua primeira concorrente foi a Cimento Perus, constituída com capital inteiramente canadense. Dois exemplos ilustres, no começo do século XX na Região Norte, de construções de cimento combinado com ferro são o Teatro Amazonas, em Manaus, e o Teatro da Paz, em Belém do Pará. Na bela Rio de Janeiro construções de concreto armado eram erguidas na Avenida Central, uma delas de sete andares. Tratava-se do edifício Jornal do Comércio. Mas, na então Capital da República, o prédio inteiramente de concreto armado que marcou época foi o da Biblioteca Nacional, projetado pelo arquiteto General Francisco Marcelino de Souza Aguiar. Em São Paulo, então com aproximadamente 400 mil habitantes, diversos prédios no centro, hoje denominado Centro Velho, foram levantados em concreto armado. Situavam-se na Rua Direita, na XV de Novembro, na São Bento e completando o nosso conhecido Triângulo. Destinavam-se principalmente a bancos. Alguns marcaram época pela suntuosidade. O Banco Comércio e Indústria, o Francês e Brasileiro. Significativos, por demais, e quase na mesma época, a Escola Caetano de Campos e o Museu Paulista. E, voltando um pouco no tempo, não podemos esquecer de duas Igrejas. A de Santa Cecília, concluída em 1901, e a Matriz do Brás, de 1903. Também, a estação da Estrada de Ferro de Mairinque, de 1908. Havia na ocasião, é claro, certos exageros nas dimensões das estruturas e muitas preocupações com a segurança, que foram se amoldando, com o passar dos anos, em novos e sucessivos projetos e estudos sobre a estabilidade e resistência da novidade: o concreto armado.

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Um dos edifícios pioneiros construídos pela engenharia do concreto armado em São Paulo foi projetado pelo italiano Francisco Notaroberto. Situava-se exatamente na esquina da Rua Direita com a São Bento e contava com aspectos originais e vistosos: terraço ajardinado com arbustos na laje de cobertura, além de um belvedere em forma de pequena torre, de onde era possível vislumbrar o panorama de uma parte da cidade que começava a se agigantar. Pela mesma época apareceram com destaque o conhecido Palacete Guinle, na Rua Direita, o lendário Cine Teatro Santa Helena, na Praça da Sé, e o majestoso prédio do Correio Geral, a partir de projeto de Domiziano Rossi, com a supervisão do inesquecível Ramos de Azevedo, e, por fim, o edifício Sampaio Moreira, na Rua Líbero Badaró. Tal prédio – atualmente muito bem conservado – oferece fachada eclética e foi projetado pelos arquitetos Cristiano Stockler e Samuel das Neves. Era o mais alto de São Paulo em 1922, com seus imponentes 12 andares. Logo em seguida, o merecedor de muitas curiosidades, preocupações e aplausos em função de suas dimensões, o Martinelli. Uma verdadeira vedete. O Martinelli teve uma história curiosa. Foi o primeiro arranha-céu de verdade na capital paulista. Talvez pelas suas dimensões, talvez pelo modo construtivo, inteiramente de concreto armado, ainda – sim, ainda – uma persistente novidade tecnológica no ramo da engenharia civil, cuja limitação era palco de debates. Sua construção causou temor em parte da população. Sua inauguração, um sucesso! No Rio de Janeiro começava a ser construído o edifício Joseph Gire, conhecido atualmente como A Noite, com 22 andares, na Praça Mauá. Muito se fez na primeira metade do século XX em termos de marco definitivo. Contudo, pode-se afirmar que o primeiro prédio projetado e construído de acordo com a filosofia e conhecimento pleno das possibilidades do concreto armado foi o Edifício Esther, situado na Praça da República. Projetado por Adhemar Marinho e Álvaro Vital Brasil, foi inaugurado em 1934. Apresentava estrutura totalmente independente, com lajes contínuas e vigas invertidas. Lojas no térreo, escritórios nos primeiros andares e o restante, em seus 10 pavimentos, com unidades habitacionais. Terminamos a primeira metade do século XX e o nosso texto com um edifício que, ao redor dos anos 40, foi considerado a maior construção em concreto armado do mundo. Nada mais nada menos que um dos emblemas da cidade de São Paulo. Edifício com 161 metros de altura e 36 andares, denominado Altino Arantes ou Edifício Banespa. Inaugurado em junho de 1947. Com o conhecimento pleno do concreto armado, permitiu-se tanto aos engenheiros como aos arquitetos trabalhar com segurança e ousadia, oferecendo aos novos projetos muita criatividade. Essa etapa coincidiu com a formação de brilhantes profissionais egressos da Escola Politécnica e do Mackenzie.

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O concreto armado comprovou no Brasil, com o passar dos anos, ser uma solução viável, durável e de inteira confiança. O conjunto por demais resistente concreto-armadura resulta da aderência entre esses dois materiais. É essa aderência, esse casamento, que garante a transmissão de esforços do aço para o concreto e do concreto para o aço, resistindo às solicitações de tração, compressão e flexão. Além do mais, no Brasil, o custo de uma estrutura de concreto armado tende a ser menor do que aquele de uma estrutura metálica correspondente.

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DARÓZ, Carlos Roberto Carvalho. O Brasil na Primeira Guerra Mundial: a longa travessia. São Paulo: Editora Contexto, 2016, 208 p.

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IV – Seção de Resenhas

Sobre a participação do Brasil na Primeira Guerra Mundial (Resenha do livro de Carlos Daróz)

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(sócio emérito do IHGSP)

A Primeira Guerra Mundial foi denominada, por toda uma geração, como a Grande Guerra. Tão prolongada (1914-1918), monstruosa e apavorante tinha sido, que não poucos otimistas a consideraram “a última das guerras”, por acharem, no seu cândido wishful thinking, que constituíra vacina suficiente para que nunca mais o gênero humano ousasse lançar-se em aventuras bélicas. O francês Aristide Briand (1862-1932), que foi presidente do Conselho de Ministros do Governo francês durante o conflito, levou a ingenuidade a ponto de promover, na década de 1920, uma campanha mundial de propaganda, para que todos os países inserissem, na letra das respectivas constituições, um artigo proibitivo das guerras. Briand chegou a conseguir, ao cabo de vários anos de tratativas diplomáticas, que 63 países firmassem em 1928 um pacto – gizado por ele e pelo secretário de estado norte-americano, Frank Kellogg (1856-1937) – conhecido como Pacto Briand-Kellogg, ou Pacto de Paris, condenando o recurso à guerra como meio de resolução de pendências internacionais e renunciando formalmente a servir-se dele. Entre os signatários desse pacto estavam Itália, Alemanha, Japão, Inglaterra e Estados Unidos, potências que, pouco mais de 10 anos depois, se envolveriam na Segunda Guerra Mundial. O projeto pacifista de Briand e Kellogg parecia, no clima psicológico dos anos 20, não só generoso, mas francamente admissível e realizável, de modo que os dois políticos foram tomados a sério e chegaram a ser premiados com o Nobel da Paz, o francês em 1926 e o norte-americano em 1929. Seu sonho, obviamente, foi rapidamente esquecido e o mundo se precipitou, como se sabe, rumo a outro conflito mundial – o de 1939 a 1945 – que a todos fez parecer pequenina a guerra anterior que se pretendera a Grande Guerra, e que passou a ser denominada, a partir daí, mais modestamente como Primeira Guerra Mundial. A participação do Brasil na Primeira Guerra foi efetiva, mas está hoje quase completamente esquecida na memória coletiva dos brasileiros – a mesma memória que conserva lembranças vivas da Segunda Guerra Mundial e até, surpreendentemente, da Guerra do Paraguai, ocorrida muito antes, de 1864 a

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1870. Explica-se. A Guerra do Paraguai marcou nosso povo de modo incomparavelmente mais profundo. Foi o maior e mais prolongado conflito externo em que se envolveu o Brasil depois da Independência. Seus principais lances ficaram gravados nas páginas da História, foram estudados nos livros escolares, foram – e continuam sendo – transmitidos de geração em geração pelas nossas Forças Armadas. Mesmo entre a população civil, as recordações dos antigos combatentes do Paraguai continuaram sendo transmitidas por seus descendentes. As designações de numerosos logradouros públicos, em cidades de todo o Brasil, também perpetuam a recordação de heróis e episódios da campanha do Paraguai. E por vezes essa recordação se dá de modos inusitados... O jornalista francês Gilles Lapouge recorda, a propósito, um pequeno fato muito curioso. Quando jovem, na década de 1950, residiu em São Paulo na rua Barão de Tatuí, vizinho de uma casa na qual havia um papagaio que, todas as manhãs, proferia insultos e imprecações em castelhano e imitava sons de bombas explodindo. Esse papagaio, conforme lhe contaram, havia sido trazido do Paraguai mais de 80 anos antes, por um voluntário brasileiro que o encontrara entre prisioneiros e feridos inimigos. O papagaio havia aprendido a “falar” durante os combates e em meio ao tiroteio, ouvindo os paraguaios insultarem os brasileiros. Quase um século depois, ainda perpetuava daquela forma a lembrança dos combates presenciados na juventude*... Outro exemplo: a cidade em que resido, Piracicaba, é cortada por um caudaloso rio de mesmo nome. Na margem esquerda do rio situa-se a parte mais antiga da cidade, fundada em meados do século XVIII; na margem direita, durante muito tempo apenas havia propriedades rurais, mas há cerca de 100 anos se estabeleceu um bairro popular, habitado inicialmente por imigrantes de origem italiana; mais tarde, esse bairro cresceu, tomou importância e, em redor dele numerosos outros bairros se constituíram. O rio, que inicialmente marcava o limite extremo da área urbana da cidade e depois passou a demarcar certa diferenciação sócio-econômica entre os moradores de ambas as margens, hoje apenas corta a cidade ao meio. O curioso é que, entre os mais antigos moradores da cidade, havia o costume de designar a outra banda do rio como “Paraguai”: na margem esquerda, moravam os “jequitibás”, ou seja, os que tinham raízes sólidas na terra, paulistas antigos, geralmente mais ricos e poderosos que os imigrantes; na margem direita, residiam os ádvenas, chamados de “paraguaios”... Também a participação do Brasil na Segunda Guerra ainda é bem lembrada no Brasil, e isso se explica facilmente. Em primeiro lugar, pela proximidade temporal; depois, pelo impacto muito grande que produziu no Brasil a participação heroica da FEB; tudo isso acrescido ao fato de a propaganda do Estado * Cfr. En étrange pays. Paris: Éd. Albin Michel, 2003, p. 108-110.

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Novo lhe ter dado grande destaque, até 1945, e, depois disso, se ter mantido longamente a celebração do feito. Entre esses dois grandes conflitos externos em que o Brasil atuou de modo tão visível, situa-se a Primeira Guerra, na qual nossa atuação foi bem mais discreta, explicando-se assim o relativo esquecimento, por parte do nosso público. O fato de nos meses finais da Guerra e nos primeiros do pós-Guerra ter ocorrido a terrível pandemia da chamada Gripe Espanhola, de 1918-1919, que foi extremamente mortal no Brasil todo, contribuiu também para que o participação brasileira nas operações bélicas parecesse, aos olhos da população, um episódio menor. * Praticamente só se encontram registros muito de passagem sobre essas operações nas obras de referência geral, de História do Brasil, e até mesmo de História Militar do Brasil. Hernâni Donato, no clássico e bem documentado Dicionário das Batalhas Brasileiras**, consagrou apenas 22 linhas à participação do Brasil na Primeira Guerra Mundial. E a monumental História do Exército Brasileiro, editada em 1972 pelo Estado Maior do Exército, em três volumes que totalizam 1163 páginas, dedicou apenas um curto capítulo de 5 páginas*** ao assunto, o qual foi de todo omitido na Introdução à história militar brasileira, de Durland Puppin de Faria (org.), obra de reconhecido mérito que serve, na Academia Militar de Agulhas Negras, como livro de texto sobre História Militar brasileira****. Estudos mais aprofundados existem, mas quase todos muito técnicos e em geral produzidos por militares que escrevem para outros militares de formação, não sendo, por isso, acessíveis ao grande público não especializado. De um modo geral, pois, a bibliografia brasileira se omitiu no passado quase completamente a respeito da participação de nosso país na Primeira Guerra. O advérbio * Segundo o Atlas Histórico da Fundação Getúlio Vargas (http://atlas.fgv.br/verbetes/gripe-espanhola – acesso a 17/1/2017), cerca de metade da população mundial foi direta ou indiretamente atingida pela pandemia, que ceifou um número de vidas estimado entre 20 e 40 milhões de pessoas, bem mais, portanto, do que os 10 a 15 milhões vitimados pela Primeira Guerra Mundial. No Brasil, foram registrados mais de 35 mil óbitos, sendo 1/3 deles (12.700 pessoas) no Rio de Janeiro. Em São Paulo, que então possuía uma população de menos de 500 mil habitantes, morreram 5.328 pessoas. Em Porto Alegre, com 140 mil habitantes, os mortos foram 1.316. No Recife, que possuía 218 mil habitantes, ocorreram, só no mês de outubro de 1918, 1.250 óbitos. Esses números de mortos, já de si muito elevados, exprimem apenas uma pequeníssima parcela dos atingidos pelo morbo. A Parca ceifou vítimas em todas as classes sociais, desde as mais humildes até o presidente da República, Rodrigues Alves, que não pôde tomar posse em 15 de novembro de 1918 e faleceu nos primeiros dias de 1919. ** Op. cit. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora/Ibrasa, 2001, p. 152-153. *** Op. cit., vol. III, p. 819-823. **** Op. cit. Resende: Academia Militar das Agulhas Negras, 2015, 392 p.

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“quase” é devido a uma exceção que merece registro: o livro do Prof. Francisco Luiz Teixeira Vinhosa, premiado pelo IHGB em 1989 – infelizmente esgotado e a merecer urgente reedição*. A partir de 2014, ano centenário do início do conflito, numerosas publicações vêm sendo lançadas em toda a Europa e nos Estados Unidos, com análises novas sobre os pródromos da Primeira Guerra Mundial, sobre o desenvolvimento que teve e as respectivas consequências. Igualmente foram relançadas edições de obras clássicas, de há muito esgotadas, possibilitando novas interpretações e renovando antigos debates. Vale lembrar, a propósito, a grande produção memorialística de personagens maiores ou menores, protagonistas ou meros coadjuvantes do conflito, que deixaram depoimentos que, à luz da perspectiva histórica, adquirem novo interesse quase um século depois de escritas e publicadas. Na França, especialmente, são inúmeras as obras desse gênero, mas também na Alemanha e na Inglaterra elas são encontráveis em grande número. No Brasil, o interesse pela Primeira Guerra Mundial, reativado pela lembrança do seu centenário, motivou o lançamento de um número considerável de livros estrangeiros, traduzidos e publicados por editoras brasileiras já desde os anos anteriores ao centenário propriamente dito**. Vários desses livros são de real valor e constituem leitura obrigatória para os estudiosos do assunto. Bem pouco numerosos, entretanto, estão sendo, até agora, os livros escritos por brasileiros que realmente aportem novas visões e interpretações da Guerra. Quase exclusivamente têm saído obras de mera divulgação, não fruto de pesquisas e estudos aprofundados, mas apenas compilações e resumos de obras europeias ou americanas, produzidas um tanto apressadamente para atender a encomendas de editoras interessadas em aproveitar a oportunidade do centenário. Uma exceção a essa pobreza editorial brasileira foi representada pela publi* Vinhosa, Francisco Luiz Teixeira. O Brasil e a Primeira Guerra Mundial (A diplomacia brasileira e as grandes potências). Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1990, 259p. ** Entre outros, Keegan, John. História Ilustrada da Primeira Guerra Mundial. Tradução de Renato Rezende. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, 493p.; Arhur, Max. Vozes esquecidas da Primeira Guerra Mundial: uma nova história contada por homens e mulheres que vivenciaram o primeiro grande conflito do século XX. Tradução de Marco Antônio de Carvalho. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011, 397 p.; Sondhaus, Lawrence. A Primeira Guerra Mundial: história completa. Tradução de Roberto Cataldo Costa. São Paulo: Contexto, 2013, 547 p.; MacMillan, Margaret. A Primeira Guerra Mundial... que acabaria com as guerras. Tradução de Gleuber Vieira. São Paulo: Globo Livros, 2014, 728p.; Ferguson, Niall. O horror da guerra: uma provocativa análise da Primeira Guerra Mundial. Tradução de Janaína Marcoantonio. São Paulo: Planeta, 2014, 768 p.; Stevenson, David. 1914-1918: a história da Primeira Guerra Mundial. Tradução de Valter Lellis. Barueri-SP: Novo Século Editora, 2016, 4 vols., total de 1076 p.

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cação, em 2014, de O Brasil na I Guerra Mundial, do historiador militar Cel. Luiz Ernani Caminha Giorgis*, que optou por fazer uma abordagem estritamente cronológica do assunto, relatando os acontecimentos no seu dia-a-dia. É obra de utilidade para consulta e referência para estudiosos do conflito. Outra exceção digna de especial análise foi a do recente lançamento, pela Editora Contexto, do livro ora resenhado. Seu autor é Carlos Roberto Carvalho Daróz, coronel do Exército Brasileiro, professor de História Militar em instituições de ensino das Forças Armadas e também docente no programa de pós-graduação em História Militar da Universidade do Sul de Santa Catarina. Daróz alia sua formação militar e acadêmica com a prática diária em salas de aula, tanto em nível médio quanto superior. Habituou-se a exprimir em linguagem simples e quase coloquial assuntos complexos e frutos de pesquisas prolongadas. Sem nada perder da seriedade científica, consegue fazer-se entender dos alunos ou dos leitores. Isso o habilita a produzir obras que não são apenas de divulgação, mas são profundas e originais e, no entanto, ao alcance do grande público não especializado. Já comentamos, em resenha publicada alhures, outro livro seu, sobre a expulsão dos holandeses do Nordeste brasileiro**. O autor se filia à Nova História Militar***, corrente historiográfica que estuda a História Militar numa perspectiva ampla, que não se limita – como era comum entre os militares historiadores do passado – a focalizar a atenção quase exclusivamente nas batalhas, mas estuda o fenômeno guerra inserido num contexto pluridisciplinar que engloba aspectos políticos, diplomáticos, culturais, geográficos, econômicos, culturais etc. Na introdução, o autor contextualiza o conflito, expondo seus antecedentes próximos e remotos e focalizando os acontecimentos políticos e diplomáticos que levaram o mundo à catástrofe da guerra; estende-se na enumeração das fontes em que baseou seu livro, fruto de uma revisão da bibliografia brasileira, inglesa e norte-americana sobre a Guerra, de coleções de jornais e revistas da época, bem como de prolongada pesquisa em fontes primárias, na documentação disponível em arquivos e museus públicos ou privados, civis e militares, no Brasil e também no exterior; e, por fim, enuncia o objetivo de seu livro: “enten* Gramado-RS: Clássica, 2014, 168p. ** Santos, A. A. dos. Resenha do livro ‘A Guerra do Açúcar: as invasões holandesas no Brasil’, de Carlos Roberto Carvalho Daróz. Revista do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro, v. 468, p. 283-287, 2015. *** Sobre a linha teórica da Nova História Militar, cfr. Novas dimensões da História Militar – antologia organizada por Russell F. Weigley, tradução do General Octavio Alves Velho. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2 volumes, 1981, total de 465 p. Ver também Parente, Paulo André Leira. A construção de uma nova história militar, em “Revista Brasileira de História Militar”, Rio de Janeiro, n. 1, dezembro de 2009.

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demos que chegou a hora de fazer justiça e evidenciar o papel desempenhado pelos brasileiros, ainda que modesto, mas com a convicção de que o conflito teve um custo para o Brasil. Ao todo, quase duzentos brasileiros perderam a vida nos navios e nos campos de batalha da Europa, a maioria vitimada pela pandemia de gripe espanhola e outros em decorrência de acidentes durante as operações” (p. 15). Vêm, a seguir, os cinco capítulos que constituem o corpo do livro, cada um deles referente a um dos anos do conflito: O primeiro capítulo, intitulado “1914: O suicídio da Europa”, historia a Guerra desde seu estopim, o fatídico atentado de Sarajevo, no dia 28 de junho, quando foram assassinados o Arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro das coroas da Áustria e Hungria, e sua esposa a Duquesa Sofia de Hohenberg. Esse fato, sem dúvida trágico, não parecia de início suficiente para precipitar uma guerra; não era o primeiro, numa época em que assassinar soberanos, príncipes ou chefes de Estado havia se tornado quase um modismo*; mas o fato é que nas semanas seguintes se azedaram as relações internacionais e a Europa, articulada que estava num sistema de alianças ofensivas e defensivas, rapidamente se viu envolvida numa guerra de proporções inauditas. O capítulo contém ainda uma exposição sobre a situação política, diplomática e econômica do Brasil no momento em que eclodiu o conflito; os dois maiores parceiros internacionais do Brasil eram a Inglaterra e a Alemanha – o que recomendava uma prudente posição de neutralidade no conflito que, segundo todos os prognósticos então correntes, deveria ser rápido. O Brasil, realmente, declarou-se oficialmente neutro e acolheu em seus portos 42 navios mercantes alemães e dois austríacos, que preferiram ficar em nossos portos a correr os riscos de retornar à Europa num contexto de guerra. No segundo capítulo (“1915: Bloqueio submarino”) prossegue o relato dos acontecimentos bélicos nos campos de batalha europeus, mostrando como uma guerra que a princípio parecia dever ser curta – numa como que reedição da Guerra Franco-Prussiana de 1870 – tendeu a se prolongar indefinidamente, transformando-se numa lenta e sanguinária guerra de desgaste, na qual o mundo culto e refinado da Belle Époque se viu, de repente, diante da realidade nua e crua da guerra, com o prosaísmo e o horror das trincheiras, o terror da guerra química (gases asfixiantes), a extensão do conflito aos mares do mundo inteiro, o bloqueio marítimo que mutuamente tentaram estabelecer Inglaterra e Alemanha, a intensa atividade dos submarinos, forma traiçoeira de guerra, coexistindo paradoxalmente com a luta dos primeiros pilotos de caça, franceses e alemães, que ainda duelavam nos ares com nobreza, mantendo rituais e gestos da antiga * Cfr. Santos, A. A. dos. O terrorismo no tempo dos nossos avós. “Notícia Bibliográfica e Histórica” (PUCCAMP), v. 191, p. 423-427, 2003.

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cavalaria medieval*... O capítulo ainda expõe a divisão interna que havia, no Brasil, entre simpatizantes dos dois lados em conflito, especialmente na imprensa** e na intelectualidade, mas também nas colônias de origem alemã ou italiana, muito numerosas no Brasil e, no conflito de 1914-18, colocadas em campos opostos. Alguns fatos desconhecidos do nosso público são revelados. Por exemplo, o episódio romanesco do jovem comerciante e violinista Fernando Buschman, brasileiro naturalizado que tinha nascido na França, mas era de origem alemã e residia em Londres, onde, de modo um tanto amadorístico, se pôs a enviar informações para a Alemanha. O aprendiz de espião foi rapidamente preso e fuzilado, aos 25 anos de idade, em outubro de 1915. Outro fato desconhecido: quando, em 1915, a Itália declarou guerra aos Impérios da Áustria e Alemanha, numerosos jovens brasileiros, argentinos e uruguaios, de origem italiana, se alistaram como voluntários. Mais de 4 mil, entre os quais 800 provenientes de São Paulo, chegaram a seguir viagem para a Itália a fim de somarem esforços aos seus compatriotas. “1916: Forças despreparadas” é o título do terceiro capítulo. Nele, vemos a expansão ainda maior da guerra pelo mundo inteiro. Cada vez mais se caracterizava o conflito europeu por ser uma guerra de resistência e desgaste, dependendo ambos os lados de seu abastecimento por via marítima. Nações como Brasil e Estados Unidos, até então neutras e, como tal, lucrando com o comércio de víveres, intensificado durante os dois primeiros anos de guerra, foram, pouco a pouco, sendo envolvidas na dinâmica do conflito e sendo forçadas a tomar posição por um dos lados. Para essa eventualidade, o Brasil se encontrava totalmente despreparado, pois seu Exército e sua Marinha estavam tecnicamente muito defasados, como expõe em pormenores esse capítulo. 1917 foi o ano em que o Brasil passou da posição de neutralidade para a de beligerância. O quarto capítulo, “1917: A guerra chega ao Brasil”, mostra exatamente como se deu essa mudança de posição. Até o início de 1917, sem embargo dos bloqueios marítimos mútuos estabelecidos anteriormente, de modo geral foi respeitada pelos alemães a neutralidade de nações como Estados Unidos e Brasil, que comerciavam com ambas os lados. Mas em fevereiro de 1917 o Kaiser Guilherme II autorizou a guerra submarina sem restrições, contra quaisquer navios mercantes, de quaisquer bandeiras, que se aproximassem de portos franceses, ingleses e italianos. Nos dois meses seguintes, 11 navios norteamericanos foram atacados por submarinos alemães, o que levou os Estados * Cfr. Chambe, René. No tempo das carabinas. Tradução de Augusto Sousa. São Paulo, Flamboyant, 1961, 211 p.; VV.AA., Les chasseurs du ciel – Première Guerre Mondiale. “Historia Spécial”, 420 bis. Paris: Librairie Jules Tallandier, 1981, p. 2-67. ** Ver, a respeito, Garambone, Sidney. A Primeira Guerra Mundial e a Imprensa Brasileira. Rio de Janeiro: Mauad, 2003, 112p.

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Unidos a declararem guerra à Alemanha no dia 6 de abril. Dois dias antes disso, um navio mercante brasileiro, o Paraná, tinha sido afundado por um submarino alemão nas costas da França. A agressão despertou imediata indignação em todo o Brasil, e o Ministro das Relações Exteriores, Lauro Müller, que tinha origem alemã e era favorável à manutenção da política de neutralidade, foi pressionado a renunciar. No dia 11 de abril, o Brasil rompeu relações diplomáticas com o Império da Alemanha e no dia 22 de maio revogou oficialmente sua posição de neutralidade, declarando-se favorável aos Estados Unidos e seus aliados europeus. Mas somente em 26 de outubro do mesmo ano, depois do torpedeamento de outros navios brasileiros e da intensificação do clamor nacional por uma tomada de atitude enérgica por parte de nosso governo, o Brasil formalmente declarou guerra aos Impérios centrais. Era uma guerra, insista-se, para a qual estava completamente despreparado, mas para a qual se viu arrastado. Os 42 navios de bandeira alemã que desde o início da guerra se encontravam abrigados em portos brasileiros foram, então, confiscados e incorporados à frota nacional. No último dos cinco capítulos (“1918: A longa travessia”) é resumidamente exposta a fase final da guerra europeia; nos dois primeiros meses desse ano não ocorreu mudança decisiva nos acontecimentos, prosseguindo a guerra de trincheiras tal como nos anos anteriores. Mas em março ocorreram mudanças importantes: os alemães assinaram com os bolchevistas russos o acordo de Brest-Litovsk, pondo fim à guerra na frente oriental, e puderam, assim, lançar suas forças integralmente na frente ocidental, tentando uma nova ofensiva. Esta teria sido fatal, para as tropas francesas e inglesas, se a defecção dos russos não tivesse sido compensada, com imensas vantagens, pela entrada na guerra dos Estados Unidos e, quase simultaneamente, do Brasil e de Portugal*. Estavam acabando de chegar, a essa altura, os primeiros contingentes norte-americanos, de modo que, a partir de março, os combates retomaram todo o furor dos primeiros tempos da guerra. A ofensiva germânica na França foi muito violenta, mas não conseguiu chegar, como desejava, a Paris. E em julho de 1918 foi possível aos Aliados lançar a sua contraofensiva, na qual as tropas norte-americanas desempenharam grande papel e garantiram sucessivas vitórias. A partir daí, os alemães foram cedendo terreno, cada vez mais. Em setembro, se rendeu a Bulgária, aliada dos Impérios centrais. Em outubro, foi a vez de a Turquia, outra aliada, igualmente capitular. Por fim, em novembro desabou de vez a gigantesca e formidável máquina de guerra dos Impérios Centrais. No dia 3 desintegrou-se o Império * De fato, Portugal já estava de certa forma envolvido na Guerra desde o seu início, no Ultramar, e desde março de 1916 era oficial o estado de guerra contra a Alemanha. Mas somente no dia 4 de abril de 1917 (dois dias antes de os Estados Unidos declararem guerra à Alemanha) as primeiras tropas portuguesas entraram efetivamente em combate, nas trincheiras das Flandres.

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Austro-Húngaro; no dia 9 uma revolução republicana estourou da Alemanha e provocou, dois dias depois, a fuga inglória do Kaiser Guilherme II. Mais dois dias e, a 11, os novos senhores do poder na Alemanha derrotada assinaram o armistício que pôs fim à guerra. É nessa fase final da guerra que entrou em cena o Brasil. Declarada a guerra, o Brasil imediatamente confiscou e incorporou à frota nacional 42 navios de bandeira alemã que estavam em portos brasileiros desde o início do conflito. Eram quase todos navios mercantes e foram tomados pelas autoridades brasileiras sem dificuldades. Uma das embarcações alemães, porém, que estava internada no porto de Salvador, era um navio de guerra, a canhoneira a SMS Eber. Sua tripulação já havia elaborado um plano de afundá-la, para que não passasse para o domínio brasileiro. Foi o que aconteceu. Quando o contratorpedeiro Piauí se aproximou, a tripulação provocou um incêndio e abriu as comportas, de modo que o navio em pouco tempo afundou na baía. A tripulação, que conseguiu se salvar, foi aprisionada. Nos meses seguintes, continuaram no Atlântico os ataques de submarinos alemães a embarcações brasileiras. Nos Estados do Sul, em que era mais forte a presença de imigrantes de origem germânica, o governo federal, por recear perturbações da ordem pública e atos de sabotagem, declarou estado de sítio. Foi também elaborado um estudo sigiloso que previa o envio de um grande corpo expedicionário brasileiro para lutar na Europa, mas esse estudo, denominado Plano Calógeras, não chegou a ser posto em prática. Somente muito mais tarde, na década de 1930, foi tornado público. Uma significativa colaboração do Brasil para o esforço de guerra foi representada pela Missão Médica Militar Brasileira, enviada para a França em agosto de 1918, sob a chefia do Dr. José Thomaz Nabuco de Gouvêa, professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, civil comissionado no posto de coronel. Era constituída por 131 homens, entre médicos militares e civis comissionados, acadêmicos de Medicina e auxiliares. Durante a viagem, foi duramente atacada pela Gripe Espanhola, morrendo vários dos seus integrantes e ficando outros internados em um hospital da Argélia francesa. Quando chegou em Paris, a Missão Médica instalou um hospital militar destinado a socorrer feridos de guerra e, também, a população civil vitimada pela pandemia e prestou excelentes serviços, elogiados unanimemente pelos franceses. Mesmo depois de extinta a Missão, com o fim da Guerra, médicos brasileiros continuaram trabalhando no hospital até novembro de 1919, quando o governo brasileiro fez entrega das instalações do hospital à Faculdade de Medicina de Paris. Aviadores militares brasileiros também atuaram, nos meses finais da Guerra e mesmo depois do armistício, incorporados à recém-criada Royal Air Force britânica, e ao US Naval Air Service. Também na Itália estiveram aviadores brasileiros em estágio, mas não chegaram a entrar em combate.

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Nos últimos dias de 1917 foi constituída no Brasil uma comissão de estudos composta por 24 oficiais brasileiros que, sob o comando do General Napoleão Felippe Aché deveria partir para a França e se incorporar às operações de guerra, com o objetivo de obter informações e material bélico que pudessem ajudar o Exército brasileiro no seu esforço de atualização, de acordo com a doutrina militar corrente na França, diferente da escola prussiana, que até então tinha sido adotada entre nós. A Missão Aché, como foi chamada, não se limitou ao estudo teórico, mas boa parte de seus membros participaram ativamente de operações de guerra do Exército francês. Alguns chegaram a ser promovidos por desempenho corajoso, em combate. A Marinha de Guerra brasileira desempenhou ativamente seu papel de policiar nosso extenso litoral e emprestou à marinha aliada considerável número de barcos capturados aos alemães em nossos portos. Esses barcos serviram às forças aliadas com tripulação brasileira. Foi também constituída uma Divisão Naval de Operações em Guerra (DNOG) composta por dois cruzadores, quatro contratorpedeiros, um tênder e um rebocador, com cerca de 1.500 homens, sob o comando do contra-almirante Pedro Max de Frontin. A missão de que foi incumbida era o policiamento da área compreendida entre o Senegal, o Arquipélago de Cabo Verde e o Estreito de Gibraltar, região de importância vital para o abastecimento dos Aliados e infestada por submarinos alemães. Durante a travessia do Atlântico, já perto do litoral africano a Divisão chegou a ser atacada por um submarino germânico ao qual revidou com tiros de canhão, produzindo, ao que parece, seu afundamento. A atuação da DNOG foi comprometida, infelizmente, pela irrupção da Gripe Espanhola, que nos primeiros dias de setembro de 1918 atacou com grande violência a sua tripulação, que ficou muito desfalcada. Mais de 100 tripulantes morreram, 140 outros precisaram ser transportados de volta ao Brasil em estado muito grave, incontáveis outros foram também atingidos pelo morbo, mas conseguiram se recuperar. Perto de dois meses a DNOG precisou ficar imobilizada, na costa senegalesa, esperando a substituição dos tripulantes baixados e a recuperação dos doentes atingidos com menor gravidade. Somente no dia 3 de novembro pôde partir para a França, aonde chegou a 10, um dia antes de terminado o conflito mundial. Embora não tenha chegado a travar combates prolongados, foi muito pesado o saldo da “longa travessia” que inspirou, ao Coronel Daróz, o subtítulo de seu livro. “A longa travessia da Divisão Naval estava encerrada: 156 oficiais e marinheiros brasileiros não tornariam a ver sua terra natal, cerca de 10%¨do efetivo total da DNOG, que totalizava 1.515 homens” (p. 170), registra ele. No total, a participação brasileira no conflito foi restrita, não ultrapassando dois mil o números de brasileiros diretamente envolvidos. Mesmo assim, ela foi suficiente para que, após o armistício, o Brasil tivesse assento na conferência de paz entre as potências vencedoras, obtendo compensações que do ponto de vista

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material foram bastante vantajosas. O Brasil foi ressarcido do valor de seus navios afundados pelos submarinos e pôde incorporar definitivamente à sua frota, mediante pagamento meramente simbólico, os navios inimigos que confiscara no ano anterior. O livro de Daróz tem o mérito do seu pioneirismo e do extenso esforço de pesquisa bibliográfica e nas fontes primárias; tem, sobretudo, o grande merecimento de resgatar, para as novas gerações, uma página injustamente esquecida da nossa história militar. É de desejar que o autor prossiga seus estudos sobre o tema e, numa próxima reedição, ou talvez em trabalho à parte, focalize outro importante aspecto da participação brasileira no conflito de 1914-18: o papel dos voluntários brasileiros que, muito antes da entrada oficial do Brasil na guerra, já nela se haviam incorporado como voluntários, servindo no Exército francês ou no inglês. São algumas dezenas. Os mais ilustres e famosos são os dois filhos da Princesa Isabel, Príncipes D. Luiz (1878-1920)* e D. Antonio de Orleans e Bragança (1881-1918). Ambos se incorporaram ao Exército britânico desde o início do conflito, já que a legislação republicana francesa não permitia que servissem no exército francês. Muitos outros brasileiros também se apresentaram como voluntários e serviram no exército francês. O Conde d´Eu, em carta à Baronesa de Loreto, de 20-12-1917, se refere a mais de 40 brasileiros nessas condições, alguns dos quais condecorados por seu valor**. Esses heróis também merecem ser resgatados do esquecimento, sobretudo num momento de intensa crise de valores, como o atualmente vivido pelo Brasil.

* Santos, A. A. dos. Um Príncipe brasileiro voluntário na Grande Guerra. “Debater a História” (Vila Nova de Gaia, Portugal), v. Ano 2 n. 9, p. 40-47, 2015. ** Santos, A. A. dos. Cartas do Conde d’Eu à Baronesa de Loreto. “Revista do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro”, v. 467, p. 219-247, 2015.

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V – Noticiário

Agenda cultural 2016 FEVEREIRO 17 a 19 de fevereiro – Comemorações do Bicentenário do historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, realizadas em Sorocaba e em São Paulo pelas seguintes entidades: Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Sorocaba, Academia Paulista de Histórica, Fundação Visconde de Porto Seguro, Fundação Ubaldino do Amaral, e Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo – com a presença do Prof. Dr. Arno Wehling , Presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 19 de fevereiro – Mesa redonda no IHGSP, sobre Varnhagen, com a participação do Jorn. José Adirson de Vasconcelos e dos Profs. Alberto Luiz Schneider, Jorge Pimentel Cintra e Armando Alexandre dos Santos. MARÇO 12 de março – Passeios e Bandeiras Culturais: “Ruas do Centro Velho de São Paulo”; “Mapas antigos, toponímia e gênese do traçado”; “O sítio e o modelo da cidade”; visita ao IHGSP – Coordenação: Prof. Jorge Pimentel Cintra. 16 de março – Sessão solene de abertura das atividades do IHGSP do ano de 2016 – Outorga do Colar D. Pedro I ao ex-Governador Prof. Cláudio Lembo – Posse dos novos membros titulares e correspondentes – Lançamento do número 99 da “Revista do IHGSP”. ABRIL 8 de abril – “Missa de Réquiem em sufrágio da alma de D. Maria I, a Piedosa, Rainha de Portugal, Brasil e Algarves“, mandada celebrar na Igreja de Nossa Senhora do Brasil por iniciativa da Casa Imperial do Brasil, com apoio do IHGSP e da Casa de Portugal. 9 de abril – Passeios e Bandeiras Culturais: “Mogi das Cruzes e Guararema”; “As

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bacias do Tietê e Paraíba do Sul”; “A estrada velha do Rio de Janeiro” – Coordenação: Prof. Jorge Pimentel Cintra. 16 de abril – Sala das Artes Paulistanas: Recital de piano e coral – Eny da Rocha, no piano, e Coral Nova Visão (formado por crianças com deficiência visual e alguns membros da comunidade de Parelheiros, participantes do projeto social do IBASA – Instituto Benemérito Angelina Salvatore), com a Maestrina Ana Maria Muniz e Prof. André Záccaro como percussionista – Coordenação: Maestro Samuel Kerr. 27 de abril – Sessão solene de premiação do Concurso de Redação “Caminhos de paz: novas histórias para São Paulo”, do qual participaram cerca de 7 mil alunos do Ensino Fundamental e Médio de escolas públicas e privadas, em parceria com a PEA-UNESCO, coordenada pela Profa. Eliana B. Pereira Aun – Outorga do Colar do Centenário à Profa. Cláudia Cristina Pereira Mendes – Palavras de encerramento do Cardeal Arcebispo D. Odilo Pedro Scherer – Coordenação: Conselho de Paz do IHGSP. MAIO 14 de maio – Passeio e Bandeira Cultural: “Santana, Horto Florestal, Jaçanã; Cantareira e o Trem das Onze; Cabuçu e o abastecimento de água da cidade” – Coordenação: Prof. Jorge Pimentel Cintra. 21 de maio – Sala das Artes Paulistanas: Recital “3/4” com o grupo de clarinetistas Palheta Sonora (Fhilipe Alancaster, Tiago Ferreira e Rafael Fonte, com participação especial de Álvaro Lucien na percussão) – Coordenação: Maestro Samuel Kerr. JUNHO 4 de junho – Década Internacional dos Afrodescendentes no IHGSP – I Encontro “Cultura Negra em São Paulo: história e resistência” – Palestrantes: Carmen Dora de Freitas Ferreira, Ednéia Soares de Souza Oliveira, Mrs. Netal Loice Magade (Ministra Conselheira do Zimbabwe), Suelaine Carneiro – Coordenação: Profa. Antonia Aparecida Quintão dos Santos Cezerillo. 11 de junho – Passeios e Bandeiras Culturais: “Itanhaém, Peruíbe. As antigas cidades litorâneas. Aspectos geográficos, Arqueologia” – Coordenação: Prof. Jorge Pimentel Cintra. 18 de junho – Sala das Artes Paulistanas: Recital “Duo contraditório” (Nathália Oliveira e Gabriel Curalov – violinos) / “Quarteto Ibotirama” (Nádia Fonseca e Barbara Andrade, violinos; Yasmin Pola, viola; Karen Hapuque, violoncelo), com participação especial de Giullia Assmann, no contrabaixo - (em parceria com PET/UNESP) – Coordenação: Maestro Samuel Kerr.

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JULHO 4 de julho – lançamento do livro “Casa Godinho, um lugar de memória na cidade de São Paulo”, de Vaner Silvia Bianchi, membro do IHGSP. 9 de julho – Data comemorativa da Revolução Constitucionalista de 1932 – exposição aberta durante todo o dia. 23 de julho – Sala das Artes Paulistanas: Recital “Cantares”, com Heloisa Junqueira (canto) e Sin Ae Lee (piano) – Coordenação: Maestro Samuel Kerr. Durante todo o mês de julho – exposição da artista plástica Profa. Cristiane Carbone, membro do IHGSP, no Forte dos Andradas, e PRODESAN – Galeria de Arte Nelson Penteado de Andrade. Com apoio do Exército Brasileiro, contingentes de Santos/São Vicente. AGOSTO 13 de agosto – Passeios e Bandeiras Culturais: “Butantã, Osasco, Vila e Capela de São Francisco. Lagoa dos Búfalos, Raposo Tavares. A estrada para Sorocaba e Sul do país” – Coordenação: Prof. Jorge Pimentel Cintra. 13 de agosto – Comemoração dos 51 anos do Dia do Jequibau, instituído por lei Municipal e Estadual – Maestro Mario Albanese. 13 e 14 de agosto – Festa do Tatá Ruçukatu (Fogo Sagrado Tupi-Guarani) em Peruíbe – Coordenação: Cacique Robson Miguel, membro do IHGSP. 20 de agosto – Sala das Artes Paulistanas: Recital “Duo Oliveira-Yonamine” – violonistas João Vitor Oliveira e Neil Yonamine – Coordenação: Maestro Samuel Kerr. De 5 de agosto a 3 de setembro – Exposição de Bandeiras Olímpicas, no Instituto Federal de Ciências e Tecnologia – Coordenação: Tiago Berg, membro do IHGSP. SETEMBRO 8 de setembro – “Sessão Especial em homenagem à memória de D. Maria I, Rainha de Portugal, Brasil e Algarves” - com palestras da Dra. Nelly Martins Ferreira Candeias, do Prof. Ibsen Noronha (da Universidade de Coimbra), do Prof. Armando Alexandre dos Santos (IHGSP) e, encerrando a sessão, palavras de S.A.I.R. o Príncipe Imperial Dom Bertrand de Orleans e Bragança. No Intervalo Musical, apresentação do Trio “Cantos do Brasil”, com Vagner Ferreira, no piano, Erika Muniz, soprano e Mariana Valença, mezzo soprano – Coordenação: Maestro Samuel Kerr. 17 de setembro – Sala das Artes Paulistanas: apresentação do “Trio Amici”, com Gretchen Miller, no violoncelo, Nancy Bueno, no piano e Lenine Santos, no canto – Coordenação: Maestro Samuel Kerr.

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17 de setembro – Passeios e Bandeiras Culturais: – “Penha, São Miguel e Atibaia. Antigas Capelas. Estradas para o Rio de Janeiro e Minas Gerais” – Coordenação: Prof. Jorge Pimentel Cintra. 24 de setembro – Década Internacional dos Afrodescendentes no IHGSP – II Encontro: “As Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, do Largo do Paissandu e do Largo da Penha” – Palestrantes: Profa. Antonia Aparecida Quintão dos Santos Cezerillo (coordenação); Marlei Madalena da Boa Morte; e Cristiane Carbone (artista plástica). OUTUBRO 5 de outubro – 64º Encontro dos Descobrimentos “A língua portuguesa no mundo globalizado” (parceria do IHGSP com o Centro Internacional de Cultura, de Lisboa) – Palestras: Palavras de Abertura da Dra. Nelly Martins Ferreira Candeias; “Importância nacional brasileira e internacional da língua portuguesa”, da Profa. Dra. Maria Cecília Naclério Homem, “Camões, expoente máximo e consolidador da língua portuguesa”, do Prof. Armando Alexandre dos Santos, “ Fernando Pessoa e seus heterônimos”, do Dr. Nelson Faria de Oliveira, “O Tupi na formação do português do Brasil”, do Prof. Eduardo de Almeida Navarro, “O português arcaico através de mapas e outros documentos cartográficos quinhentistas”, do Prof. Jorge Pimentel Cintra, e “A historicidade da língua portuguesa: cultura e língua na formação do Brasil”, do Prof. Alberto Luiz Schneider 8 de outubro – Passeios e Bandeiras Culturais – “Pinheiros” – Coordenação: Prof. Jorge Pimentel Cintra. 22 de outubro – Sala das Artes Paulistanas: “A viola Instrumental brasileira” – César Petená, viola caipira; Milton Nakamoto, clarinete; e Rodrigo Moury, viola – Coordenação: Maestro Samuel Kerr. NOVEMBRO 12 de novembro – Passeios e Bandeiras Culturais: “Vitrais de São Paulo e outras histórias” – Coordenação: Prof. Jorge Pimentel Cintra. 19 de novembro – Sala das Artes Paulistanas: “Homenagem à Profa. Lenice Prioli” – “Canções de Waldemar Henrique” – com Sandro Bodilon, canto e Rosely Gonçalves Freire, piano – Coordenação: Maestro Samuel Kerr. 24 de novembro – Década Internacional dos Afrodescendentes no IHGSP – III Encontro: “O mês da consciência negra e as estratégias de combate ao racismo no Brasil” – Palestras: Bel Santos; Gisela dos Anjos Santos; Célia Magalhães de Souza; João Emílio Gerodetti e Profa. Antonia Aparecida Quintão dos Santos Cezerillo (coordenação).

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DEZEMBRO 6 de dezembro – Lançamento do livro “Felicidade – a vida de Nelly Martins Ferreira Candeias”, de Ricardo Viveiros, pela Editora Azulsol. 17 de dezembro – Sala das Artes Paulistanas: “Musicas tradicionais de Natal”, com Vagner Ferreira, no piano, e Juliana Rodrigues, na flauta – Coordenação: Maestro Samuel Kerr. 19 de dezembro – Sessão de encerramento das atividades do IHGSP, com apresentações de Malcom Forest (“Blowin’ in the Wind”), Silmara Rascalha Casadei (“My Way”, em versão própria de Silmara Rascalha Casadei), Carmen Dora de Freitas Ferreira (“Murmurando”, de Otaviano Romeiro Monteiro), Pedro Paulo Penna Trindade (declamação de poemas), Robson Miguel (“Ave Maria”, de Charles Gounod) e Mario Albanese (“O Milagre Paulista”, de Paulo Bomfim e Mario Albanese).

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Registros fotográficos 19 de fevereiro – Mesa redonda no IHGSP, sobre Varnhagen, com a participação do Jorn. José Adirson de Vasconcelos e dos Profs. Alberto Luiz Schneider, Jorge Pimentel Cintra e Armando Alexandre dos Santos.

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In Memoriam Esta revista já se encontrava concluída quando nos chegaram as tristes notícias do falecimento, ocorrido em São Paulo, no dia 1º. de dezembro de 2016, do heraldista Dr. Lauro Ribeiro Escobar, sócio emérito do IHGSP; e, no dia 8 de janeiro de 2017, na cidade do Porto, do médico e cientista português Dr. Daniel dos Santos Pinto Serrão, sócio correspondente do IHGSP e membro do Conselho Editorial da nossa Revista. Transcrevem-se nas páginas a seguir a nota que a Dra. Nelly Martins Ferreira Candeias divulgou pela imprensa, acerca do falecimento do Dr. Lauro Ribeiro Escobar; e as palavras que o Pe. Aníbal Gil Lopes, amigo e colega do Dr. Daniel Serrão, escreveu para serem lidas na sua Missa de Sétimo Dia. Pe. Aníbal e Dr. Daniel eram amigos de muitas décadas, além de colegas – por serem ambos médicos, professores de Medicina e membros da Pontifícia Academia para a Vida, do Vaticano. No Conselho Editorial da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Pe. Aníbal sucederá ao ilustre falecido.

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Manifestação de pesar da Presidência do IHGSP por ocasião do falecimento do Dr. Lauro Ribeiro Escobar (1º de dezembro de 2016) Foi dolorosa a notícia do falecimento do Dr. Lauro Ribeiro Escobar. Perde São Paulo o seu maior especialista em heráldica e vexilologia. Em atividade desde 1968, procurador aposentado, o Dr. Lauro foi autor do projeto da bandeira da cidade de São Paulo, instituída em 1987, a pedido do prefeito Jânio Quadros. Criou, também, mais de 300 brasões para cidades, em vários estados do Brasil, sempre de forma gratuita. Em abril de 1970, sob a presidência de Aureliano Leite, tornou-se membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. A partir dessa data sempre se fez presente em reuniões e eventos no Instituto, como membro do Conselho do Colar dessa entidade. Nesse cargo, publicou um valioso artigo na revista n° 88, em 1993, a respeito da origem das condecorações do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Foi um exemplo ímpar de homem e de cidadão, que passei a admirar desde minha primeira gestão, em 2002. Os anos correram e os compromissos que assumimos, em conjunto, fortaleceram o respeito e a admiração por sua postura prestimosa e gentil, sempre devotado amigo, capaz de colaborar discretamente e presente nas horas difíceis do Instituto. Foi um humanista. A primeira condecoração paulista foi criada pelo Decreto 492 em 1927, editado por Campos Sales, com o intuito de perpetuar o mérito em todas as suas formas. Com chancela do Poder Público, o Instituto foi a primeira entidade cultural a criar uma condecoração oficializada em São Paulo, com a qual passou a exercer atribuição antes exclusiva do Estado. A concessão dos colares e medalhas do IHGSP é da iniciativa e exclusiva competência do Conselho da Medalha do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Em março de 2013 o IHGSP prestou justa homenagem ao Dr. Lauro Escobar, a quem a diretoria, conselhos e associados manifestaram sua gratidão pelos serviços prestados desde a sua posse. Foi autor dos projetos de duas das sete

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condecorações deste Instituto – os Colares do Centenário do IHGSP e do Bicentenário da Vinda da Família Real para o Brasil, além de ser um valioso consultor nosso em todas essas questões. Como presidente do IHGSP manifesto meu respeito pela nobre contribuição que o Dr. Lauro Ribeiro Escobar deixou para sempre na memória paulista. Nas palavras de Guimarães Rosa, “O mundo é mágico. As pessoas não morrem, ficam encantadas.” Nelly Martins Ferreira Candeias

Dra. Nelly Candeias e Dr. Lauro Ribeiro Escobar, na Comemoração dos 200 anos da vinda da Família Real para o Brasil, 26 de março de 2008

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Palavras escritas para serem lidas na Missa de sétimo dia do Dr. Daniel dos Santos Pinto Serrão, falecido a 8 de janeiro de 2017

A morte de Daniel Serrão é o atestado de que sua vida foi vivida de uma maneira única e múltipla. Única pela sua coerência e fidelidade a princípios que o nortearam desde a juventude e lhe deram a solidez de quem não apresentou fraturas morais, éticas, filosóficas e teológicas. Uma pessoa monolítica, inteira e íntegra. Múltipla pelas atividades, funções e papéis que desenvolveu em áreas do saber tão diversas que o tornaram um luzeiro intelectual reconhecido tanto em Portugal como no exterior. Homem de posições claras e fortes, destemido e lutador, seduzia a quem dele se aproximasse pela lucidez e pela ternura. Daniel foi um conquistador corajoso, que nunca teve medo em externar sua fé e suas opiniões, mesmo em condições adversas e causadoras de perdas e sofrimentos. Sempre valente e de ânimo forte nas horas de enfrentar as injustiças e as perdas que o tocaram em vários momentos e que não lhe tiraram a Paz interior nem apagaram a luz que o guiava e deixava um sendeiro brilhante para ser seguido pelos que o conheceram. Nas dúvidas e incertezas, perdas e dores, vitórias e sucessos, balizado pela sua fé luminosa, nunca se deixou levar pelo abatimento ou tristeza. Daniel, com os olhos interiores iluminados pela Luz das Luzes, foi luz para sua geração. Único e múltiplo, encontrou e ofereceu caminhos singulares aos que procuravam entendimento e compreensão dos mistérios da vida. Sua morte, ocorrida no dia em que se celebra, no Brasil, de onde escrevo, a

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Solenidade da Epifania do Senhor, é, no sentido religioso, a epifania de sua fé, a manifestação do sentido cristão da vida, a manifestação do próprio Cristo presente no meio da humanidade nos que O seguem como discípulos. É epifania, por nos dar a sensação profunda do que seja uma vida realizada, no sentido de compreender a essência das coisas. Daniel Serrão não morreu. Chegou na sua casa, a Casa do Pai, depois de ter passeado pelo mundo. Caminhada iniciada em São Diniz, de Vila Real, a partir de onde percorreu tantas terras, até chegar aqui e agora, onde renasce para a eternidade. Onde chega ao Reino da Paz e participa da glória reservada aos que encontraram no Cristo seu princípio e seu fim. Adeus, pois em Deus, pela Sua graça, nos encontraremos. Até esse momento que está por vir, nos manteremos unidos na oração de louvor pela vida recebida, manifestação da obra de Deus, do próprio Deus. Pe. Aníbal Gil Lopes

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Revista do IHGSP Instruções aos autores 1 - A Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, órgão oficial do IHGSP, é uma publicação de caráter científico e cultural, voltada para a difusão do conhecimento histórico e geográfico, assim como de outras disciplinas afins, no âmbito dos estudos brasileiros em geral, e mais especificamente dos estudos paulistas – entendidos em sentido lato, ou seja, abrangendo a extensa área do território brasileiro atingida no passado pelos ciclos do bandeirismo e do tropeirismo. Pode também acolher matérias de caráter teórico ou metodológico referentes a esses temas e, excepcionalmente, referentes à História ou Geografia universais. Recebe contribuições em fluxo contínuo, a saber: artigos e ensaios, resenhas, comunicações, notas de pesquisa, bem como documentos de valor histórico acompanhados de comentários críticos. A Revista pode ainda publicar dossiês temáticos ou seletivos, elaborados por especialistas nacionais e/ou estrangeiros, e entrevistas com convidados especiais, associados ou não. São colaboradores preferenciais, se bem que não exclusivos, da Revista os associados membros do IHGSP. 2 - A publicação de toda e qualquer colaboração dependerá da observância das Normas Editoriais e da avaliação do Conselho Editorial e/ou assessores ad hoc. 3 - Os conceitos emitidos nos trabalhos editados são de inteira responsabilidade dos autores. 4 - Os textos serão publicados mediante cessão gratuita, pelos autores, de direito de publicação concedido à Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, tanto por meio impresso quanto eletrônico. Os autores receberão cinco exemplares de cada revista em que seus textos forem publicados. 5 – Publicações da Revista: a - Artigos: textos analíticos ou ensaísticos resultantes de estudos e pesquisas concernentes a temas de interesse para a Revista (até dez mil palavras). Devem obrigatoriamente ser acompanhados de resumo, em até 60 palavras, e de lista de até 5 palavras chave. O título do artigo, o resumo e a lista de palavras chave devem também ser traduzidos para o inglês. b - Comunicações: destina-se à publicação de discursos ou intervenções realizados por sócios ou convidados nas sessões do IHGSP (até quatro mil palavras). c - Entrevistas sobre temas especializados de interesse da Revista, com personalidades que tenham autoridade nesses temas. d - Documentos: divulgação de fontes, de preferência inéditas ou que receberam tratamento recente (até dez mil palavras).

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e - Transcrições: matérias de interesse, já publicadas em outras fontes de difícil acesso. f - Bibliografia: resenhas críticas de obras, balanços bibliográficos, bibliografias temáticas, seletivas ou comentadas (até duas mil palavras). g - Material editorial, informativo e/ou de registro histórico das atividades do IHGSP. Normas editoriais • As contribuições devem ser inéditas e destinar-se exclusivamente à Revista do IHGSP. • Documentos enviados para publicação devem conter a indicação arquivística de onde foram copiados, e ser acompanhados de uma introdução explicativa. • A Revista reserva-se a oportunidade de publicação, de acordo com o seu cronograma ou interesse. Apresentação dos textos • As contribuições devem ser enviadas em arquivos anexos a e-mail, em alguma das mais atualizadas versões do programa WORD. Os arquivos, sempre identificados com o título do trabalho e o(s) nome(s) do(s) autor(es), devem ser digitados em formato A4, margens 2,5cm, entrelinha de 1,5, fonte Times New Roman corpo 12. Ilustrações indispensáveis para a compreensão do texto devem ser enviadas em arquivos com alta resolução, e ser acompanhadas dos respectivos créditos e/ou autorização para uso. • As contribuições enviadas por autores que não sejam membros do IHGSP devem, necessariamente, conter um breve currículo do autor, com títulos acadêmicos e entidades a que se vincula (até 50 palavras). Contribuições enviadas por membros do IHGSP não necessitam conter essas referências curriculares. • As notas devem ser colocadas em rodapé e a bibliografia no final dos trabalhos, de acordo com as normas habituais da ABNT. • As traduções, de preferência inéditas, devem estar acompanhadas de autorização do autor e do respectivo original do texto. • Somente serão aceitos os trabalhos encaminhados de acordo com as normas acima definidas. Correspondência: Toda a correspondência destinada à Revista deve ser enviada por e-mail, para [email protected], aos cuidados do Editor, constando claramente, no título da mensagem, as palavras “Para a Revista do IHGSP”.

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