Os jogos do texto teatral em \"O Marinheiro\", de Fernando Pessoa

June 1, 2017 | Autor: Sara Grünhagen | Categoria: Fernando Pessoa, Portuguese Literature
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OS JOGOS DO TEXTO TEATRAL EM O MARINHEIRO, DE FERNANDO PESSOA

Sara Grünhagen Martins1

RESUMO Publicado em 1915, O Marinheiro é um “drama estático” de Pessoa que, não trazendo nem “conflito nem perfeito enredo”, se abre para diversas reflexões. Sendo ainda uma obra pouco conhecida, o objetivo deste estudo é, em primeiro lugar, introduzir a peça, o contexto de sua publicação e o conceito de teatro estático, conforme proposto por Fernando Pessoa. Em seguida, com base na análise do lúdico da arte feita por Huizinga, procura-se apresentar os jogos teatrais percebidos a partir das narrações e das situações criadas pelos diálogos, enfatizando-se uma perspectiva metateatral que discute o papel e a possibilidade da própria arte, mais especificamente o teatro, assim como a problemática da identidade no âmbito da cultura portuguesa, numa revisitação e releitura da história que dialoga com outras produções de Pessoa, como o livro de poemas Mensagem.

Palavras-chave: Teatro Estático. Jogos Teatrais. Identidade.

ABSTRACT Published in 1915, O Marinheiro (The Sailor) is a “static drama” written by Pessoa that, without any “conflict or perfect plot”, is liable to several analyses. As a little-known piece, the aim of this study is first to introduce the play, the context of its publication and the concept of static theater, as proposed by Fernando Pessoa. Then, based on the analysis of the ludic of the art byHuizinga, we seek to present thetheatrical games perceived in the narrations and in the situations created by the dialogues, thus emphasizing a metatheatrical perspective that discusses the role and the possibility of art itself, more specifically the theater,as well as questions of identity in the context of the Portuguese culture, in a revisitation and reinterpretation of history that dialogues with other works by Pessoa, as the book of poems Mensagem.

Keywords: Static Theater. Theatrical Games. Identity.

O MARINHEIRO, DRAMA ESTÁTICO EM UM QUADRO

Entre o impressionante legado deixado por Fernando Pessoa, a peça O Marinheiro destaca-se não apenas por sua profundidade e riqueza literárias, mas também por ter sido uma das poucas obras que o autor chegou a publicar em vida. Datada de 11 e 12 de

publicação dessa peça, tendo consultado em 1914 o editor do periódico A Águia, Álvaro 1

Mestranda em Literatura Portuguesa pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ e bolsista CNPq. E-mail: [email protected].

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marco do modernismo português. Pessoa demonstrou uma especial preocupação com a

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outubro de 1913, ela só veio a lume em 1915, na primeira edição da revista Orpheu,

Pinto, sobre a possibilidade de ela ser por ele editada para a Renascença Portuguesa, importante movimento surgido em 1912 no Porto que almejava, principalmente, promover a cultura em Portugal após a instauração da República (PESSOA, 1986, p. 144). Não tendo sido bem-sucedido, Pessoa voltou a trabalhar na peça e enviou uma versão alterada e aperfeiçoada para publicação na revista Orpheu (PESSOA, 1985, p. 61). Há que se lembrar também que os heterônimos mais conhecidos de Pessoa só foram criados efetivamente em 1914, segundo a gênese enunciada pelo poeta, no “dia triunfal” em que o mestre Alberto Caeiro surgiu com O Guardador de Rebanhos (PESSOA, 1974, p. 96). Assim, acredita-se que a peça antecipa temas e muito provavelmente personagens que Pessoa viria a desenvolver depois, assim como já traz o motivo da navegação, mais aprofundado nos poemas de Mensagem, conforme se verá mais adiante. Essa peça mostra uma das muitas facetas de Pessoa, talvez menos conhecida, ainda que ao falar de sua obra em uma de suas cartas a Adolfo Casais Monteiro ele tenha afirmado: “o que sou essencialmente – por trás das máscaras involuntárias do poeta, do raciocinador e do que mais haja – é dramaturgo” (PESSOA, 1974, p. 101). Nessa outra forma de fingir pela arte – na mesma carta ele diz “vou [...] enriquecendo-me na capacidade de criar personalidades novas, novos tipos de fingir que compreendo o mundo, ou, antes, de fingir que se pode compreendê-lo” (PESSOA, 1974, p. 101) – Pessoa também se mostra bastante original, e a peça em questão é designada, no texto publicado na revista Orpheu, como “drama estático”, na medida em que não apresenta um conflito nem segue as convenções normalmente esperadas de uma peça teatral, com um enredo básico de peripécia, desenvolvimento e desfecho. O teatro estático seria, portanto, nas palavras de Pessoa: “aquele cujo enredo dramático não constitui acção – isto é, onde as figuras não só não agem, porque nem se deslocam nem dialogam sobre deslocarem-se, mas nem sequer têm sentidos capazes de produzir uma acção; onde não há conflito nem perfeito enredo” (PESSOA, 1966a, p. 113). No entanto, para Fernando Pessoa, ainda que fuja às

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Dir-se-á que isto não é teatro. Creio que o é porque creio que o teatro tende a teatro meramente lírico e que o enredo do teatro é, não a acção nem a progressão e consequência da acção – mas, mais abrangentemente, a revelação das almas através das palavras trocadas e a criação de situações. Pode haver revelação de almas sem acção, e pode haver criação de situações de inércia, momentos de alma sem janelas ou portas para a realidade (PESSOA, 1966a, p. 113).

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convenções, O Marinheiro não deixa de ser uma peça teatral:

Nesse contexto, a peça de um só quadro de fato transcorre sem qualquer ação dramática, mas isso não impede a chamada catarse pelo leitor/espectador, conceito apropriado tendo em vista que O Marinheiro se pretende uma tragédia (PESSOA, 2009, p. 47) e que a “revelação de almas” aponta para essa expectativa de reelaboração pessoal diante do trágico. Assim, pode-se dizer que o enredo da peça, nesse sentido não convencional, constitui-se basicamente de três mulheres não nomeadas que velam uma morta ao mesmo tempo em que conversam, preocupadas com a hora, com o tempo que passou, com o discutir ou não, e também com a realidade, o sonho, a vida, a morte. Esses diálogos são, portanto, a essência da peça e em dado momento passam a girar em torno de um sonho específico da segunda veladora. Tal sonho tem extrema importância no enredo e é motivo de grande inquietação para as três, sendo também aquilo que dá nome à peça: é a história de um marinheiro que, “perdido numa ilha longínqua” e sem esperança de retornar, põe-se a inventar uma outra pátria para si, totalmente diferente daquela de que partiu. Com o tempo, essa nova pátria edificada em sonho vai ficando cada vez mais elaborada e assume um caráter de lembrança na mente do marinheiro, de modo que, mais tarde, ao tentar recordar seu passado real, ele percebe que não consegue mais lembrar de nada além do sonho, que a existência passada fora completamente esquecida e que só “da vida que lhe parecia ter sonhado tudo era real e tinha sido” (PESSOA, 2011, p. 37-41). A dificuldade de diferenciar a realidade do sonho é problematizada e provoca a grande tensão que leva ao desfecho, visto que as veladoras passam a questionar sua própria situação, se sonham ou se são sonho, num jogo teatral elaborado que põe em cena tanto a questão da identidade quanto a da representação, conforme será destacado a seguir.

Marinheiro cabe fazer uma breve apresentação da noção de jogo conforme proposta por Johan Huizinga. O autor, já no prefácio de seu livro Homo ludens, procura ressaltar que o

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Antes de passar para a análise propriamente dos jogos teatrais verificados em O

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OS JOGOS TEATRAIS PRESENTES EM O MARINHEIRO

jogo deve ser entendido como elemento da cultura e não na cultura, como algo que tem que ver com a essência da cultura e não como mera parte dela. Ele mostra que o jogo é uma função da vida, não sendo “passível de definição exata em termos lógicos, biológicos ou estéticos” (HUIZINGA, 1971, p. 10). Para ele, a intensidade e o poder de fascinação do jogo fogem a explicações biológicas que poderiam tentar reduzi-lo, por exemplo, a uma questão de instinto. Trata-se, ao contrário, de algo independente e fundamental na vida, e “é nessa intensidade, nessa fascinação, nessa capacidade de excitar que reside a própria essência e a característica primordial do jogo” (HUIZINGA, 1971, p. 5). Na relação do jogo com o teatro especificamente, o autor destaca que tanto a comédia quanto a tragédia tiveram origem no jogo, a primeira tendo nascido do “komos licencioso das festividades dionisíacas”, ritual do qual o próprio termo comédia deriva, e a segunda sendo inicialmente “um jogo sagrado ou um ritual lúdico”, uma certa representação de temas míticos que a princípio não tinha relação com a literatura propriamente (HUIZINGA, 1971, p. 159). Ainda que de seus primórdios para cá o teatro tenha se configurado de outra forma, ele continua sendo tomado como uma das principais formas lúdicas da arte, que por sua falta de justificação racional se torna justificável. Isso porque o jogo, como o teatro, não tem necessariamente razão de ser, não é justificado por motivos biológicos ou psicológicos, mas mesmo assim se mostra parte essencial da vida. A discussão sobre por que jogar ou, no presente caso, por que fazer arte – por que continuar falando, como dizem as personagens – parece estar presente de forma relevante em O Marinheiro, o que explica a utilização e a ênfase no conceito de jogo neste estudo. A peça em questão, que apesar de curta é bastante densa e se abre para diversas possibilidades de análise, foi categorizada por Pessoa como “a intersecção da dúvida e do sonho” (PESSOA, 2009, p. 109). Esses elementos de fato permeiam toda a peça e já estão presentes desde o início, quando a primeira veladora questiona: “Mas sabemos nós, minhas irmãs, por que se dá qualquer cousa?” (PESSOA, 2011, p. 26). Essa pergunta dá o tom para o restante da peça, que é toda formada por diálogos que constantemente

Assim, a peça começa com a primeira veladora sugerindo que as irmãs passem o tempo contando histórias do passado, algo “belo e sempre falso”. Já a segunda veladora

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e delas mesmas.

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expressam uma dúvida quanto à realidade do entorno e do passado, da existência em si

propõe que se fale de um passado possível, mas inexistente: “Falemos, se quiserdes, de um passado que não tivéssemos tido” (PESSOA, 2011, p. 26). A atmosfera onírica de irrealidade que cerca as veladoras é acentuada pelos elementos que constituem o espaço do palco: um quarto que é parte de um castelo antigo com um caixão que traz, ao centro, uma donzela toda vestida de branco. Há ainda quatro tochas nos cantos, e a única ligação com o exterior é uma pequena janela, “alta e estreita”, que revela um pedacinho do mar entre “dois montes longínquos” (PESSOA, 2011, p. 25). Sabe-se que o mar tem uma importância crucial tanto na história quanto na literatura portuguesa, visto que representa o desconhecido e está ligado às grandes navegações. Foi pelo mar que os portugueses se lançaram em aventuras arriscadas e de onde voltaram com grandes riquezas e conquistas, mas também com enormes perdas e tristezas. A relação de Portugal com o mar foi bastante tematizada na literatura, já desde o grande Camões com Os Lusíadas e, posteriormente à publicação desta peça, pelo próprio Pessoa com seu livro de poemas Mensagem, uma épica moderna das navegações lançada comercialmente em 1º de dezembro de 1934 mas escrita ao longo de vários anos, entre julho de 1913 (data do poema mais antigo) e 26 de março de 1934 (data do poema mais recente). Em O Marinheiro, o próprio título da peça já indica essa relação um tanto nostálgica de Portugal com o mar. Afinal, é com expectativa e saudade que os portugueses olham para o mar ansiando pelo retorno de D. Sebastião, o Desejado, que restauraria o reino aos seus tempos de glória. Logo, é interessante que nesta peça o mar marque justamente a ligação com o exterior ou, talvez, com a realidade, ainda que na literatura portuguesa ele apareça constantemente rodeado de mitos e histórias fantásticas, como as que cercam o próprio sebastianismo. A nostalgia que o mar evoca também está presente aqui, ainda que em outra perspectiva; nas palavras da segunda veladora, temos que: “Só o mar das outras terras é que é belo. Aquele que nós vemos dá-nos sempre saudades daquele que não veremos nunca...” (PESSOA, 2011, p. 28), e, ainda, “À beira-mar somos tristes quando sonhamos” (PESSOA, 2011, p. 35). Também há poesia e lirismo na relação

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Eu vivi entre rochedos e espreitava o mar... A orla da minha saia era fresca e salgada batendo nas minhas pernas nuas... Eu era pequena e bárbara... Hoje tenho medo de ter sido... O presente parece-me que durmo... Falai-me das fadas.

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com o mar, mas este é colocado como algo grande demais, como se não mais alcançável:

Nunca ouvi falar delas a ninguém... O mar era grande demais para fazer pensar nelas... Na vida aquece ser pequeno... (PESSOA, 2011, p. 32).

No caso da história do marinheiro, já apresentada anteriormente, pode-se também, como em Mensagem, enxergar uma problematização da pátria. O marinheiro, não tendo meios de voltar ao seu país – de voltar ao passado –, cria uma nova memória para si, a ponto de esquecer totalmente as lembranças antigas. Cabe citar o trecho aqui, destacando-se a ênfase que se dá à ideia de pátria e país:

Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha longínqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas passavam por elas [...] Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia ali... Como ele não tinha meio de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido: pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de país com outras espécies de paisagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem das janelas... Cada hora ele construía em sonho esta falsa pátria, e ele nunca deixava de sonhar (PESSOA, 2011, p. 37, grifo meu).

A segunda veladora, que é quem a princípio teve esse sonho e quem o relata, diz ainda que: “Durante anos e anos, dia a dia, o marinheiro erguia num sonho contínuo a sua nova terra natal...” (PESSOA, 2011, p. 38, grifo meu). Não se trata, portanto, apenas de uma reconstituição de um passado ou da criação de um novo passado, mas especificamente de uma nova pátria por um marinheiro que não pode mais voltar atrás. É forçoso reconhecer aqui uma proposta de releitura da história portuguesa, como acontece em Mensagem, ainda que no caso de O Marinheiro tal relação seja bem mais sutil. No entanto, ela está presente e, como mostra Massaud Moisés, dialoga com a produção pessoana:

este país é muito triste...” (PESSOA, 2011, p. 27). Por isso se torna imperativo sonhar uma outra pátria, criar um outro país, sair do marasmo marasma em que se encontrava Portugal – Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 6, ago./dez. 2014

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Não por acaso, a segunda veladora é quem diz, logo no início da peça, que “Todo

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Equivalentes, como faces da mesma moeda, as duas obras poéticas [Mensagem e O Marinheiro] resultam do esforço de fornecer os instrumentos ideológicos para que a pátria, superando a estagnação em que vegetava (apontada com frequência pelos escritores dos anos entre 1890 e 1920), recuperasse, ainda que só moralmente, a grandeza perdida. Desse ângulo, O Marinheiro e a Mensagem são imagens reduplicadas, em espelhos paralelos: ali, a visão lírica, dramática – onde não é demais enxergar a refacção da Pátria, de Guerra Junqueiro – aqui, a visão épica (MOISÉS, 1998, p. 215).

denúncia que a literatura vinha fazendo já desde Eça de Queirós, por exemplo, com a geração de 1870 e as conferências do Casino – e reviver cultural e socialmente. Assim,

O sonho, a grande quimera, de Fernando Pessoa, quer como poeta, quer como cidadão, está em O Marinheiro, ou na sua contraface simetricamente épica, Mensagem. Nas duas obras descortina-se o mesmo afã de surpreender a pátria no seu sono secular, um sono sem sonhos, entorpecida por séculos de pessimismo, convidando-a de novo a sonhar, a fim de reconquistar, ainda que noutro plano, o passado glorioso (MOISÉS, 1998, p. 215).

De fato, não se pode negar que em O Marinheiro paira também uma certa sombra de pessimismo, marcada principalmente pela presença inócua mas relevante da morta e pela tensão que caracteriza a tragédia que a peça se propõe a ser. A morta, pouco referenciada ao longo da peça, está, porém, sempre presente e assombra com sua presença; em dado momento da narração do sonho pela segunda veladora, esta diz: “À medida que o vou contando, é a mim também que o conto... São três a escutar... (De repente, olhando para o caixão, e estremecendo). Três não... Não sei... Não sei quantas...” (PESSOA, 2011, p. 39). A didascália reforça o temor que a súbita consciência da presença da morta traz,

essa presenassim como a resposta da terceira veladora, que quer com palavras ocultar ocultaressa ça: “Não faleis assim... Contai depressa, contai outra vez... Não faleis em quantos podem ouvir... Nós nunca sabemos quantas coisas realmente vivem e veem e escutam...” (PESSOA, 2011, p. 39). Certamente a impressão que a presença da morta causaria, assim como o espaço lúgubre do palco e dos acessórios (o aspecto sombrio típico de um castelo, o vestido branco da “donzela”, a atmosfera medieval como um todo), se torna muito mais forte na representação da peça, visto que esses elementos estão o tempo todo à vista, e não apenas são trazidos à memória do leitor em momentos específicos do texto teatral. Além disso, a afirmação da terceira veladora sobre nunca se saber quem escuta também parece que causaria uma impressão mais forte e levantaria uma discussão metateatral mais evidente quando mencionada no palco: nesse contexto, é quase como se a quarta parede

derando-se as diferenças entre texto e representação, entre signos verbais e não verbais (UBERSFELD, 2005, p. 5). Trata-se, ao mesmo tempo, de um jogo de linguagem que reRevista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 6, ago./dez. 2014

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de um jogo teatral, mais fortemente percebido pelo espectador do que pelo leitor, consi-

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fosse rompida, e a mulher apontasse para o próprio espaço da representação. Trata-se

força o aspecto lúdico inerente à arte e ao teatro ao se brincar com as palavras e suas significações, levantando-se outras possibilidades de interpretação. O caráter de lúdico desse jogo específico é reforçado por Huizinga, que afirma que: “Por detrás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza” (HUIZINGA, 1971, p. 10). Essa criação de mundos e possibilidades é marcante em O Marinheiro, que problematiza a própria arte através de uma metáfora da criação artística: o sonho dentro de um sonho. Há, na verdade, mais de um sonho ou possibilidade de sonho ao longo da peça, e esse jogo de dupla significação é o que permite a complexa elaboração de alguns dos temas abordados. Logo de início vemos surgir na peça a questão do que não foi e da narração da irrealidade, que figura, porém, como possibilidade passada: “Falemos [...] de um passado que não tivéssemos tido”(PESSOA, 2011, p. 26). Trata-se de uma questão recorrente de Pessoa e que vai reaparecer posteriormente, por exemplo, na pergunta imperiosa e algo melancólica de Álvaro de Campos: “Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?” (PESSOA, 1944b, p. 299). Mais adiante, ao falar do passado – sem menção a princípio quanto à sua realidade ou possibilidade –, a segunda veladora conclui: “Já não tornarei a ser aquilo que talvez eu nunca fosse...” (PESSOA, 2011, p. 27). A dificuldade de apreender a história pessoal, o passado e, consequentemente, o real entra em questão de forma dramática aqui, numa espécie de jogo via diálogos que vai perpassando todo o texto teatral e que culmina no questionamento da própria realidade das personagens: elas sonham ou são um sonho? Pessoa já dá margem para essa pergunta quando, ao falar de O Marinheiro no contexto de publicação da revista Orpheu, afirma:

talvez sonhos de alguém outro – seja da morta, seja do marinheiro, seja do autor ou dos vários envolvidos na produção posterior do texto dramático. Elas podem tanto ser um sonho dentro do contexto do drama – nesse caso, do marinheiro (“Por que não será a Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 6, ago./dez. 2014

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Temos, assim, que as três veladoras sonham em cena, mas, ao mesmo tempo, são

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Esse noturno “drama estático” de Fernando Pessoa, revelação de uma vida interior espantosamente rica, e onde o fogo central de uma tragédia que se passa apenas nos sonhos de três figuras (elas próprias talvez também sonhos) é contido dentro de uma sobriedade externa difícil de encontrar fora da Grécia antiga (PESSOA, 2009, p. 47).

única coisa real nisto tudo o marinheiro, e nós e tudo isto aqui apenas um sonho dele?”, PESSOA, 2011, p. 45) – quanto servir de metáfora para a escritura e a representação teatral, na medida em que são criação literária e portanto sonhadas pelo escritor, mas também personagens que saem do papel para o palco e portanto sonhadas pelos atores, pelo diretor, pelo produtor, enfim, por todos aqueles que fazem parte do jogo teatral em si. Além disso, a ideia de sonho e a intersecção entre sonho e realidade também aparece no texto pelas palavras das veladoras. Em dado momento da peça, a segunda veladora volta a insistir na ideia de contar histórias, ainda que inverídicas – “contemos contos umas às outras” – e acrescenta: “Não rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes... Não, não vos levanteis. Isso seria um gesto, e cada gesto interrompe um sonho [...] Mas o passado – por que não falamos nós dele?”. A isso a segunda veladora responde que é melhor não tratar do passado para que não haja arrependimentos ao raiar o dia, na medida em que “Com a luz os sonhos adormecem... O passado não é senão um sonho... De resto, nem sei o que não é sonho” (PESSOA, 2011, p. 29). Essa atmosfera onírica e dúbia permanece até o fim da peça e cumpre sua função de reforçar o questionamento da realidade, numa discussão que é metateatral e metafísica. O que é, o que foi, o que se sabe? Como se há de recuperar com segurança o passado? O que é o passado senão um sonho, uma criação? Na curta peça de Pessoa contam-se oitenta e sete perguntas, que vão surgindo pela boca das três veladoras, ora soltas, ora dirigidas uma a outra, ora questionando os próprios contos recuperados ou inventados por elas: “Ao pé da casa de minha mãe corria um riacho... Por que é que correria, e por que é que não correria mais longe, ou mais perto?... Há alguma razão para qualquer cousa ser o que é? Há para isso qualquer razão verdadeira e real como as minhas mãos?” (PESSOA, 2011, p. 30). As respostas não são menos indagativas e muitas vezes funcionam no sentido de introduzir outras perguntas: “As mãos não são verdadeiras nem reais... São mistérios que habitam na nossa vida... às vezes, quando fito as minhas mãos, tenho medo de Deus...

novamente relacionada à perspectiva do sonho como uma criação artística a ser representada no palco. Quem é esse Deus, e que espaço é esse em que as velas se movem, sem

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nam elas?” (PESSOA, 2011, p. 30-1). A menção a uma força externa aqui talvez possa ser

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Não há vento que mova as chamas das velas, e olhai, elas movem-se... Para onde se incli-

vento? Em que a janela e o mar por ela entrevisto não parecem verdadeiros? (“Ali, daquela janela, que é a única de onde o mar se vê, vê-se tão pouco!”, PESSOA, 2011, p. 27). Para além da problematização das formas com que a realidade é apreendida e das múltiplas interpretações que disso resulta, pode-se enxergar um jogo metateatral em que a própria artificialidade do contexto do palco é posta em cena, em que as perguntas servem tanto para falar da vida e da morte, da memória e do passado, quanto para discutir o papel da arte, sua forma e seu valor. Afinal, a pergunta que atravessa toda a peça e que se mostra de várias maneiras é: para que falar? Se já se falou tanto, se há tantos motivos para não falar (arrependimentos, a alvorada ou o futuro etc.), para que falar? Na esteira desse jogo de questionar a arte, o heterônimo Álvaro de Campos é quem faz essa pergunta relativa a O Marinheiro:

A FERNANDO PESSOA

Depois de ler o seu drama estático «O Marinheiro» em «Orpheu I» Depois de doze minutos Do seu drama O Marinheiro, Em que os mais ágeis e astutos Se sentem com sono e brutos, E de sentido nem cheiro, Diz uma das veladoras Com langorosa magia: De eterno e belo há apenas o sono. Porque estamos nós falando ainda? Ora isso mesmo é que eu ia Perguntar a essas senhoras... Álvaro de Campos, 1915 (PESSOA, 1944a)

Com a ironia que é própria a Álvaro de Campos temos, assim, uma chave de leitura para essa complexa peça de Fernando Pessoa: há que se continuar falando, perguntando, jogando o jogo da arte. As veladoras interrogam-se quanto a contar ou não o passado, lembrando-o ou inventando-o. Elas discutem num movimento de vaivém de perguntas e respostas reiteradas que vão aparecendo ora na boca de uma ora na de outra a

blema, já que elas não são nomeadas nem caracterizadas, podendo ser, ao fim e ao cabo, uma e várias ao mesmo tempo. Elas não sabem por que continuam a falar, mas o fato é

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frases lembram-me a minha alma...”, PESSOA, 2011, p. 31), o que não parece ser um pro-

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ponto de suas personagens quase se confundirem (diz a terceira veladora: “As vossas

que continuam falando, muitas vezes temendo o silêncio e interpelando-se a não calar: “Ah, falemos, minhas irmãs falemos alto, falemos todas juntas... O silêncio começa a tomar corpo, começa a ser cousa... Sinto-o envolver-me como uma névoa... Ah, falai, falai!...” (PESSOA, 2011, p. 29) e “Contai sempre, minha irmã, contai sempre... Não pareis de contar” (PESSOA, 2011, p. 39). Falar, jogar, teatralizar: pode não haver uma razão lógica específica para fazê-lo, mas o homem continua nesse jogo, seja por necessidade, seja por paixão. A peça de Pessoa conclui com perguntas e com as constantes reticências que acentuam o caráter aberto da obra: “Porque é que mo perguntais? Porque eu o disse? Não, não acredito...” (PESSOA, 2011, p. 50). Desse modo, ainda que não haja respostas concretas e suficientes para tantas questões, as veladoras continuam fazendo perguntas, continuam falando, assim como Álvaro de Campos, assim como Pessoa, sua poesia e seu teatro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A MODERNIDADE DE O MARINHEIRO

Como se sabe, a revista Orpheu, onde foi publicada pela primeira vez a peça O Marinheiro, é considerada um marco do movimento modernista em Portugal. Fernando Pessoa engajou-se na publicação do periódico, que por seu caráter inovador e por suas provocações às convenções causou grande impacto na sociedade da época, ainda que só tenham vindo a público dois números, tendo em vista a falta de condições financeiras próprias para sua continuação. Os autores publicados em Orpheu foram considerados loucos e suas obras, impróprias. No entanto, por pior que tenha sido a recepção da revista pela crítica portuguesa da época, as inovações ali apresentadas hoje são aclamadas por sua originalidade e criatividade, e os autores, como Fernando Pessoa, Mário de SáCarneiro e Almada-Negreiros, tornaram-se nomes consagrados na história da literatura portuguesa. É, portanto, nesse contexto de vanguarda que se insere O Marinheiro, uma peça

sentação. Pode-se imaginar o estranhamento que uma tal peça causou, um drama desde o início apresentado como “estático”, carente de ação, com um tom fúnebre e trágico e

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com o presente e o passado, mas também levantando discussões sobre a arte e a repre-

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que, como se procurou mostrar, é permeada por complexos jogos teatrais, dialogando

personagens e histórias fragmentadas, incompletas e dúbias. Todo o clima de indecisão e sonho da peça desloca-a do contexto realista de produção artística, assim como não há quaisquer marcas que poderiam categorizá-la como romântica. Trata-se,antes, de uma tragédia, mas não nos moldes conhecidos e já cristalizados, visto que para Pessoa é importante também a problematização dos próprios gêneros:

Dividiu Aristóteles a poesia em lírica, elegíaca, épica e dramática. Como todas as classificações bem pensadas, é esta útil e clara; como todas as classificações, é falsa. Os géneros não se separam com tanta facilidade íntima, e, se analisarmos bem aquilo de que se compõem, verificaremos que da poesia lírica à dramática há uma gradação contínua (PESSOA, 1966b, p. 106).

Essa relativização dos gêneros se mostra presente também em O Marinheiro, que traz elementos líricos e trágicos, elegíacos e poéticos. Tal relativização se estende a outros campos, como na questão da identidade, cuja segurança é questionada diante da perspectiva da fragmentação do sujeito, tão importante para a obra pessoana. As veladoras revelam dúvidas quanto a quem são e a quem foram, quanto à memória e à verdade, e se isso tudo não passa de uma construção. Nesse sentido, evidencia-se o quanto a cada momento, a cada situação, se é outro: “Se desta janela, debruçando-me, eu pudesse deixar de ver montes, debruçar-se-ia um momento da minha alma alguém em quem eu me sentisse feliz...” (PESSOA, 2011, p. 31-2). Assim, a despersonalização de Fernando Pessoa, que permitiu a criação de heterônimos rebuscados que ganham vida própria – a questão da sobrevida literária –, parece já estar presente aqui nessas personagens fragmentárias, que se confundem para se completar e sonhar mais longe. Além disso, entre outras problemáticas que evidenciam ainda mais o caráter moderno e inovador dessa peça, temos,por exemplo, o desgosto da relação temporal diante de um presente que já é passado, a insegurança do sujeito moderno que se vê numa nova era de avanços rápidos e um tanto assustadores, com consequências imprevisíveis: “As minhas palavras presentes, mal eu as digo, pertencerão logo ao passado, ficarão fora de

p. 33), as angústias existenciais (“Não podemos ser o que queremos ser, porque o que queremos ser queremo-lo sempre ter sido no passado...”, PESSOA, 2011, p. 35), a melancolia do tempo que foge (“E depois todo o meu passado torna-se outro e eu choro uma Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 6, ago./dez. 2014

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derna da consciência de si (“Falai, portanto, sem reparardes que existis”, PESSOA, 2011,

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mim, não sei onde, rígidas e fatais” (PESSOA, 2011, p. 33). Temos também a marca mo-

vida morta que trago comigo e que não vivi nunca. É sempre tarde demais para cantar, assim como é sempre tarde demais para não cantar...”, PESSOA, 2011, p. 34), a falta de respostas (“Há resposta para alguma coisa?”, PESSOA, 2011, p. 42), a inutilidade de tudo ao lado do imperativo de continuar (“Deve qualquer história ter fim? [...] O nosso mister é inútil como a Vida...”, PESSOA, 2011, p. 40). São, portanto, muitas as marcas de modernidade verificadas na peça O Marinheiro, em termos de jogos teatrais, temáticas e problematizações, que por si só bastariam para justificar um resgate a essa obra, que revela e antecipa muitas questões que Pessoa vai desenvolver posteriormente em sua poesia e em seus heterônimos. Assim, no contexto português, foi por todo esse caráter de inovação que pôde haver, graças principalmente a Fernando Pessoa mas também a outros de sua geração, uma grande renovação na literatura portuguesa e, por que não, mundial.

REFERÊNCIAS

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. Trad. João Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 1971. MOISÉS, MASSAUD. Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1998. PESSOA, Fernando. A Fernando Pessoa. In: _____. Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, 1944a (imp. 1993). Disponível em:
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