Os limites da judicialização da política

June 1, 2017 | Autor: Sergio Abranches | Categoria: Judicial Politics, Presidential Politics
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Os limites da judicialização da política Sérgio Abranches A propensão de nosso sistema político ao con7lito entre Executivo e Legislativo decorre da instabilidade inerente às coalizões. O presidencialismo de coalizão, como todo regime no qual o governo depende de uma aliança multipartidária majoritária, tem que lidar com a mudança nos humores dos partidos que a compõem. Mas, ao contrário dos regimes parlamentaristas, não dispõe de mecanismos políticos ágeis para enfrentar impasses previsíveis entre o governo e o legislativo, na coalizão e entre a União e os estados, com re7lexo nas relações executivo-legislativo. Daí o impasse muitas vezes desembocar em crises políticas e na paralisia decisória. Na Segunda República, da Constituição de 1946 até o golpe civil-militar de 1964, esses impasses, ao chegar no ponto crítico, tendiam a ser resolvidos por pronunciamentos militares. Foram vários, desde a crise do governo de Getúlio Vargas. Na Terceira República, da Constituição de 1988, esse papel de moderação transferiu-se para o Judiciário, mais precisamente para o Supremo Tribunal Federal. Mas o STF exerce esse papel constrangido por limitações constitucionais e pelos ritos de procedimento essenciais ao processo judiciário. Resta, contudo, em nosso desenho constitucional, amplo espaço para intervenções do judiciário no campo próprio da política. Essa intervenção cria dilemas sérios de legitimidade e para a própria democracia. O papel acrescido da Suprema Corte, nessa função intermediadora, escapa do âmbito dos mecanismos de vigilância e 7iscalização (“checks”) e se enquadra no plano dos mecanismos de contrapeso democrático (“balance”). Os politólogos Carlos Pereira e Marcus André Mello têm estudado com profundidade a institucionalização desses mecanismos de vigilância democrática, na expressão de Rosanvallon. Mas as instâncias de mediação de con7litos não são, nesse caso, parte do controle jurisdicional e da vigilância senso estrito, e sim elemento do processo político. É essa dimensão política da ação do Judiciário, que tem legitimidade restrita e se dá nos limites da democracia. Os ministros podem agir autocraticamente, ou monocraticamente, não são eleitos, têm margem relativamente ampla de interpretação do texto legal e, ao decidirem questões políticas, o fazem sob o mesmo rito de procedimentos e com a mesma lógica decisória que utilizam na função judicial, de controle da constitucionalidade. Isso quer dizer que, em uma situação de contencioso, decidem no mérito quem ganha e quem perde. É o que chamamos de solução de soma-zero. Uma das partes ganha e a outra perde a disputa. Na política, o que se busca o mais das vezes é uma solução ganha-ganha, na qual cada uma das partes cede para se chegar a uma decisão em que todas têm seu interesse satisfeito ainda que pelo mínimo possível. Essa busca da solução mediana não se enquadra nos procedimentos judiciais. Quando a judicialização leva os juízes a esse ponto, a imposição da soma-zero lhes confere um papel de decisores substantivos, função típica da formulação de políticas, em lugar do seu papel próprio de julgadores de procedimentos. Esse trânsito do procedimental para o substantivo é regulado pelos limites constitucionais da ação do Judiciário. Mas, como alertei, esses limites não são inequívocos, nem absolutos. Deixam, portanto, margem de discrição interpretativa ao STF, que termina por criar normas (função do Legislativo), em lugar de julgar a validade das normas. Essa preocupação tem sido manifestada por politólogos, advogados e políticos e também

frequentado as sessões do Supremo Tribunal Federal. Vários ministros vem mostrando, em votos e debates, que têm consciência do dilema posto à sua ação nesse espaço que se poderia, por analogia, chamar de uso do poder moderador. Talvez o momento recente em que esse cuidado da Suprema Corte tenha 7icado mais explícito, tenha sido na decisão da liminar concedida ao estado de Santa Catarina e estendida a dez outros estados. O estado pedia revisão dos cálculos da dívida com a União, objeto de negociação com o governo FHC e revisão pelo governo Dilma Rousseff, para calcular o saldo devedor usando juros simples e não compostos como até então. Era questão espinhosa. Se o STF determinasse o uso dos juros simples, estaria promovendo intervenção substantiva e grave no domínio econômico. A decisão teria impacto muito negativo no setor hegemômico do capitalismo contemporâneo, que é o mercado 7inanceiro. Agravaria a crise econômica. Se mantivesse o entendimento da União, criaria obstáculos adicionais a uma renegociação da dívida. Com a economia passando por grave recessão, perdas gigantescas de receita da União, dos estados e dos municípios e consequente perigo de colapso 7iscal iminente dos grandes estados, também contribuiria para agravar a crise. A questão, aparentemente, tem um fundamento legal e constitucional. A7inal, as ações, em princípio, diziam respeito a procedimentos e envolviam con7lito entre a União e os estados. Portanto, a judicialização do contencioso se justi7icava. Mas, evidentemente, o mérito era substantivo, escapava da esfera dos procedimentos e implicava em julgamento de valor, em escolhas econômico-7inanceiras, que não estão estritamente no âmbito das atribuições constitucionais do tribunal. A decisão, desenhada a partir de dissidência aberta pelo ministro Luís Roberto Barroso ao voto do relator, ministro Edson Fachin, terminou por se constituir em exercício de autolimitação do STF, em um momento crítico desse papel de intermediação nos con7litos políticos, neste caso entre União e estados. Ficou expresso no voto do ministro Barroso e de vários que o acompanharam no voto majoritário, que a melhor resolução do con7lito seria por uma deliberação política e não judicial. Por isso, preferiu devolver a decisão para o campo político, reservando-se a prerrogativa de revisão judicial posterior. Para fazer isso, o STF, primeiro, recebeu a ação e concedeu a liminar. Desta forma, a liminar representava uma moratória temporária da dívida, enquanto as partes negociariam solução de7initiva. Isto é, interrompia os pagamentos da dívida e 7ixou prazo de 60 dias para que as partes encontrassem uma solução negociada. Segundo, deixou clara a preferência da Corte por uma solução ganha-ganha a ser buscada pelos governos envolvidos, em lugar da somazero, única que poderia oferecer, decidindo a favor dos estados ou a favor da União. Terceiro, usou a moratória temporária expressa na liminar e a possibilidade de uma decisão judicante em última instância, no julgamento do mérito, como mecanismos de pressão para que as partes negociassem os termos da retomada do pagamento da dívida, no prazo determinado. Coube ao governo interino de Michel Temer terminar a negociação, iniciada antes do afastamento da presidente Dilma Rousseff. A negociação chegou a bom termo, um compromisso mediano, ganha-ganha, que acabou de ser referendado pelo STF. O tribunal adaptou a liminar concedida anteriormente, incluindo nela os termos do acordo político celebrado entre as partes. O ministro relator, Fachin, recalculou o prazo para 60 dias úteis, estendendo a validade da liminar modi7icada até o 7im de agosto. O acordo ainda precisa ser aprovado pelo Congresso. Findo o prazo de validade da liminar, a Corte deverá julgar o mérito, mas o mais provável é que o considere prejudicado pelo fato superveniente da

celebração do acordo entre a União e os estados, se este for aprovado em de7initivo pelo parlamento. A decisão é exemplar para demonstrar a possibilidade de equilíbrio nas ações do STF como poder moderador. Pode se tornar fonte de jurisprudência procedimental para casos similares, não no mérito, mas no conteúdo político-institucional. O STF continua a intervir no processo político, em vários episódios da crise política, seja nos trâmites para impedimento da presidente, seja nas investigações de corrupção política. O ministro Teori Zavascki, por exemplo, reiterou e esclareceu a decisão de afastamento do deputado Eduardo Cunha da presidência da Câmara, tomada em razão de sua interferência no processo do Comitê de Ética contra ele e nas investigações da Lava Jato. O ministro proibiu o deputado explicitamente de frequentar as dependências da Câmara, exceto para se defender no processo de cassação em curso. É outra decisão de natureza jurisdicional, mas com forte conteúdo político. A judicialização é inevitável, mas pode se dar no quadro da institucionalidade democrática e nos limites da legitimidade.

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