Os limites da justiça constitucional : a invasão do âmbito político

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Os limites da justiça constitucional: a invasão do âmbito político 1 Marina Gascón Abellán Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, vol.9 (jan/mar 2009, pp.71-95) 1 Caracterização do constitucionalismo: a justiça constitucional Embora o que se tenha de entender por Estado constitucional pareça uma questão em aberto ou, em todo o caso, submetida a debate, poderia dizer-se, de uma forma genérica e puramente aproximativa, que constitucionais são aqueles sistemas onde, junto à lei, existe uma Constituição democrática que estabelece autênticos limites jurídicos ao poder para a garantia das liberdades e direitos dos indivíduos e que tem, por isso, caráter normativo: a Constituição (e a carta de direitos que incorpora) já não é um pedaço de papel ou um mero documento político, um conjunto de diretrizes programáticas dirigidas ao legislador, e sim uma autêntica norma jurídica com eficácia direta no conjunto do ordenamento; e além do mais, porquanto procedente de um poder com legitimidade "qualificada" (o poder constituinte) é a norma "mais alta", pelo qual também a lei fica submetida à Constituição, que assim se converte em seu parâmetro de validez. Em outras palavras, como conseqüência da "fundamentalidade" de seus conteúdos e da especial legitimidade de seu artífice, o Estado constitucional postula a supremacia política da Constituição e, derivadamente, sua supremacia jurídica ou supralegalidade. Precisamente ressaltando esta nota de supralegalidade costuma se dizer que o Estado constitucional é um estágio mais da idéia de Estado de Direito; ou melhor, sua culminação: se o Estado legislativo de Direito tinha suposto a submissão da Administração e do juiz ao direito, e em particular à lei, o Estado constitucional de Direito supõe que também o legislador seja submetido ao direito, neste caso à Constituição. Poderia dizer-se, pois, que o Estado constitucional de Direito incorpora, junto ao princípio de legalidade, o princípio de constitucionalidade. Além disso, a supremacia jurídica da Constituição, que é a característica mais significativa do Estado constitucional de direito, não é algo que deva pressupor-se por seu simples reconhecimento no texto constitucional, mas que só existe naqueles sistemas onde seja efetivamente realizada, o que costuma acontecer quando se reconhece a rigidez da Constituição, ou seja quando se estabelece um sistema de revisão constitucional especialmente reforçado ou, em todo caso, mais complexo que a tramitação legislativa ordinária2, e (principalmente) quando se estabelece um sistema de controle de constitucionalidade da lei e outros atos do poder.3 Pode-se dizer por isso que, na caracterização tradicional do constitucionalismo, supremacia da Constituição e justiça constitucional são conceitos inextricavelmente unidos. É possível distinguir a princípio dois grandes sistemas de justiça constitucional: o sistema de controle difuso e concreto, orientado principalmente para a garantia dos direitos, e o sistema de controle concentrado e abstrato, orientado principalmente para controlar o texto da lei. O primeiro conhece sua realização paradigmática no direito norte-americano e responde justamente à primeira realização histórica da justiça constitucional4. O rápido e firme reconhecimento da supremacia constitucional (e por conseguinte da justiça constitucional) se vincula aqui à idéia de contrato social lockiano que postula uma Constituição com dois objetivos: a criação das instituições e a garantia dos direitos. Mais ainda, "para garantir esses direitos se constituem entre os homens e os governos".5 Calha bem a idéia de um poder constituinte encarnado no povo, fora e acima dos órgãos estatais, que decide e estabelece por si mesmo e para si mesmo uma ordem política determinada. A Constituição é, pois, o ato pelo qual o povo soberano delega livremente aos governantes, reservando para si amplas zonas de liberdade (os direitos). Precisamente porque institui (e delega a) os órgãos do Estado e regula sua forma de proceder, a Constituição aparece como logicamente superior aos próprios e juridicamente superior às outras normas, e sua garantia (principalmente a dos direitos) se confia ao mais neutro dos poderes: o poder judicial.6 É o que se conhece como judicial review, que se configura como um controle difuso e concreto para a proteção dos direitos constitucionais. Difuso porque os direitos podem ser invocados ante qualquer juiz, e por último ante o Supremo Tribunal, cuja doutrina (vinculante) é a que delimita realmente o conteúdo dos direitos que a Constituição enuncia. E concreto porque se vincula à resolução jurídica de um caso particular: a parte agravada deve acreditar que a lei que crê inconstitucional resulta lesiva para seus interesses imediatos e legítimos. O controle concentrado e abstrato, por seu lado, conhece sua manifestação paradigmática no modelo de justiça constitucional kelseniano que fora inicialmente plasmado na Constituição austríaca de 1920 e que após a Segunda Grande Guerra seria adotado na Europa. Frente ao modelo norte-americano, onde a garantia da Constituição (ou dos direitos) é atribuída a todos os juízes, este sistema de controle se configura como uma jurisdição concentrada em um único ad hoc (o Tribunal ou Corte constitucional) separado da jurisdição ordinária e solicitado a pronunciar-se sobre questões estritamente jurídicoconstitucionais, com total abstração dos moventes e dos interesses políticos que subjazem às leis

ajuizadas e dos conflitos e interesses que subjazem aos casos concretos de aplicação das mesmas. Isto é, o controle de constitucionalidade se esgota no que exerce um Tribunal Constitucional que aparece como "o órgão que confronta norma (abstrata) da lei com norma (abstrata) da Constituição para verificar a contradição lógica eventualmente produzida no seio do ordenamento7". A opção de Kelsen por este sistema é compreensível ao se considerar o contexto jurídico-político no qual se gesta. Na tensão política entre juízes e legisladores da Europa dos anos vinte, que atingiria sua culminação dramática na experiência constitucional da república de Weimar, e na tensão histórica entre um positivismo desacreditado e um direito livre desbocado, o Tribunal Constitucional representava duas coisas: uma tentativa de conciliar a garantia da Constituição e a liberdade política do Parlamento frente aos juízes e ao mesmo tempo uma tentativa de recuperar o ideal da aplicação racional e controlável do direito. Em suma, em uma situação histórica onde a consolidação do Estado de Direito encontrava múltiplas dificuldades, onde a supremacia da lei parecia ameaçada por uma judicatura sumamente ativista e não exatamente imbuída da filosofia liberal que alentou o constitucionalismo norte-americano, a pretensão de Kelsen é institucionalizar um controle de constitucionalidade que não comprometa a liberdade política do Parlamento e que se mostre o mais perto possível da razão e da lógica. Interessa destacar, no entanto, porque é importante para o que se dirá depois, que o êxito destes objetivos requeria algo mais, desta vez com referência à própria idéia de Constituição. Kelsen, na realidade, já visualizava os perigos que para uma justiça constitucional, que quisesse ser racional e respeitosa com o legislador, representavam os preceitos constitucionais mais ou menos vagos ou ambíguos; e daí sua enérgica rejeição a este tipo de normas.8 Por isso para este autor a Constituição é antes de tudo uma norma organizativa e procedimental cujo objetivo consiste em regular a produção de normas gerais 9 e que pode assim mesmo - é verdade - condicionar até certo ponto o conteúdo dessas normas, mas sem que esse condicionamento substantivo possa conceber-se em termos de um sistema de valores e princípios com vocação de plena eficácia, assim como acontece nas constituições contemporâneas. Simplesmente, o reconhecimento de um caráter puramente formal à Constituição garantia a possibilidade de um juízo racional, mas representava principalmente um segundo e definitivo ato de reconhecimento ao legislador. Os dois sistemas de controle mencionados (o de jurisdição difusa e o de jurisdição concentrada) podem considerar-se modelos extremos, e atualmente se pode apreciar uma tendência à unificação. Por um lado, porque no sistema da judicial review, orientado prevalentemente para a garanta judicial dos direitos no caso concreto, o Supremo Tribunal acaba sendo o juiz das grandes questões constitucionais, ao modo dos Tribunais Constitucionais europeus.10 Por outro, porque nos sistemas de jurisdição concentrada e separada, orientados para o controle do texto legal pelo Juiz Constitucional, também os juizes realizam um controle per incidens da lei para a garantia dos direitos. O que, ademais, parece lógico, pois se a Constituição é uma norma da qual nascem direitos e obrigações nas mais distintas esferas de relação jurídica, seu conhecimento não se pode subtrair à jurisdição ordinária, por mais que a existência de um Tribunal Constitucional imponha complexas fórmulas de harmonização a fim de evitar as tensões.11 Esta tendência à unificação dos sistemas de controle permite abordar de maneira unitária uma questão que, tanto conceitualmente quanto na prática, aparece como crucial: a dos limites da justiça constitucional; especialmente os que a separam da ação democrática ou política. 2 Os limites da justiça constitucional Independentemente das particularidades que afetam a concreta configuração de suas competências em cada sistema, a justiça constitucional (se articule através de um Tribunal Constitucional ou através de um sistema de jurisdição difusa que culmine no Supremo Tribunal) está submetida a uns limites. Estes limites são os que derivam da distinção entre juízo de constitucionalidade e decisão política democrática que pode ser reformulada como: a lei enquanto expressão de direitos políticos democráticos tem, frente à Constituição, uma autônoma razão de ser e um âmbito próprio, no qual o juízo de constitucionalidade não pode incidir. A distinção, além do mais, não expressa um simples tecnicismo, mas está estreitamente vinculada ao modo como se concebem as relações entre Constituição e lei, relações que em linha de princípio poderiam configurar-se conforme dois modelos: o modelo constitucionalista ou judicialista e o modelo democrático ou legalista. Segundo o primeiro modelo (constitucionalista ou judicialista), a Constituição encerra um projeto político bastante bem articulado ou fechado e ao legislador corresponde sua simples execução. Em outras palavras, a Constituição pretende determinar em grande medida o que se deve mandar; isto é, qual há de ser a orientação da ação política em numerosas matérias. Se este modelo pode denominarse constitucionalista é porque se apóia na idéia de que a Constituição predetermina a solução para todos os conflitos, de modo que a lei só pode ser concebida como uma concreção das abstratas previsões constitucionais. E se pode denominar-se também de judicialista, é porque nele são os juízes que acabam desempenhando um papel fundamental na determinação das normas que devem

configurar o sistema em cada momento principalmente o Juiz Constitucional, na hora de controlar a constitucionalidade da lei; mas também os juízes ordinários, que podem aplicar a Constituição em detrimento da lei se for necessário. De acordo com o segundo modelo (democrático ou legalista), a Constituição se limita a fixar as regras do jogo da competência política, mas sem pretender participar diretamente no mesmo. Em outras palavras, a Constituição só determina quem manda e, em parte, até onde pode mandar. O Que se deva mandar é algo que, dentro dos limites de elasticidade que tal contexto permite, se deixa ao legislador. Se este modelo pode denominar-se democrático é porque se baseia na idéia de que a Constituição não predetermina a solução de todos os conflitos, mas que sinaliza somente as regras do jogo e o leque aberto de valores onde o legislador - na expressão do princípio democrático - pode mover-se: dentro deste quadro cabem opções políticas de sinais diferentes. E se este modelo pode denominar-se também legalista é porque nele é o poder político a cada momento que se encarrega de tornar realidade o que na Constituição aparece só como possível; ou seja, é o legislador democrático quem determina quais normas presidem um sistema político histórico-concreto, de maneira que o juiz ordinário está sujeito ao princípio de legalidade e o Juiz Constitucional só deve declarar inconstitucional a lei quando esta rebaixe o marco de possibilidades políticas que a Constituição permite.12 Embora os dois modelos descritos sejam conceitualmente plausíveis, o compromisso com a dignidade democrática da lei implica (e impõe) optar pelo segundo, pois se se opta pelo primeiro embora se possa ter um sistema mais jurídico, porém também menos democrático. Insistimos, pois, no que anteriormente se afirmou: a lei, enquanto expressão de direitos políticos democráticos continua tendo nos sistemas constitucionais uma autônoma razão de ser. E disso deriva uma conseqüência clara para a configuração das competências da jurisdição constitucional: a rigorosa separação entre as questões políticas e as questões de constitucionalidade. A função do Juiz Constitucional não é substituir ao Parlamento, que goza de uma inegável liberdade política; não é, portanto, a de fixar a melhor lei desde a perspectiva constitucional, mas somente de eliminar aquelas que resultem intoleráveis, e daí sua usual caracterização como "legislador negativo". Por isso, na sua tarefa de controlar a constitucionalidade da lei, o juiz não deve avaliar as motivações políticas que impulsionaram o legislador e menos ainda sugerir ou impor-lhe diretamente uma opção política determinada. Em poucas palavras, o Tribunal Constitucional não deve influir na direção política do país. Resumindo, pois, o princípio democrático, que é a essência do poder constituinte que institui os poderes e instaura uma "cláusula pétrea" como limite à ação dos mesmos, exige que a justiça constitucional constate sobre a separação entre o juízo de constitucionalidade das leis ou de outros atos de poder, que compete ao Juiz Constitucional, e a decisão política expressa na lei, que é competência do legislador democrático. E esta separação obriga o Juiz Constitucional a realizar um esforço auto-inibitório a fim de não se transformar em um legislador positivo. No entanto nem sempre resulta fácil manter-se fiel a estes propósitos; mais exatamente, na prática resulta complicado que o legislador negativo não acabe transformando-se em um legislador positivo. Precisamente por isso é interessante perguntar-se se, além das aparências, a justiça constitucional se ajusta, no seu modo de funcionar, a essa caracterização. Para esclarecer, e ainda que o percurso de cada sistema concreto de justiça constitucional mereceria um julgamento particular, me restringirei aqui, por razões óbvias, ao caso espanhol. Na Espanha, a transformação do Juiz Constitucional em sujeito político, creio que era evidente no âmbito do chamado recurso prévio de inconstitucionalidade contra leis orgânicas, hoje desaparecido,13 que, em poucas palavras, supunha um convite ao Tribunal Constitucional para que instruísse ao legislador acerca de quais modificações deveria adotar em seus projetos de lei a fim de que estes resultassem constitucionalmente legítimos. Talvez o exemplo mais paradigmático desta forma de proceder foi a Sentença nº 53/1985, de 11 de abril, além do mais relativo a um assunto tão controvertido como foi a despenalização de algumas situações de aborto, onde o Tribunal se permitiu sugerir medidas ou garantias suplementares cuja omissão tornava inviável o projeto, convertendo-se assim em co-legislador. A sentença reconhecia a constitucionalidade das situações de despenalização, mas fundamentava a inconstitucionalidade do preceito no qual o legislador não havia previsto "as garantias necessárias para que a eficácia de dito sistema não diminua além do que exige a finalidade do novo preceito" despenalizador.14 Assim, a falta de previsão de um ditame médico, no caso do aborto terapêutico, a ausência de mecanismos de comprovação da hipótese fática, no tipo terapêutico e eugênico, assim como de medidas que garantissem a prática do aborto nas devidas condições médicas, foram os elementos que serviram ao Tribunal Constitucional para justificar a inconstitucionalidade do Projeto. Em suma, o Tribunal concluiu uma argumentação finalista mais interessada em evitar o possível uso fraudulento do preceito impugnado do que ater-se aos estritos limites do juízo de constitucionalidade.15 Por isso, os cinco votos particulares que se formularam nessa sentença foram conscientes do que aquilo significava para a posição do próprio Tribunal, "cuja atuação não pode se aproximar a de uma terceira Câmara sem provocar um desequilíbrio perigoso em nosso

sistema jurídico-político, invadindo faculdades que correspondem ao poder legislativo".16 Não obstante a desaparição daquele recurso prévio, não restou perfeita a separação entre justiça constitucional e política. De um lado, porque o princípio de interpretação conforme da lei à Constituição, que se impõe em todas as instâncias, dá pé a uma atuação quase legislativa ou legislativa somente em nome da justiça constitucional. Assim acontece quando o Juiz Constitucional dita um pronunciamento "interpretativo", mas também (e principalmente) quando dita um pronunciamento "constitutivo" que arrebata do legislador suas funções políticas; e o mesmo acontece quando o juiz ordinário, em seu papel de guardião (também) da Constituição e sob pretexto desse mesmo princípio interpretativo, "distorce" intoleravelmente o sentido da lei. Por outro lado, a intromissão da justiça constitucional no âmbito da política é propiciada muitas vezes pela indeterminação do próprio texto constitucional, no qual são freqüentes cláusulas abertas e princípios materiais de justiça cuja interpretação é notavelmente discricionária. 3 A invasão do âmbito político 3.1 Interpretação conforme e sentenças interpretativas Como sabido, fazer distintas interpretações de uma disposição jurídica, sem que todas elas resultem constitucionais, trata-se de interpretação conforme a Constituição (a Verfassungskonforme Auslegung da doutrina alemã)17 quando se interpreta uma disposição ou texto legal de maneira que se mostre compatível (ou conforme) com a Constituição. A interpretação conforme se enquadra assim no âmbito das interpretações plausíveis de um texto legal, discriminando entre aquelas que resultam compatíveis com a Constituição e aquelas que não o são. Mas - note-se -, no âmbito das interpretações plausíveis da lei; isto é, as que não sejam incompatíveis com sua semântica, em conjunção obviamente com a sintaxe e a pragmática. Quando sob pretexto da interpretação conforme, o juiz (constitucional ou ordinário) "distorça" intoleravelmente o sentido da lei estará exercendo, clara e simplesmente, funções políticas. Pois bem, as sentenças interpretativas são o resultado de agir segundo o princípio de conservação das leis (rectius: dos textos ou disposições legais), acolhido plenamente por considera inadequados18 e diretamente relacionado com o princípio da interpretação das leis conforme a Constituição. Em virtude do dito princípio, cuja obrigatoriedade se vincula à primazia constitucional, um preceito legal só deve ser declarado inconstitucional quando não admita uma interpretação conforme a Constituição, de maneira que há de conservar-se na medida em que seja susceptível de uma interpretação constitucionalmente adequada. De acordo com isto podem definir-se as sentenças interpretativas como aquelas que não anulam o texto da lei na medida em que admita alguma interpretação conforme a Constituição. Conjugam-se assim a primazia da Constituição e a conservação das leis. Nas palavras do Tribunal Constitucional espanhol são sentenças interpretativas "aquelas que rejeitam uma demanda de inconstitucionalidade ou, a mesma coisa, declaram a constitucionalidade do preceito impugnado na medida em que se interprete no sentido que o Tribunal Constitucional considera como adequado à Constituição ou não se interprete no sentido (ou sentidos) que considera inadequados".19 O que com isso se assinala é que existem outras possibilidades de interpretar a lei, diferentes da rejeitada, e que de acordo com essas outras interpretações plausíveis - que a sentença proporciona - a lei resulta compatível com a Constituição. Ditas sentenças são, pois, o resultado de uma interpretação (às vezes notavelmente forçada) que evita a declaração de inconstitucionalidade do preceito legal impugnado. As sentenças interpretativas são formalmente desestimatórias da demanda de inconstitucionalidade, porém substancialmente estimatórias da mesma. Isto é assim porque nelas se determina quais interpretações são legítimas desde a perspectiva constitucional20 ou quais devem rejeitar-se,21 e deste modo se delimitam (no primeiro caso) ou diretamente se assinalam (no segundo) as interpretações da lei constitucionalmente inaceitáveis; isto é, se circunscrevem as possibilidades interpretativas do preceito legal impugnado ou questionado. Pois bem, mesmo quando as sentenças interpretativas possam ser consideradas consubstanciais ao exercício de qualquer função jurisdicional,22 mediante esta técnica o Tribunal Constitucional desempenha uma função mais própria de um Supremo Tribunal e não isenta de polêmica, em muitos casos, pelo risco que tem de impor, sob pretexto da interpretação conforme a Constituição, a melhor interpretação da lei em detrimento de outras igualmente constitucionais. Agindo deste modo o Tribunal Constitucional invade claramente as competências da jurisdição ordinária, pois deixa sem efeito a necessária liberdade interpretativa que se atribui aos órgãos da jurisdição ordinária como parte essencial da independência judicial. Mas além do mais, e principalmente, levando em conta a força vinculante de suas sentenças e a natureza "legisladora" das mesmas, ao impor a melhor interpretação da lei pode se dizer que o Tribunal Constitucional realiza

uma tarefa quase legislativa.23 Em conclusão, os limites que separam a interpretação conforme da melhor interpretação resultam às vezes frágeis e imprecisos. Por isso, o princípio de interpretação conforme, que está na base dos pronunciamentos interpretativos, constitui uma técnica de delicado manejo cujo uso deve ser guiado (ainda que na prática não seja sempre assim) por um permanente exercício de self-restraint. Além do mais, é evidente que o recurso às sentenças interpretativas carrega outro risco. Com a desculpa da interpretação conforme, o Tribunal Constitucional pode acabar impondo uma interpretação da lei que claramente não se deduz de seu texto segundo os cânones interpretativos tradicionais. Ultrapassam-se assim os limites da interpretação conforme (que são marcados pelas interpretações plausíveis da lei) para realizar uma simples alteração judicial do ordenamento invadindo o âmbito que a Constituição reserva ao legislador. Acontece assim nas chamadas sentenças manipulativas. 3.2 Sentenças manipulativas Quando nenhuma das interpretações plausíveis do preceito legal impugnado permite manter sua constitucionalidade (como ocorre nas sentenças interpretativas) e não obstante não se considera adequado ou conveniente anular esse preceito, o Juiz Constitucional pode "salvar" sua constitucionalidade de dois modos: a) manipulando o texto da lei para provocar uma interpretação constitucional do mesmo (por exemplo, anulando um inciso ou uma ou várias palavras do texto a fim de mudar o sentido); ou b) manipulando diretamente sua interpretação, mais exatamente, forçando as possibilidades interpretativas do texto (se quiser, fazendo uma interpretação contra legem) a fim de que resulte compatível com a Constituição. Ainda que em ambos os casos se produzam manipulações da lei (seja de seu texto, seja de sua interpretação). Costuma usar-se a expressão sentenças manipulativas - cunhada pela doutrina italiana24 - para a segunda hipótese; isto é, para os casos em que o Tribunal Constitucional manipula diretamente a interpretação da lei. Assim caracterizadas, as sentenças manipulativas são na realidade um caso particular de pronunciamentos interpretativos, pois através delas se exclui certa interpretação da lei e se impõe outra. A interpretação aqui pode cair, bem sobre o programa normativo do preceito (sentenças substitutivas), ou bem sobre seu âmbito de aplicação, que após a interpretação torna-se reduzido (em cujo caso se fala de sentenças redutoras) ou ampliado (em cujo caso se fala de sentenças aditivas). Mais precisamente, as sentenças substitutivas consistem em substituir uma interpretação plausível, porém inconstitucional, do preceito legal impugnado por outra que só forçadamente se pode dizer que deriva do mesmo, mas que resulta acorde com a Constituição. As sentenças redutoras consistem em fazer uma interpretação restritiva do âmbito de aplicação do preceito legal impugnado a fim de conformá-lo à Constituição: após a interpretação, a regra deixa de ser aplicável em uma ou várias das hipóteses compreendidas em abstrato pelo enunciado legal.25 As sentenças aditivas consistem em fazer uma interpretação extensiva do âmbito de aplicação do preceito legal impugnado a fim de conformá-lo à Constituição: após a interpretação, a regra é aplicável a um maior número de hipóteses do que as compreendidas em abstrato enunciado legal.26 Nos três casos poder-se-ia dizer que, na medida em que por um afã de conservação da lei se ultrapassa o âmbito de interpretações plausíveis da mesma, o Tribunal Constitucional rebaixa os limites da interpretação conforme arrogando para si competências do poder legislativo. Mas esta atuação paralegalista é particularmente notória nas sentenças aditivas. As sentenças aditivas supõem o reconhecimento da inconstitucionalidade por omissão: censuram o preceito legal impugnado ou questionado não pelo que diz, mas pelo que não diz; ou seja, "na medida em que não prevê" algo. Se assim se pode dizer, uma sentença aditiva estima inconstitucional a omissão de regulação expressa de uma determinada hipótese fática; por exemplo, a falta de atribuição de um direito, vantagem ou benefício a uma classe de sujeitos. Para reparar a inconstitucionalidade dessa omissão legislativa, a sentença "acrescenta", por via interpretativa, essa regulação que falta. Por isso poderia definir-se uma sentença aditiva como aquela que estende a aplicação de um preceito legislativo a uma hipótese fática não prevista no mesmo, mas sem o qual seria inconstitucional.27 O que costuma perseguir-se com esta atitude é garantir o princípio de igualdade, presumivelmente vulnerado por uma interpretação não expansiva, mas estrita, do preceito.28 Mas está claro que nestes casos o Juiz Constitucional também poderia salvar a igualdade simplesmente anulando o texto legal. Se em vez disso opta por fazê-lo extensível ao grupo discriminado (sentença aditiva) é porque considera que a simples anulação do preceito in toto pode causar prejuízos imediatos para todos aqueles a quem o preceito outorga direitos.29 Ainda quando esta classe de sentenças seja ditada para salvar a igualdade, é evidente que, ao

estender o campo de aplicação da lei, o Tribunal Constitucional atua como um autêntico legislador positivo, pois cria uma nova norma que é lei para os aplicadores do direito, mas que não foi desejada ou estabelecida pelo legislador. Mais ainda, precisamente o fato de que o Juiz Constitucional "não considere adequado ou conveniente" anular o preceito legal impugnado (e em vez disso dite uma sentença aditiva) mostra claramente que está fazendo valorações políticas. No entanto, esta atuação pode chegar a ser recusável. Primeiro, e principalmente, porque atuando assim o Tribunal Constitucional arrebata ao legislador competências que lhe são próprias. Segundo, e não menos importante, porque não pode originar uma situação de insegurança jurídica de conseqüências provavelmente não previstas nem desejadas por essa interpretação constitucional. Com efeito, posto que os direitos que a sentença reconhece ao grupo de sujeitos discriminados não existiam até agora, falta também a regulação de seu exercício e as previsões econômicas que muitas vezes são necessárias para sua satisfação. Esta regulação é necessária para evitar que o exercício dos direitos transborde além do previsto e desejado por essa doutrina constitucional, mas o Tribunal Constitucional não pode fazê-lo. Se assim se pode dizer, o Tribunal Constitucional é um órgão "torpe" para legislar positivamente, pois não pode - ou não com a precisão e previsão que o faria o legislador - estabelecer o regime jurídico que permitiria limitar e assegurar o exercício dos direitos reconhecidos na sentença. As sentenças manipulativas em geral e as aditivas em particular somente parecem admissíveis quando criam ou produzem normas constitucionalmente exigidas;30 ou seja, quando a nova norma que deriva da sentença obedeça à necessidade de proteger algum bem ou valor constitucional e, além do mais, não exista outra forma de fazê-lo do que a estabelecida precisamente na sentença: nestes casos resulta indiferente que essa integração legislativa seja levada a cabo pelo Juiz Constitucional ou pelo legislador. E ao contrário, quando falta algum desses requisitos, e em particular quando existem várias possibilidades legislativas para eliminar a inconstitucionalidade, a interpretação na qual consiste a sentença manipulativa é uma forma de arrebatar ao legislador sua liberdade de configuração normativa. Além do mais, os problemas que as sentenças manipulativas estabelecem quando as normas que introduzem não são exigidas poderiam solver-se ditando uma sentença de mera inconstitucionalidade (ou de inconstitucionalidade sem nulidade), mediante a qual se declara a inconstitucionalidade da lei, porém não se anula esta, mas se dá um prazo ao legislador para reparar a situação de inconstitucionalidade por via legislativa, e na qual o próprio Tribunal Constitucional poderia incluir uma série de diretrizes provisionais, válidas enquanto não se dite a nova lei. Agindo deste modo se respeita, por assim dizer, o princípio "a cada um o seu": o Juiz Constitucional declara a inconstitucionalidade da lei (que é sua função); e a produção da nova norma se desvia ao legislador (que é o órgão que ostenta a legitimidade democrática). Em suma, os pronunciamentos manipulativos revestem um interesse particular, pois dão a medida de quanto muda um ordenamento jurídico observando o controle de constitucionalidade. Mas trata-se de uma técnica muito questionável, pois não é precisamente a expressão de um self-restraint do Tribunal Constitucional; bem o contrário, através destes pronunciamentos este ultrapassa os limites da interpretação conforme, suplantando clara e simplesmente ao legislador. Nesta medida, as sentenças manipulativas violentam o princípio democrático e o da separação de poderes nos quais se assenta todo o edifício constitucional. Só podem ser aplaudidas por aqueles que vêem nelas uma forma rápida de acomodar aos valores constitucionais, ordenamentos inspirados em princípios bem distintos.31 3.3 Outras formas de influência política da justiça constitucional Além dos questionáveis pronunciamentos manipulativos e interpretativos, a intromissão da justiça constitucional em questões políticas é muitas vezes conseqüência da (ou pode ser propiciada por) indeterminação do próprio texto constitucional, no qual são freqüentes as cláusulas abertas ou de forte conteúdo valorativo. Com efeito, quando os preceitos constitucionais implicados em uma questão de constitucionalidade estão perfeitamente formalizados sua interpretação não oferece muitos problemas. No entanto, as constituições atuais contêm muitos preceitos que padecem de uma escassa formalização; mais ainda, muitos deles são somente a positivação de princípios e de juízos de valor, de maneira que seu significado é completamente indeterminado. Esta indeterminação faz com que o juízo de constitucionalidade da lei seja notavelmente discricionário. Em alguns casos tão discricionário, que pareceria que o Juiz Constitucional é irremediavelmente impelido a converter-se em um sujeito político.32 A indeterminação constitucional está por trás de algumas atuações políticas do Tribunal Constitucional que, ou bem contém recomendações ao legislador, ou bem fixa de maneira discutível o significado de um conceito essencialmente controvertido. Em alguns casos, efetivamente, ante a dúvida sobre o significado da Constituição em um determinado ponto, e ante a dúvida, portanto sobre se a lei questionada respeita o âmbito de possibilidades políticas permitidas pela Constituição, o Tribunal declara a constitucionalidade da lei, mas acompanha sua declaração com uma recomendação ao

legislador a fim de que no futuro reforme a lei ajustando-a à melhor interpretação da Constituição que estabelece a sentença. É evidente a carga de autoridade que acompanha esta recomendação, pelo qual é muito provável que o legislador termine atendendo essa sugestão e reformando a lei.33 Por outro lado, quando a indeterminação tem a ver com princípios ou valores constitucionais cuja interpretação é socialmente controvertida (como o direito à vida nos casos de eutanásia, aborto, rejeição a tratamentos médicos em situações de urgência vital, etc.) é possível não só que o Juiz Constitucional faça uma recomendação ao legislador, como também que fixe diretamente (de maneira "intolerável" da perspectiva do princípio democrático) o significado desses princípios ou valores. Em todo caso, o problema da indeterminação constitucional poderia talvez evitar-se sem necessidade de que o Juiz Constitucional desempenhe funções políticas. Concretamente, como em uma questão constitucional essencialmente controvertida é bem possível que as duas partes enfrentadas (a maioria criadora da lei e a minoria que impugna a lei) esgrimam argumentos razoáveis, o juiz poderia adotar uma solução intermédia, consistindo em declarar válida a lei, mas deixando aberta a reversibilidade de sua decisão: se acaso surgissem novos dados (por exemplo, acerca das valorações sociais dominantes a propósito de valores constitucionais controvertidos) que ajudem a esclarecer a questão, ou se acaso mudassem as próprias valorações sociais. Trata-se, pois, de que, por razões democráticas e levando em conta a dúvida, é preferível diferir a questão a critério da maioria: ou seja, declarar válida a lei (pelo menos por agora), mas reconhecendo que os argumentos que invocou a minoria têm peso e são suficientes para duvidar. Então, se trata de atribuir ao Juiz Constitucional a função de "árbitro" das questões constitucionais essencialmente controvertidas, estabelecendo simplesmente os pontos a partir dos quais as partes políticas e sociais enfrentadas devem discutir para alcançar um acordo que bem poderia desembocar na substituição da velha lei por outra nova.34Só este tipo de atuação se mostraria verdadeiramente respeitoso com o princípio democrático. 4 Observações finais 4.1 Argumentos contra o controle de constitucionalidade Nos últimos anos voltou à atualidade, tanto na América quanto na Europa, o velho debate sobre a legitimidade da justiça constitucional. Alguns dos argumentos que são usados contra se referem ao grande poder discricionário (e, portanto, "político") que exerce o Juiz Constitucional, principalmente quando as questões de constitucionalidade afetam a conceitos essencialmente controvertidos, e as comentadas atuações políticas da justiça constitucional não têm feito outra coisa senão reforçá-los. Mas outros argumentos vão diretamente contra a própria idéia de supremacia constitucional e se substanciam na tese de que as gerações passadas não podem vincular às gerações futuras. Esta é a objeção fundamental que enfrenta a justiça constitucional, que nos Estados Unidos se verbaliza com a expressão, cunhada por Alexander Bickel, da dificuldade contra-majoritária.35 Os dois tipos de argumentos estão conectados, pois esta segunda objeção é tão mais importante quanto maior seja o grau de discricionariedade que permita o tipo de Constituição de que se trate; isto é, quanto mais dúvidas interpretativas suscite o texto constitucional. Por isso, constituições carregadas de normas controvertíveis em essência propiciam mais a discricionariedade e, portanto, tornam mais grave a objeção antidemocrática. Se o Tribunal Constitucional invalida uma lei que regula a eutanásia por vulnerar o direito à vida que a Constituição protege, faria sentido perguntar quem é o Tribunal Constitucional para impor sua interpretação do direito à vida por cima da que fez o legislador democrático. Ao contrário, não teria lugar questionar a atuação do Tribunal Constitucional se este invalidasse uma lei que estabelecesse a pena de morte para determinadas hipóteses; simplesmente porque a interpretação do preceito constitucional que prescreve a pena de morte não suscita nenhuma dúvida, e diante disso não cabe o argumento democrático: o Tribunal Constitucional simplesmente executa a Constituição em uma suposição claríssima. Justamente como resposta à dificuldade contramajoritária foi proposta a tese da Constituição procedimental,36 ou mais exatamente, da leitura procedimental da Constituição. A idéia que a sustenta pode resumir-se a seguir. Em um mundo pluralista (em valores) e com certo relativismo ético não se pode entender que a Constituição imponha valores objetivos indiscutíveis, porque o único valor fundamental é a igualdade de todos os homens, que no plano das decisões coletivas se traduz em democracia, isto é, na participação de todos em pé de igualdade nas decisões coletivas. Então, a Constituição não impõe resultados políticos legítimos, mas somente instaura um processo legítimo (a democracia) para a adoção de decisões políticas. Postula-se, pois, uma leitura democrática (no sentido estrito, procedimental) de todas as disposições constitucionais: algumas (a maioria) se ocupam diretamente de estabelecer quais são os órgãos e os procedimentos de decisão; outras (as relativas a direitos) têm como objetivo estabelecer as condições que garantam a igual participação de todos no processo democrático. Daí se deriva uma concepção restritiva da justiça constitucional, segundo a qual esta deve limitar-se a manter abertos os canais da participação; ou seja, sem condicionar a decisão final. Em outras palavras, a justiça constitucional deve limitar-se a velar para que no processo político

se respeitem todas as suas condições de legitimidade, o que afinal de contas conduziria a controlar exclusivamente o respeito à igualdade e aos direitos políticos, por ser os que constituem a essência da participação e debate democrático. Esta tese, no entanto, resulta objetável, pois é discutível que o respeito dos direitos políticos esgote as garantias de participação democrática em pé de igualdade. Por exemplo, parece claro que a liberdade de expressão formaria parte do âmbito de controle constitucional, porque se coloca a serviço da democracia; mas e os direitos sociais? Se se responder negativamente, estar-se-ia esquecendo de que os direitos sociais também podem interpretar-se como garantias desse "mínimo vital", sem o qual a liberdade (ou a participação livre e sem restrições) não pode realizar-se efetivamente. Mas se se atende a esta última consideração e se responde afirmativamente já temos um Juiz Constitucional interferindo na política econômica e social do país.37 4.2 Como conclusão 1 Do que foi dito até aqui pode afirmar-se que muitos dos problemas que enfrenta a justiça constitucional, principalmente por seus atritos com o legislador democrático, se referem à existência de constituições materiais, carregadas de princípios de justiça abertos, inconsistentes e com tendências contrastantes cujos eventuais conflitos hão de ser resolvidos mediante um exercício de poder notavelmente discricionário. 2 O próprio Kelsen defendia um conceito de Constituição como regulação formal dos modos de produção normativa, e em todo caso recomendava uma redação detalhada dos preceitos relativos aos direitos fundamentais, porque já advertia os problemas que geraria uma Constituição que contivesse princípios materiais de justiça: "não é impossível" - escrevia o autor em La garantia constitucional de la Constitución - "que um Tribunal Constitucional tendo que decidir sobre a inconstitucionalidade de uma lei a anule por ser injusta, ao ser a justiça um princípio constitucional que o Tribunal deve aplicar. Mas então o poder do Tribunal seria tal que teria que considerá-lo simplesmente insuportável. A concepção de justiça da maioria dos juízes desse Tribunal poderia ser completamente oposta à da maioria da população e o seria, evidentemente, à da maioria do Parlamento que tivesse votado a lei".38 É verdade que este é um problema que não afeta só à jurisdição constitucional, como também à jurisdição ordinária, pois, desde o momento em que se aceita a força plena normativa de todos os preceitos constitucionais, sua aplicação é tarefa encomendada a todos os operadores jurídicos. Mas também não há dúvida que é o Juiz Constitucional quem de maneira mais imediata vem chamado a levar em consideração tais valores e princípios, dado que seu parâmetro de ajuizamento se limita (ou deve limitar-se) aos simples preceitos constitucionais. 3 Portanto, a solução dos problemas que geram as constituições materiais não parece encontrar-se na adoção de uma Constituição formal, "a la Kelsen", pois uma Constituição tão "descarnada" faz perder o sentido ao constitucionalismo como concepção do direito plenamente comprometida com o controle do poder para a proteção dos direitos (também ou principalmente, dos direitos das minorias frente ao eventual atropelo da maioria). Além do mais, os direitos e princípios de justiça, ao expressar valores e fins respaldados em maior ou menor grau pelos diversos grupos sociais, possibilitam um pacto constituinte no qual todos podem reconhecer-se, o que contribui para a integração política em uma sociedade plural.39 E este é o drama da justiça constitucional. A consagração constitucional de direitos e princípios materiais de justiça suscita problemas com o legislador democrático. Mas, por outro lado, se há de fazer sentido o pleno controle do poder (também do legislativo) é necessário conceber a Constituição não já (ou não somente) como a carta formal de distribuição do poder no sistema, mas principalmente (ou também) como o reconhecimento dos princípios de justiça que hão de constituir os caminhos pelos quais transcorra a vida social e política. Estes princípios de justiça, além do mais, não são só os direitos de participação no debate democrático, pois só a garantia destes direitos ainda não protege a minoria, que pode ser atropelada por uma decisão (ou uma lei) da maioria; estes princípios são também a consagração constitucional das plurais concepções de justiça presentes na sociedade. Isto é, a concepção da democracia à qual deve dar vida a Constituição não é a formal que estabelece quem decide e como se decide, mas a substancial que estabelece o que é que nenhuma maioria, por determinante que seja, pode decidir. 4 Mas a solução também não pode consistir em auspiciar constituições de detalhe a fim de que o controle de constitucionalidade seja mais objetivo ou menos discricionário, e isso porque o marco de valores constitucionais tem que ser o suficientemente aberto como para não produzir asfixia legislativa, isto é, para que continue tendo sentido afirmar que corresponde ao legislador democrático, de acordo com as concepções valorativas de seu tempo, determinar o conteúdo dos princípios e resolver as colisões entre eles dentro dos limites permitidos pela Constituição (ou seja, sem que nenhum dos valores constitucionais seja objeto de um sacrifício desproporcionado). Se alguma eficácia democrática tem a concepção aberta das constituições de princípios é justamente isso: que se transfere (ou assim deveria ser) ao legislador a definição concreta das condutas que em cada momento histórico hão de

realizar os valores e fins expressados pelos princípios constitucionais. 5 Levando em conta que o parâmetro de controle que há de usar a jurisdição constitucional é uma Constituição carregada de cláusulas abertas e princípios materiais de justiça de significado altamente conflituoso, parece que o único que caberia fazer é desenhar os mecanismos para conjurar os riscos de "governo do Juiz Constitucional".40e em todo caso pedir da jurisdição constitucional um exercício de autocontenção; um self restraint que permita manter as saudáveis fronteiras entre o juízo de constitucionalidade, por um lado, e o juízo político e de legalidade, por outro. Só se esta saudável contenção se consegue, poderemos conciliar a exigência de garantir a efetividade da Constituição com a de garantir uma política democrática, decidida conforme aos mecanismos de produção democrática legislativa. Naturalmente com isso não se pretende tirar nem um pouco de força vinculante à Constituição. Significa somente que a Constituição, e especialmente sua parte material ou programática, não oferece uma resposta unívoca a todos e a cada um dos casos ou conflitos que se possam apresentar, mas apenas uns condutos de atuação mais ou menos amplos dentro dos quais se desenvolverão tanto as instituições políticas quanto os operadores jurídicos. Por isso, talvez não seja demais insistir também na importância técnica, mas principalmente legitimadora que apresenta a argumentação no âmbito de uma jurisdição constitucional que, mais do que nenhuma outra, há de fazer uso de valores, princípios e, em geral, normas de conteúdo substantivo coincidentes com postulados morais.41 1

Tradução feita por Eduardo Ribeiro Moreira, Doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP e Professor Adjunto de Direito Constitucional pela UFRJ. 2

Vid. o volume La rigidez de las constituciones escritas, (A. Pace e J. Varela), Madrid, CEC, 1995; ou V. Ferreres, "En defensa de la rigidez constitucional", Doxa, 23, 2000. De opinião diferente é Luis Prieto, para quem a rigidez não é condição necessária da supremacia jurídica da constituição, pois esta também seria garantida mediante um sistema flexível, mas explícito, de reforma constitucional, "Constitución y Parlamento", em Parlamento y Constitución, n. 5 (2001), p. 12 ss. 3

M. García Pelayo, entre outros, assinala que assim como "o Estado legal de direito só se constitui quando existe uma jurisdição contencioso-administrativa, o Estado constitucional de direito só adquire existência quando se estabelece uma jurisdição constitucional", "Estado legal y Estado constitucional de Derecho", Obras Completas, Madrid, CEC, 1991, p. 3037. De diferente opinião é J.C. Bayón, para quem a supremacia da constituição não depende necessariamente da existência de uma garantia constitucional, "Democracia y derechos: problemas de fundamentación del constitucionalismo", em Constitución y Derechos Fundamentales (J. Betegón, F. Laporta y L. Prieto coords.), Madrid, CECP, 2004, p. 67 ss 4

Sobre a origem e justificação da judicial review vid. por exemplo R. Blanco Valdés, El valor de la constitución. Separación de poderes, supremacia de la ley y control de constitucionalidad en los orígenes del estado liberal, Madrid, Alianza, 1998. 5

Esta é uma das "verdades" que os autores da Declaración de Independência de los Estados Unidos (1776) sustentavam "por evidentes". 6

A idéia está bem descrita por A. Hamilton em El Federalista: "Não há proposição que se apóie sobre princípios mais claros do que a que afirma que todo ato de uma autoridade delegada, contrário aos termos do mandato conforme ao qual se exerce é nulo. Portanto nenhum ato legislativo contrário à constituição pode ser válido. Negar isto equivaleria a afirmar que o mandatário é superior ao mandante, que o servidor é mais que seu amo, que os representantes do povo são superiores ao próprio povo" (A. Hamilton, 1780, cap. LXXVIII). 7

Vid. G. Volpe, L'ingiustizia delle leggi. Studi sui modelli di giustizia costituzionale, Milano, Giuffrè, 1977. Vid. Também L. Prieto, Ideología e interpretación jurídica, Madrid, Tecnos, 1987, p. 77-78. 8

F. Rubio fala de "a repugnância (de Kelsen) ao admitir a vinculação do legislador aos preceitos não puramente organizativos da Constituição, ao aceitar a predeterminação constitucional do conteúdo material da lei"; "Sobre a relação entre o Tribunal Constitucional e o Poder judiciário no exercício da jurisdição constitucional", Revista Espanhola de Direito Constitucional, n. 4 (1982), p. 40. 9

Vid. H. Kelsen, Teoria pura del Derecho (1960), trad. de R. Vernengo, Mexico, UNAM, 1986, p. 232 ss. 10

Daqui em diante, para referirmos ao juiz das grandes questões constitucionais (configure-se como um

Tribunal Constitucional separado da organização da jurisdição ordinária, ou como um Supremo Tribunal inserto no esquema da jurisdição ordinária) utilizaremos a expressão Juiz Constitucional. 11

Precisamente por essa inevitável extensão da justiça constitucional à jurisdição ordinária, há quem sustenta que o Tribunal constitucional "representa um resíduo de outra época e de outra concepção das coisas, em particular daquela época e daquela concepção (kelseniana) que ocultava o conhecimento da constituição aos juízes ordinários", L. Prieto, "Neoconstitucionalismo y Ponderación", em Derecho y Proceso (J.D.Moreno ed.), Anuário de la Facultad de derecho de la Universidad Autónoma de Madrid, 5 (2001), p. 205. 12

Vid. G. Zagrebelsky, El derecho dúctil, trad. de M. Gascón, Madrid, Trotta, 5. ed., 2006, p. 150-152; M. Fioravanti, Los derechos fundamentales. Apuntes de historia de las constituciones, trad. De M. Martinez Neira, Madrid, Trotta, 1996, p. 55 ss. L. Prieto, "Neoconstitucionalismo y Ponderación", cit., p. 204; R. Alexy, "Epílogo a la teoría de los derechos fundamentales", Revista Española de Derecho Constitucional, 66 (2002). 13

O controle prévio de constitucionalidade frente a Leis Orgânicas y Estatutos de Autonomia foi abolido na Espanha em 1985, mediante L.O. 4/1985, de 7 de junho. Vid. J.Pérez Royo, "Crónica de un error: el recurso previo de inconstitucionalidad contra leyes orgánicas", Revista Española de Derecho Constitucional, n. 17 (1986), p. 137 ss. 14

STC 53/1985, de 11 de abril, FJº12.

15

Além do mais, nem sequer esta argumentação finalista justificaria - por ter sido necessária para evitar perigosas lacunas legais - a atuação quase-legislativa do TC, pois "uma coisa é o Código Penal" objeto de juízo - "e outra a hipotética regulamentação administrativa dos abortos justificados ou inculpáveis" (voto particular do magistrado L. Díez de Picazo). 16

Voto particular dos magistrados A. Latorre e M. Díez de Velasco.

17

Sobre o princípio de interpretação conforme, vid, para a doutrina alemã, R. Zippelius, "Verfassungskonforme Auslegung von Gezezten", no volume coletivo Bundesverfassungsgericht und Grundgesetz, Tubinga, Mohr, 1976, vol. II, p. 108 ss; para a doutrina espanhola vid. J.Jiménez Campo, "Interpretación conforme a la Constitución", em Enciclopédia Jurídica Básica, Madrid, Civitas,1995. 18

Vid. STC 77/1985, de 27 de junio, Fj°4.

19

STC 5/1981, de 13 de fevereiro, Fj°6. Sobre a forma das sentenças enterpretativas no TC, vid. F.J. Ezquiaga, La Argumentación en la Justicia Constitucional Española, Oñate, IVAP, 1987, p. 111 ss.

20

Por exemplo, aquelas que declaram que um preceito "não é inconstitucional, sempre que se entenda que..."(STC 14/1981, de 29 de abril); ou que não é contrário à Constituição "enquanto não seja interpretado em contradição com..."(STC 237/1992, de 15 de dezembro) ou "na interpretação acorde com..." (STC 204/1992, de 26 de novembro). 21

Por exemplo, aquelas que declaram que uma disposição "é inconstitucional...interpretada como..."(STC 22/1981, de 2 de julho); ou que não pode ser interpretada no sentido de que..." (STC 34/1981, de 10 de novembro) 22

Neste sentido F. Rubio, "Sobre a relação do Tribunal Constitucional...", cit., p. 35 e ss.

23

Além do mais, que o Tribunal constitucional era inocente destas conseqüências o prova uma de suas primeiras decisões onde, após afirmar que as sentenças interpretativas representam "um meio lícito ainda que de uso muito delicado e difícil", acrescenta - justamente para recusar sua utilização - que "o Tribunal Constitucional é o intérprete supremo da constituição, não legislador, e somente cabe solicitarlhe o pronunciamento sobre adequação ou inadequação dos preceitos da constituição", STC 5/1981, de 13 de fevereiro, Fj°6. A cursiva é minha. 24

Vid. A. Pizzorusso, "Las sentencias manipulativas del tribunal constitucional italiano", em El Tribunal Constitucional,Madrid, Instituto de Estúdios Fiscales, 1981, vol. I; y G. Zagrebelsky, La Giustizia

Costituzionale, Bolonha, Il Mulino, 2. ed., 1988, p. 296 ss. 25

Um exemplo de sentença redutora do Tribunal constitucional espanhol é a 5/1981, ditada a respeito da impugnação dos arts. 34.3 e 34.2 da LOECE, que estabelecem um determinado regime para os centros educativos. O Tribunal estimou que estes preceitos são inconstitucionais enquanto se refiram a "centros sustentados pela Administração com fundos públicos"; não o são enquanto se refiram a "centros privados não sustentados com fundos públicos". De maneira que, após a interpretação, a norma legislativa só se considera aplicável aos centros privados não financiados com fundos públicos. 26

São exemplos de sentenças aditivas do Tribunal constitucional espanhol a 116/1987, que estende o regime jurídico estabelecido para os militares republicanos que ingressaram no exército antes de 18 de julho de 1936 aos que o fizeram com posteridade; e a 222/1992, que torna extensível a quem tivesse convivido com outro de modo marital o benefício da subrogação causa mortis no contrato de aluguel de uma casa que a lei concedia ao cônjuge supérstite; isto é, estende aos casais de fato (more uxório) os direitos que a lei concede aos casamentos. 27

Sobre sentenças aditivas no direito espanhol, vid. F.J.Díaz Revorio, Las sentencias interpretativas del Tribunal constitucional. Análisis especial de las sentencias aditivas,Valladolid, Lex Nova, 2001; J.J.Fernández, La inconstitucionalidad por omisión, Madrid, Civitas, 1998; I. Villaverde, La inconstitucionalidad por omisión, Madrid, McGraw-Hill, 1997. 28

Efetivamente, pode haver certa inclinação para as sentenças aditivas quando está em jogo o princípio de igualdade. Nestes casos, o TC pode optar entre declarar diretamente a inconstitucionalidade da lei ou torná-la extensível ao grupo discriminado. A opção pela segunda hipótese - sentença aditiva - pode ser explicada pelo fato de que o TC considere que se o legislador deu certo tratamento a um grupo de cidadãos é porque o considerou adequado em virtude de um determinado valor da Constituição; em conseqüência, estende esse tratamento a todos aqueles que se encontram na mesma situação. Vid. L. Elia, "Constitucionalismo cooperativo, Racionalidad y Sentencias Aditivas", em División de poderes e interpretación, Madrid, Tecnos, 1987, p. 77 ss. 29

Vid. F. rubio, "La jurisdicción constitucional como forma de creación de Derecho", Revista Española de Derecho Constitucional, 22 (1988), p. 36. No mesmo sentido F.Modugno, "I criteri della distinzione diacronica tra norme e disposizione in sede di giustizia costituzionale", Quaderni Costituzionali, n. 1 (1989), p. 39. 30

Trata-se do que a doutrina italiana denomina sentenças a rime obbligate. Vid. V. Crisafulli, "Relazione Generale", em La Corte Costituzionale tra noema giuridica e realtà sociale. Bolonha, 1978, p. 84. Também, G. Zagrebelsky, La Giustizia Costituzionale, cit. p. 304. 31

Vid. F.Rubio, "La jurisdicción constitucional como forma de creación de Derecho", cit.

32

Precisamente a visão destes perigos explica a enérgica rejeição de Kelsen às normas constitucionais mais ou menos vagas ou ambíguas; vid. H.Kelsen, La garantia jurisdiccional de la constitución (la justicia constitucional), trad. De Juan Ruiz Manero, em Escritos sobre la democracia y el socialismo, Madrid, Debate, 1998. 33

Um exemplo deste tipo de pronunciamento no Direito espanhol é constituído pela STC 108/1986. Impugnava-se a lei que previa a eleição parlamentar dos vocais do Conselho Geral do Poder Judiciário e o Tribunal Constitucional entendeu que esse sistema de eleição não era contrário à constituição, pelo qual não procedia declarar sua inconstitucionalidade; mas ao mesmo tempo indicava que um sistema alternativo (no qual na eleição dos vogais participassem o Parlamento e o Poder Judiciário) seria "mais conforme" à Constituição. 34

Vid. este enfoque no excelente trabalho de V. Ferreres, Justicia constitucional y democracia, Madrid, CEC, 1997. 35

A. Bickel, The Least Dangerous Branch: The Supreme Court at the Bar of Politics, Yale Univ. Press, New Haven, 1962. 36

J.H.Ely é o principal expoente desta tese. Vid. Democracy and Distrust. A theory of Judicial Revew, Harvard Univ. Press, Cambridge, 1980. 37

C.S.Nino chamou a atenção sobre isso, "La filosofia del control judicial de constitucionalidad", Revista

del Centro de Estúdios Constitucionales, 4(1989). 38

H.Kelsen, La garantia jurisdiccional de la Constitución (la justicia constitucional),cit., p. 143; e Quién debes ser el defensor de la constitución? Madrid, Tecnos, 1995, p. 33-34 39

A título de exemplo, esta eficácia integradora das constituições de princípios é destacada por G. Zagrebelsky, El derecho dúctil, cit., e por V. Ferreres, Justicia constitucional y democracia, cit. 40

Assim, por exemplo, em relação à defesa de uma forma fraca de constitucionalismo - que no substancial não compartilho - P. de Lora oferece uma proposta que estimo plausível e sugestiva também em um constitucionalismo não fraco: exigir que os tribunais constitucionais só possam proceder à declaração de inconstitucionalidade das leis quando todos os seus membros estejam de acordo com isso. "Justicia constitucional y deferencia al legislador", em Constitución: problemas filosóficos (F. Laporta, coord.) p. 345 ss. 41

Sobre a importância da função da argumentação constitucional vid., ultimamente, M. Iglesias, "Los conceptos esencialmente controvertidos en la interpretación constitucional", Doxa, 23 (2000).

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