Os limites do discurso diplomático: a democratização da política externa brasileira de direitos humanos sob Lula

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RODRIGO CERVEIRA CITTADINO

OS LIMITES DO DISCURSO DIPLOMÁTICO: A DEMOCRATIZAÇÃO DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA DE DIREITOS HUMANOS SOB LULA Orientadora: Leticia de Abreu Pinheiro

Rio de Janeiro 2011

RODRIGO CERVEIRA CITTADINO

OS LIMITES DO DISCURSO DIPLOMÁTICO: A DEMOCRATIZAÇÃO DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA DE DIREITOS HUMANOS SOB LULA

Monografia apresentada ao Curso de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Relações Internacionais. Orientadora: Leticia de Abreu Pinheiro

Rio de Janeiro 2011

Agradecimentos A meus pais, pelo amor infinito. À Vovó Iza, pela confiança inabalável que sempre deposita em mim. A Sabrina, minha irmã, pela alegria contagiante. À Tia Mariza, por ter-me emprestado seus ouvidos. À Profa. Leticia de Abreu Pinheiro, pela primorosa orientação e incentivo constante. Sem seus conselhos sempre bem-vindos e comentários que me instigaram a reflexão, esta monografia jamais se teria aperfeiçoado. Ainda a ela, por ter-me aberto as portas à literatura de Ciência Política, permitindo que o presente trabalho alcançasse máximo proveito. Ao Prof. Roberto Yamato, pela gentileza que lhe é característica e pelas aulas inspiradoras de “Direitos Humanos na Política Internacional”. Sem elas, a monografia não teria dado o merecido destaque ao CBDHPE, o que sem dúvida teria deixado lacuna irreparável. A ele, também, por ter-me proporcionado contato com a ONG Conectas, de insuperável importância para este trabalho. A Lucia Nader, da Conectas, pela solicitude ímpar com que me atendeu, estabelecendo um elo de comunicação crucial entre mim e o CBDHPE, na pessoa de Camila Lissa Asano, a quem agradeço pela simpatia inigualável demonstrada durante a entrevista que me foi concedida, preciocíssima para refinar as conclusões aqui expostas. A Brenda Maria Araújo, Leonardo (Leo) Menoncin, Pedro Farias e Pedro Junqueira, pela atenção (e paciência) que me dispensaram ao longo deste ano, toda vez em que eu desatava a falar da monografia. Ainda a eles e a tantos outros, pela amizade de longa data. A Artur Costa, João Moura, João Pedro Teles, Marcel Fonseca e todos os demais colegas de turma, pela companhia inesquecível e apoio mútuo. A Andréa Pereira, Camilla Inhapim, Juliana Ghazi e Paula Olivieri, por me fazerem sorrir sempre que as encontro. A J. R. R. Tolkien e George R. R. Martin, influências perpétuas.

Resumo A monografia foca-se na política externa brasileira (PEB) de direitos humanos da Era Lula (2003-2010), propondo-se a examinar os confrontos entre a oratória diplomática (discurso oficial) e as declarações da sociedade civil e do Legislativo (discursos críticos) acerca da postura adotada pelo Brasil em questões de direitos humanos na Organização das Nações Unidas (ONU). Para tanto utilizamos a perspectiva pós-estruturalista e o modelo de análise discursiva de Lene Hansen (2006), que nos permitem ler os textos oficiais e os críticos como interpretações que representam de forma distinta o Estado brasileiro em matéria de direitos humanos, constituindo para ele identidades diferentes e concorrentes. A narrativa do Itamaraty, a agência encarregada das relações exteriores, justificou que o Brasil votasse de modo a obstruir certas resoluções sobre direitos humanos na ONU, o que suscitou controvérsias no âmbito doméstico. Nossa hipótese consiste em que, ao contestarem a visão diplomática, as críticas limitaram-lhe o alcance e poder de convencimento, legitimando demandas políticas democratizantes, em prol da prestação de contas por parte do Ministério das Relações Exteriores e da participação da sociedade civil na política externa. Os discursos que se opuseram ao oficial respaldaram que, em 2006, se fundasse na Câmara dos Deputados comitê responsável por monitorar a PEB de direitos humanos; o valor democrático de tal instituição será apreciado à luz da Ciência Política.

Palavras-chave Política externa brasileira (PEB); direitos humanos; discurso; pósestruturalismo; democratização; Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa (CBDHPE).

Sumário

1. INTRODUÇÃO................................................................................................... 5 1.1. Tema e problema....................................................................................5 1.2. Pergunta de partida e hipótese................................................................9 1.3. Objetivos...............................................................................................11 1.3.1. Objetivo geral.........................................................................11 1.3.2. Objetivos específicos..............................................................12 1.4. Justificativa...........................................................................................12 1.5. Embasamento teórico............................................................................14 1.6. Metodologia..........................................................................................17 1.7. Seleção de fontes..................................................................................19 1.8. Capítulos...............................................................................................20 2. TEORIAS EM “3-D”: DEBATES, DISCURSOS E DEMOCRACIA............ 21 2.1. O pós-estruturalismo nas Ciências Sociais...........................................21 2.2. O pós-estruturalismo nas RI e o terceiro/quarto debate.......................24 2.3. O pós-estruturalismo em APE: a discursividade do Estado e suas política(s) externa(s)....................................................................................28 2.4. O pós-estruturalismo e a democratização da PEB: o papel da agência... .....................................................................................................................34 2.5. Democratização: parâmetros e conceitos............................................. 39 3. A EVOLUÇÃO DISCURSIVA DA PEB DE DIREITOS HUMANOS........ 44 3.1. 1948-1955: o “Brasil-progressista” face ao abstencionismo................44 3.2. Política Externa Independente (PEI): o “Brasil-sui-generis” face às dicotomias da guerra fria.............................................................................51 3.3. O Brasil na Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas: cautela face à consolidação do sistema de supervisão.................................54 3.4. Redemocratização: renúncia aos Eus do passado?...............................57 3.5. A Conferência de Viena, o “Brasil-ponte” e a Era Cardoso................ 62 4. ERA LULA: DEMOCRATIZAÇÃO DA PEB DE DIREITOS HUMANOS... 67 4.1. A PEB de direitos humanos sob Lula: uma introdução........................67 4.2. O Brasil e o fim da Comissão de Direitos Humanos: um meio-termo “brand new” para a identidade brasileira?...................................................70 4.3. Politização da PEB de direitos humanos..............................................75 4.4. Democratização da PEB de direitos humanos?....................................84 5. CONCLUSÃO.................................................................................................... 89 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................... 92

1. Introdução 1.1. Tema e problema

O presente estudo tem por objeto a política externa brasileira (PEB) de direitos humanos durante o Governo Lula (2003-2010). Pretendemos abordar o assunto a partir de um enfoque que privilegia a interação entre a oratória diplomática (discurso oficial) e as declarações da sociedade civil e do Legislativo (discursos críticos) acerca da postura adotada pelo Brasil em questões de direitos humanos na Organização das Nações Unidas1 (ONU). O balanço da PEB de 2003 a 2010, disponibilizado no site oficial do Ministério das Relações Exteriores (MRE), dedica um tópico particular ao tema dos direitos humanos. No que concerne a essa seara, o relatório afirma que as relações exteriores do Brasil apoiam-se em “baluartes constitucional e histórico” (MRE, 2011, p. 1). O primeiro consiste no artigo 4º da Constituição Federal de 1988 (CF/88), que elenca a prevalência dos direitos humanos como um dos princípios-guia da PEB. O segundo alicerce referese a uma sempre reiterada “tradição” de nosso país de respeito e adesão às normas de Direito Internacional, o que levou-nos a ratificar os principais tratados de direitos humanos componentes do regime interamericano e do Sistema ONU. Ainda, o balanço ressalta a profícua participação do Brasil na construção do arcabouço institucional do Conselho de Direitos Humanos (Conselho) da ONU, criado em 2006 para substituir a antecessora Comissão de Direitos Humanos (CDH), que perdera credibilidade devido à excessiva politização no desempenho de suas atividades. Também se atenta para a atuação dos representantes brasileiros junto ao Conselho como mediadores em debates polarizados (ibid., p. 4), o que, e.g., Florencio Sobrinho (2009, p. 103) designa como “papel de construtor de consensos (bridge builder)”. Por seu turno, em artigo publicado em vias de findar seu mandato, o 1

Cumpre enfatizarmos esse recorte, explicitando o que dele está excluído: não analisaremos a conduta brasileira no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, nem a participação do país no regime global baseado em tratados de direitos humanos e seus comitês de monitoramento (treaty bodies), ao menos não diretamente. Concentrar-nos-emos nos posicionamentos do Brasil, nas Nações Unidas, em resoluções sobre a situação dos direitos humanos em Estados determinados.

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Ministro das Relações Exteriores da Administração Lula, Celso Amorim, sustenta que a promoção dos direitos humanos ocupa lugar central dentro da PEB. Face aos atentados contra direitos humanos ao redor do mundo, o Brasil pauta-se por uma “atitude de solidariedade e não-indiferença” e, nos foros multilaterais, defende, conforme o autor, uma abordagem não-seletiva da temática (2010b, p. 238). Vale esclarecer: “[e]very single country – (...) the powerful and the weak, either in Africa or in Europe – should be subject to the same methods of scrutiny, without double standards” (ibid., p. 238). Por fim, o ex-ministro expressa a preferência brasileira pelo diálogo e pela cooperação como meios de proteção dos direitos humanos (ibid., p. 239). O balanço do MRE e o artigo de Amorim descrevem, em linhas gerais, os contornos da PEB de direitos humanos. Que se frise: em linhas gerais. Afinal, o quadro que acima se esboçou não deve, evidentemente, ser encarado como o retrato fiel de uma realidade objetiva. O que se expôs compreende apenas a interpretação estatal, oficial, que consagra a visão do Brasil acerca dos direitos humanos. Sendo inerentemente política e não se prestando, portanto, a explicar a política externa, sua parcialidade tem sido confrontada por leituras concorrentes, não menos parciais. Daí que ela nos interessa tanto pelo que contém quanto pelo que não contempla. A perspectiva diplomática não menciona, entre outras coisas, as polêmicas vivenciadas pelo Itamaraty durante a Era Lula quando segmentos da sociedade civil e do Legislativo2 contestaram as decisões do MRE em certos casos atinentes a direitos humanos. Mais precisamente, tratamos aqui das ocasiões em que, nas chamadas resoluções sobre a situação dos direitos humanos em países específicos, propostas na antiga Comissão e no atual Conselho, o Brasil absteve-se, ou manifestou-se em contrário, ou postou-se 2

Entendemos que a sociedade civil brasileira não encerra um corpo homogêneo. Ao empregarmos essa expressão ao longo da monografia, temos em mente um significado mais plural, não unitário. Para os fins deste trabalho, a sociedade civil refere-se à constelação de atores concernidos com a PEB de direitos humanos, tais como: diplomatas aposentados, acadêmicos, a mídia e ONGs (com destaque para a Conectas Direitos Humanos), além de outras entidades, a exemplo das integrantes do Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa (CBDHPE, ver abaixo). Da categoria de sociedade civil estão excluídos os parlamentares, já que formalmente fazem parte do Estado. Todavia, devido à importância de certos deputados enquanto propagadores dos discursos críticos, e estando o CBDHPE ligado à Câmara dos Deputados, não ignoraremos a atuação Legislativo.

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a favor de no-action motions3. Uma no-action motion (moção de não-ação) recebe prioridade frente à resolução a que ela se endereça, e visa a impedir que o mérito desta seja sequer apurado (Conectas, 2005, p. 10). Em 2003 e 2004, por exemplo, a delegação brasileira na CDH da ONU votou contra resoluções concernentes à Chechênia (Rússia) e, em 2004, votou “sim” para uma no-action motion direcionada à China. Nos momentos em tela, o Estado brasileiro acabou contribuindo para obstruir a adoção de medidas condenatórias às violações de direitos humanos (ibid., p. 30). Ao repercutirem no plano doméstico, essas e outras posturas do Brasil foram questionadas e, até, duramente reprovadas. “Acredito que, ao votar desta forma, o país agiu ilegalmente”, declarou à época Oscar Vilhena Vieira, membro da ONG Conectas Direitos Humanos (Barbosa, 2005). Intentamos captar os significados que diferentes discursos imputam ao padrão de votação do país em questões de direitos humanos na ONU. De um lado, os operadores tradicionais da PEB procuram encaixar dentro do discurso oficial os posicionamentos brasileiros, conferindo-lhes um valor positivo ou, no mínimo, coerência. De outro lado, os referidos agentes da sociedade brasileira propalam uma interpretação alternativa que, veiculada em atos de fala, divulga uma conotação negativa sobre o comportamento do Brasil nos órgãos das Nações Unidas que lidam com direitos humanos. Assim, as narrativas críticas desafiam a visão do Itamaraty, não raro tachando-a de inconsistente e ambígua e, logo, deslegitimando-a. Ademais, ao apontarem as contradições e limites do discurso diplomático – que se pretende isento de semelhantes deficiências –, as vozes concorrentes põem em xeque a autoridade do Itamaraty para, (quase) monopolisticamente, levar a cabo a PEB de direitos humanos. Polemizado o assunto em questão, viabiliza-se (e justifica-se) que determinadas parcelas da sociedade civil reivindiquem habilitação para exercer maior influência na formulação da política externa – ou para monitorá-la, pelo menos. 3

Resoluções dessa espécie também são suscitadas na Terceira Comissão da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), contudo optamos por fixar nosso foco na CDH e no Conselho de Direitos Humanos da ONU.

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Não devotaremos atenção às origens das narrativas ou aos interesses que as informam. Nosso intuito precípuo é trabalhar os efeitos de tais discursos conflitantes, no que se incluem não só as identidades políticas que eles constituem para o Brasil, mas também o que denominaremos efeitos democratizantes. Aquelas nada mais são do que representações, imagens, uma gama de características que definem o Estado brasileiro em matéria de direitos humanos, inscritas nos textos que analisaremos. Quanto aos efeitos democratizantes, apuraremos em que grau (ou como) eles se materializaram no surgimento e funcionamento do Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa (CBDHPE), vinculado à Câmara dos Deputados. O compromisso de se fundar o CBDHPE foi firmado em 28 de setembro de 2005, em audiência pública convocada pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara. Durante a reunião, a partir de informe4 elaborado pela ONG Conectas, demonstrou-se a necessidade de maior transparência na produção e condução da PEB de direitos humanos pelo MRE. O Comitê foi formalmente estabelecido no ano seguinte, em 31 de maio. Composto por instituições governamentais e entidades da sociedade civil, o CBDHPE busca “[p]romover a prevalência dos direitos humanos na política externa brasileira e fortalecer a participação cidadã e o controle social sobre esta política, por meio de mecanismos de diálogo entre os poderes do Estado brasileiro e a sociedade civil” (Câmara dos Deputados, 2011).

Além de investigarmos o Comitê enquanto fruto da disputa entre as narrativas antagônicas sobre a política externa de direitos humanos, não descuidaremos de inseri-lo no debate acadêmico acerca da democratização da PEB. Se o CBDHPE encarna algo de inovador, tal é a abertura de um canal permanente de contato entre a sociedade brasileira e o corpo diplomático, pela via do Legislativo. Vê-se garantido, doravante, um lócus para onde podem convergir os confrontos entre o discurso oficial e os discursos críticos. 4

Parte do Programa de Acompanhamento de Política Externa em Direitos Humanos (PAPEDH).

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1.2. Pergunta de partida e hipótese

Discernidas as arestas do tema que move esta monografia, resta-nos indicar a pergunta que a norteará: “Como se processou a democratização da política externa brasileira de direitos humanos durante a Era Lula?”. Sustentaremos que a democratização processou-se por meio da dinâmica interdiscursiva, que a propiciou e a assegurou. Alcunhamos de dinâmica interdiscursiva as tensões e embates entre a narrativa diplomática e as narrativas críticas sobre a política externa de direitos humanos. À luz do exposto, eis nossas hipóteses. A dinâmica interdiscursiva propiciou e assegurou a democratização da PEB de direitos humanos na medida em que: a) os atos de fala concorrentes problematizaram o modelo discursivo estatal e seus componentes (a identidade, a policy e a conexão entre elas), realizando uma crítica indireta à autoridade do MRE; e b) as narrativas opositoras, numa crítica direta à autoridade do Itamaraty, legitimaram uma política de reforma democratizante. Convém explicar o que entendemos por crítica indireta (ou implícita) e crítica direta (ou explícita). Elas estão associadas a dois resultados paralelos oriundos da dinâmica interdiscursiva. Um deles corresponde à desestabilização da narrativa oficial. “The goal for foreign policymakers (...) is to present a foreign policy that appears legitimate and enforceable to its relevant audience.” (Hansen, 2006, p. 25) Na Gestão Lula, porém, o perfil identitário e a política de direitos humanos – no caso, equivalente a certo padrão de votação nos foros da ONU – que os diplomatas articularam para o Brasil, via discurso, não foram incontestavelmente aceitos pela audiência brasileira, ou seja, houve oposição. Ora, se fragilizado o modelo discursivo estatal, a instabilidade atinge, por reflexo, a autoridade da instância governamental que nele se escora, o Itamaraty. Aqui se divisa a crítica indireta, assim nomeada por dirigir-se primariamente ao conteúdo da narrativa diplomática, não à instituição que a proferiu. O outro resultado correlaciona-se ao teor do polo discursivo opositor.

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“The overall goal of oppositional foreign policy discourse is to bring forth a different policy…” (Hansen, 2006, p. 28) No que tange à PEB de direitos humanos, “different policy” significa, em princípio, um padrão de votação distinto do advogado por nossa diplomacia. Basicamente, as vozes da sociedade civil e do Legislativo apoiam que a delegação brasileira assuma posicionamentos menos moderados na CDH e no Conselho, colocando-se a favor – e não contra nem neutra – em resoluções que condenam patentes violações de direitos fundamentais, não importa em qual país. Entretanto, observe-se que algumas narrativas críticas defendem não só a policy alternativa mencionada, mas também outra, a democratização – e focar-nosemos nesta, não naquela5. Os atos de fala concorrentes questionam que a política externa de direitos humanos seja mantida sob a competência (quase) exclusiva do MRE, visto que por vezes a instituição adota posições muito controversas ao lidar com essa temática. Aqui a crítica à autoridade do Itamaraty é explícita; nela, entrevemos propostas democratizantes, que consignam uma policy legitimada pelos discursos opositores6. Consideramos complementares as duas hipóteses, pois a segunda (crítica explícita) põe às claras o que a primeira (crítica implícita) deixa apenas latente; ao mesmo tempo, a primeira serve de justificativa para a 5

Daí que não procuraremos avaliar o grau de influência que a sociedade civil e o Legislativo detêm sobre a política externa; isto é, não tencionamos constatar se seus discursos traduziram-se em modificações concretas nos posicionamentos controversos da delegação brasileira na CDH e no Conselho. Julgamos que seria ousado demais sugerir que, caso tenham ocorrido ajustes dessa natureza, seriam eles decorrência cabal das narrativas concorrentes. Rastrear aí qualquer mudança implicaria investigar se as críticas convenceram ou não os funcionários do Itamaraty junto às Nações Unidas. Sem dúvida nebulosa, semelhante pesquisa esbarraria ainda nesta complicação: a maioria das (se não todas as) manifestações discursivas da sociedade civil têm sido veiculadas posteriormente às reuniões nos foros da ONU, constituindo respostas a políticas (votações) já concluídas, impassíveis de sofrer revisão. 6 Estamos cientes de que Hansen (2006) não se refere explicitamente a policies democratizantes nem a qualquer tipo de policy voltada para o plano doméstico do Estado. Seu pós-estruturalismo orbita em torno de discursos que decretam uma política externa. Não obstante, ao introduzir seu corpo de premissas (2006, p. 19), a autora aparenta adotar o vocábulo “policy” numa acepção mais ampla, transcendendo a dicotomia interno/externo. Por conseguinte, não julgamos ser impensável fazer o mesmo. À luz desse entendimento, para sanar os problemas que detectam na narrativa oficial, os discursos críticos defendem dois cursos de ação, duas policies. Uma delas efetivamente encarna uma política externa alternativa à empreendida pelo Itamaraty; mais concretamente, ela inauguraria para o Brasil um padrão de votação em resoluções de direitos humanos na ONU menos tolerante a violações. Enquanto uma alteração de semelhante magnitude não se verifica em nossa diplomacia, propugna-se, como policy subsidiária, a democratização da PEB de direitos humanos, consumada nas atividades de monitoramento do CBDHPE e na cobrança ao Itamaraty de que justifique suas escolhas na CDH e no Conselho de Direitos Humanos.

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segunda, que, na sequência, justifica a política em prol da democratização. Cabe esclarecer o que chamamos democratização. O termo remete a uma ampla discussão multidisciplinar. Para nós, democratizar implica mais do que a mitigação do insulamento burocrático7 que acomete (ou acometia) a principal agência brasileira classicamente habilitada a falar e fazer política externa, o Itamaraty. Decidimos problematizar a ideia de democratização contida em nossa pergunta e, a fim de balizar-lhe o conteúdo, recorreremos a noções da Ciência Política, como representatividade e accountability. Hoje se encontra ainda mais relativizada a autonomia com que o MRE outrora desempenhava suas funções, a ponto de já se alegar que o conceito de insulamento burocrático não é de todo apropriado para tratar da realidade presente (Spécie, 2008, p. 12). Em particular a política externa de direitos humanos está sujeita à desconcentração: conforme a Constituição, Legislativo e Judiciário desempenham funções conexas às do Executivo; dentro deste, outrossim, o Itamaraty vem compartilhando responsabilidades com outros organismos, como a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH). Enfim, a blindagem institucional da Casa de Rio Branco tem-se tornado minimamente mais porosa. Averiguaremos se o CBDHPE consiste num dos mecanismos garantidores de tal permeabilidade. Em resumo: devido às críticas, o discurso oficial não se fixou como absoluto e, ademais, legitimaram-se demandas por maior transparência, prestação de contas e participação da sociedade civil na PEB de direitos humanos, as quais ofereceram condições para a emergência do Comitê, cuja eficácia democratizante resta-nos constatar, para completarmos a pesquisa.

1.3. Objetivos

1.3.1. Objetivo geral

Apurar como as narrativas concorrentes confrontaram a narrativa 7

O insulamento burocrático pode ser descrito como “o processo de proteção do núcleo técnico do Estado contra a interferência oriunda do público ou de outras organizações intermediárias” (Nunes, 1997, apud Lopes et al., 2010, p. 5). Para uma coletânea dos fatores institucionais e históricos por trás do insulamento burocrático do MRE, cf. Faria (2008, p. 10-11).

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estatal da PEB de direitos humanos do Governo Lula, denunciando-lhe as contradições e limites, e contestando direta ou indiretamente a autoridade do Itamaraty para cuidar do assunto com (quase) total exclusividade, de sorte a possibilitar a criação do CBDHPE, cujo potencial democratizante também avaliaremos.

1.3.2. Objetivos específicos

Traçar o histórico do discurso diplomático da PEB de direitos humanos, intentando compreender como as narrativas pretéritas inspiraram a narrativa da Gestão Lula, a partir de uma perspectiva de intertextualidade, a qual examinaremos adiante, na seção 1.6. Analisar o discurso oficial da PEB de direitos humanos vigente na Era Lula, pondo em relevo a identidade que, a partir dele, se atribuiu ao Brasil, bem como a política que foi apregoada, norteadora de determinada postura em votações na CDH e no Conselho. Efetuar a análise dos discursos críticos da PEB de direitos humanos, decifrando as táticas neles empregadas para desestabilizar a narrativa do Itamaraty, preconizando representações identitárias e policies alternativas – entre as quais e principalmente, as propostas democratizantes.

1.4. Justificativa

O levantamento de material bibliográfico sobre a PEB de direitos humanos permitiu-nos verificar a predominância de escritos de autoria de diplomatas8. Esses textos sem dúvida desfrutam de riqueza ímpar de informações, tendo em conta o sítio privilegiado em que se encontra o analista e, majoritariamente (Brandão & Perez, 1998; Saboia, 1994 e 1998; Lindgren Alves, 2003; Florencio Sobrinho, 2009; Belli, 2009), sua própria experiência de ter-se engajado (ou ainda estar engajado) com a temática dos direitos humanos nas relações exteriores do país. Por outro lado, neles, a voz do profissional-político apologético ocasionalmente confunde-se com a 8

Contradizendo a regra, ver, por exemplo, Cançado Trindade (2000 e 2006), Magnoli (2008), Asano et al. (2009), Asano & Nader (2010) e Milani (2011).

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voz do acadêmico. É justamente a interseção entre os campos diplomático e intelectual que move o artigo de Leticia Pinheiro e Paula Vedoveli (2010). As autoras deslindam a trajetória histórica da autoridade acadêmica que a sociedade brasileira confere aos diplomatas, desde a simbiose inicial, no século XIX, entre os versados nos saberes humanistas e o corpo político-burocrático do Estado, a qual gerou no MRE a figura do “intelectual enquanto diplomata”; até os anos 1970 e a subsequente academização dos formados pelo Instituto Rio Branco, em cuja esteira apareceu o “diplomata enquanto intelectual”. Reconhecendo que todo conhecimento é condicionado pelas especificidades do lugar social ocupado pelo pesquisador, Pinheiro e Vedoveli recomendam que, sobretudo nos estudos de política externa, não devem ser ignoradas as consequências dessa superposição entre o sujeito que estuda e o sujeito que conduz as relações exteriores. Ressaltam elas que os conceitos produzidos por diplomatas em seus textos não podem ser tomados pelos leitores como categorias explicativas – quer dizer, como construtos puramente intelectuais –, fazendo-se crucial desvendar a carga política em que estão embebidos 9. Assim, já que unívoca em graus variados, a literatura diplomática colhida apresenta limitações substanciais, que decerto comportam críticas. Estas tiveram lugar em especial durante o Governo Lula, quando “a política externa [se viu] exposta a avaliações, de oposição ou de endosso, que [revelaram] um inédito interesse no debate público brasileiro” (Hirst et al., 2010, p. 23). Exemplifiquemos: se Celso Amorim (2009), em artigo da revista Política Externa, enfatizou a contribuição da delegação brasileira para a aprovação, no Conselho, de uma “resolução equilibrada” a respeito da situação dos direitos humanos no Sri Lanka, Asano et al. (2009), em edição idêntica da mesma revista, discordaram da linha de atuação seguida por nosso país no caso em tela, em razão de ele ter acatado tão somente 9

Por oportuno, cite-se o alerta de Vargas (apud Pinheiro & Vedoveli, 2010, p. 52): “[i]n contests between the diplomat’s inner academic and inner politician, the latter usually wins out at the expense of the former. Particular care has to be taken, therefore, when looking at ‘theoretical concepts’ proposed by diplomats: these are more often than not political wolves dressed in the clothing of academic sheep, and not carefully designed elements of a consistent... system...”.

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“resoluções fracas”. Percebe-se que, sozinha, nem uma nem outra apreciação basta. A relevância deste trabalho para a subárea da PEB reside em sua aspiração holista: abordará tanto a ótica do MRE quanto a da sociedade civil acerca da política externa de direitos humanos sob Lula. No que concerne à democratização da PEB, pretendemos introduzir um enfoque diferente do que convencionalmente se tem explorado. A atenção dos autores tem recaído sobre os motivos que ensejam a participação, ao lado do Itamaraty, de outros atores na política externa10. Igualmente se perquire sobre o sentido do processo democratizante, isto é, pergunta-se em que termos ele se dá e quais são seus impactos 11. Em suma, a preocupação da literatura tem-se voltado ora para o “ponto de partida” da democratização – suas origens, o que a torna desejável e (talvez) necessária, e o que a deflagra –, ora para seu “ponto de chegada” – qual é a magnitude das mudanças que ela engendra. Procurando suplementar as análises já existentes, lançaremos luz sobre um aspecto distinto: o “meio do caminho”, ou seja, os discursos críticos enquanto instrumentos democratizantes da política externa de direitos humanos. Ao desmitificarem o caráter de verdade infalível que a narrativa oficial arroga-se e transmite, são eles os responsáveis por politizar-lhe o objeto e por cunhar e incentivar demandas em prol da democratização da PEB.

1.5. Embasamento teórico

A teoria das Relações Internacionais que precipuamente informará esta monografia consiste no pós-estruturalismo, consoante a versão de Lene Hansen em Security as practice: discourse analysis and the Bosnian war. Frente ao problema e à questão que guiarão nossa pesquisa, tal marco teórico mostra-se adequado, uma vez que atesta a importância da linguagem para a política externa: mediante aquela, arquitetam-se representações identitárias que legitimam ou deslegitimam as diretrizes por que se pauta a segunda (Hansen, 2006, p. 6). 10 11

Mencione-se a investigação bibliográfica empreendida por Farias e Ramanzini Júnior (2010). Checar, por exemplo, Pinheiro et al. (2007).

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Aponte-se que não só a escolha em favor do pós-estruturalismo, mas também a pertinência da pergunta que almejamos responder justificam-se em virtude de nossas preferências epistemológicas. Afastamo-nos do empiricismo característico da abordagem positivista, que se tem afirmado como a corrente mainstream das RI. Entre outros pressupostos, o positivismo – ou melhor, a vertente do positivismo a que comumente têmse alinhado os internacionalistas – baseia-se: na (contestável) separação entre fato e valor; na (pretensa) objetividade do conhecimento adquirido pela observação empírica; e numa noção humeana de causalidade, em que a constatação de covariações regulares entre dois ou mais eventos propicia que sejam inferidas, por indução, leis gerais capazes de explicar e, até, prever os fenômenos sociais (Smith, 2006, p. 16-19; Kurki, 2006, p. 192). Em contrapartida, Shapiro comenta: “any ‘reality’ is mediated by a mode of representation and (...) representations are not descriptions of a world of facticity, but are ways of making facticity” (1989, p. 13-14; grifos nossos). Concordamos com as palavras do acadêmico citado: teorias – e discursos (ou representações) – moldam o mundo ao imputar significado e valor aos elementos que o compõem. Diferentes narrativas promovem diferentes interpretações para um mesmo fato; por exemplo, a abstenção do Brasil na votação de uma resolução que aperfeiçoaria a fiscalização da situação dos direitos humanos na Coreia do Norte, no Conselho em 2009, pode ser compreendida tanto como neutralidade, quanto como isenção de responsabilidade (Asano et al., 2009, p. 9). Por seu turno, diferentes teorias iluminam diferentes aspectos da realidade. Para estudar os efeitos democratizantes da competição interdiscursiva que permeia a PEB de direitos humanos da Era Lula, o pósestruturalismo nos parece bastante apropriado. Estabelecidas essas considerações, passemos agora a elucidar as premissas mais essenciais da teoria de Hansen. De início, convém registrar que o conceito de discurso não se confunde com o de ideias, pois o discurso congrega fatores materiais e ideacionais. Se independente da teia de

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inteligibilidade fornecida pela linguagem, a materialidade vê-se desprovida de presença ontológica e epistemológica, sendo, na prática, inconcebível (Hansen, 2006, p. 15 e 20-21). Ilustramos: fora de qualquer narratividade, gramática ou retórica, adotar um comportamento abstencionista num dos foros da ONU nada significa além de inércia. Discursos produzem sujeitos e objetos, problemas e orientações, Estados e suas identidades – e, assim fazendo, delineiam arenas de disputa política, em que algumas representações prevalecem sobre outras, que são marginalizadas (ibid., p. 16). A identidade estatal plasmada por um discurso de política externa é, concomitantemente, fundamento de legitimidade para a referida política (ibid., p. 19); o perfil identitário e a policy mantêm-se tão intimamente amalgamados, que é errôneo falar em causalidade. Em vez de uma epistemologia causal, Hansen postula uma epistemologia discursiva. Ademais disso, destaque-se que a identidade deve ser pensada como relacional: ela é forjada a partir de referências a algo que não é – quer dizer, algo que é marcado pela ausência dos atributos de que aquela dispõe (ibid., p. 5). Tal proposição consignará um dos parâmetros de nossa análise de discurso e, portanto, será esmiuçada na seção 1.6 desta Introdução. A legitimidade de uma política externa (e dos profissionais que a formulam) corresponde à estabilidade do link entre a representação e as diretrizes políticas (ibid., p. 7 e 26). A PEB de direitos humanos seria inconsistente se, ao lustrar sua imagem de defensor de valores morais, o Brasil frequente e abertamente acobertasse países em que vigoram regimes opressores. A coerência interna configura um dos mecanismos necessários a um sólido liame identidade-policy, e também está relacionada à existência (e ao peso) de narrativas que desafiam a estatal. Ainda, Hansen atenta para constrangimentos externos – não exatamente objetivos, mas sim fruto de discursos paralelos aos analisados (ibid., p. 26-27). A apreciação das táticas desestabilizadoras aqui enumeradas (cf. seção 2.3) será crucial para aprofundarmos nossa primeira hipótese, sobre a crítica indireta. À luz de semelhante arcabouço teórico, acreditamos que será factível

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investigar como, ao contestarem a narrativa diplomática, as narrativas da sociedade civil e do Legislativo abriram caminho para a democratização da política externa de direitos humanos do Governo Lula.

1.6. Metodologia

Acolheremos o método de análise de discurso desenvolvido por Hansen na obra supramencionada. Três são os modelos metodológicos propostos pela autora. A despeito do alerta de Torfing (2005, p. 1) – de que as ferramentas analíticas do discurso costumam ser cunhadas em contextos e para textos muito específicos, o que dificulta generalizações –, cremos que o modelo nº 2 de Hansen bem se adapta a nossos propósitos. Enquanto o modelo nº 1 foca-se na narrativa oficial e nos agentes formalmente habilitados a falar e fazer política externa, o modelo nº 2 amplia o escopo da pesquisa para agregar outras vozes – as da oposição política, da mídia, de instituições corporativas e das ONGs (Hansen, 2006, p. 54-55). Por meio desse prisma alargado, podemos examinar se e como os interlocutores não-estatais reproduzem ou combatem o discurso central (ibid., p. 66). Daí nos tornamos capazes de apurar-lhe o grau de estabilidade e indicar as transformações políticas advindas de sua desestabilização: “either through a discursive adjustment made by the present government or were there a change in the government itself” (ibid., p. 54-55; grifos nossos). A mudança que nos concerne é de ordem político-institucional e incide sobre o Executivo (MRE) e o Legislativo: a democratização da PEB via surgimento do CBDHPE. Os modelos de Hansen são tidos como intertextuais e, logo, é de bom tom aclarar a noção de intertextualidade. Trata-se da ideia de que nenhum texto existe solitariamente; pelo contrário, “any text is the absortion and transformation of another” (Kristeva, 1980, apud Hansen, 2006, p. 50). Explícita ou mais sutilmente, os textos citam-se uns aos outros – e (re)leem os insights uns dos outros, ensejando ressignificações –, numa dinâmica em que os textos novos extraem legitimidade dos prévios e, reciprocamente,

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reforçam-lhes a legitimidade (Hansen, 2006, p. 50-51). No modelo nº 2, a intertextualidade caracteriza as tensões entre o polo discursivo diplomático e os concorrentes: ao entrechocarem-se, as narrativas críticas empreendem reinterpretações da narrativa oficial e, inversamente, as respostas dos diplomatas reinterpretam as primeiras. No que tange à construção de uma identidade relacional, adotaremos, ao lado da epistemologia discursiva acima elencada, uma metodologia que trabalha com signos linguísticos organizados hierarquicamente (ibid., p. 37), de sorte que uns (“bom”, “pacífico”, “maduro”) sejam privilegiados ante seus opostos (“mau”, “violento”, “primitivo”). Decifrar a representação identitária inscrita num discurso implica apreender, neste, uma série de justaposições, mediante um duplo processo de ligação e diferenciação (ibid., p. 17). Definir o Brasil como não-seletivo na temática dos direitos humanos leva a que, por um lado, sejam discernidos caracteres correlatos, como despolitizado, neutro e favorecedor do diálogo e da cooperação (ligação); por outro lado, o conceito de não-seletivo só possui sentido se confrontado com o de seletivo em direitos humanos (diferenciação) – que remete implicitamente, e.g., à qualificação da CDH da ONU (antes da reforma de 2006) como hiperpolitizada, ou mesmo à postura dos Estados Unidos, particularmente sob George W. Bush12. De acordo com esse raciocínio, a Comissão e os EUA encarnam exemplos de Outros, aos quais as narrativas de política externa atribuem identidades antagônicas à brasileira. As dicotomias entre o Brasil e seus Outros serão traçadas conforme três dimensões: espacial (e.g., humanidade e não-humanidade, civilização e não-civilização), temporal (e.g., categorias como tradição, continuidade, mudança, etc.) e ética, eixo que para esta monografia apresentará maior importância, pois envolve uma preocupação com responsabilidade e moralidade (ibid., p. 41-44). Para encerrar a seção, reitere-se que assentaremos nosso estudo em eventos-chave, ou seja, nos momentos em que o Brasil, no âmbito da ONU, 12

Nesse sentido cf. a análise de discurso, com base em Foucault, de Hancock (2007).

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posicionou-se de forma controversa em votações sobre a situação dos direitos humanos em países específicos. “Mapping debates around key events offers a methodological technique for tracing the stability of official discourse” (ibid., p. 28). Todavia, frise-se que os discursos não passam de construtos analíticos; para desenharmos-lhes os contornos, precisaremos interpretar textos (ibid., p. 46), que listamos na seção subsequente.

1.7. Seleção de fontes

Uma vez que pretendemos levar a cabo a análise de discurso da PEB de direitos humanos, valer-nos-emos bastante de fontes primárias. Para a leitura oficial, debruçar-nos-emos sobre pronunciamentos de diplomatas na mídia e na ONU, bem assim uma ou duas entrevistas. Para as narrativas críticas, apoiar-nos-emos em artigos de jornais como Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e Correio Braziliense (versões online). Outrossim, acrescentem-se as atas de audiências e seminários realizados na CDHM da Câmara. Serão relevantes os relatórios da Conectas (2005, 2007, 2008-2009 e 2009-2010), principalmente o de 2005, o primeiro informe do PAPEDH, que suscitou a criação do CBDHPE ao questionar os posicionamentos da delegação brasileira na CDH da ONU, entre 2001 e 2004. À luz do trabalho de Pinheiro e Vedoveli (2010), fontes comumente tomadas como secundárias por outros autores serão utilizadas, por nós, como primárias, quando tecermos um histórico da PEB de direitos humanos (Goffredo Junior, 2000; Lindgren Alves, 2009; entre outras obras já citadas na seção 1.4). Para contextualizarmos a política externa sob Lula, calcarnos-emos em Amorim (2010b), Bernal-Meza (2010), Cervo (2010), e Hirst et al. (2010). Será ainda indispensável a nosso estudo como um todo o livro de Benoni Belli (2009). Por seu turno, o diálogo com a literatura sobre democracia e diplomacia será travado com Lima (2000), Hill (2003), Faria (2008), Spécie (2008), Lima (2009), Farias & Ramanzini Júnior (2010) e Lopes et al. (2010). Entre os acadêmicos da Ciência Política que refletem sobre a democratização, recorreremos a Miguel (2005), Urbinati (2006),

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Avritzer (2007) e Mendes (2007).

1.8. Capítulos

A monografia está estruturada em cinco capítulos, consistindo o primeiro nesta Introdução. Dedicaremos o segundo capítulo a minudenciar os elementos de nosso marco teórico, localizá-lo na disciplina, compará-lo com perspectivas convencionais de RI (em especial de Análise de Política Externa – APE) e esclarecer quais contribuições o pós-estruturalismo aporta à discussão sobre relações exteriores e democracia. Terminaremos com uma incursão à Ciência Política, para precisarmos noções essenciais à teoria (e à prática) democrática(s), como representatividade, accountability e prestação de contas. Dotados desse repertório conceitual, buscaremos avaliar se (e como) o CBDHPE pode ser compreendido como concretização da (e espaço para a) democratização da PEB de direitos humanos. No terceiro capítulo, montaremos uma evolução intertextual dos discursos oficiais da PEB de direitos humanos, procurando constatar que partes das narrativas pretéritas informaram a narrativa da Era Lula, em meio a mutações ou continuidade nas identidades do Brasil 1948 a 2002. O quarto capítulo será inicialmente devotado à contextualização do Governo Lula (2003-2010) e à investigação do polo discursivo estatal da política externa de direitos humanos vigente nesse período; em virtude da conveniente sobreposição de datas, aí também abordaremos a reforma da CDH da ONU e a emergência do Conselho de Direitos Humanos em 2006. Em seguida, analisaremos o polo concorrente, destacando as táticas de crítica que foram empregadas para desestabilizar a oratória diplomática. Ademais disso, apontaremos como a dinâmica interdiscursiva ensejou a democratização da PEB, por meio do surgimento e funcionamento do CBDHPE, cuja experiência ilustraremos com exemplos. Finalizaremos com a conclusão, no quinto capítulo, que conterá um resumo dos resultados encontrados, além de recomendações de temas para pesquisas futuras.

2. Teorias em “3-D”: debates, discursos e democracia 2.1. O pós-estruturalismo nas Ciências Sociais

Antes de tratarmos das perspectivas pós-estruturalistas que vieram a se desenvolver nas Relações Internacionais, faz-se necessário discernirmos as condições que originaram o pós-estruturalismo nas Ciências Sociais em geral. Afinal, como se deu com outras teorias do campo internacionalista, o pensamento pós-estruturalista nas RI inspirou-se em insights de autores de diversas áreas do conhecimento, quais sejam, a filosofia, a sociologia, a ciência política, a psicanálise e a linguística. O ingresso dos estudiosos do discurso nas fileiras da crítica pós-positivista nas Relações Internacionais consignou, portanto, tão somente um reflexo de questionamentos mais amplos e profundos – além de já advogados alhures –, sobre os limites epistemológicos do saber alcunhado de “científico”. As teorias do discurso nasceram no final dos anos 1970, integrando o bojo de respostas à problematização da corrente mainstream das Ciências Sociais. O contexto era então marcado pela efervescência revolucionária advinda da greve total de maio de 1968 na França; pela perda de credibilidade das abordagens estruturalistas que congregavam linguagem, cultura e sociedade; e pela crise do marxismo diante das novas propostas de um modelo socioeconômico neoliberal (Torfing, 2005, p. 1). E não surpreende que, de uma época assim turbulenta, emergiria uma postura intelectual que seria mais conhecida por seus ataques – pela contestação de verdades tidas como absolutas, de crenças consensualmente aceitas, das leis universais que teimavam em simplificar os fenômenos sociais, das grandes narrativas que anunciavam ter descoberto os sentidos ocultos da História. A insistência em confrontar as teses autorizadas da academia e em desnaturalizar os sensos comuns configura um dos aspectos típicos das teorias discursivas pós-estruturalistas, pertencentes a uma terceira geração

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de interessados na matéria13, consoante a classificação de Torfing (ibid., p. 8). Nessa fase, a atual, defende-se que o discurso perpassa todo e qualquer componente da vida social. Cada fato e evento, cada coisa e ser – tudo precisa estar inserido numa teia de inteligibilidade discursiva para adquirir expressividade. Conforme já se mencionou, isso não implica a negação de uma realidade material14. “The contention is merely that nothing follows from the bare existence of matter.” (ibid., p. 18) Múltiplos legados intelectuais influenciaram o pós-estruturalismo. De Foucault absorveu-se, entre outras, a ideia de que o discurso delineia as condições de possibilidade do que é plausível discutir; ele não só regula o que se pode dizer e como, mas também designa quem dispõe de voz. De Gramsci colheu-se o entendimento de que a política corresponde à luta pela hegemonia moral na sociedade civil, prevalecendo os valores que mais cativarem a audiência. De Derrida adotou-se o instrumento analítico15 da desconstrução, que capta os significados contidos num discurso discernindo as hierarquias binárias dele; uma vez percebido que o interior discursivo (Eu) apresenta uma “carência constitutiva”, para supri-la torna-se crucial invocar um referencial exterior (Outro) antagônico; a partir daí Derrida chega a uma interessante conclusão: se formular o inside depende da identificação de um outside suplementar, este é, logo, mais relevante do que aquele; eis que o elemento exterior, antes acessório e acidental, acaba por revelar-se mais essencial do que interior. E, por fim, do pós-modernismo 13

Na primeira geração das teorias do discurso, este ainda se via muito atrelado à linguística, sendo então conceituado meramente como uma unidade textual dotada de carga semântica. Na segunda geração – da Análise de Discurso Crítica –, ocorrem inovações com a incorporação da definição de discurso de Foucault (a ser explicada acima), de suas noções sobre a interação mutuamente constitutiva entre discurso e poder, e do elemento da produtividade discursiva – leia-se, o discurso como produtor de sujeitos, identidades e objetos (Torfing, 2005, p. 6-8). Saliente-se que, a cada transição geracional, o discurso imiscui-se mais e mais com os planos político e social. 14 É de suma importância que esse ponto reste bem esclarecido, porque a acusação de idealismo exacerbado ilustra uma das que recorrentemente têm sido opostas ao pós-estruturalismo por seus adversários. Certamente tal crítica funda-se em compreensões inexatas das teorias discursivas, mas ainda assim motivou reações concretas no meio acadêmico. Nas RI, suscitou que alguns membros da comunidade construtivista – como Wendt e Adler – se empenhassem em distinguir-se dos pósestruturalistas, temendo ser marginalizados (Milliken, 1999, p. 227; Hansen, 2006, p. 4). 15 Utilizamos a expressão “instrumento analítico” na falta de definição mais precisa. Alguns pósestruturalistas rejeitam chamar de métodos a desconstrução e as outras formas pós-positivistas de leitura. Torfing considera a desconstrução uma espécie de crítica interna “that turns the text against itself” (2005, p. 20), e Der Derian (1989, p. 4) trata-a pela vaga alcunha de “atividade intelectual”.

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herdou-se a desconfiança do cientificismo, o antifundacionalismo (ibid., p. 7-12), que melhor exploraremos abaixo, quando nos debruçarmos sobre os debates de que o pós-estruturalismo participa nas RI. Na década de 1980, os teóricos políticos Ernesto Laclau e Chantal Mouffe elaboraram uma síntese a partir dos argumentos precedentes. Sua obra serviria de base para muitos pós-estruturalistas que viriam depois, inclusive Lene Hansen (2006). A título de conclusão desta seção, bem como para brevemente revisarmos os alicerces do pós-estruturalismo de Hansen, apontaremos quatro dos cinco caracteres16 que Torfing (2005) elenca como fundamentais ao pensamento de Laclau e Mouffe. Primeiro, “all forms of social practice take place against a background of historically specific discourses”; um discurso consiste num sistema de significação; por seu turno, os significados derivam de uma dupla lógica de diferenciação e equivalência, que encadeia os termos de um texto (ibid., p. 14). Segundo, os discursos engajam-se em embates pela hegemonia, que não se decidem por meio de critérios pretensamente objetivos, e sim pelo jogo político; ganha a narrativa que, em detrimento de suas competidoras, conseguir convencer a audiência, provendo as mais críveis interpretações para se ler fatos passados, presentes e futuros e “[capturing] people’s hearts and minds” (ibid., p. 15). Terceiro, o processo semiósico17 e a articulação de identidades redundam na constituição de antagonismos sociais, “Eus” e “Outros” desiguais e opostos; é sempre instável a linha que separa o interior “amigável” do exterior “ameaçador”, o que suscita disputas em torno da inclusão no (e exclusão do) discurso18. E quarto, um discurso hegemônico estabilizado sofre abalos quando se depara com eventos que ele não é capaz 16

Omitiremos o quinto porque ele resulta de ideias da psicanálise lacaniana e, portanto, não nos será de grande valia, tampouco Hansen parece adotá-lo. Cf. Torfing, 2005, p. 16-17. 17 Seme = significado; semiose = confecção de significados; semiótica = o estudo da confecção de significados (Gregory, 1989, p. xviii). 18 Note-se que tal flexibilidade, tal inconstância, tal transitoriedade das teorias que conferem sentido ao social é o que justamente distancia o pós-estruturalismo das abordagens tradicionais, assentadas em estruturas rígidas – como, por exemplo, a economia e a luta interclassista para o marxismo. “Hence, when we discard the idea of an underlying essence that is given in and by itself, the social identities are no longer fixed once and for all with reference to a determining centre.” (Torfing, 2005, p. 8)

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de englobar, representar, “domesticar”; veremos que essa é uma das táticas de contestação que Hansen (2006, p. 29) atribui às narrativas críticas. E agora nos voltaremos particularmente para o pós-estruturalismo enquanto marco teórico das Relações Internacionais.

2.2. O pós-estruturalismo das RI e o terceiro/quarto debate

É um tanto quanto inapropriado falar em pós-estruturalismo das RI, dado que ele encarna uma das vertentes teóricas cujo caráter interdisciplinar fica mais evidente. Os internacionalistas pós-estruturalistas reconhecem que trabalham em cima das linhagens intelectuais supracitadas, e acadêmicos pós-estruturalistas de outras áreas têm abordado temáticas que tecnicamente integram o campo das Relações Internacionais. Por isso, na encruzilhada do pós-estruturalismo, as fronteiras artificiais que separam nossa disciplina das demais que compõem as Ciências Sociais têm-se mostrado mais tênues (Brown, 1994, p. 213). A locução “pós-estruturalismo das RI” prestar-se-á apenas a organizar o raciocínio, pois o enfoque subsequente recairá sobre teóricos internacionalistas. O clássico artigo de Yosef Lapid (1989), The third debate, fornecenos um bom ponto de partida. Nele, o autor discorre sobre as características do que toma como o terceiro debate formador das Relações Internacionais, em curso desde o início de 1980. É “terceiro” porque sucede ao primeiro – “idealismo vs. realismo”, durante os anos 1920-1930 – e ao segundo – “história vs. ciência”, nas décadas de 1950 e 1960. E, apesar de ainda existirem controvérsias, é “debate” porque contrapõe ao positivismo 19 o pós-positivismo – um emaranhado de (à época, novas) correntes filosóficas –, travando-se a nível ontológico, epistemológico e axiológico, e colocando em xeque conceitos como “racionalidade”, “objetividade”, “verdade” e “realidade” (ibid., p. 236-237). 19

Resta claro que Lapid concede ao positivismo um sentido mais largo do que rigorosamente se lhe admitiria. Para Smith (2006, p. 17), por exemplo, o positivismo é estritamente uma metodologia, por sua vez licenciada por uma epistemologia empiricista, que igualmente justifica pressupostos ontológicos. Já Lapid parece não só designar como positivismo um método, mas também uma posição epistemológica, associada a uma ontologia específica.

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Consoante Lapid, o terceiro debate possui três aspectos principais. Um: o paradigmatismo, que redireciona o foco das discussões – antes incidente sobre a corroboração ou a falsificação empírica de leis gerais – para o âmbito metateórico (ibid., p. 240 e 245). Dois: o perspectivismo, que avaliza o combate contra o dogmatismo, ou seja, a imunização de certas premissas teóricas a críticas, o que engessa a produção de conhecimento (ibid., p. 241-242). Na terminologia do pós-estruturalismo, busca-se compreender como determinadas teorias vieram a constituir “regimes de verdade”; elas passam a ser tratadas como textos, e o debate metateórico, como intertexto. “[I]ntertextual strategy attempts to understand the placement and displacement of theories, how one theory comes to stand above and silence other theories, but also how theory as a knowledge practice has been historically and often arbitrarily separated from ‘events’, that is, the materially inspired practices comprising the international society.” (Der Derian, 1989, p. 6)

E eis o último atributo do third debate de Lapid: o relativismo, que celebra o pluralismo metodológico e o potencial criativo oriundo do dissenso acadêmico, ao reprovar o status privilegiado de que desfrutam parâmetros, normas e princípios tidos como “científicos” (1989, p. 243244). Aqui, é oportuno desviarmo-nos um pouco para lidar com o subdebate acerca da postura relativista adotada pelas abordagens pós-positivistas. Lapid (1989) dá-nos a impressão de que se preocupa somente com o que se pode nomear relativismo metodológico e, ademais, insinua estendêlo a todos os que confrontam o positivismo, sem distinções. Contudo, tal generalização não é adequada. De fato, autores há que, em trechos pontuais de suas respectivas trajetórias intelectuais, execram o “methodologism”, vide Der Derian (1989, p. 7). De outro lado, argumenta-se que, na ausência absoluta de critérios metodológicos, torna-se difícil, se não impossível, avaliar a qualidade do material desenvolvido (Rosenau, 1990, p. 87), só se logrando medir o quanto se elaborou – e “mere theoretical proliferation becomes pratically indistinguishable from genuine theoretical growth”

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(Lapid, 1989, p. 249). Acrescente-se o alerta de Chris Brown: como o leitor escolherá se acata ou não a interpretação de um pós-estruturalista se este não operar dentro de sequer um standard? “[O]r we are obliged simply to take his reading or leave it?” (1994, p. 226). Por considerarem pertinentes essas observações, pós-positivistas moderados advogam que o relativismo metodológico não implica que todos os textos ocupem o mesmo patamar, nem que sua leitura seja arbitrária (Rosenau, 1990, p. 87). Milliken (1999, p. 235) sustenta que “[u]sing a method for ‘reading’ or ‘seeing’ can make research better organized and, therefore, easier to carry through”. Lene Hansen, cujo pós-estruturalismo serve-nos de marco teórico, também se dedica a assuntos metodológicos, como já demonstramos. “Without theory there is nothing but description, and without methodology there is no transformation of theory into analysis.” (Hansen, 2006, p. 1) Para além do relativismo metodológico encontra-se o relativismo epistemológico-axiológico, o antifundacionalismo, que suspeita de qualquer tentativa de se estabelecer alicerces definitivos para o conhecimento, bem assim de toda prescrição moral ou projeto político que se arroguem caráter universal, a-histórico ou transcendental (Rosenau, 1990, p. 86). O embate “antifundacionalismo vs. fundacionalismo” configura uma das autoimagens que Steve Smith (1995, p. 28-29) traça para as RI; nela, restam patentes as diferenças entre a Teoria Crítica e o pós-estruturalismo20. Aquela se vincula ao polo fundacionalista, pois elege uma base mínima para se entrever quais as teorias “verdadeiras”: são as que avançam uma concepção particular de emancipação (comumente na linha de Habermas), ao contrário das teorias que anseiam puramente por resolver problemas (problem-solving). Já o pósestruturalismo situa-se no polo antifundacionalista21, assim como o pós-

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Para maiores detalhes sobre essa disputa, cf. Brown, 1994. Ver ainda o debate entre Hoffman e Rengger, cujas referências podem ser colhidas em Smith, 1995, p. 27. 21 Não desassiste razão a quem aponta que tamanho relativismo pode desembocar em niilismo e irresponsabilidade (Torfing, 2005, p. 18; Rosenau, 1990, p. 93). No entanto, essas críticas devem acolher a ressalva de que, igualmente no aspecto ora examinado, não vige homogeneidade entre os pós-estruturalistas: uns são relativistas em grau desmedido, outros, em grau comedido. Embora o pós-estruturalismo entenda que inexistem valores inquestionáveis, existem valores não obstante, propalados pelo discurso dominante num tempo e sociedade específicos (Torfing, 2005, p. 19).

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modernismo. Quanto à distinção entre esta corrente e a primeira, a literatura se divide: para uns, pós-estruturalismo e pós-modernismo são categorias intercambiáveis; para outros, não, ainda que apresentem pontos de contato. A discussão é demasiado profunda e não temos interesse em abordá-la aqui. Apenas para nos posicionarmos, seguiremos Hansen, que estrema o pósestruturalismo do pós-modernismo porque este diz respeito a uma dada ordem histórica, enquanto aquele se concentra no papel da linguagem22. Não é desnecessário envidarmos esforços nessas diferenciações, por mais imprecisas que elas se mostrem. Por um lado, é notória a tradição pósestruturalista de rejeição à imputação de “rótulos” e delimitação de “fronteiras”, sob a justificativa de que aqueles e estas cerceiam a liberdade da pesquisa e restringem a complexidade de paradigmas muito mais ricos do que suas denominações sugerem (Rosenau, 1990, p. 85). Por outro, tais práticas permitem melhor esclarecer o leitor – inclusive o não familiarizado com a literatura especializada – sobre as propostas do pós-estruturalismo e a validade delas (Hansen, 2006, p. 4). Lene Hansen reconhece a importante finalidade didático-expositiva que a categorização desempenha e, ademais disso, a autora não parece se incomodar em reivindicar para si própria uma posição específica dentro das Relações Internacionais23. Antes de fecharmos esta seção, cabe comentarmos que o eixo de disputa divulgado por Lapid em The third debate não foi consensualmente aceito entre os acadêmicos24. 22

Para mais informações, cf. a bibliografia de Rosenau, 1990, 84-85 e 105. “[W]e would, however, if pressured, define ourselves as poststructuralists in the sense that our primary and most abstract concern is with the production of structures of meaning.” (Hansen, 2003, p. 4) 24 Ole Waever (2006) não põe como “terceiro” o debate ora examinado, visto que, para ele, o lugar já se encontra preenchido pelo debate interparadigmático (realismo vs. liberalismo vs. marxismo), que, dada sua alegada incomensurabilidade, costuma ser qualificado como um não-debate. A rigor, o debate de que nos fala Lapid deveria chamar-se quarto debate, porque um de seus contendores, o racionalismo – a síntese entre o neorrealismo e o neoliberalismo institucional –, emergiu na esteira do infrutífero ocaso do interparadigmático; seu adversário consistiria no reflectivismo, conforme a consagrada nomenclatura cunhada por Keohane (ibid., p. 163-164). Segundo Waever, trabalhar – como faz Lapid – com o par “positivismo vs. pós-positivismo” realça o teor metodológico do terceiro/quarto debate; todavia, este se singulariza principalmente por seu somatório de discussões filosóficas, e em seu artigo Lapid não lhes defere a atenção que merecem (ibid., p. 156). Conceder preferência à dualidade “racionalismo vs. reflectivismo” pode corrigir esse foco mal localizado. Eis a crítica de Waever ao third debate lapidiano. 23

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Acima de tudo o que já se expôs, destacamos duas contribuições do pós-estruturalismo: ele instila nos pesquisadores – ao menos em tese – uma ética de tolerância e humildade, e abre espaço para que uma miríade de questões e vozes outrora negligenciadas adentre nas RI (Lapid, 1989, p. 246 e 260). A perspectiva pós-estruturalista defende que não existem teorias absolutas. Cada teoria não passa de um prisma para se enxergar – ou uma interpretação para se ler – o mundo; uma teoria que clama explicar como as coisas são ou funcionam soa-nos terrivelmente prepotente e autoritária, na medida em que, a pretexto de solucionar controvérsias, pode acabar por extinguir debates. A meta do pós-estruturalismo não reside em deslegitimar todo conhecimento produzido, mas sim em discernir os limites de sua aplicabilidade, condenando-se quaisquer pretensões totalitárias. Não obstante, é evidente que o preconceito e o menosprezo ainda vigoram em meio à comunidade racionalista e mesmo entre construtivistas moderados25 (Milliken, 1999, p. 227), que entreveem os adeptos do pósestruturalismo como intelectuais que “se contentam em interpretar textos” (Keohane, apud Waever, 2006, p. 165; trad. livre). Para fazer frente a tal desafio, alguns pós-estruturalistas têm levado a sério o imperativo de desenvolver estudos mais concretos e delinear programas de pesquisa que refujam ao rotineiro embate metateórico (Torfing, 2005, p. 25). Nas RI, uma das rotas mais promissoras busca utilizar o (anti)método da análise de discurso na subárea de Análise de Política Externa (APE).

2.3. O pós-estruturalismo em APE: a discursividade do Estado e sua(s) política(s) externa(s)

As leituras pós-estruturalistas de APE têm um objetivo em comum: procuram entender como um discurso propicia a formulação de práticas específicas de política exterior, enquanto desautoriza a adoção de cursos de ação alternativos (Milliken, 1999, p. 240). Embora os critérios empregados 25

Isso não significa que uma atitude discriminatória não se manifeste na direção inversa, provindo dos pós-estruturalistas rumo aos alvos de suas críticas. Os constantes ataques tendem a ignorar que nas teorias tradicionais existem muitos pontos positivos, que merecem, sim, reconhecimento.

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na análise dos textos variem de autor para autor 26, a dinâmica entre o discurso e a policy é similar em todos, pois eles tendem a citar-se uns aos outros e a beber das mesmas fontes. Apresentam ainda outros caracteres coincidentes, se comparados com abordagens mais tradicionais de APE. A seguir elencaremos algumas dessas comparações, a fim de identificarmos que inovações o pós-estruturalismo aporta aos estudos de política externa. Em primeiro lugar, parte da literatura cognitivista clássica27 costuma firmar o referencial no decisor individual, em seu conjunto de crenças particular, em sua imagem do cenário internacional, em suas percepções e misperceptions (Larsen, 1997, p. 4-5). O approach individualista decerto não é desprovido de méritos; entretanto, nem sempre o ponto de vista de um só indivíduo é suficiente para compreendermos a preferência por uma dada política. Aliás, o ponto de vista individual apenas em raras circunstâncias manifesta-se em estado puro, isto é, como estritamente individual, isento de influências sociais ou culturais; consoante Larsen, assim se dá somente em situações de crise, que requerem raciocínio rápido e reações imediatas (1997, p. 5). Óticas provenientes da sociologia ofereceram meios para se superar essa lacuna. Idem a ótica pós-estruturalista, ao possibilitar, em APE, a incorporação dos discursos, agregados de sentidos e valores que permeiam todo um grupo, um povo ou uma geração. Tais estruturas de significação afastam-se do individualismo e, de outra parte, não incorrem no vício das macroestruturas típicas de teorias (semi)estruturalistas. Em geral, as forças motrizes em que estas se assentam são deterministas e rígidas, muito resistentes a mudanças e à contestação – como a economia no marxismo, o sistema internacional (e a correspondente 26

Campbell (1998), por exemplo, apoia-se numa gramática que orbita em torno do conceito de “perigo”, ensejando a criação de Outros – a saber, ameaças e inimigos justificadores do desejo do Estado por segurança. Para examinar a política externa dos países nórdicos, Waever (2003), por seu turno, usa um modelo de três camadas discursivas, organizadas de acordo com uma escala decrescente de abstração entre suas respectivas noções-chave (“Estado/nação”, “Europa” e “União Europeia”). E Hansen (2006), já o dissemos, baseia-se no duplo procedimento de ligaçãodiferenciação a fim de captar, nos textos, identidades relacionais, distribuindo os elementos destas nas dimensões espacial, temporal e ética. 27 Larsen adjetiva de clássicos de APE autores como Snyder, Sprout e Sprout, Rosenau, Jervis, entre outros.

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distribuição de poder) em Waltz (2006), e até um repertório de identidades estável em Wendt (1992), apesar de ele não conferir precedência ontológica nem à estrutura nem aos agentes. Em contraposição a essas figuras, o discurso no pós-estruturalismo é mais maleável, uma vez que suas fronteiras são disputáveis. Ressaltamos aqui que o interior discursivo jamais consegue fechar-se em si mesmo; ele depende do exterior, de um Outro que não é inteiramente domesticável (Torfing, 2005, p. 16). Nem uma narrativa hegemônica, por mais que logre fixar significados e valores mais sólidos e amplamente difundidos, torna-se inabalável a críticas perspicazes. “It is the overflowing and incomplete nature of discourses that opens up spaces for change, discontinuity, and variation.” (Doty, 1996, apud Milliken, 1999, p. 230) Para Hansen (2006, p. 26), atestar a força do modelo discursivo dominante – avaliando-se quão estável é a relação entre a identidade do Estado e a política externa que ele persegue – consiste numa das funções da análise de discurso. A segunda comparação digna de nota reside no que Larsen chama de “tratamento das crenças” (1997, p. 7). Nas abordagens clássicas, elas recebem olhar positivista: são encaradas como distintas de uma “realidade” objetiva, funcionando como variáveis intervenientes entre esta e as ações dos operadores da política exterior (ibid., p. 7 e 9). Na abordagem pósestruturalista, as crenças inscritas num discurso medeiam as interpretações que fazemos da “realidade”, e constituem-na, em última instância (Shapiro, 1989, p. 13). As teorias tradicionais fundam-se numa suposta separação entre plano material e ideacional; o pós-estruturalismo abole a divisão, pois – lembramos – julga inconcebível a matéria não imersa em discursividade. Corolário dessa afirmação é que não se pode pensar numa identidade estatal pré-social (ou pré-discursiva) intrínseca, tal qual o substrato material da agência de que nos fala Wendt (Hansen, 2006, p. 15). Daí também Hansen refutar uma epistemologia causal no que tange à interação discurso-policy. Uma narrativa não “causa” a política externa (checar ressalva abaixo), como se aquela fosse uma variável independente e

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esta, a dependente – e por duas razões. Primeiro, entre o discurso e a policy não há univocidade; um determinado modelo discursivo não legitima só uma política externa, mas várias: uma mesma narrativa enseja a defesa de múltiplas policies. Segundo, um discurso não antecede temporal, lógica ou ontologicamente a política exterior – o que seria necessário para “causá-la” –, visto que a discursividade é onipresente (ibid., p. 22-23). Para o pósestruturalismo, uma policy não é ato isolado, porém sim uma cadeia de práticas político-discursivas reiteradas. O discurso e a identidade que ele plasma para o Estado são simultâneos à política externa, que, aliás, somente foi (está sendo) adotada porque aqueles a justificaram (justificam). A representação identitária é produto das (e fonte de legitimidade para as) relações exteriores (ibid., p. 19). Abrindo um parêntese, ressalvamos que essa recusa categórica de Hansen a uma epistemologia causal apenas pode ser compreendida se nos centralizarmos no paradigma da causalidade de David Hume, que é calcado na observação empírica de regularidades. Milja Kurki (2006, p. 191-194) desvela que, ao longo de sua história, o conceito de causa foi-se estreitando, a ponto de, nas RI, a concepção humeana ser acriticamente tomada como a única possível, encontrando guarida junto aos racionalistas e originando mais uma fronte de ataque para os reflectivistas. Contudo, essa crítica perde fôlego ao alargarmos a causalidade para abranger, além do Humeanismo mecanicista e determinista, os “sensos comuns” da noção de causa (ibid., p. 200). Ilustramos: no pós-estruturalismo, a rigor um discurso constitui ou (re)produz uma identidade e cria condições para uma policy, mas, se nos despojarmos de semelhante preciosismo terminológico, admite-se falar que um discurso causa28 uma identidade ou uma policy, porquanto, para o senso comum, causar equivale a produzir e condicionar (ibid., p. 199). À luz de tal espírito, nossa hipótese de que a dinâmica interdiscursiva propicia e assegura a democratização da PEB de direitos humanos (cf. seção 1.2) 28

Na classificação de Kurki com base em Aristóteles, os discursos são causas formais: “they define and structure social relations, that is, they relate agents to each other, their social roles and the meanings of their practices” (2006, p. 207).

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poderia ser reescrita como: a dinâmica interdiscursiva causa (latu sensu) a democratização. Fechamos o parêntese. Por fim, ao examinar autores como Goldstein e Keohane, Larsen (1997, p. 9-10) percebe um último aspecto que diferencia os clássicos de APE dos pós-estruturalistas: a linguagem é considerada transparente, um meio de comunicação, uma ferramenta confiável para se obter o retrato da “realidade” empírica. De acordo com esse entendimento, os indivíduos instrumentalizam a linguagem em prol de seus anseios, e a linguagem reflete com fidelidade a vontade deles. Já o pós-estruturalismo enxerga a linguagem como opaca: sua gramática, retórica e narratividade moldam – e não apenas descrevem – os fenômenos sociais; um discurso, fruto da linguagem, imbui-os de sentido e valor, de inteligibilidade. Subverte-se assim qualquer controle que os sujeitos clamem deter sobre a linguagem (Shapiro, 1989, p. 14-15), pois os conceitos que evocam têm suas próprias histórias – genealogias, para Foucault –, que precedem os falantes. As pessoas tão somente reproduzem os significados prevalecentes num dado momento; nem sempre são capazes de curvá-los a seu bel prazer. Ademais, os pós-estruturalistas argumentam ser inexato atribuir a origem de um texto a um único autor; afinal, este escreveu – conscientemente ou não – em cima de outros textos e autores, prévios (Rosenau, 1990, p. 88). Mais importante: quem profere um discurso nunca consegue prever todas suas consequências. Por exemplo, hierarquias entre um Eu “bom” e um Outro “mau”, engendradas discursivamente, por vezes não integram as intenções dos agentes. Logo, embora se proclame neutro em questões de direitos humanos, o Brasil não se reputa abertamente superior à CDH ou ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, ambos politizados – nem talvez queiram os diplomatas dizer isso em seus pronunciamentos. “[T]o see the textuality of discourse is, in part, to recognize that a given text contains, or catalyses, a surfeit of meanings beyond what its author wanted do say.” (Gregory, 1989, p. xviii) E é com isso que lida a análise de discurso. Ao contrário de uma perspectiva mais psicologista, ela não pesquisa os motivos

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dos atores, “their hidden intentions or secret plans” (Waever, 2003, p. 26). Procuram-se, sim, os significados sutis: nem ostensivos, captados a partir de uma leitura superficial; nem ocultos, já que os termos e relações linguísticas que se analisam são os que estão expressos nos textos. Por conseguinte, a interpretação jamais é arbitrária, devendo ater-se, de um lado, ao conteúdo textual e, de outro, aos critérios metodológicos escolhidos – como a dupla operação de ligação-diferenciação e os planos espacial, temporal e ético, que Hansen prescreve (2006, p. 17-18 e 41-44). Negar a relevância da intencionalidade e a autoridade do autor não implica, como sugere Rosenau (1990, p. 96), decretar o desaparecimento da agência. Ao menos assim não é para Hansen (2006). Todo discurso precisa de quem o propague. Em especial as narrativas opositoras, que necessitam ter sua validade defendida ante o modelo discursivo dominante. O embate decide-se politicamente. “[I]dentities need to be articulated in language to have political and analytical presence and they are thus dependent on political agency for their (...) significance.” (ibid., p. 21) As táticas de crítica também requerem agentes que as empreguem. Hansen (2006) divide-as em internas e externas. Aquelas atacam o próprio teor do discurso dominante, denunciando-lhe as incongruências. Podem incidir (ibid., p. 26 e 28): a) sobre o perfil identitário propalado, opondo-lhe identidades alternativas (Brasil menos politizado vs. Brasil irresponsável em direitos humanos29); b) sobre a policy avançada (abster-se ou votar contra vs. votar a favor em resoluções condenatórias; manutenção do (quase) monopólio da PEB pelo Itamaraty vs. democratização); e c) sobre o link entre a identidade e a policy – por exemplo, enfatizando a ambiguidade de o Brasil qualificar-se protetor dos direitos humanos e, ao mesmo tempo, contribuir para que as violações não recebam a devida atenção da ONU. A contestação externa, por sua vez, recorre a elementos que a narrativa dominante aparenta desconsiderar, mas que, se inseridos num discurso concorrente, põem em evidência os limites daquela; ainda, as 29

Cf. Capítulo 3 (especialmente 3.4) e Capítulo 4.

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críticas podem apontar fatos “novos” (ibid., p. 26-29) – por exemplo, esmiuçando as atrocidades perpetradas contra os cidadãos de um Estado cuja condenação foi impedida com o apoio do Brasil, dados que a oratória diplomática costuma omitir 30-31. Conclui-se, portanto, que a agência não só importa, mas também se revela crucial. Policies – como as propostas democratizantes – demandam agentes advogando-as e contestando a legitimidade do discurso adversário – no caso, um discurso que sustenta a habilitação do MRE para conduzir, (quase) solitariamente, a PEB de direitos humanos. A democratização não resulta simplesmente de “forças estruturais”, um ponto que deveria restar manifestamente patente em alguns trabalhos (estudados abaixo), sem dar azo a dúvidas. O sucesso da democratização depende da competência das vozes críticas e da eficácia de seus atos de fala. Em última instância, depende de agência.

2.4. O pós-estruturalismo e a democratização da PEB: o papel da agência

A discussão sobre democracia e política externa não é nova e, na 30

Ressalte-se ainda que Hansen (ibid., p. 29) estipula três reações do polo dominante às investidas do polo opositor: a) reformar o liame identidade-policy ou um de seus componentes; b) assimilar os “novos” elementos evocados pelas vozes concorrentes, reinterpretando-os em seu benefício; ou c) guardar silêncio, ignorando as críticas (ibid., p. 29). A monografia focar-se-á nestas, não nas respostas a elas. 31 À luz do exposto, talvez se pudesse pensar que o cerne da proposta pós-estruturalista para APE não passa de mera avaliação de posições sobre as relações exteriores. Tal argumento dispõe, sim, de fundamento, em especial quando oposto às seguintes palavras de Hansen: “the basic discourses of a debate structure the political and substancial positions and divisions, whereas intertextual models [no caso desta monografia, o modelo nº 2, aludido na seção 1.6] identify the locations of different discourses in relations to official discourse and other sites of opinion and debate” (2006, p. 58; grifos no original). Contudo, deve-se lembrar que essa “posição”, para o pós-estruturalismo, não se resume a um enunciado que simplesmente reflete ou racionaliza a policy implementada. É mais do que isso: por calcar-se num discurso, ela estatui como o Estado examinado define-se pela alteridade, pela diferenciação de seu(s) Outro(s); constituem-se assim identidades e, a partir delas, delimitam-se os cursos de ação cogitáveis, excluindo-se os que não se adéquam às representações prevalecentes. Por conseguinte, a posição tem natureza constitutiva (e não apenas descritiva), pois consiste em condição necessária da política externa. É verdade que semelhantes sutilezas ficam pouco visíveis na análise discursiva, que aparentemente acaba por confundir-se com um esforço em que se busca contrastar o posicionamento do governo com os posicionamentos de seus críticos – e só. Torfing (2005, p. 17) aponta que, nesse quesito, o pós-estruturalismo foi de fato acusado de aproximar-se de uma abordagem estruturalista, já que o sujeito (aqui, o Estado) seria qualificado estritamente pelos lugares que ocupa em múltiplos debates (humanitário, ambiental, econômico, etc.); o problema teria sido superado com a incorporação de teorias psicanalíticas.

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literatura clássica a respeito, tampouco se verifica um consenso robusto em defesa da submissão ao controle democrático das instâncias estatais que tratam das relações exteriores. Lima (2000, p. 296-284) investiga o polo cético32 da contenda. Nele, figuram argumentos alicerçados numa suposta especificidade da política externa, que – por lidar com “high politics” e perseguir o “interesse nacional”, tarefas que só “verdadeiros estadistas” lograriam administrar com êxito – deveria resguardar-se do escrutínio do povo, tido como irracional; bem assim alegações acerca das deficiências institucionais da democracia, acusada de fragilizar a fidelidade do Estado aos compromissos assumidos com seus pares33. Essas incompatibilidades entre a política exterior e a democracia não são incontornáveis, conforme esclarece Lima (ibid., p. 283). Além disso, diante da maior porosidade das fronteiras e da artificialidade da separação ontológica entre os âmbitos doméstico e internacional, a autora entende que igualmente descabe apartar a política externa do rol das políticas públicas, não mais se pressupondo processos decisórios distintos para uma e para as outras (ibid., p. 277). Destarte, revela-se que as ideias dos céticos, em lugar de configurarem explicações (ser), detêm a natureza de prescrição (dever-ser). No polo oposto situam-se os otimistas com suas contrapropostas. Eis que o confronto de projetos traduz-se em múltiplas dicotomias: eficiência vs. credibilidade; autoridade vs. representatividade; “security state” vs. accountability; funcionalismo público autônomo vs. participação cidadã; insulamento burocrático vs. politização e democratização (ibid., p. 284; Hill, 2003, p. 252). A pergunta de Hill expressa bem tais tensões: “if democracy and popular sovereignty are to be the hallmarks of modern statehood, is it acceptable for foreign and defence policies to be delegated almost wholly to a small elite, on the grounds that dealings with other states require secrecy, continuity, experience and personal contacts?” (2003, p. 42). 32

Entre os céticos incluem-se realistas tanto das RI quanto da Ciência Política, como Raymond Aron, Morgenthau, George Kennan e Schumpeter. 33 Vêm à baila problemas como: a prevalência de interesses facciosos e imediatistas (disfarçados de gerais) nos assentos do poder, como resultado da competição partidária; a incapacidade dos governantes eleitos de pensar para além das eleições seguintes; os entraves que os mecanismos de “checks and balances” aportam às negociações internacionais (Lima, 2000, p. 277-281).

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Consoante a literatura sobre o tema, não faltam indícios de que a democratização das relações exteriores já está em curso ao redor do mundo e tende a aprofundar-se. Hill (ibid., p. 42-43) entrevê, por exemplo, um maior interesse da população em assuntos da política interestatal34 e registra que, hoje, os operadores dos negócios externos não mais estão imunes a críticas, outrora encaradas como perigosas à “segurança nacional”. Debruçando-se particularmente sobre o caso brasileiro, determinados acadêmicos elencam um repertório de fenômenos e dinâmicas que têm sujeitado a política exterior do Brasil e o MRE a processos politizante e democratizante. Recorrentes são as menções à redemocratização do país; à globalização e consequente maior visibilidade das relações internacionais; ao adensamento da agenda da PEB; à proliferação de atores; e aos efeitos redistributivos decorrentes da liberalização econômica e da multiplicação dos laços comerciais (Lima, 2000, p. 288-296; Pinheiro, 2009; Lima, 2009, p. 49 e 53-54; Lopes et al., 2010, p. 7-8; Farias & Ramanzini Júnior, 2010). A lista não nos diz muito, pois as pressões, movimentos e fluxos dela constantes, em essência, não passam de aspectos habitualmente evocados para se caracterizar a contemporaneidade – ou ao menos o imediato pósguerra fria. Tais macrotendências não avançam nem recuam, porém sim puramente “acontecem”, operando quase como os mecanismos típicos das teorias estruturalistas: não provocados e em contínuo funcionamento. Em suma, a globalização, a normalização democrática do Brasil, a polifonia da arena global, etc. – o conjunto de todos esses fatores compõe um framework estável, isto é, que apenas muito remotamente se desfaria. Em contraste, os processos politizante e democratizante são instáveis e complexos, vulneráveis a revezes. Logo, os fenômenos e dinâmicas acima arrolados, por si sós, não se mostram suficientes para compreendermos a politização ou a democratização da política externa. Por um lado, uma 34

Mais adiante em seu livro, Hill (2003, p. 282) explica que, apesar de em número mais elevado do que antes, são bem poucas as pessoas informadas em política externa, e menos ainda as que conseguem participar de sua elaboração.

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leitura cuidadosa dos autores citados indica que nenhum deles incorre na falácia por nós descrita: cada um a seu modo incorpora em seus respectivos raciocínios um grau de agência35. Contudo, cremos que, mais do que não ser negligenciada, ela deve desfrutar de primazia 36 nos estudos que versam sobre democracia e diplomacia brasileira. Pois, assim como as proposições contrárias à democratização, dos céticos, as favoráveis são prescritivas. E uma prescrição (tal qual uma policy), para efetivar-se, exige ser promovida. É por isso que também não se deve considerar “irreversível” – para usarmos as palavras de Faria (2008, p. 89) – o processo politizante, decerto não em todas as áreas da PEB37. Para nós, politizar significa resgatar do decisionismo burocrático os temas da política exterior e fazê-los frequentar o debate público; consiste em polemizar. Ora, Faria atenta para “o caráter normalmente não conflitivo e largamente adaptativo da atuação diplomática do país” (2008, p. 81); ou seja, o Itamaraty empenha-se em, via discurso, por exemplo, “desdramatizar”38 as polêmicas que pairam sobre os negócios externos do Brasil e, logo, frear a politização destes 39, preservando controle sobre eles. Valendo-nos do pós-estruturalismo de Hansen (2006) e das hipóteses descritas no Capítulo 1, acreditamos ser admissível associar ao 35

Lopes et al. (2010) fazem alusões a “demandas” por democratização. Lima (2000) propõe que os setores ameaçados pela, ou interessados na, distribuição de ônus e ganhos oriundos da abertura da economia brasileira, pleiteariam junto ao MRE participação nas negociações internacionais. E Lima (2009) aborda justamente como atores não-governamentais fizeram-se ouvir no ciclo de conferências da ONU dos anos 1990, e reconhece que “a abertura institucional do Itamaraty não se deu de forma automática” (ibid., p. 54). Em cada um desses exemplos, constata-se agência. 36 Isso não implica que devemos abandonar, tampouco menosprezar, as macrotendências. Fosse outro o framework – como, por exemplo, a Europa do século XIX ou o Brasil durante a ditadura –, certamente os discursos politizantes e democratizantes não reverbariam tanto quanto no cenário brasileiro contemporâneo. 37 Tal é o alerta de Milani (2011, p. 9), com base em Oliveira e Pfeifer (2006): “generalizações são precipitadas e (...), para cada temática da agenda externa, é preciso discernir, por exemplo, o grau de institucionalização e a capacidade propositiva de atores não-governamentais, a receptividade da burocracia estatal às demandas da sociedade, a capacidade de coordenar interesses...”. 38 Emprestamos o termo do embaixador Gelson Fonseca Jr., que assim escreveu sobre o estilo de nossa diplomacia: “[u]m dos seus traços mais salientes é a capacidade de desdramatizar a agenda da política externa, ou seja, de reduzir conflitos, crises e dificuldades ao leito diplomático, evitando que sejam explorados ou magnificados por interesses conjunturais” (2004, p. 356; grifos nossos). 39 É sintomática de tal “despolemização”, por exemplo, a seleção de palavras do diplomata Sérgio Augusto Sobrinho (2009, p. 102) para descrever a interação entre o MRE e as ONGs de direitos humanos. Qualifica-a como “intensa” e “construtiva” – o que, com efeito, é. O problema está nos silêncios: omite-se que, por vezes, os juízos dos atores não-estatais são reprovadores. Negam-se, assim, os conflitos, seja essa a intenção ou não.

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processo politizante a crítica indireta, na medida em que ela visa a problematizar a narrativa oficial da PEB de direitos humanos, expondo-lhe as limitações e deficiências. Concomitantemente, a crítica direta advoga policies democratizantes, repudiando a blindagem institucional do MRE em questões internacionais concernentes a direitos humanos. Politização e democratização caminham lado a lado, reforçando-se mutuamente, todavia nenhuma delas ocorre sem agência. De toda sorte, muitos concordam que os tempos mudaram. Spécie (2008, p. 12) comenta que a metáfora do insulamento burocrático já não corresponde ao estado de coisas contemporâneo. Aponta-se que as antigas virtudes que antes conferiam uma legitimidade eminentemente técnica40 ao Itamaraty para solitariamente formular e implementar a política exterior, não mais satisfazem: “mechanisms of political control external to the diplomatic agency are essential for reconciling (...) the authority and representation resources necessary for the credibility of the foreign policy” (Lima, 1999, apud Pinheiro et al., 2007, p. 5-6). Lopes et al. (2010, p. 2527) exemplificam as reformas e inovações levadas a cabo por iniciativa do próprio MRE, a pretexto de adequar-se às expectativas por maior abertura e interação com os cidadãos. O complemento que se segue à expressão “a pretexto de” denota que a literatura tem sido bastante cautelosa ao tratar da democratização da PEB, tendo-se precavido contra conclusões demasiado otimistas e categóricas acerca de um processo cuja direção e resultados ainda não são facilmente divisáveis. Nesse sentido soa muito bem colocado o alerta de Faria (2008, p. 85), de que os “indicadores de mudança” podem ser interpretados como 40

Como sustentáculos dessa legitimidade, comumente estão incluídos: “a significativa e precoce profissionalização da corporação diplomática do país, associada ao prestígio de que desfruta o Itamaraty nos âmbitos doméstico e internacional” (Faria, 2008, p. 81); uma alardeada – e reiteradamente transmitida via ressocialização – “tradição” que remonta aos tempos do Barão do Rio Branco, reticente à “horizontalização das estruturas decisórias” do MRE (Moura, 2007, apud Lopes et al., 2010, p. 19); o argumento de que é necessária autonomia para o discernimento e eficiente execução do “interesse nacional”, bem como o de que a coerência da PEB revela-se importante à imagem do Estado brasileiro perante seus pares (Spécie, 2008, p. 1); e, como respaldo legal-normativo, a vasta competência e liberdade que a Constituição brasileira de 1988 reserva ao Executivo em matéria de política externa (Faria, 2008, p. 81).

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“resposta adaptativa” do Itamaraty às demandas da sociedade. Daí, menos caberia falar em transição de um modelo de política exterior top down para um bottom up, do que numa reafirmação da centralidade da instituição em nossas relações exteriores; segundo este último viés, o MRE conseguiria pautar o ritmo da inclusão de novos atores na condução da PEB e, ademais, acrescentaria a sua legitimidade técnica alguma legitimidade política (ibid., p. 85; Pinheiro, 2003; Lima, 2009, p. 54). A fim de ilustrarmos essa ambivalência de interpretação que tem perpassado o debate em tela, não seria despropositado fazermos uma breve digressão para analisar um campo de pesquisa que mais interessa ao Direito e à Administração, mas que a tais searas não se restringe: a pesquisa sobre a “descentralização horizontal” dos negócios exteriores do Brasil no âmbito do Executivo. A Constituição brasileira de 1988 (art. 84, VII e VIII) atribui larga competência ao Poder Executivo para lidar com a PEB, porém não dispõe sobre qualquer exclusividade específica do Itamaraty no assunto. Assim, França e Sanchez Badin (2010, p. 10 e 22) constatam que 56,4% dos órgãos ligados à Presidência da República e a outros ministérios além do MRE gozam de alguma competência internacional, o que demonstraria uma horizontalização crescente na política externa, na contramão do insulamento burocrático. Silva et al. (2010) discordam, ressaltando que, por meio da departamentalização de sua organização interna e da lotação de diplomatas nessas outras agências especializadas, o Itamaraty tem obtido sucesso em projetar sua influência e manter as rédeas do processo democratizante.

2.5. Democratização: parâmetros e conceitos

A prudência igualmente deve nortear a apreciação da democratização da PEB de direitos humanos, ideia-chave de nossas pergunta de partida e hipótese. Por um lado, se encaramos como instrumentos democratizantes as narrativas críticas, pois combatem o discurso oficial e em tese deslegitimálo-iam, é de se notar que este essencialmente não sofreu modificações em seu conteúdo ao longo de toda Era Lula, a despeito da oposição que

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enfrentou. E se a postura do Brasil em discussões de direitos humanos na ONU permaneceu quase inabalada pelas controvérsias que a sociedade civil levantou, talvez não seja possível afirmar que a blindagem institucional do MRE reduziu-se. Destarte, dado que o polo discursivo diplomático resistiu às investidas concorrentes, teria o Itamaraty, ao conservar uma distância segura das polêmicas que rodearam a PEB de direitos humanos, adquirido legitimidade política, sem comprometer seu domínio sobre a temática, isto é, sem se responsabilizar 41 por suas decisões? O quadro aparenta agravar-se quando vislumbramos significativa lacuna na composição do CBDHPE: a chancelaria não o integra (Câmara dos Deputados, 2011). Portanto, não se refuta que o Comitê pode ter emprestado ao MRE um lustro democrático, à custa de uma abertura insatisfatória da instituição. Mas não é só. Portar-nos-íamos injustamente se ignorássemos que, para além de ter ou não emprestado credibilidade ao Itamaraty, o CBDHPE aportou avanços à democratização da PEB de direitos humanos. De início, é crucial sublinharmos que o Comitê surgiu a partir “[d]o consenso entre os presentes – ONGs, parlamentares, diplomatas e acadêmicos” (Asano & Amparo, 2008, p. 33) – numa audiência pública realizada na Câmara dos Deputados. Logo, adveio não de um decreto emanado de órgão estatal, e sim de uma deliberação, cujos interlocutores foram convencidos sobre a necessidade de se monitorar as relações exteriores do país em matéria de direitos humanos. Se o discurso oficial não mudou, em compensação as críticas tampouco se mostraram inócuas. Em segundo lugar, a criação do CBDHPE não deve ser desvinculada de um fenômeno que tem permeado a democracia brasileira contemporânea: a expansão da presença da sociedade civil nas políticas públicas, mediante

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Utilizamos o duplo significado que Hill (2003, p. 297-298) confere ao termo “responsabilidade”. Primeiro, refere-se aos deveres formais que alguém possui para com outros, em função do papel que ocupa. Segundo, responsabilidade quer dizer assumir as consequências pelos próprios atos. Para os decisores de política exterior, isso tende a desembocar no desafio das “responsabilidades múltiplas”, que engendra obrigações difusas, tais como: no plano doméstico, considerar a vontade (sempre plural) dos cidadãos; no plano internacional, não trair a confiança de aliados e prezar determinados componentes da ordem global (como o Direito Internacional e, hoje, os direitos humanos); e, ainda, antever os impactos da policy sobre seus destinatários (ibid., p. 23 e 298).

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instâncias híbridas (Avritzer, 2007, p. 443). Ora, não só a Conectas Direitos Humanos – principal promotora do projeto de acompanhamento da PEB de direitos humanos – bebeu da literatura que prescreve a dissolução das fronteiras entre a política externa e as demais políticas públicas (Conectas, 2005, p. 21-22), como também o Comitê fundado na Câmara apresenta natureza mista, congregando ONGs e entidades análogas, de um lado, e parlamentares, de outro. Se estes, porque eleitos, em princípio não veem contestado seu caráter representativo42, aquelas evidenciam os limites da representação tal qual concebida pelos clássicos da Teoria Política43. “[A] representação aqui significa agir no interesse dos representados, de uma maneira responsiva a eles.” (Pitkin, 1967, apud Urbinati, 2006, p. 202) Ao contrário dos deputados, as ONGs não recebem autorização por meio do exercício do poder de voto de um eleitorado, mas nem por isso sua legitimidade para falar e atuar em nome das pessoas esmaece. Aliás, uma ONG não representa exatamente indivíduos ou grupos, mas um discurso, de sorte que seu trabalho de advocacia respalda-se na “identificação com a causa”, não num consentimento explícito (Avritzer, 2007, p. 456-457). Da existência de representantes que, apesar de não-eleitos, não deixam de ser representantes, extrai-se a percepção de que a representatividade não está intrinsecamente conectada ao voto: “a eleição é uma entre as múltiplas dimensões da representação e da relação entre Estado e sociedade civil” (ibid., p. 452). Torna-se, pois, factível refletir sobre a representatividade do MRE, mesmo que seus membros não sejam eleitos, mas concursados. A conclusão não é trivial, porquanto extrapola a presunção de que os diplomatas, servidores públicos, estão adstritos a observar a “supremacia do interesse público” e outros princípios da Administração Pública (art. 37, caput, CF/88); vai além, ainda, da ideia de que os funcionários do Itamaraty 42

Empregamos a expressão “em princípio” para ressalvar que a democracia representativa, nem de longe, é isenta de problemas. A história intelectual do modelo representativo é marcada por controvérsias (ibid., p. 144-149), Miguel (2005, p. 166-167) cita algumas das complicações com que a representação se defronta na atualidade. 43 Quer dizer, o modelo representativo cujos representantes são selecionados por procedimento eleitoral – salientando-se que o procedimento aleatório, o sorteio, ficou marginalizado ao longo da experiência política moderna (Mendes, 2007, p. 147).

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representam o Brasil enquanto Estado internacionalmente. Quando passam a ser contemplados como representantes da sociedade brasileira, os agentes do MRE devem harmonizar suas decisões com a vontade dos cidadãos44. Se esta não pode ser expressa no ato singular do voto, manifesta-se – à luz da revisão que Urbinati (2006) empreende no conceito de representação – em opiniões e juízos continuamente emitidos pela população, tais quais as críticas à PEB de direitos humanos. A responsividade dos representantes depende de que prestem contas de suas atividades aos representados e que estes, por seu turno, exijam-nas, avaliem-nas e deem um veredicto, podendo punir aqueles, se for atestado que se afastaram das expectativas sociais. Transparência e capacidade de sancionar o comportamento dissonante – eis os elementos da accountability vertical, que opera entre representantes e representados, diferentemente da accountability horizontal, concernente ao controle recíproco entre os Três Poderes (Miguel, 2005, p. 167-169). Na accountability reside o terceiro aspecto do potencial democratizante do CBDHPE. Embora, como já registrado, nenhum diplomata componha o Comitê, por sediar-se na Câmara ele pode valer-se de prerrogativas constitucionais, como “convocar Ministro de Estado ou quaisquer titulares de órgãos subordinados diretamente à Presidência da República” para fornecerem esclarecimentos pessoalmente, ou então pedi-los por escrito, o que se tem dado, aliás, em audiências públicas45 (Asano & Amparo, 2008, p. 34). É verdade que esses mecanismos são típicos da accountability horizontal, mas têm sido acionados em favor tanto de atores estatais quanto de não-estatais, e estes últimos figuram tecnicamente na accountability vertical. Portanto, a prestação de contas e a transparência parecem ser supridas – algo que pretendemos melhor apurar no Capítulo 4. Todavia, requer-se mais: “os [representados] devem ter poder efetivo para a implantação das políticas que preferem” (Miguel, 2005, p. 169). E instrumentos formais que o 44

A “disposição dos representantes para respeitar as preferências dos constituintes” denomina-se responsividade (Miguel, 2005, p. 168). 45 Respectivamente: art. 50 (§ 2º, caput) e art. 58 (§ 2º, II e III), CF/88.

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possibilitem não são detectados46, de modo que, do ponto de vista institucional, não se aperfeiçoa a accountability vertical sobre a PEB de direitos humanos. Como quarto ponto em prol da democratização, cumpre apontar que discussões e diálogos têm sido travados com o MRE, opondo visões mais alinhadas ao discurso oficial a posturas que mais se coadunam com as vozes críticas. Devido à heterogeneidade, o Comitê tende a produzir consensos bastante vagos, consoante Milani (2011, p. 24). No entanto, o mesmo autor disserta que “a contradição que ali se engendra faz parte da própria dialética política que sustenta (...) o desenvolvimento democrático dos debates...” (ibid., p. 24) sobre a política exterior de direitos humanos. Por conseguinte, na prática, a temática não mais se revela privativa do Itamaraty. Em resumo, percebem-se mudanças, conquanto tímidas – e malgrado o Itamaraty siga detendo a palavra final na PEB de direitos humanos. É curioso notar o contraste entre o grau de abertura do Brasil “de dentro para fora” – desde 2001 mantemos convite permanente aos relatores especiais da ONU que inspecionam as condições dos direitos humanos em cada país (Sobrinho, 2009, p. 100) – e o grau de abertura “de fora para dentro”, porque só bem recentemente o MRE passou a reportar-se com habitualidade ao Legislativo e à sociedade brasileira acerca de sua atuação em matéria de direitos humanos. Enfim, graças aos relatórios da Conectas e ao CBDHPE (cuja experiência melhor investigaremos no Capítulo 4), o tema tem ganhado maior notoriedade. Podemos compreender o estado presente da democratização como em construção. Retrocessos não são impossíveis, entretanto tremendamente improváveis. O Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa ao menos oferece um espaço para onde as demandas pela continuidade e aprofundamento do processo democratizante podem ser canalizadas. 46

A Constituição prevê apenas sanções contra o não comparecimento injustificado – ou a recusa injustificada em comparecer – nas reuniões do Legislativo às quais as autoridades do Executivo forem chamadas, ou ainda contra o provimento de informações falsas (art. 50, caput e § 2º, CF/88). Além do mais, os diplomatas, ao contrário dos representantes eleitos, não estão sujeitos à ameaça de castigo político, a saber, a não reeleição (Mendes, 2007, p. 149).

3. A evolução discursiva da PEB de direitos humanos 3.1. 1948-1955: o “Brasil-progressista” face ao abstencionismo

Para delimitar o início da PEB de direitos humanos, adotamos como marco temporal a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 194847. Embora haja quem fixe o ponto de partida em data anterior, já então antevendo manifestações rudimentares de direitos humanos48, cremos que apenas com a Declaração eles efetivamente adentram na cena internacional, uma vez que o documento confere substância às previsões deliberadamente vagas da Carta da ONU que os mencionavam49. Nessa esteira, dispõe Jack Donnelly (2007, p. 4): “prior to World War II, human rights were not an accepted subject of international relations”. Consoante nos contam Normand e Zaidi (2008, p. 145), a elaboração da DUDH – um instrumento não vinculante minudenciando o rol de direitos humanos (em tese) universalmente aceitos – consistia na fase preliminar de uma tríade de objetivos traçada pelos governos. Acordara-se que, logo após, suceder-se-iam: a) um momento devotado à produção de tratados acerca do tema – estes sim aptos a obrigar as partes que os ratificassem – e b) um segundo momento destinado à criação de mecanismos de implementação normativa, perfazendo um processo que se prolongaria por duas décadas. Referida periodização deu-se em função das intenções das próprias autoridades estatais – não de todas, mas particularmente dos Estados Unidos, União Soviética (URSS) e Grã-Bretanha –, que não pretendiam comprometer-se, de pronto e sem reservas, com os direitos humanos. 47

De fato, pesquisando a compilação de discursos do Brasil na AGNU oferecida pelo embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, em O Brasil nas Nações Unidas – 1946-2006 (2007), versão atualizada de tese de sua autoria editada pela FUNAG, depreende-se que o termo “direitos” – no sentido de “direitos individuais”, “direitos humanos” – só aparece a partir de 1948. 48 Para exemplos de antecedentes, cf. Normand e Zaidi (2008, p. 35-90). 49 Preâmbulo e arts. 1º (caput, 2 e 3), 13 (b), 55, 56, 62 (2) e 68. Normand e Zaidi (2008, p. 127138) comentam que o conteúdo indeterminado dos direitos humanos contidos na Carta deveu-se à intransigência das principais potências responsáveis por redigi-la (os EUA, a União Soviética e o Reino Unido), interessadas em tornar inócuas as normas. Por outro lado, fora a mobilização de várias sociedades civis ao redor do mundo – em especial na Conferência de São Francisco de 1945 – que conduzira ao acréscimo de tais dispositivos esparsos no ato constitutivo das Nações Unidas, algo que nem sequer teria ocorrido se se houvesse considerado tão somente a vontade dos Estados – salvo os latino-americanos, mais favoráveis à inclusão dos direitos humanos no regime da ONU.

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Destarte, não vingou a recomendação do comitê preparatório estabelecido pelo ECOSOC – o Conselho Econômico e Social da ONU –, defendendo que a Declaração fosse obra de um grupo de peritos independentes; em lugar disso, prevaleceu a ideia de que a decisão caberia a representantes nacionais (ibid., p. 146). A chamada Comissão de Direitos Humanos ofereceria assento para dezoito Estados – e, mais tarde, 53. É dentro do cenário descrito que necessita ser compreendido o pronunciamento de Austregésilo de Athayde, delegado do Brasil à Terceira Comissão da AGNU, quando, de setembro a dezembro de 1948, se debateu sobre a reforma do projeto da DUDH, baseado no esboço desenvolvido pela CDH: “[a] Delegação do Brasil teria preferido que, ademais da Declaração, o Pacto e as medidas para sua execução fossem discutidas e aprovadas o mais cedo possível” (apud Lindgren Alves, 2009, p. 68; grifos nossos). O “Pacto” diz respeito ao supracitado momento de normatização, ao passo que as “medidas para sua execução” remetem à implementação. Eis o contraste entre o posicionamento brasileiro e o estadunidense, indicado na seguinte proposição de 1947 de Eleanor Roosevelt – viúva de Franklin D. Roosevelt –, líder da Comissão e, segundo Normand e Zaidi (2008, p. 148-150), portavoz quase sempre bem-comportada do Departamento de Estado: “the view of the United States [is] that the establishment of machinery for international supervision of human rights... cannot be an immediate objective of the Commission” (apud ibid., p. 160; grifos nossos).

Os EUA encarnam um Outro implícito que, por negação, caracteriza a identidade política do Brasil extraída do primeiro discurso acima. Hansen (2006, p. 76) parece entender ser ideal que, no texto analisado, verifique-se explicitamente uma articulação de diferença hierárquica entre dois perfis identitários. Todavia, julgamos que, devido à proximidade temporal entre os atos de fala, além de ocuparem idêntico contexto, a correlação BrasilEUA não se revela insustentável – a despeito da ausência de referência expressa a Washington. Sendo mais acurados, diríamos que, do enunciado

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de Austregésilo, não provém qualquer acusação aos Estados Unidos, e sim uma reprovação genérica a todos os que retardaram a conclusão do “Pacto” e das “medidas para sua execução”. Inegável que os EUA figuram nesse conjunto indefinido, porém, dada a inexistência de denominações, adiante ele receberá a designação de “Outro inominado” ou simplesmente Outro. Antes de prosseguirmos, salientamos que incluir os Estados Unidos num grupo de que se afastava o Brasil é uma hipótese que deve ser acolhida com cautela, já que em 1948 vigia o regime de Eurico G. Dutra, retratado como fielmente alinhado a Washington. Assim ao menos no que concernia ao Itamaraty sob a chefia de Raul Fernandes, “jurista conservador, que se convencera de que a guerra entre Leste e Oeste era inevitável”, nas palavras de Gerson Moura (1991, p. 62); conforme o mesmo autor (ibid., p. 62), a rígida orientação do MRE proscrevia que se tecessem críticas espinhosas ao parceiro especial, mas não impedia que os diplomatas brasileiros junto às Nações Unidas assumissem posturas mais independentes e criativas, para além da mera reafirmação da lealdade aos EUA; o Brasil não precisava, pois, concordar com Washington em todos os assuntos. Tal interpretação é pertinente, visto que o discurso de Austregésilo destoa de outro, proferido por Raul Fernandes também em 1948, em que os direitos humanos prestamse à condenação indireta da URSS50-51. Encravadas no texto (cf. nota de rodapé 51) estão dicotomias como “civilizado verdadeiro vs. falso civilizado” e “membro sincero da ONU vs. membro de má-fé”, concatenados, no âmbito espacial, com o binômio Oeste-Leste da guerra fria que não tardaria a chegar. Eis que o Brasil 50

Ou ao menos é o que entende Corrêa (2007, p. 52) em seus comentários ao pronunciamento. Decerto a invocação de outro texto (intertextualidade), do Secretário de Estado dos EUA, aponta nessa direção. Afinal, o “grande e generoso discurso” remete ao anúncio do Plano Marshall, que previa a concessão de ajuda à recuperação econômica da Europa devastada no pós-Segunda Guerra – oferta também estendida aos Estados-satélite da URSS, que a recusou, porém. 51 Eis o discurso: “quero saudar a inclusão dos direitos fundamentais do homem na categoria dos que [merecem] proteção internacional. (...) O Secretário de Estado Marshall [dos EUA], em seu grande e generoso discurso de outro dia, nos falava sobre o calvário das liberdades individuais em certas regiões de um mundo que se diz civilizado [leia-se, na URSS e seus aliados], e ressaltou que entre os Membros das Nações Unidas que sinceramente se esforçam para viver de acordo com a Carta estarão, de fato, os Estados que desejam manter e proteger a dignidade e a integridade do indivíduo” (apud Corrêa, 2007, p. 55; grifos nossos).

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enquadra-se no Ocidente, ao enfatizar a primazia dos direitos individuais – correntemente atacados por Moscou, que, em deferência ao comunismo, privilegiava os direitos sociais e econômicos. Não insistiremos nessa investigação porque ela extrapola o foco do pós-estruturalismo, menos preocupado com as origens dos atos de fala – ou, no caso, com as razões que informam as divergências entre eles (e.g., disputas dentro do governo, possivelmente) – do que com seus efeitos. Não obstante, Hansen (2006, p. 9 e 19) reconhece que todo discurso é historicamente situado, bem como ligado a uma policy específica; para isso serviu a digressão realizada, para esclarecermos que, na política externa de Dutra, a manifestação de Austregésilo localiza-se pouco confortavelmente. Agora nos dedicaremos à análise discursiva desta, confrontando-a com o pronunciamento de Eleanor. Do dualismo “agilidade vs. não-imediatismo”, quanto à cunhagem de normas vinculantes e meios executórios dos direitos humanos, deduz-se a oposição entre uma imagem progressista (brasileira) e outra conservadora (do Outro), temerosa de avanços rápidos demais (ibid., p. 43). No eixo discursivo espacial, o Brasil inserir-se-ia no bloco da América Latina52, cujos países em geral endossavam posturas melhor sintonizadas com as expectativas da opinião pública em matéria de direitos humanos. Em última instância, a identidade brasileira aproximar-se-ia do espírito otimista da ONU53, recipiente de princípios que ostentavam o vislumbre de um “futuro perfeito”, por ora inexequível ante os obstáculos impostos pelas potências que teimavam em viver no “passado” da política de poder. No campo da ética (ibid., p. 45), o Brasil aparenta personificar um paladino dos interesses universais, ao contrário do Outro não nomeado, que, antiquado e egoísta, persegue abertamente e sem hesitar diante de preceitos morais seus estreitos interesses nacionais. A prática discursiva de alinhar-se às Nações Unidas reaparecerá em outras ocasiões da história da PEB de direitos humanos.

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A propósito, cf. Normand e Zaidi (2008, p. 117-119 e 146) e Lindgren Alves (2009, p. 68). Assim claramente expõe o discurso de Raul Fernandes, que, logo, não se aparta totalmente do de Austregésilo e, no mais, destaca a “tradição” brasileira de obediência aos valores internacionais, elemento recorrente da retórica de nossa diplomacia (apud Corrêa, 2007, p. 53-54). 53

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À primeira vista essa tática insinua aportar indiscutível legitimidade a quem a emprega (o Estado brasileiro); contudo, contemplando-a mais detidamente percebemos que, por sua própria natureza prospectiva – isto é, por associar-se a valores de um porvir que nunca se concretiza –, ela resulta em clara isenção de responsabilidade para com os problemas do presente. Em homenagem às transformações irrealistas do “depois”, pode-se acabar negligenciando as questões do “agora”, que merecem, sim, tanta atenção quanto aquelas. Ou seja, o advogado do belo dever-ser – representado pelo Brasil – nem sempre porta-se melhor do que o genuinamente pragmático. Isso não significa que o progressismo a nada se preste; só quisemos mostrar que a superioridade do progressista frente ao conservador não é incontestável. E a artificialidade de tal hierarquia não apenas se constata a partir da reflexão do parágrafo anterior, mas também pela apreciação dos fatos. Porque a proposição de Eleanor Roosevelt prenunciou a Resolução 75 (V) de 1947 do ECOSOC, por meio da qual a CDH decretou-se inapta para lidar com as milhares de petições que, desde sua fundação, indivíduos lhe remetiam denunciando violações aos direitos humanos (Normand & Zaidi, 2008, p. 159-162). O abstencionismo marcaria os primeiros anos de vida da instituição, em honra ao princípio do “domínio reservado” (art. 2º (7) da Carta), que resguardava da interferência da ONU a jurisdição doméstica dos Estados, à qual – segundo o entendimento então predominante entre os governos – pertenciam os direitos humanos. À época, virtualmente nenhum país atribuía obrigatoriedade à DUDH. Com o tempo a situação mudaria, à medida que as autoridades estatais passassem a incorporar – ainda que, com frequência, hipocritamente e por conveniência política – a linguagem dos direitos humanos em suas relações exteriores. Ao longo da guerra fria, EUA e URSS perpetrariam afrontas graves a dignidade de pessoas e povos – e.g., respectivamente, intervenções na Guatemala (em 1954) e na Hungria (em 1956) –, porém ambos, para fins propagandísticos, acusar-se-iam reciprocamente de desrespeitar o regime global de direitos fundamentais (Freeman, 2002, p. 43; Donnelly, 2007, p. 6). Por conseguinte, desde a

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emergência deste, a politização o acompanha. E não poderia ser de outra maneira. Toda e qualquer decisão que envolve coordenar vontades díspares é por definição política. Nos auspícios da ONU, uma organização intergovernamental, e mais especificamente na Comissão de Direitos Humanos, composta por representantes nacionais, o caráter político do modus operandi é mais evidente, inafastável (Lindgren Alves, 2003, p. 84-85), porquanto se pauta em convencimento, barganha, formação de coalizões – enfim, táticas para se administrar redes de poder e promover influência. À luz dessa compreensão, a politização configura um fenômeno rotineiro num foro multilateral. Ela tanto norteou a introdução do direito à autodeterminação dos povos nos dois Pactos de direitos humanos, uma conquista devida às pressões de um Terceiro Mundo ampliado após as descolonizações; quanto está por trás da inexistência de relatores especiais nomeados pela CDH para avaliarem questões de direitos humanos atinentes aos Estados Unidos, entre outras grandes potências. Tais exemplos não se confundem porque, no segundo, a efetividade dos direitos humanos resta prejudicada, ao se impedir que certas violações recebam o escrutínio da ONU; o primeiro, ao contrário, contribui para a expansão do rol de direitos admitidos. Sugerimos a seguinte distinção: a politização que perpassa os meios decisórios, apesar de normal, pode ser mitigada mediante reformas, como a ocorrida em 2006 na Comissão; já a politização mais difícil de ser controlada atinge os fins, desvirtuados quando os agentes estatais lotados na CDH atuam em detrimento da proteção dos direitos humanos, priorizando vitórias parlamentares, ganhos estratégicos ou a preservação da soberania de seus países54. É esta última acepção que o termo assume no jargão diplomático, ao se tachar de politizado determinado Estado, por exemplo. Unanimemente execrada via oratória, mas amplamente praticada, a

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Essa “politização perversa” expressa-se por vários modos. A seletividade é um deles; “consiste na escolha arbitrária dos alvos do monitoramento internacional e dos países que não terão sua situação examinada” (Belli, 2009, p. 3), a despeito da necessidade de tutela dos direitos humanos. Problema assemelhado é o duplo-padrão (double standards), “que se traduz na adoção de posturas dúplices [por parte dos Estados]..., sempre lenientes com os aliados e sempre incisivas com os adversários ou parceiros menos prioritários” (Lindgren Alves, 2003, p. 85-86).

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instrumentalização política dos direitos humanos não deixou imune o Brasil, por mais que assim não transparecesse em seus discursos. Os carateres que discernimos acima para a identidade brasileira contida no pronunciamento de Austregésilo seriam reproduzidos, por vezes com algumas modificações oriundas da particularidade de cada conjuntura. O “Brasil-que-aspira-ao-futuro”, pregando um sistema de direitos humanos mais robusto, e o “Brasil-conciliador-de-interesses-heterogêneos”, a voz da razão em meio a um mar de Estados autocentrados, apareceriam na palavra do embaixador Cyro de Freitas-Valle (apud Corrêa, 2007, p. 71-72), em 1950. Em 1952, João Neves da Fontoura (apud ibid., p. 84) renovaria as credenciais brasileiras junto às Nações Unidas – à parte a afirmação sobre os “princípios da tradição cristã e humanista que é o fundamento primordial da civilização contemporânea”, que demanda ser contextualizada – e corroboraria o suposto desejo do país quanto à evolução do regime de direitos humanos. No ano subsequente o embaixador Mario de Pimentel Brandão (apud ibid., p. 93) reavivaria o discurso progressista – enquanto o tão almejado “depois” ainda não chegara – e, em 1954, Ernesto Leme (apud ibid., p. 100-101) louvaria o esclarecimento “inerente” à nação brasileira – que estaria na essência “de nossa cultura democrática, latina e cristã”, alegação hoje “politicamente incorreta”, na costumeira expressão de Lindgren Alves (2009, p. 70) –, que nos habilitaria a transcender a miopia política característica dos demais Estados. Realce-se que nessa fase, quando se refere aos direitos humanos, o Brasil, filiado ao polo ocidental da guerra fria, tem em mente só os direitos individuais – civis e políticos. Se por um lado a delegação de nosso país não manipulava os valores da DUDH tão somente como arma política para condenar adversários (e.g., a URSS), por outro um tipo diferente de politização veio à tona em 1955. Ao serem redigidos os anteprojetos do Pacto de Direitos Civis e Políticos e do de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – um repertório de normas vinculantes, com um mecanismo de supervisão na primeira convenção, conforme previsto no Protocolo Facultativo anexo a ela –, o Brasil não os

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acolheu (apud ibid., p. 110). Quando o momento que dizíamos aguardar com genuíno entusiasmo finalmente se tornou realidade, optamos por não comprometer nossa autonomia, à semelhança dos Estados que criticávamos. 3.2. Política Externa Independente (PEI): o “Brasil-sui-generis” face às dicotomias da guerra fria

Diante dos novos contornos que se traçavam para o ordenamento de direitos humanos das Nações Unidas, o discurso prospectivo e esperançoso, que outrora imputara ao Estado brasileiro a imagem de progressista, teve de ser abandonado. Não mais fazia sentido advogar a mudança, porque ela já se havia consumado, em dado grau. Daí que, até 1961, os direitos humanos não mais teriam lugar na retórica do Brasil durante as sessões anuais do plenário da AGNU55. Na gestão de Jânio Quadros, pela boca do chanceler Affonso Arinos de Mello Franco, a PEB de direitos humanos e seu perfil identitário justificador adquiririam matizes bem peculiares56. De início cabe anotar a curiosa atualidade do pronunciamento, uma vez que muitos de seus aspectos figuram em atos de fala contemporâneos, conquanto reinterpretados à luz de princípios a serem consagrados nos anos 1990 – a saber, a universalidade dos direitos humanos e a interdependência entre direitos individuais e coletivos. A partir de um prisma intertextual, tais coincidências não necessariamente denotam uma continuidade entre ambas as contruções discursivas – a de 1961 e a presente –, já que semelhante correlação implicaria um censurável reducionismo. Antes disso, a premissa 55

As exceções foram raras e, mais do que isso, expressaram-se em menções tímidas e oblíquas, já que a locução “direitos humanos” jamais aparece explicitamente. Exemplo colhido por Lindgren Alves (2009, p. 71) corresponde a um enunciado do chanceler Horácio Lafer de 1960, em que se transmite ser o Brasil favorável à inclusão da temática da discriminação racial na agenda da ONU. 56 “A ação internacional deve ser sempre levada a efeito de boa fé, embora sem exclusão de sua flexibilidade. A relativa homogeneidade ideológica e institucional dos Estados componentes da comunidade internacional é coisa do passado... (...) [O] ideal que temos a defender é o de universalizar, em todos os tipos de governo, as leis garantidoras da liberdade e da dignidade humanas. A crença e a prática desses valores não exige, porém, que façamos uma política rigidamente doutrinária, no plano externo, inclusive porque ela levaria fatalmente ao choque com as nações que não os conhecem, ou os aplicam em escala diferente, situação que impossibilitaria a negociação persuasiva, única capaz de levar ao reconhecimento gradativo dos direitos humanos. (...) Por outro lado, os direitos humanos não são apenas individuais. Estes representam o elemento necessário à afirmação da dignidade espiritual do homem. Mas os direitos humanos são também sociais...” (apud Corrêa, 2007, p. 152-153; grifos nossos)

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da intertextualidade possibilita que apuremos como um texto legitima o outro – em especial como o veiculado por Affonso Arinos reveste-se de autoridade ímpar ao ser comparado com discursos mais recentes. Não fizéssemos essa ressalva, arriscar-nos-íamos a conferir – como aparenta supor Lindgren Alves (2009, p. 72) – desmedida capacidade de previdência aos diplomatas da década de 1960, pois se teriam (pretensamente) antecipado, por quase meio século, às transformações do regime global de direitos humanos. Enfim, as similaridades não subsistem diante da singularidade de cada período histórico (guerra fria e pós-guerra fria). Passemos à análise. Ainda que insinue promover a universalização dos direitos humanos, o Brasil ressalta que execra táticas intervencionistas. Mais do que simples tentativa de conciliar garantias à dignidade (de pessoas e povos) com o respeito à soberania (do Estado), e mais do que buscar articular uma síntese entre universalismo e relativismo57, procura-se transcender os dualismos. Nessa esteira, a identidade brasileira constitui-se via dupla alteridade. Na primeira fronte de contraste se posta o Outro formado pelas nações que não conhecem os direitos humanos “ou os aplicam em escala diferente”; note-se que tais países não rejeitam os valores universalizáveis, apenas os ignoram. Aqui, o Outro não perfaz com o Eu as clássicas oposições na seara dos direitos humanos “civilizado vs. incivilizado”, no eixo espacial, e “evoluído vs. atrasado”, no eixo temporal (Hansen, 2006, p. 43). O alter não é inferior exatamente, e logo não é suscetível de ser educado com violência, ao estilo de uma “missão civilizadora”; ele é, isto sim, diferente, e se sua diferença merece resguardo, não significa que ele deva permanecer alheio às teses humanistas; no caso, o Outro tampouco é incapaz de, por si só, alcançar o esclarecimento e, portanto, basta o diálogo (a “negociação persuasiva”) para transmitir-lhe os direitos humanos58. Na segunda fronte se localiza um alter 57

O universalismo pressupõe que os direitos humanos são universais e a-históricas, enquanto, para o relativismo, a cultura representa a fonte precípua de direitos e deveres (Donnelly, 2007, p. 37). 58 Nossa leitura desse texto bem se ajusta às dicotomias entre os programas de Cortés e Las Casas para os índios americanos, sobre que Hansen (2006, p. 38-39) comenta e que chega a aproveitar ao desenhar as identidades atribuídas aos Bálcãs ao longo das décadas.

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que, sob pretextos principistas, interfere no domínio interno de outros Estados – por exemplo, EUA e URSS na guerra fria; o Brasil “flexível” e “tolerante” contrapõe-se a um Outro “dogmático” e “imperialista”. Ademais, a delegação brasileira alega considerar indissociáveis os direitos individuais e os sociais, num pano de fundo em que, havia pouco, durante a elaboração dos Pactos, o bloco ocidental e o oriental engajaram-se em ferozes debates em torno da prevalência de um arcabouço jurídico em detrimento do outro59. Repetimos que, assim se posicionando, o Brasil não visa a inserir-se num meio-termo, visto que então o lócus já se encontrava ocupado pelos adeptos da “terceira via”, o Movimento dos Não-Alinhados, do qual expressamente Araújo Castro excluiria nosso país, em seu discurso sobre os “três Ds”60 (Desarmamento, Desenvolvimento e Descolonização), de 1963, destinado a racionalizar a batizada Política Externa Independente. Ao rejeitar as categorias típicas do conflito Oeste-Leste, o Brasil estaria se afirmando como “sui generis”, ou seja, como detentor de uma imagem impossível de classificação. Registre-se que o embaixador Araújo Castro associa os direitos humanos a objetivos algo inovadores – à emancipação e ao desenvolvimento econômico –, se assumirmos que, em tempos passados, a tendência era concatenar liberdades fundamentais com a paz e segurança internacionais, as metas usuais da Carta da ONU61. Dois anos depois de instalada a ditadura no Brasil, o ministro Juracy Magalhães elogiaria a presteza com que nosso país assinou a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, aludindo à (fantasiosa) “democracia racial” da sociedade brasileira. Quanto aos Pactos ainda não ratificados, o país guardaria silêncio (Lindgren 59

Para mais detalhes, ver Lindgren Alves (2003, p. 48-50). “Meu país, por exemplo, nunca aceitou a designação de neutralismo para a sua política externa independente. O Brasil não pertence a blocos...” (apud Corrêa, 2007, p. 173). Os direitos humanos têm pouco destaque nesse pronunciamento, porque enquadrados na lógica dos “três Ds”. Primeiro, integram o “D” referente à Descolonização: “A luta pela Descolonização é a própria luta pela emancipação política, pela liberdade e pelos direitos humanos” (ibid., p. 173). Depois, a DUDH é incorporada num argumento em prol da cooperação econômica entre Norte e Sul: “Não seria possível, destarte, chegarmos a essa declaração outra, que trataria do segundo mais controverso tema do mundo social presente – o das relações econômicas entre as Nações” (ibid., p. 182). 61 Porém estas últimas não foram esquecidas, uma vez que relevantes para lapidar a imagem do “Brasil-adepto-fiel-das-Nações-Unidas” (apud Corrêa, 2007, p. 153). 60

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Alves, 2009, p. 75-76).

3.3. O Brasil na Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas: cautela face à consolidação do sistema supervisão

Os anos 1960-70 seriam generosos à proliferação de procedimentos extraconvencionais de fiscalização e implementação dos direitos humanos pela ONU. Para Forsythe (1985, p. 251), então o sistema ONU de direitos humanos revisou sua conduta, que, antes geral e abstrata, começou a cuidar de denúncias a lesões concretas e específicas. Pela Resolução 1235 do ECOSOC, de 1967, reconheceu-se a competência da Comissão de Direitos Humanos para discutir violações em Estados específicos; já a Resolução 1503, de 1970, autorizou-a a investigar queixas que comprovassem um padrão de graves e generalizadas lesões a direitos fundamentais (Donnelly, 2007, p. 81). Este último ato normativo deu origem a um rito de exame confidencial das situações dos países, tendo por sanção a publicidade dos casos mais atrozes. Decerto pouco eficaz, o mecanismo não obstante colheu o mérito de ter deflagrado uma sucessão de métodos inovadores para a atuação da Comissão. Seguir-se-iam os grupos de trabalho, baseados no comparecimento de peritos ao local dos incidentes, quase sempre se defrontando com dificuldades de acesso. Em 1978, na sequência da missão bem-sucedida do Grupo de Trabalho sobre o Chile de Pinochet, seria instituída a figura do relator especial, investido do mandato de acompanhar a evolução do status dos direitos humanos naquele país. Grupos de trabalho e relatores são responsáveis pelo chamado controle ostensivo (Lindgren Alves, 2003, p. 8-16). O ativismo das ONGs de direitos humanos também experimentou impulso, tendo a Anistia Internacional ganhado o Prêmio Nobel em 1977 (Donnelly, 2007, p. 10). As circunstâncias já apontavam, por conseguinte, rumo à qualificação da soberania pela necessidade de se observarem outros valores; paulatinamente se firmaria a crença de que um Estado não pode valer-se do princípio da não-intervenção para perpetrar afrontas aos direitos de seus cidadãos.

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Desde 1974 até 1976 sob a apreciação do procedimento confidencial, o Brasil viu-se sob o risco de ser submetido a medidas fiscalizatórias mais duras, quando uma moção interposta por Uruguai e Iugoslávia, em favor da interrupção do escrutínio, saiu vitoriosa62. Frente à ameaça de supervisão – tornada mais concreta após o surgimento do procedimento ostensivo e a chegada de Jimmy Carter à presidência dos EUA –, a delegação brasileira lança a candidatura de nosso país à CDH, uma manobra defensiva destinada a resguardar a autoridade do regime militar de Ernesto Geisel. O diplomata Lindgren Alves (2003, p. 90) atribui um verniz menos polêmico à decisão do Brasil de ingressar na Comissão de Direitos Humanos, sustentando que nos blindar contra interferências abusivas do exterior, potencialmente perniciosas, era essencial ao prosseguimento do processo de “distensão lenta, gradual e segura” prometido. Não dispomos de meios nem espaço para contestar a afirmação. Tão somente salientamos que, se ela atenua a má reputação do Itamaraty quanto aos direitos humanos durante o período – elevando-o ao patamar de garantidor da redemocratização –, o que fica mais proeminente no discurso à AGNU do ministro Azeredo da Silveira 63, de 1977, é a inversão de certas hierarquias axiológicas, tais quais previstas na doutrina que então se esboçava na ONU, remando o Brasil na contramão de 62

De 1979 a 1989, o Brasil não seria o único país a escapar da condenação (Belli, 2009, p 76-77). “[A] cooperação internacional, à qual a Carta das Nações Unidas nos estimula, pressupõe como requisito básico o respeito à identidade nacional e à soberania dos Estados. (...) A Carta coloca o tema dos Direitos do Homem precisamente no campo da cooperação internacional. (...) O tratamento dessa questão, no nível multilateral, poderá concorrer para a criação de condições favoráveis ao exercício desses direitos, que, a nosso ver, abrangem aspectos quer civis e políticos, quer econômicos e sociais... O primeiro componente desse patrimônio [conceitual comum] é a convicção de que a questão dos direitos humanos é predominantemente ética... Muitas vezes, o tema é tratado com intuitos distintos do desejo sincero de proteção dos direitos da pessoa humana. Um segundo componente de nosso patrimônio comum é a convicção de que a questão dos direitos humanos tem caráter universal. Justificar tratamento discriminatório, com base no interesse nacional, é destruir o próprio fundamento da defesa dos Direitos do Homem. (...) A negativa em facilitar o estabelecimento de uma ordem econômica internacional mais justa e mais estável, e que atenda aos reclamos da segurança econômica coletiva para o desenvolvimento, é fator que não pode ser desprezado ou obscurecido, no interesse do respeito aos direitos humanos. (...) [A] solução das questões dos Direitos do Homem é da responsabilidade do Governo de cada país. Num mundo ainda marcado por atitudes intervencionistas, abertas ou veladas, e pela distorção de determinados temas, a nenhum país, ou conjunto de países, pode ser atribuída a condição de juiz de outros países em questões tão sérias e tão íntimas da vida nacional. (...) Os mecanismos e procedimentos de que já dispõem as Nações Unidas para a consideração da problemática dos direitos humanos parecem-nos amplos e suficientes para que a tarefa prossiga no ritmo que a complexidade da matéria requer e a salvo de fatores e circunstâncias passageiras.” (apud Corrêa, p. 346-347; grifos nossos) 63

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algumas das principais tendências da organização. A identidade que sobressai no texto corresponde à de um Brasil “nacionalista” e “legalista”, que presta deferência aos direitos humanos (universais e indivisíveis) estritamente até o ponto em que não se chocam com o domínio reservado dos Estados. O eixo prevalecente é de teor ético: postulamos agir com retidão, sem abusos, em repúdio a quaisquer Outros “intervencionistas”. Tal é a avaliação positiva. A negativa viria consignada em interpretações como, por exemplo, a que informaria o parecer do jurista Antônio Augusto Cançado Trindade (2006, p. 227), descrevendo que, à época do autoritarismo, os posicionamentos brasileiros nos foros de direitos humanos da ONU e da OEA demonstravam “desconhecimento da matéria” e careciam de fundamentação jurídica. Raciocinando por esse prisma, eis alguns aspectos dignos de menção. De um lado se apreendem argumentos que, conquanto coerentes com posturas assumidas por nosso país em outras oportunidades, revelam servir igualmente ao propósito de guarnecer o Brasil contra as acusações que lhe imputavam. A ideia da interdependência entre direitos individuais e coletivos bem podia, no contexto da guerra fria, fazer as vezes de resposta implícita aos desabonos oriundos de potências ocidentais, que prestigiavam as liberdades civis e políticas ante a seguridade socioeconômica. Ainda, ao condenar a seletividade (o “tratamento discriminatório”), o ministro talvez estivesse dirigindo crítica ao enfoque dispensado à situação dos direitos humanos do Brasil nos auspícios da Comissão. De outro lado despontam proposições que não se coadunam com o sistema de valores que as Nações Unidas buscavam sedimentar, como a circunscrição das questões de direitos fundamentais à esfera da soberania, já que “tão íntimas da vida nacional”; a designação de um grupo de trabalho para apurar as violências da ditadura chilena, em 1975, já havia provado quão inadequada era a tese brasileira. Idem ao alegarmos que o desenvolvimento rivalizava, em importância, com a proteção dos direitos humanos, entendimento que reavivava a controversa prescrição do art. 13 da Proclamação da Conferência de Teerã de 1968; era

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no mínimo temerário associar desenvolvimento e direitos humanos, pois o pensamento sobre um “direito ao desenvolvimento” ainda ensejava tensões aparentemente incontornáveis64. Conforme essa leitura, o Estado brasileiro mostra-se “conservador”, “retrógrado”. Isso ao menos à luz da conjuntura dos anos 1970 e dos ideais da ONU (os Outros), porque, se levarmos em conta o histórico da PEB de direitos humanos traçado até agora, o “Brasil-conservador” do período militar não retrocedeu tanto assim em seu discurso ao ser comparado com o “Brasil-progressista” das décadas de 1940-50 ou com o “Brasil-sui-generis” da PEI, na medida em que ambos se recusaram a ratificar os Pactos. De 1977 até 1984 e a normalização democrática, as alusões diretas aos direitos humanos desapareceriam das manifestações brasileiras junto à AGNU. Já a partir dos anos 1980, alterações de retórica teriam início na CDH. Entretanto, Lindgren Alves (2003, p. 93) assevera que, no período, o Brasil quase sempre votou negativamente em resoluções condenatórias a países específicos, embora jamais tenha obstruído “projetos construtivos e não-seletivos – como era a prática de outros países em situações assemelhadas” (ibid., p. 93). Destarte, vê-se que o diplomata, sempre parcimosioso, tenta diferenciar o Brasil de Outros “hiper-retrógrados”: em sua interpretação, podíamos ser conservadores, mas nem tanto.

3.4. Redemocratização: renúncia aos Eus do passado?

Os anos 1980 contemplaram o aprofundamento da normatização e institucionalização do sistema ONU de direitos humanos. Enquanto novos tratados nasciam, findava a ditadura brasileira e, tão logo se devolveu o poder aos civis, em 1985, o presidente José Sarney trouxe à AGNU um 64

Na Conferência de Teerã (1968), a indivisibilidade de todos os direitos humanos foi consagrada no artigo 13 da proclamação produzida na ocasião. Tal princípio sofreu severas reprovações, não só, mas principalmente em virtude da má redação de seu dispositivo, que possibilitou a Estados autoritários condicionarem a observância dos direitos de seus cidadãos à consecução de projetos de desenvolvimento nacional (Lindgren Alves, 2000, p. 19-20); ou assim diziam as nações do Norte a respeito das do Sul – às vezes com razão, outras não. Por seu turno, os países em desenvolvimento replicavam tachando de imperialistas e neocolonialistas os governos refratários à ideia do direito ao desenvolvimento. Uma Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento somente seria aprovada na AGNU em 1986, depois de tormentosas discussões (Normand & Zaidi, 2008, p. 299-309).

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discurso que acentuava a mudança em nossas políticas interna e externa65. O tom predominante certamente é de ruptura – a despeito de não se perder a chance de registrar uma sutil continuidade: a adesão do Brasil aos Pactos não apresentava precedentes, era um movimento genuinamente novo e, não obstante, o país “reitera” (e não “reconhece” ou “volta a reconhecer”) “o compromisso solene... com a promoção da dignidade humana”. De qualquer modo, o que se constata é a oposição entre o Eu do presente – “democrático”, “membro plenamente responsável da ONU”, “defensor sincero dos direitos humanos” – e o Eu do passado, o Eu da “longa noite” do período militar. Na verdade, apesar de o pronunciamento de Sarney não sugerir isto, seria mais exato – no que concerne à PEB direitos humanos – diferenciar o Eu contemporâneo não só do Eu da ditadura, mas também do Eu das décadas de 1940-50 e do Eu da PEI, visto que os dois recusaram-se a ratificar os Pactos66. Enfim, no texto, os Outros consistem não em Estados situados no espaço, e sim no tempo: são os Eus do pretérito (Waever, 2003, apud Hansen, 2006, p. 44), os quais, ao serem pretensamente abandonados, legitimam uma identidade de “avançado”, “renovado”, para o Eu atual. No entanto, não significa que todos os elementos das manifestações discursivas de outrora foram enterrados. A fidelidade do Brasil aos valores universais das Nações Unidas seria alardeada com menos frequência, porém não sumiria. Influenciaria implicitamente novas imagens progressistas, que, ao contrário da construída nos anos 1940-50, não se assentariam num vago desejo de aperfeiçoamento do regime de direitos humanos – seriam, isto sim, mais propositivas e acompanhariam a evolução da matéria nas agendas da ONU. Procurava-se, assim, definir o Brasil como “sintonizado”, “o-que65

“O Brasil acaba de sair de uma longa noite. (...) A Declaração Universal dos Direitos Humanos é, sem dúvida, o mais importante documento firmado pelo homem na História contemporânea. E ele nasceu no berço das Nações Unidas. Com orgulho e confiança, trago a esta Assembléia a decisão de aderir aos Pactos Internacionais das Nações Unidas sobre Direitos Civis e Políticos, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, e sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Com essas decisões, o povo brasileiro dá um passo na afirmação democrática do seu Estado e reitera, perante si mesmo e perante toda a comunidade internacional, o compromisso solene com os princípios da Carta da ONU e com a promoção da dignidade humana.” (apud Corrêa, 2007, p. 446 e 450; grifos nossos) 66 Todavia, devido a resistências internas, mesmo após o discurso de Sarney de 1985 o Brasil ainda demoraria a aderir aos Pactos, somente o fazendo em 1992 (Belli, 2009, p. 173).

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apoia-tendências”67. Daí, por exemplo, o diplomata Lindgren Alves (2009, p. 89-90) chamar atenção para o fato de que, em 1992, o chanceler Celso Lafer abordou os direitos de minorias nacionais na mesma sessão da AGNU em que se aprovaria uma Declaração a respeito do tema. Em 1993, Celso Amorim, ministro sob Itamar Franco, explicitamente reaproveitaria atos de fala passados (apud Corrêa, 2007, p. 570 e 572-573), ao invocar os “três Ds” de Araújo Castro, atualizados para Democracia, Direitos Humanos e Desenvolvimento – e justamente após a Conferência de Viena, em que se consagrara a simbiose entre tais conceitos (vide seção seguinte). Lindgren Alves considera existir no discurso de Amorim “notável demonstração da continuidade da política externa independente também na área dos direitos humanos” (2009, p. 86); pela perspectiva da intertextualidade, essa leitura não nos parece adequada, pois o simples resgate de um texto pretérito não induz, per se, real continuidade, e sim no máximo uma tentativa frustrada de forjá-la a posteriori; ocorre, mais acertadamente, ressignificação. Uma vez que há muitos artigos escritos por diplomatas que datam dos anos 1990 (ou 2000, conquanto voltados para os anos 1990), lidando especificamente com a PEB de direitos humanos, pensamos ser adequado tomá-los como fontes primárias em algumas partes – na linha do que propõem Pinheiro e Vedoveli (2010). Se até aqui o fizemos em menor escala, procedemos assim porque utilizamos mais as informações históricas neles contidas (por exemplo, sobre a formação do sistema ONU de direitos humanos), e menos suas interpretações acerca da política externa. Tratandoos agora definitivamente como discursos, cremos ser possível neles discernir outros traços identitários do Brasil em sua diplomacia de direitos humanos. Já de antemão anunciamos que, até a seção 3.5, são diplomatas todos os autores abaixo, salvo Goffredo Junior (ao escrever em 2000). Primeiro, a imagem brasileira ostenta os aspectos de transparência e cooperação para com as Nações Unidas. Esta se reparte em duas facetas: o Brasil que contribui para o aprimoramento das normas e instrumentos de 67

Ver nesse sentido o discurso de Fernando Collor à AGNU (apud Corrêa, 2007, p. 528).

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controle da ONU, já apontado68, e, em contrapartida, a ONU que auxilia o Brasil a superar seus problemas internos. “[O] Brasil democrático valoriza e coopera com os mecanismos internacionais de supervisão, ciente de que eles apresentarão denúncias e recomendações sobre sua própria situação.” (Lindgren Alves, 2003, p. 102; ver também Saboia, 1994, p. 190). Nesse ponto ressalta-se a receptividade do país aos relatores temáticos do regime de direitos humanos das Nações Unidas69 e, ademais, a prática da delegação brasileira de dedicar parte de suas intervenções na AGNU e na CDH à exposição de iniciativas e desafios nacionais em direitos fundamentais70, “num item em que, geralmente, os países falam sobre violações alheias” (Lindgren Alves, 2003, p. 96). Portanto, em segundo lugar, imputa-se ao Brasil, além dos atributos de “transparente” e “cooperativo”, o de “neutro” ou “menos politizado”71, em contraste com Estados que instrumentalizam a linguagem dos direitos humanos em denúncias recíprocas; afinal, não temos “inimigos para desmerecer ou agredir” (ibid., p. 102). Contudo, os Outros da identidade brasileira ora analisada não se limitam aos “hiper-seletivos”. Afastamo-nos igualmente dos países “nãotransparentes” e “não-cooperativos”, que adotam argumentos soberanistas e relativistas para evadir-se da supervisão da ONU. Isso porque incorporamos os princípios da “legitimidade da preocupação internacional com a situação dos direitos humanos em qualquer parte do mundo” e da universalidade dos 68

Referimo-nos ao “Brasil-que-apoia-as-tendências-da-ONU”; cf. Saboia (1998, p. 12) e Lindgren Alves (2003, p. 102). Ainda, nesse quesito é comum realçar um quê de continuidade e “tradição”, o que amplifica a legitimidade do perfil cooperativo; cf. Saboia (1994, p, 189). 69 “Somos um dos países que mais receberam visitas..., o que demonstra a abertura do Brasil ao sistema ONU de direitos humanos.” (Sobrinho, 2009, p. 100; ver também Saboia, 1998, p. 7-8). Por outro lado, consoante Goffredo Junior (2000, p. 113-116), no que tange à preparação e envio de relatórios aos Comitês da ONU, “a prestação de contas do Brasil... permanece incipiente”; mais adiante no texto, no entanto, o futuro diplomata modera sua crítica, ao acrescentar que “[e]ssa negligência... expõe a sua [do Brasil] parcial fidelidade à ‘tradição de respeito aos direitos humanos’” (grifos nossos). 70 Com efeito, é o que se verifica, por exemplo, no discurso de Collor (1990) – no trecho sobre os direitos das comunidades indígenas – e no de Celso Amorim (1993) – na alusão ao programa Combate à Fome (apud Corrêa, 2007, p. 528 e 572, respectivamente). Idem no discurso de Rubens Ricupero na CDH em 1991, que originou o comentário de Lindgren Alves acima (2003, p. 96). 71 A propósito, tal é a impressão que Saboia passa ao indicar: “[a] preferência brasileira se dirige particularmente aos mecanismos temáticos, ou seja, os relatores ou grupos de trabalho que se dedicam a um problema, como a tortura... O caráter temático dos mandatos, válido para o universo dos países, assegura sua ‘não-seletividade’” (1998, p. 7; grifos nossos).

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direitos humanos (Brandão & Perez, 1998, p. 4), ambos pontificados na Conferência de Viena de 1993 (ver abaixo). Não obstante, nesses Outros que desrespeitam os direitos fundamentais de seus cidadãos, os diplomatas distinguem entre os governos que perpetram violações deliberadamente ou por conivência, e as nações democráticas em desenvolvimento, que sofrem de deficiências estruturais (como o Brasil) – embora se compreenda que “as obrigações em matéria de direitos humanos não podem ser descumpridas em função da escassez de recursos” (Lindgren Alves, 2003, p. 97), outro dos princípios de Viena. Em suma, o alter aqui se restringe aos Estados autoritários e opressores de suas populações. Nosso país ocupa o polo eticamente superior em cada uma das dicotomias apresentadas: de um lado, é “menos politizado”, não privilegia a denúncia; de outro, é “transparente”, “cooperativo”, “cumpridor de seus deveres”, em oposição aos governos recalcitrantes em prestar contas. Tal repertório identitário mostra-se um tanto quanto incongruente com as votações controversas do Brasil na CDH e no Conselho de Direitos Humanos. Note-se, todavia, que é exatamente essa postura contraditória que, ao abalar a solidez do link identidade-policy (nos termos do pósestruturalismo de Hansen), ensejará a produção de discursos críticos à PEB de direitos humanos – objeto de estudo do próximo capítulo. Por um tempo após a redemocratização, manteve-se consistente a conexão entre o perfil identitário e a política externa na seara dos direitos humanos, à luz das ratificações e adesões sucessivas do Brasil a tratados sobre a matéria 72 e de um saldo positivo de votos favoráveis a resoluções sobre países específicos na CDH (Belli, 2009, p. 189). Mas as polêmicas viriam, suscitadas por atos de fala opositores à visão oficial. Ademais dos elementos identitários já apurados (“transparentecooperativo” e “menos politizado”), há ainda mais um: o “Brasil-ponte”. Registre-se que não detectamos nenhuma outra identidade autônoma além

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Para uma lista bem completa das convenções e protocolos acolhidos pelo Estado brasileiro, ver Belli (2009, p. 178-180) e Trindade (2006, p. 225).

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dessas três, apenas meros desdobramentos. 3.5. A Conferência de Viena, o “Brasil-ponte” e a Era Cardoso

Congregando 171 Estados e cerca de 800 ONGs acreditadas como observadoras, a Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, de junho de 1993, persevera ainda hoje como a maior, em magnitude, já realizada sobre o assunto. Inserida no circuito de reuniões temáticas da ONU da década de 1990, fora planejada para equacionar antigos e novos dilemas conceituais que acometiam o regime global de direitos humanos, bem como para propor instrumentos que lhe incrementassem as capacidades fiscalizatórias e de implementação, diante dos problemas que emergiam no prelúdio do pósguerra fria; (saliente-se, aliás, que a Conferência aconteceria paralelamente ao genocídio no conflito da Bósnia-Herzegovina). Se o êxito na consecução do primeiro objetivo costuma ser encarado como satisfatório, o acordo alcançado em torno do segundo, por meio do Programa de Ação de Viena, não contentou os ativistas mais ardorosos (Boyle, 1995, p. 79-84). A Conferência em si foi antecedida por encontros regionais e quatro outros preparatórios em Genebra, além do Fórum das ONGs. Quanto aos posicionamentos dos diferentes grupos de países que pautariam a reunião, Lindgren Alves (2000, p. 24) pinta um quadro algo mais complexo do que o dicotômico tradicional (Norte-Sul e Ocidente-Oriente). Entre as nações ocidentais desenvolvidas – que advogavam mecanismos de controle mais incisivos para os direitos civis e políticos – e o bloco asiático – defensivo e relativista –, o autor situa a América Latina e a África, cada qual por razões particulares. Ora, a distribuição dos Estados consoante esses referenciais espaciais depende do ângulo do observador, de sorte que, por exemplo, um analista chinês conservador provavelmente sugeriria organização diferente. Dispor os representantes latino-americanos no lócus intermediário encerra um movimento discursivo poderoso, como apreciaremos adiante. Ao Plenário e ao Comitê Principal cabia aprovar ou rejeitar os textos formulados pelo Comitê de Redação, mas foi neste em que as divergências

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mais se acirraram, conforme Lindgren Alves (2000, p. 32). O autor contanos sobre as fatigantes discussões e infindáveis revisões no conteúdo dos documentos, as quais por vezes resultaram em descumprimento de prazos – tudo no intuito de contornar tensões multi e também bilaterais. O mérito pela acomodação de tamanha dissonância deveu-se ao embaixador do Brasil Gilberto Vergne Saboia, eleito presidente do Comitê, e ao próprio Lindgren Alves, que coordenou uma “força tarefa” responsável por reescrever muitos dispositivos controversos (ibid., p. 32). Não duvidamos da competência de nossos agentes diplomáticos. Tão somente gostaríamos de, por uma ótica pós-estruturalista, traçar a imagem que tal papel de mediador (policy), ao ser interpretado por outros “diplomatas enquanto intelectuais” – no dizer de Pinheiro e Vedoveli (2010) –, concede ao Brasil. Ilustrativa desse aspecto é a metáfora da “ponte” (Brandão & Perez, 1998, p. 5; Saboia, 1998, p. 11); sublinhe-se que, mais do que conectar dois extremos, uma ponte, justamente por localizar-se no centro, contrapõe-se a ambos os extremos; simboliza a moderação e a neutralidade, insinuando ser o “Brasil-ponte” capaz de renunciar a seus interesses egoístas em prol da aproximação de partes contrárias; ou, antes, constitui o Estado brasileiro como interessado eminentemente em disseminar a concórdia, o que, por sua vez, beneficia o sistema de direitos humanos da ONU. Usualmente, a figura da “ponte” vem acompanhada pela expressão “articulação de consensos”73 – cujo emprego, a propósito, não se tem circunscrito à atuação do Brasil na Conferência de Viena74; abarca, na verdade, sua participação na CDH e no Conselho de Direitos Humanos em geral (Sobrinho, 2009, p. 109; MRE, 2011, p. 4). Goffredo Junior, na dissertação que escreveu quando ainda era aspirante à carreira diplomática, chega a reproduzir o discurso oficial, ao aludir a uma “tradicional postura de articulação de consensos da diplomacia brasileira” (2000, p. 110). 73

Gelson Fonseca Jr. (2004, p. 358) credita sua autoria ao embaixador Roberto Abdenur. A propósito, embora não descrita nesses termos, ela já esteve presente tão cedo quanto em 1968, em relatório dos delegados brasileiros à Conferência de Teerã, no qual se narrava: “‘após pacientes negociações’, logrou-se superar a polarização entre Delegações de países africanos e ocidentais, para o que ‘muito contribuiu a Delegação do Brasil’” (apud Cançado Trindade, 2000, p. 56). 74

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Afora isso, indique-se que, na literatura diplomática (e.g., Brandão & Perez, 1998, p. 3-4) – e até em certos discursos proferidos na ONU (e.g., o dos “três Ds” de Celso Amorim) –, é uma prática corrente propalar os princípios da Declaração de Viena como princípios-guia da PEB de direitos humanos. Trata-se dos seguintes valores: a) a universalidade que leva em consideração as peculiaridades históricas, culturais e religiosas; b) o reconhecimento dos direitos à autodeterminação e ao desenvolvimento, contanto que não se prestem a justificar afrontas a direitos humanos; c) a interdependência entre democracia, direitos humanos e desenvolvimento75; e d) a legitimidade da preocupação internacional com os direitos humanos (Lindgren Alves, 2000, p. 37-47). Belli atenta para as coincidências de linguagem, ressalvando, entretanto, que a enunciação de tais princípios por nosso país “revela identidade própria e especificamente brasileira” (2009, p. 185). Não questionamos a afirmação nem contestamos que o Brasil deva realmente endossar semelhantes valores. Queremos, isto sim, aplicando a lógica da intertextualidade, enfatizar este ponto: ao citar o texto das Nações Unidas, os representantes brasileiros não só lhe agregam maior autoridade, mas também legitimam as próprias palavras. E, a despeito de revestirmos esses princípios com autenticidade nossa, em essência nós simplesmente os repetimos, manifestando-se aqui com toda a força o perfil identitário do “Brasil-paladino-da-ONU”. À parte o desempenho oficial da delegação brasileira, outra faceta da Conferência de Viena que merece destaque corresponde aos contatos entre o Itamaraty e a sociedade civil. Apesar do incentivo formal das Nações Unidas a que os governos dialogassem com as ONGs, os representantes brasileiros não o fizeram em nenhum dos encontros preparatórios de Genebra. Contudo, a interação ocorreu: tanto previamente – num seminário envolvendo atores da sociedade civil, diplomatas e agentes do Ministério da Justiça, promovido via pedido remetido a Fernando Henrique Cardoso, chanceler à época –, quanto simultaneamente à Conferência – mediante 75

Interligação já aventada pelo Brasil na CDH em 1988, aliás (Cançado Trindade, 2000, p. 100).

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reuniões diárias entre ONGs e a delegação brasileira, conquanto esta não contasse com representantes não-governamentais (Lima, 2009, p. 78-84). Aproveitando tal ensaio de contato entre sociedade civil e MRE – experiência que já se verificara na Rio-92 e se replicaria em conferências subsequentes do ciclo dos anos 1990 –, Cardoso lançou mão da ideia de “Diplomacia Pública” quando assumiu a presidência em 1995. A proposta foi inaugurada pelo então Ministro das Relações exteriores, Luiz Felipe Lampreia, em apresentação na Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados (ibid., p. 51); postulava-se que a “política externa se [fizesse] em diálogo permanente com a sociedade”, porquanto “o Itamaraty não cria interesses nacionais, ele os identifica e os defende, com um mandato da sociedade” (apud ibid., p. 51-52). Escrevendo nesse período, Brandão e Perez (1998, p. 5) exortam a iniciativa e, inclusive, tomam-na como elemento que retrata com fidelidade os contornos da PEB de direitos humanos; propugnam: “as posições que a diplomacia brasileira defende em foros de direitos humanos refletem os interesses e preocupações de nossa sociedade” (ibid., p. 5). O mesmo se lê – e num vocabulário assemelhado – em Lindgren Alves (2003, p. 97) e nas vozes de Celso Lafer e Celso Amorim nas Nações Unidas (cf. referências supra). Embora caiba discutir se tais palavras refletem puramente o típico verniz da retórica diplomática, ou se provinham de uma conclusão talvez plausível ao contexto da época – marcado pelas promessas da “Diplomacia Pública” e pela parceria entre MRE e ONGs ao longo das Conferências –, resta patente que elas constróem para o Brasil e para o Itamaraty a imagem de “democráticos”; a transparência não se mostra só na relação do Estado brasileiro com a ONU, mas abrangeria também a interação entre diplomatas e sociedade civil. É evidente que semelhante interpretação possui lacunas e distorções. Esconde que o grau de abertura do MRE à participação social sempre foi menor do que o demandado. Ademais, instila o entendimento falacioso de que o diálogo engendrava unicamente concordância, sem haver choques, como se os agentes diplomáticos e os atores da sociedade civil

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compartilhassem das mesmas opiniões quanto aos direitos humanos – o que certamente não acontecia (e não acontece). Essa impressão de harmonia ainda persiste nos textos de alguns autores – vide, por exemplo, Sobrinho (2009, p. 103-104) –, porém não de todos, conforme reparamos em Belli (2009, p. 214-215). Como aponta Lima (2009, p. 54), o prosseguimento da Era Cardoso frustraria as expectativas dos que ansiavam pela democratização da PEB, pois “o discurso democrático continha uma carga muito maior de interesses legitimadores do que o que se apresentava na realidade”. Mesmo a criação do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais junto ao Itamaraty, em 1995, pode ser compreendida menos otimista e mais ceticamente, como parte de uma estratégia de reforma conservadora, que ambiciona preservar dentro da esfera de competência da instituição as temáticas contemporâneas da agenda de relações exteriores do país; é uma maneira de o MRE “lutar por sua sobrevivência burocrática” (Spécie, 2008, p. 45). Diferentemente desses precedentes, o CBDHPE não foi instaurado de cima para baixo. Como já se explicou, a inspiração para seu surgimento adveio do informe elaborado pela ONG Conectas – fruto do PAPEDH –, e sua fundação decorreu do consenso, em audiência pública na CDHM da Câmara dos Deputados, entre diplomatas, parlamentares e representantes não-governamentais. Talvez o fato de ter sido suscitado pela sociedade civil acabe por demonstrar-se crucial para a eficácia democratizante do Comitê. Em resumo, eis as facetas identitárias que discernimos para o Brasil pós-redemocratização no que tange à política externa de direitos humanos, a partir da análise dos discursos diplomáticos (incluindo-se entre eles tanto a produção acadêmica quanto a oratória em foros oficiais): “transparentecooperativo” ante a ONU, “menos politizado” e “ponte”. Cada uma dispõe de conteúdo próprio, no entanto todas integram o mesmo polo discursivo e, logo, continuamente se interpenetram, perfazendo um processo de ligação (Hansen, 2006, p. 17).

4. Era Lula: democratização da PEB de direitos humanos? 4.1. A PEB de direitos humanos sob Lula: uma introdução

O pensamento que informou a política externa do Brasil de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) ostentou determinados traços distintivos, embora se debata na literatura o real grau de mudança que essa troca de lentes aportou às diretrizes das relações exteriores 76. Diferenças de ideário e oratória constatam-se em especial quando se estabelece uma comparação com a gestão imediatamente anterior, de FHC. Não tencionamos entrar em detalhes, pois o momento e o lugar não são apropriados para tanto. Por ora basta citarmos poucas características usualmente atribuídas à PEB sob Lula, no intuito de tecer um panorama introdutório. Parece viger algum consenso quanto ao caráter mais assertivo que se procurou injetar em nossa diplomacia a partir de 2003, o que se traduziu numa postura pró-ativa e demandante de reformas nos foros interestatais, ilustrada, e.g., pela atuação do G-20 comercial durante a Rodada Doha da OMC – Organização Mundial do Comércio (Hirst et al., 2010, p. 23 e 29). Acrescente-se a reiterada assunção da não subserviência do país às grandes potências, por meio de uma retórica que se empenhou em agregar altivez à promoção dos “interesses nacionais” (Cervo, 2010, p. 9); segundo Celso Amorim, Ministro das Relações Exteriores de Lula: “o Brasil não é um país pequeno. Não tem e nem pode ter uma política externa de país pequeno” (2007, apud Bernal-Meza, 2010, p. 201). Ademais disso, em defesa da democratização das instituições multilaterais, proferiram-se com frequência críticas aos efeitos nocivos da globalização e às desigualdades típicas do sistema internacional (Amorim, 2010b, p. 215). Como tática preferencial na esfera extra-hemisférica, pôs-se o Brasil a diversificar suas alianças e laços, mediante a multiplicação de representações diplomáticas, a expansão da Cooperação Sul-Sul e a pactuação de “coalizões de geometria variável”. Nessa esteira surgiram o fórum IBAS (Índia-Brasil-África do Sul) e o bloco 76

Ver, nesse sentido, Vigevani e Cepaluni (2007).

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dos BRIC77 (Brasil-Rússia-Índia-China), realizaram-se cúpulas junto com as nações africanas e com as árabes, etc. (Hirst et al., 2010). Na seara dos direitos humanos, os elementos identitários apontados no Capítulo 3 não foram abandonados, todavia desapareceram do discurso oficial, provavelmente porque se tornara desnecessário reinvocá-los; afinal, ao menos em meio a seus pares governamentais, já se supunha consolidada a reputação do Estado brasileiro de responsável, observador de valores humanistas. A novidade – se é que se pode chamar assim – decorreu de uma questão de ênfase: durante o primeiro mandato de Lula, os direitos humanos estiveram fortemente associados à luta contra a fome e a miséria. Tal foi o foco dos discursos do presidente na AGNU em 2003 e também na reunião de líderes mundiais para a Ação contra a fome e a pobreza, em setembro de 2004, em Nova York78. Permeados por alta carga de moralismo, referidos pronunciamentos escoraram-se na ideia de justiça social e nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, e resgataram temáticas como as disparidades socioeconômicas entre Norte e Sul. Programas como o Bolsa Família e o Fome Zero ganharam relevo e, ao “[transformar-se] a conquista social num atributo da política externa” (Hirst et al., 2010, p. 37), logrou-se moldar para o país uma imagem de “engajado” e “solidário”, num cenário onde, conforme se manifestou o Brasil, “a miopia e o egoísmo de muitos [os Outros] ainda [persistiam]” (apud Corrêa, 2007, p. 708). Os atos de fala encontraram ressonância na prática, zelando-se pela solidez do link identidade-policy. Além dos avanços no plano doméstico79, no plano internacional o país passou a distribuir assistência técnica para o 77

Hoje BRICS, correspondendo a última letra do acrônimo à África do Sul (South Africa). Com quatro parágrafos ao início dedicados ao brasileiro Sérgio Vieira de Mello – ocupante do posto de Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos quando pereceu em atentado terrorista em Bagdá –, o discurso de Lula de 2003 postulava: “Erradicar a fome no mundo é um imperativo moral e político. (...) A mesma determinação que meus companheiros e eu estamos empregando para tornar a sociedade brasileira mais justa e humana, empregarei na busca de parcerias internacionais com vistas a um desenvolvimento equânime e a um mundo pacífico, tolerante e solidário” (apud Corrêa, 2007, p. 703, 707 e 710). Para o pronunciamento por ocasião da reunião para a Ação contra a fome e a pobreza, cf. Corrêa (2007, p. 727-732). 79 Em relatório de 2010 da ONG ActionAid sobre o combate à fome, o Brasil liderava o ranking de 29 países em desenvolvimento. A isso se acresça que, depois de visitar-nos em outubro de 2009, o relator especial da ONU para o direito à alimentação louvou os progressos alcançados pelo Estado brasileiro, sem ignorar a existência de desafios pendentes (Asano & Nader, 2011, p. 120-121). 78

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desenvolvimento – via Agência Brasileira de Cooperação (ABC), projetos ministeriais e parcerias com a sociedade civil –, destacando-se os Estados africanos como receptores (Cervo, 2010, p. 20-21; Hirst et al., 2010, p. 3234). Em contrapartida, integrantes da ONG Conectas, Asano e Nader (2011, p. 122-123) indicam que, a despeito de encarnar um modelo em matéria de redução da miséria, a ponto de dispor de credibilidade (e recursos) para exportar ajuda a terceiros, na Administração Lula o Brasil descuidou-se de investir em direitos civis e políticos, particularmente os da inchada população carcecária, submetida a condições abomináveis, como bem reconheceu o Comitê da ONU sobre Combate à Tortura, em 2008. Em todo caso, no que tange a essa abordagem cooperativa adotada por nosso país para a proteção internacional dos direitos humanos, percebese que ela enquadra-se no aspecto identitário de “menos politizado” acima descrito. Como atestado em discurso de 2005 à AGNU80, propaga-se que o Brasil privilegia – ante a denúncia, a condenação e a intervenção – meios alternativos, a saber: o diálogo, a persuasão e a assistência. Destarte, num novo contexto e sob nova roupagem conceitual, ademais de articulado a novas policies, reaparece aqui a dicotomia da PEI, da década de 1960: os Outros que violam os direitos fundamentais de seus cidadãos não se situam no polo dos “atrasados” ou “incivilizados”, inaptos a progredir; muito pelo contrário, podem fazê-lo, sim – só precisam de suporte técnico. É óbvio que se detecta alguma hierarquia nessa relação81, porque o alter é representado como dependente do ego (nosso país); entretanto, o Outro não é de todo 80

“A cooperação internacional na esfera dos direitos humanos e da assistência humanitária deve orientar-se pelo princípio da responsabilidade coletiva. Temos sustentado (...) que o princípio da não-intervenção em assuntos internos dos Estados deve ser acompanhado pela ideia da ‘nãoindiferença’. (...) [É] ilusório pensar que podemos combater os desvios políticos que estão na origem de violações graves de direitos humanos por meios exclusivamente militares, ou mesmo por sanções econômicas, em prejuízo da diplomacia e da persuasão.” (apud Corrêa, 2007, p. 752-753; grifos nossos). 81 Registre-se que, mesmo no plano da retórica, é imensamente tênue a fronteira que separa o Brasil que renega o papel de “civilizador” do que, apesar de rejeitar tal imagem, vislumbra o Outro como “civilizável”. A tensão fica visível, por exemplo, na fala da embaixadora Maria Nazareth Farani Azevedo, representante brasileira em Genebra: “(...) mas muitas vezes a violação advém de uma circunstância de pobreza, de poucos recursos ou de exploração inadequada de recursos” (grifos nossos), e – leia-se – caberia ao Estado brasileiro “ensinar” aos “não versados” (ou então “tutelá-los” sobre) como aproveitar os recursos corretamente. Para a íntegra, cf.: Grayley (2010).

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inferior, visto que não se admite difamá-lo nem violentá-lo, forçando-o a “evoluir”, “amadurecer”. Proeminente nessa abordagem é o intenso esforço em se evitar alçar o Brasil ao patamar de “superior” frente aos (demais) Estados violadores de direitos humanos – uma particularidade da diplomacia sob a chefia de Celso Amorim. “No campo dos direitos humanos, não há mestres que não tenham o que aprender nem alunos que não tenham nada a ensinar.” (MRE, 2006, p. 186) Argumenta-se que todos os países têm deficiências no que concerne à satisfação da dignidade de seus cidadãos, isto é, em nenhum canto do globo verificam-se condições de pleno bem-estar. Por estar ciente disso, nosso país conseguiria prevenir-se de assumir atitudes arrogantes, em oposição a Estados que condenam uns aos outros por conveniência. A “humildade” e “senso de autocrítica” de que desfrutaríamos ironicamente serviriam a que lustrássemos nossa autoridade moral, reforçando-se a imagem de “menos politizado”. Outrossim, apela-se a uma razão pragmática para justificar tal comportamento não presunçoso: ele permite a construção de confiança para com governos opressores, o que, consoante o discurso oficial, consiste em tática bem eficaz para incentivar melhorias nos direitos humanos daqueles regimes – uma crença contestável, como veremos. Enfim, essa preferência brasileira por métodos de ação mais neutros e apaziguadores acabaria por desembocar numa postura desabonadora à CDH, quando de sua decadência, e até ao Conselho de Direitos Humanos82 – assunto da próxima seção.

4.2. O Brasil e o fim da Comissão de Direitos Humanos: um meio-termo “brand new” para a identidade brasileira?

Os anos que precederam a criação do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas foram caracterizados por drástica crise de legitimidade na antecessora CDH. Acusada por todos os lados de ter sucumbido à 82

Segundo Amorim (2010, p. 238-239): “[a] harsh condemnation of this or that country in Geneva or New York, based on a self-ascribed position of high moral ground, does little to ameliorate the situation of those perishing in the field. Engaging in real dialogue with the auhorities with the actual means to make peoples’ lives less miserable is – as a rule – more productive for improving human rights [than] a resounding speech in the Human Rights Council” (grifos nossos).

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seletividade, aos duplos-padrões e ao “finger-pointing” perpetrados pelos Estados – que aderiam à instituição não para promover os direitos humanos, mas para protegerem-se a si mesmos de criticismo e criticar adversários83 –, a convicção na falência do órgão espraiou-se mesmo entre os defensores da organização (Lauren, 2007, p. 308). Acadêmicos, jornalistas, ONGs, todos passaram a compartilhar o vocabulário da “hiperpolitização da Comissão”, aparentemente se esquecendo de que, em dado grau, a politização existira desde sempre e – o pior de tudo – ignorando os méritos atingidos até então pelo sistema ONU de direitos humanos (ibid., p. 325). Firmou-se consenso em torno da necessidade de reforma. Com efeito, as circunstâncias, lidas à luz do profundo desprestígio que acometia a instituição, sugeriam que uma sucessão de escândalos estava em curso84. No bojo de tal processo, posaram de reformistas inclusive aqueles que ambicionavam livrar-se do escrutínio internacional. Integrantes do Grupo Africano, da Organização da Conferência Islâmica e do denominado “Like-Minded Group”85 imputavam um sentido negativo à “racionalização” dos mecanismos da CDH, preconizando mudanças solapadoras de sua capacidade de supervisionar a situação dos direitos humanos ao redor do mundo e singularizar os casos de graves lesões (Gutter, 2007, p. 104). Daí que, no dizer de Hampson (2007, p. 9), nenhuma presunção em favor do status quo subsistia; por outro lado, os rumos da transformação que se almejava não estavam claros; para uns, havia risco de retrocesso. No canto oposto à proposta pessimista supracitada dispunham-se os que exigiam um órgão mais confiável e eficaz (ibid., p. 16), qualificados 83

Cf. report de Kofi Annan (2005, p. 45), ex-Secretário-Geral da ONU. Em 2000, os EUA não lograram renovar seu mandato como membros do órgão, pela primeira vez desde sua fundação (Belli, 2009, p. 131-132), e na sequência da “guerra ao terror” puseram-se a negar veementemente os abusos cometidos em Guantánamo e Abu Ghraib, e a acobertar aliados violadores – como Israel, Paquistão, Turquia e Uzbequistão (Lauren, 2007, p. 330). Em 2003, a embaixadora da Líbia, sob a ditadura de Muammar Gaddafi, foi eleita à presidência da CDH, enquanto outros governos autoritários – Sudão e Zimbábue – também vieram a compô-la, a fim de resguardarem-se contra resoluções condenatórias. Nesse período, a Human Rights Watch anunciou que um “abusers club” tinha-se consolidado na instituição (ibid., p. 328-329). 85 Constituído por Arábia Saudita, Argélia, China, Cuba, Egito, Indonésia, Irã, Líbia, Paquistão, Sudão, entre outros Estados interessados em limitar a eficácia dos procedimentos de fiscalização ostensiva da Comissão de Direitos Humanos (Gutter, 2007, p. 104). 84

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curiosamente pelo diplomata Benoni Belli como advogados do “status quo, ou seja, [d]a reprodução de um sistema de condenação rotineira e arbitrária de países” (2009, p. 5). Não questionamos se essa definição é adequada ou não. Queremos ressaltar, isto sim, que o autor utiliza-a com o propósito de localizar o Brasil num lócus intermediário entre “extremos que inviabilizam uma autêntica ‘síntese superadora’ dos trabalhos da CDH” (ibid., p. 5). A identificação de uma dicotomia entre os reformistas não configura especificidade da obra de Belli. A literatura que pesquisamos categoriza de fato as diferentes posições em “Grupo Ocidental vs. ‘Like-Minded Group’”, tendendo a enxegar com bons olhos o primeiro e reprovar o segundo; ou então há quem, ainda, reconheça uma terceira categoria – vide Hampson86 (2007, p. 16) e Philip Alston (2006, apud Belli, 2009, p. 149). Não obstante, pode-se discernir um aspecto peculiar na apreciação do diplomata: o meio-termo inserido nas proposições brasileiras consigna a via “ótima”, a “única admissível”, já que se afasta das opções polarizadas acima apontadas, ambas “inaceitáveis” (ibid., p. 18). Desenha-se, logo, um segundo dualismo – este verdadeiro, ao passo que o primeiro (“ocidentais vs. ‘like-minded’”) é rechaçado como falso, como incapaz de chegar a uma solução satisfatória. Nessa “nova” hierarquia, o Brasil ocupa o centro, lugar da moderação, enquanto os Outros residem nos extremos, ou porque são demasiado seletivos e rigorosos ao se valerem de resoluções condenatórias, ou porque execram completamente o monitoramento da ONU. Convém esclarecermos que o livro de Benoni Belli deriva de sua tese do Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco, procurando “avançar uma política pública” (apud Pinheiro e Vedodeli, 2010, p. 26). Por conseguinte, não causa espanto que o autor reitere insistentemente a imagem do Brasil de “medial” para, na parte final da obra (Conclusões e propostas), propugnar que o país, via “liderança pelo exemplo” e em aliança com outros Estados

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Cabe notar que o tom tímido de Hampson (2007) destoa do enfático de Belli (2009). A primeira faz referência breve e incerta à terceira categoria: “[t]here may be a third category of States...” (grifos nossos). O diplomata, ao contrário, retoma-a continuamente ao longo de seu livro, pois ela configura uma de suas premissas mais essenciais.

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latino-americanos, propicie a maior objetividade do Conselho, em benefício dos direitos humanos e dos “interesses nacionais”87 (ibid., p. 244). Historicamente, tal identidade de “moderado” informou as críticas brasileiras à hiperpolitização da Comissão quando sua extinção fazia-se iminente. À época todos indistintamente atacavam as deficiências do órgão, e nosso país igualmente procedeu assim; contudo, conforme Belli (ibid., p. 197), foi um dos poucos que realmente propôs ideias em prol da mitigação da politização, sem deixar de salientar que, para tratar das hipóteses mais gravosas, o regime de direitos humanos das Nações Unidas não deveria prescindir de instrumentos de pressão política – tais quais os procedimentos ostensivos. O Brasil defendia a implementação de um relatório universal, que analisasse a situação dos direitos fundamentais efetivamente no globo inteiro, de sorte que nenhum Estado ficasse de fora do escrutínio; eis os alicerces do Universal Periodic Review88 (UPR). A intenção original era que essa revisão “servisse de base isenta e objetiva para as decisões propriamente políticas do [Conselho]” a ser instaurado89 (ibid., p. 201). O perfil identitário ora cunhado para o Brasil pode ser considerado um desdobramento do de “menos politizado” (cf. seção 3.5): além de preterir a denúncia em sua política externa de direitos humanos, nosso país aspira a impedir que os demais denunciem abusivamente seus adversários. Por um lado, a contestação à CDH consiste em tema recente da PEB, tendo sido introduzido cautelosamente na década de 1990, visto que se receava que o Estado brasileiro fosse associado àqueles que pretendiam despojar a ONU de sua competência fiscalizatória. Por outro, se a imagem de “crítico da politização” adquiriu maior vulto e substância somente na Era Lula, isso 87

“A lógica é a de que, quanto mais politizado e seletivo [e, logo, menos objetivo] for o sistema [do Conselho] como um todo, maior o custo de um voto favorável a projeto de resolução, mesmo que tal projeto reflita situação verdadeiramente grave de abusos...” (ibid., p. 210). 88 Planeja-se que, a cada quatro anos, os 192 Estados sejam revisados por seus pares, a partir da exposição de relatório que sinalize problemas e avanços, feito por governo, sociedade civil e ONU. 89 Na Terceira Comissão da AGNU, em 2003, o Brasil pronunciou-se: “o duplo-padrão aumenta o risco de enfraquecer o sistema internacional de promoção e proteção dos direitos humanos. (...) Como proposto pela minha delegação durante a 56ª sessão da CDH, um relatório global de direitos humanos pode constituir uma valiosa fonte de informações objetivas e de análise para avaliar a necessidade de lidar com situações específicas” (apud Belli, 2009, p. 199). Cf. também o discurso brasileiro no encontro de abertura da AGNU em 2005 (apud Corrêa, 2007, p. 752).

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ocorreu devido à oportunidade do momento, afinal o descrédito do órgão era então patente; a identidade não é totalmente nova, pois se calca em caracteres já conhecidos, como o atributo de “articulador de consensos”, com sua pujança legitimadora; quanto à metáfora da “ponte”, apesar de em princípio julgá-la inapropriada, Belli (ibid., p. 167) tem dificuldade em abandoná-la definitivamente. No âmbito do conjunto de reformas preconizado por Kofi Annan às Nações Unidas como um todo, em abril de 2006, pela Resolução 60/25190, a CDH foi substituída pelo Conselho de Direitos Humanos, encarregado de minudenciar os detalhes de seu arcabouço institucional em sua primeira sessão (Hampson, 2007, p. 8-9). O pacote de normas e procedimentos 91 foi consolidado em junho de 2007 e contentou as principais ONGs, embora algumas não se tenham furtado a expor reservas (Belli, 2009, p. 156-157). As discussões no Conselho revitalizaram a clivagem entre europeus, norteamericanos e canadenses, de um lado, e afro-asiáticos, não-alinhados, OIC e Federação da Rússia, de outro, evocando a literatura diplomática o papel do Brasil de “conciliador” das contendas (Sobrinho, 2009, p. 103; MRE, 2011). Durante a reunião, Celso Amorim falou sobre questões já típicas da PEB de direitos humanos – como a luta contra a fome, a doença, a probreza e a discriminação – e de novo censurou a hiperpolitização, sugerindo o UPR como instrumento corretor desse vício92. Pronunciamentos subsequentes 90

170 países votaram a favor; quatro contra (EUA, Israel, Ilhas Marshall e Palau); e três optaram pela abstenção (Belarus, Venezuela e Irã). A resolução continha prescrições sobre assuntos gerais, entre outros: critérios de seleção dos candidatos ao Conselho (de então em diante, deveriam provar ter contribuído para a “promoção e proteção dos direitos humanos”); possibilidade de suspensão do mandato de um membro como sanção; e estabelecimento do UPR, previsto como “cooperativo e baseado no diálogo interativo” (Upton, 2007, p. 34). 91 Cf. documento A/HRC/RES/5/1; disponível em: ; acesso em: 18 out. 2011. 92 “Singularizar países, enquanto outros são deixados de lado por razões políticas, leva ao isolamento e à radicalização, bem como a um sentido de falta de justiça, sem benefícios para as vítimas de abusos. (...) Um dos maiores desafios a serem enfrentados pelos membros do Conselho será a implementação do Mecanismo de Revisão Periódica Universal, que sinaliza mudança de curso salutar em relação ao foco politizado e excessivamente seletivo na situação de direitos humanos em países específicos. (...) Há anos, o Brasil tem defendido um enfoque verdadeiramente universal, equilibrado e imparcial dos direitos humanos em nível mundial, por meio de um relatório global... (...) Resoluções sobre países ocorreriam apenas em casos excepcionais de flagrantes violações, em situações que sejam graves e urgentes. (...) É preciso que o nosso objetivo não seja tanto de condenação, mas de promoção... A cooperação precisa prevalecer sobre a

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reproduziriam os traços identitários que destacamos acima 93. Para encerrar esta seção, ressalte-se que o Brasil foi eleito para o novo órgão de direitos humanos arrebanhando o maior número de votos entre os oito países latino-americanos representados. Ademais, foi um dos primeiros a submeter-se voluntariamente à Revisão Periódica Universal94. Os registros oficiais e textos escritos por diplomatas relatam que de modo geral a participação do Estado brasileiro na antiga CDH e no atual Conselho foi sempre construtiva – cf., e.g., Sobrinho (2009) e MRE (2011). Cabe perguntar, por conseguinte, o que fomentou – particularmente durante a Era Lula – as críticas à PEB de direitos humanos, dado o quadro aparentemente positivo ostentado por ela. Tentaremos sanar tal dilema abaixo.

4.3. Politização da PEB de direitos humanos?

À pergunta acima, podemos responder começando pela constatação de que, no lapso 2003-2010, o Brasil contribuiu para que não vingassem certas resoluções condenatórias a países violadores de direitos humanos. Porém, só isso não basta para formularmos qualquer conclusão, pois em governos anteriores a delegação brasileira não agiu diferentemente, sendo notório o exemplo de Cuba, em que desde 1980 (e mesmo após nossa redemocratização) se vem cultivando atitude abstencionista nas votações por medidas fiscalizatórias à ilha (Belli, 2009, p. 189-190). Além do mais, relembre-se que as decisões do Estado brasileiro, se não lidas por meio de discursos, pouco significam; destarte, a partir do momento em que nosso país pôs-se a reprovar a hiperpolitização da Comissão, deu-se azo a que se justificassem as abstenções – e votos contrários (ou favoráveis em noaction motions) – com base no argumento da neutralidade, ou seja, propalava-se que as resoluções eram seletivas ou duras demais, caracteres vitimização. E os ideais – precisamente aqueles que foram consagrados na Declaração Universal – precisam prevalecer sobre a conveniência política.” (apud MRE, 2006, p. 185-187; grifos nossos). 93 Cf. os discursos de Celso Amorim na cerimônia de comemoração aos 60 anos da DUDH (2008), de Lula no Conselho (jun. 2009) e de Celso Amorim na 65ª sessão da AGNU (set. 2010); checar site oficial do MRE: ; acesso em: 19 out. 2011. 94 Para as impressões de um diplomata e da Conectas sobre a avaliação de nosso país, cf.: Sobrinho (2009, p. 108-109) e Conectas (2009, p. 101-123).

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que censurávamos, e daí não as acolhíamos; ainda, por vezes se alegou que, votando a favor, deterioraríamos nossas relações com os parceiros alvos da proposta de monitoramento sobre que se deliberava (ibid., p. 187 e 204205). Tais escolhas (policies), embora legitimadas pela faceta identitária do “Brasil-menos-politizado”, podiam receber interpretação diversa. E aqui entra a relevância da agência para a politização das relações exteriores, que sublinhamos na seção 2.4. (Observe-se que agora abordamos a politização no sentido de polemização dos eventos da PEB, a politização que os faz frequentar o debate público, como matéria-prima para que sejam elaborados discursos críticos; não há que confundi-la com a outra, sinônimo de seletividade, que foi (e continua sendo) alvo de desabonos nos órgãos de direitos humanos das Nações Unidas.) Ora, coube aos agentes da sociedade civil – em especial a ONG Conectas, cujo PAPEDH iniciou-se em 2005 – investigar os padrões decisórios do Brasil na CDH e no Conselho, detectarlhe contradições e avançar leituras alternativas. Logo, eis que ações antes coerentes, pois enquadradas na narrativa oficial do Itamaraty, tornam-se controvertidas; o que outrora era pacífico virou contestável. Não pesquisamos a fundo se nas gestões que precederam à de Lula a política externa de direitos humanos foi mais contenciosa ou menos, porque a monografia visa a enfocar as críticas do período 2003-2010. Não obstante, cremos que a PEB de direitos humanos sob Lula revelou-se singularmente politizada, em razão de outros acontecimentos que a marcaram, para além das votações polêmicas (ou melhor, polemizadas) no âmbito da Comissão e do Conselho. Trata-se de “escândalos midiáticos”, como a aproximação ao Irã de Ahmadinejad ou à Guiné Equatorial do ditador Obiang Nguema, ou a comparação, feita por Lula, da situação de prisioneiros políticos cubanos à de criminosos comuns brasileiros (Szklarz, 2010, p. 19-20). Semelhantes casos são quase que polêmicos por natureza e, assim, sua desdramatização pela diplomacia mostra-se de difícil execução. Tanto que eles reverberaram largamente em meio à audiência nacional, instilando a sensação de que o Brasil estava “em defesa dos amigos, não dos direitos humanos”, conforme

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subtítulo do mesmo autor supra (ibid., p. 19). A postura discreta do Brasil quanto à pena de morte cominada a Sakineh Ashtiani pelo regime iraniano também suscitou repreensão (Conectas, 2010). “Não há dúvida de que o ‘diálogo franco’, que propõe Amorim, poderia ser uma alternativa válida. No entanto, tal diálogo pressupõe que o Brasil reconheça as violações praticadas pelos países dos quais se aproxima e coloque-se a favor da responsabilização dos violadores e da reparação das vítimas. Caso contrário, o Brasil corre o risco de legitimar tais violações.” (Asano & Nader, 2011, p. 125)

Apesar de serem dignos de análise os textos que veiculam referidos atos de fala críticos, nossa atenção não recairá sobre eles; somente os mencionamos porquanto seria impensável omiti-los, tamanha sua força politizadora. Lidaremos com os discursos que censuram posicionamentos da delegação brasileira em resoluções sobre países específicos na Comissão e no Conselho de Direitos Humanos; tomaremos como divisor de águas o informe da Conectas apresentado em 2005 em audiência pública (AP) na Câmara dos Deputados. Realizamos um levantamento de notícias prévias a 2005 nas versões online de jornais de ampla circulação no país, intentando captar o grau de repercussão então detido, na órbita doméstica, pelo histórico de votação do Brasil em questões de direitos humanos na ONU. Verdade seja dita, datados dessa época, encontramos menos artigos do que esperávamos. Colhemos a série de reportagens acerca de abusos perpetrados em Cuba, entre as quais se inclui uma que desaprova, na esteira da mídia estrangeira, a abstenção brasileira na CDH em abril de 2003, quando da designação de representante pessoal do Alto Comissário para Direitos Humanos das Nações Unidas para visitar a ilha95. Talvez porque seja complicado desvincular tal evento de outras polêmicas que o acompanharam96, bem como da crença nutrida por 95

Ver “NY Times...” (2003). Para a íntegra da resolução, cf.: E/CN.4/RES/2003/13; disponível em: ; acesso em: 21 out. 2011. 96 Enquanto em Genebra a CDH desempenhava seus trabalhos, o Brasil manteve um baixo perfil a respeito da decisão de Cuba de prender cerca de 75 dissidentes políticos e fuzilar, após julgamento sumário, outros três (Zanini, 2003). Em julho de 2003 a delegação brasileira endossou proposta de Cuba e Líbia demandando a suspensão da ONG Reporters Sans Frontières da CDH, e em seguida

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certos analistas sobre a “partidarização” da política externa97, caiba sugerir que parte dessas críticas preocupa-se precipuamente com o fortalecimento dos laços entre Lula e Fidel Castro, e só secundariamente com as escolhas de nossos diplomatas nos órgãos de direitos humanos da ONU. Enfim, há atos de fala em que predomina a primeira ótica (“Cuba-castrista”) e outros em que a segunda é prevalecente (“Cuba-violadora”), mas nem sempre se logra discernir com precisão98. Independentemente disso, cumpre apontar que, diante da miríade de controvérsias, Celso Amorim seria convocado à Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara para prestar esclarecimentos. Em sua réplica ao deputado Fernando Gabeira, o ministro aludiria a aspectos da identidade do Brasil de “menos politizado” em direitos humanos: o teor hiper-seletivo da resolução sobre Cuba – o que combatíamos na CDH – e a opção brasileira pelo diálogo, em detrimento da denúncia99. No debate aí travado já se percebem acusações de que a discrição preferida por nossa diplomacia poderia caracterizar mais “omissão” do que “imparcialidade”: “em grande parte dos momentos em que não se faz nada [se usa] também essa justificativa de que ‘estamos trabalhando secretamente, estamos fazendo tudo no maior silêncio’” (Gabeira apud MRE, 2003, p. 60). Em 2004 multiplicam-se notícias sobre a viagem de Lula à China e reprova-se que o presidente não tenha sido mais enfático ao tocar no tema dos direitos humanos. Em contrapartida, recebe fraco destaque o fato de o MRE emitiu nota considerada pouco satisfatória, por fundamentar o voto na ONU em critérios meramente técnicos (“RSF...”, 2003). Nessa ocasião um embaixador brasileiro na ilha fez declarações constrangedoras sobre as violações ocorridas meses antes, parecendo eximir o Brasil de posicionar-se a respeito invocando a ultrapassada noção de não-intervenção (Suwwan, 2003). 97 É o que transparece em determinados trechos da entrevistade Celso Amorim ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em agosto de 2003 (Barbeiro et al., 2003). Em dado momento, por exemplo, Demétrio Magnoli, um dos entrevistadores, pergunta por que o Brasil demonstrou firmeza frente à tentativa dos EUA de sabotar a efetividade do Tribunal Penal Internacional e, ao contrário, ante os episódios de Cuba, portou-se com leniência; mais adiante, aliás, a discussão envereda para a afirmação de Amorim de buscar diplomatas “politicamente engajados”, compreendendo-se o vocábulo “politicamente” como “ideologicamente”. 98 No limbo entre as duas interpretações parece ser adequado localizar as palavras de R. Menard, secretário-geral da Reporters Sans Frontières: “A esquerda latino-americana [no caso, o Brasil de Lula] não tem nenhuma credibilidade, porque sempre foi capaz de mobilizar-se contra as ditaduras de direita, mas nunca contra as de esquerda” (Presse, 2003). 99 Celso Amorim lembra que o embargo econômico a Cuba permanece em vigor, o que certamente complexifica qualquer avaliação sobre a situação dos direitos humanos lá (ibid., p. 60-61).

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que, no período, o Brasil ajudou a obstruir uma resolução contra o regime chinês na CDH. No Folha de S. Paulo o voto brasileiro é citado em meio a vários pontos das relações sino-brasileiras100, e – ao menos até onde nossa pesquisa permitiu-nos apurar – só da Gazeta Digital (versão online do A Gazeta, do Acre) consta um artigo tardio (2005, um ano depois da votação), de Jamil Chade, versando inteiramente sobre a matéria em tela; nesta última reportagem, Oscar Vilhena Vieira, da Conectas, imputa ao Brasil a imagem do “realista”, o “pragmático que menospreza os valores”101 – que tornaremos a apreender em leituras posteriores. Anteriormente, em fevereiro de 2004, a ONG Human Rights Watch (HRW) endereçou carta ao presidente Lula elogiando as contribuições do Brasil à promoção internacional dos direitos humanos, porém censurando três posições adotadas por nossa delegação em Genebra, na aprovação de medidas fiscalizatórias ao Turcomenistão, à Chechência (Rússia) e a Cuba; igualmente se recomendou que nosso país utilizasse sua credibilidade numa diplomacia bilateral menos tolerante a violações cometidas por seus parceiros (Vivanco, 2004). Aparentemente o comunicado reverberou pouco na imprensa nacional, e – nas parcas referências a respeito com que nos deparamos102 – não se discriminaram as decisões brasileiras na CDH que haviam suscitado controvérsia, à exceção da nota emitida na versão em português do site da HRW (2004); comum a todas as notícias, todavia, é a qualificação da conduta do Brasil como “politizada”, já que teríamos atentado para a seletividade dos EUA, mas silenciávamos diante de graves abusos a direitos fundamentais; aqui se verifica choque direto com a 100

No Folha de S. Paulo, checar: Moraes (2004a, 2004b), Silveira (2004), e Trevisan e Barros (2004). Entre outras coisas, comenta-se que na declaração conjunta de Brasília e Pequim ambos acatam o princípio da não-seletividade dos direitos humanos; além disso, Celso Amorim esclarece que o Brasil não deve reputar-se moralmente superior à China e celebra a inclusão dos direitos fundamentais na nova Constituição chinesa; não obstante e procurando redramatizar a questão, ONGs de direitos humanos ressaltam que múltiplos abusos ainda persistem. 101 Afirma ele: “[t]rata-se da submissão da política de direitos humanos à política econômica e mesmo geoestratégica” (apud Chade, 2005). 102 Cf. os informativos UOL Últimas Notícias (“Grupo pede a Lula que condene abuso aos direitos humanos”, 10 fev. 2004) e Comunidade Segura (“Human Rights Watch pede a Lula que condene abuso aos direitos humanos”, 11 fev. 2004), cujas fontes foram a agência Reuters e o jornal O Globo.

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identidade de “menos politizado” do discurso oficial. Do exposto, vale supor que a temática específica de como o Brasil vota em questões de direitos humanos na ONU não usufruía de visibilidade significativa no âmbito interno, apresentando baixo nível de polemização. Aliás, é o que atesta o diplomata aposentado Rubens Ricupero: “[t]em sido muito menos divulgado, fora de círculos especializados, o comportamento no Conselho dos Direitos Humanos da ONU (...) da delegação brasileira” (2010, p. 55). Cabe sustentar que essa limitada repercussão do assunto pode derivar, em parte, da falta de empenho do Itamaraty em prestar contas das decisões de nossos diplomatas na CDH à sociedade (déficit que viria a ser minimamente sanado com os relatórios da Conectas e com o CBDHPE) e, em parte, da simples escassez de interesse midiático. Registre-se que nos preocupamos em avaliar quão contenciosos eram os padrões de votação do Brasil na ONU antes de 2005 porque eles configurarão o objeto dos discursos críticos enunciados na AP que originará o CBDHPE. Nossa expectativa era que a politização – a polemização – do tema se revelasse tão generalizada e profunda, que seu aporte à Câmara houvesse consignado uma consequência natural. Não se deu assim. O corpus de artigos que conseguimos encontrar aponta para, digamos, uma politização moderada. Destarte, o informe do PAPEDH possui o mérito da inovação103, conferindo notoriedade a aspectos da PEB de direitos humanos outrora (quase) ignorados nacionalmente. Fezse crucial a agência, traduzida: a) na iniciativa dos executores do Programa de, mediante cuidadosa pesquisa, transformar em evidências o que, à luz das reportagens acima, consistia em meros indícios e casos esparsos de votos na CDH reputados inadequados; e b) na sagacidade para desenvolver 103

De fato, ao comentar na AP de 2005 sobre o PAPEDH, Lucia Nader, sua coordenadora, sugere que o relatório originou-se de uma intenção puramente investigativa, ou seja, não se sabia de antemão se nosso país votava “bem” ou “mal” na CDH. In verbis: “[t]udo aconteceu quando um grupo de estudantes de Relações Internacionais procurou-me com um projeto chamado Outras Relações Internacionais. Eles queriam ver como as ONGs influenciam no cenário internacional e participam das decisões. Sugeri ao grupo de estudantes da USP e da PUC em São Paulo fazer uma pesquisa para tentar descobrir como vota o Brasil na ONU em relação a direitos humanos. Muito ingenuamente, o grupo começou a atirar para todos os lados para tentar descobrir como vota o Brasil com relação a direitos humanos na ONU” (Câmara, 2005; grifos nossos).

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uma crítica diferente das precedentes e, cremos, mais sólida até. De certo modo, ergueu-se o véu que encobria os posicionamentos do Brasil na CDH, os quais experimentariam, de início, politização localizada (circunscrita ao tempo da AP inaugural e ao espaço da CDHM, na Câmara) e, na sequência, politização mais ampla, uma vez que – como veremos – passariam a constar de notícias e artigos pós-2005 menções expressas ao histórico de votação da delegação brasileira, o que normalmente não acontecia, de acordo com o levantamento efetuado. Isso posto, doravante procuraremos verificar a correção de nossa hipótese de que a dinâmica interdiscursiva propiciou e assegurou a democratização da PEB de direitos humanos durante Era Lula. Para tanto, analisaremos os atos de fala críticos proferidos na AP de 2005, com base no repertório de táticas discursivas elaborado por Hansen (cf. final da seção 2.3). Indique-se que, na audiência, seriam debatidos especialmente os votos brasileiros nas resoluções quanto à China e à Chechênia (Rússia), apesar de o informe do PAPEDH listar outros posicionamentos (Conectas, 2005); a concentração de atenção decorreu da percepção de que o Brasil mudara “para pior” suas posições em tais casos: no primeiro, postou-se a favor de uma no-action motion e, no segundo, votou contra a condenação da Rússia; nesse sentido a manchete da Carta Maior, de abril daquele ano (Barbosa, 2005). Ao começo da AP a embaixadora Maria Luiza Viotti reproduziu o discurso oficial, descrevendo “o papel mais proativo e construtivo, voltado à formação de consensos”, avançado pelo Brasil eminentemente a partir da redemocratização; ademais, aludiu ao problema da seletividade da CDH e à abertura de nosso país frente ao sistema ONU de direitos humanos (caráter “democrático” da identidade brasileira). Acrescentou que alguns diplomatas reclamaram de, no estudo do PAPEDH, só se relatar a postura da delegação brasileira em resoluções sobre países, enquanto a PEB de direitos humanos é deveras mais abrangente que isso (CDHM, 2005); trata-se da falácia que seria indicada pelo embaixador Sérgio Florencio (2011)104 de se olhar as 104

Artigo escrito em resposta a acerbas críticas de Demétrio Magnoli. Cf. Magnoli (2008).

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árvores (voto) sem enxergar a floresta (toda a política externa). Ora, embora Lúcia Nader – expositora do relatório da Conectas na audiência – concorde com a observação de Viotti, o ponto que gostaríamos de ressaltar é que, se o argumento procede, igualmente é válido contra-argumentar – prosseguindo com a analogia – que a floresta por vezes contribui para encobrir clareiras devastadas, que precisam ser denunciadas para ensejar o reflorestamento. Fazer aparecer o invisível – eis a relevância do informe do PAPEDH. Nele e durante a AP, a Conectas, pela voz de Nader, utilizou um discurso crítico interessante: apelando à autoridade de outro texto (intertextualidade), a Constituição brasileira, invocou-se o princípio da prevalência dos direitos humanos nas relações exteriores (CDHM, 2005). Denota-se um tipo do que Hansen chama de contestação externa, na medida em que se incorpora fato “novo” na discussão105. Deduzem-se daí duas táticas internas de crítica atuando alternativamente: ou se moldou para o Brasil um perfil identitário concorrente ao oficial (“Brasil-que-desrespeita-a-CF”, que tem por alter o almejado “Brasil-constitucional” do dever-ser); ou se abalou a estabilidade do liame identidade-policy, sugerindo-se que, conquanto nosso país se diga constitucional, não o foram as escolhas efetuadas nas votações apreciadas (China e Chechênia). A embaixadora rebateu afirmando que não há valores absolutos, pois a própria Constituição também resguarda o princípio da nãointervenção. O que em seguida se enfatizou na tréplica foi justamente o vocábulo “prevalência” no art. 4º, II, que elevaria os direitos humanos a patamar indisputável (CDHM, 2005); a propósito, o princípio constituirá a razão de ser do CBDHPE (Câmara, 2011). Reportando-se a respeito das posições do Brasil diante das situações de China e Chechênia, Viotti salientou, quanto à primeira, os progressos em matéria de direitos humanos (e.g., as alterações da Constituição chinesa) e, 105

Com efeito, em geral o polo discursivo diplomático promove tímidas referências ao princípio constitucional. Uma das exceções corresponde ao balanço da PEB (MRE, 2011), referência com que encetamos a Introdução da monografia. Todavia, nos discursos falados já examinados não é corrente que os diplomatas fundamentem a política externa de direitos humanos recorrendo à CF, e sim reiterando os argumentos discernidos na seção 4.1. Portanto, mostram-se bem colocadas as palavras de Nader na audiência: “[q]ue o Brasil se lembre de que existe o art. 4º, inciso II, da Constituição Federal, em alguns casos onde ele não prevalece” (CDHM, 2005; grifos nossos).

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quanto à segunda, a benéfica abordagem de diálogo bilateral que o Estado brasileiro empreendeu. Adicionou ainda que cada opção brasileira na CDH é complexa, porque considera inúmeras variáveis. Não obstante seja mesmo essa a realidade das coisas, o deputado Orlando Fantazzini emendou que, no que concernia à China, diante do silêncio do Itamaraty sobre o assunto, para os parlamentares e a sociedade civil ficava a interpretação de que nosso país trocara seu voto pelo apoio de Pequim à reforma do Conselho de Segurança da ONU106, pleito brasileiro de longa data – isto é, a imagem que vigorava sobre o Brasil era a do “pragmático que menospreza os valores”; outrossim, o deputado realçou o lado negativo dos direitos humanos no Estado chinês, algo minimizado no discurso oficial. Essas críticas não se remeteram diretamente ao MRE, mas, antes, à maneira como a PEB de direitos humanos estava a ser conduzida. São as críticas indiretas, que respaldaram críticas mais diretas, em particular sobre o sigilo do Itamaraty quanto às votações de nossos diplomatas na CDH e, por extensão, censurando que as decisões tenham sido tomadas à margem do controle social e do Legislativo, e à revelia da participação de atores não-governamentais interessados107. Em função disso se justificaram as propostas em prol de políticas (policies) para acompanhar e monitorar a política externa de direitos humanos. Não é desarrazoado imaginar que, não existissem tais atos de fala opositores, a oratória oficial ter-se-ia firmado como absoluta, dotando-se de incomparável poder persuasivo; ao contrário, ocorrendo contestação, ela não convenceu de todo – foi limitada, destarte. A dinâmica interdiscursiva – em que o polo discursivo crítico desafia o do 106

Aliás, a ideia fora aventada na mídia à época (Trevisan e Barros, 2004). Igualmente, mais em favor da opinião de Fantazzini que da explicação de Viotti, cumpre apontar que o diplomata Benoni Belli (2009, p. 192-193), depois de haver conversado com integrantes da delegação brasileira em Genebra a respeito da votação em tela, conclui que sem dúvida motivos pragmáticos – tais como “o peso político e econômico da China e a coincidência de visitas de alto nível àquele país” – influenciaram a decisão do Brasil. 107 As demandas democratizantes estão mais bem organizadas no relatório do PAPEDH (Conectas, 2005, p. 56-57), elencando-se “transparência”, “participação”, “prestação de contas” e “melhoria da atuação coordenada dos poderes do Estado”. No entanto, na AP as exigências não deixariam de ser mencionadas: “[é] preciso (...) ver como a sociedade civil pode participar e contribuir para a tomada de decisão em política externa; segundo, é preciso privilegiar a utilização das medidas de freios e contrapesos dos Poderes já previstas” (CDHM, 2005).

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MRE – criou, pois, condições para uma transformação política, a fundação do CBDHPE. Entretanto, reconhecemos que, se o Itamaraty deslegitimou-se por não estar executando a PEB de direitos humanos em consonância com os anseios dos presentes na AP, sua legitimidade foi ressarcida na medida em que ele se mostrou aberto a aprimorar os mecanismos de diálogo. Logo, o decréscimo de uma espécie de legitimidade (competência para lidar com direitos humanos) foi compensado pelo acréscimo de outra (democrático). Em contrapartida, a retórica da “Diplomacia Pública” (cf. seção 3.5) proferida pela embaixadora Viotti não foi desdramatizante o bastante para desacreditar a necessidade do CBDHPE, em virtude, e.g., da intervenção do deputado Fantazzini108. O Comitê foi inaugurado a 31 de maio de 2006. Para nossa hipótese completar-se, requer-se avaliar se ele propiciou e assegurou avanços rumo à democratização da PEB de direitos humanos. O exame pautar-se-á pelos conceitos delineados na seção 2.5 (representatividade, accountability, transparência, etc.) e – como fontes da experiência empírica do CBDHPE – nas atas de APs e seminários realizados por ele realizados de 2006 a 2010 na CDHM109, bem como nos anuários publicados pela Conectas com o apoio institucional do Comitê (Conectas, 2007, 2008-2009 e 2009-2010)110.

4.4. Democratização da PEB de direitos humanos?

No quesito da transparência e prestação de contas, complicações podem ser atestadas. Nas reuniões, se sobre certas questões os diplomatas proveem bastante informação, em outras a retórica diplomática é vaga às vezes111. Em parte isso se explica pela interdisciplinaridade inerente aos 108

“Ouvi V.Sa. dizer que as entidades da sociedade civil [participam], colaboram. O Parlamento, que deve ratificar, tem sido excluído desse processo. Se houvesse esse espaço permanente, poderíamos colaborar com a política externa brasileira.” (CDHM, 2005; grifos nossos). 109 Não conseguimos entrar no site oficial do CBDHPE (), pois estava em manutenção. 110 Os relatórios contêm não só ações do CBDHPE, mas também as levadas a cabo pela Conectas autonomamente, não como representante daquele. Consultar: Conectas (2007, p. 61-62; 20082009, p. 156-157; 2009-2010, p. 26). 111 Como, por exemplo, durante AP de 2006, na resposta de Viotti às preocupações de Iradj Eghrari – do Centro de Estudos em Direitos Humanos da UNIEURO – acerca do comportamento do Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU (CDHM, 2006).

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direitos humanos: não raro os temas levantados perpassam as esferas de várias subdivisões do Itamaraty – enquanto, geralmente, presenciam as discussões apenas autoridades do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais; Benoni Belli (2009, p. 248) lembra ainda que nem tudo pode ser dito “de maneira totalmente franca e desimpedida em seminários ou apresentações”, no tocante às resoluções sobre países. É verdade que o CBDHPE emprega outros meios de contato além das audiências para obter dados importantes, como solicitações por carta; entretanto se ressalta que nem sempre o MRE responde-as prontamente112. Conforme Lucia Nader (CDHM, 2008): “[é] dever do Estado dar publicidade às informações”. Um segundo aspecto a ser investigado – talvez o mais relevante – refere-se à capacidade do Comitê de garantir a responsividade do Itamaraty. À primeira vista se poderia deduzir que na PEB de direitos humanos, no que tange à votação do Brasil em resoluções sobre países, pouquíssimo mudou de modo a aproximá-la das expectativas enunciadas pelas vozes críticas. Afinal, se na audiência de 2007 (CDHM, 2007, p. 3), a MinistraChefe do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais do MRE, Ana Lucy Petersen, comentou que, de então em diante, não mais se seguiria política de “abstenção geral”, e sim casuística, a partir de 2008 proliferaram notícias a respeito de posicionamentos obstrucionistas adotados pelo Estado brasileiro quanto à condenação de, e.g., Irã, Coreia do Norte e Sri Lanka. Na mídia reproduziram-se discursos que, contrapondo-se ao oficial, imputavam ao Brasil identidades de: “seletivo” (em contraste com a de “menos politizado”); “ultrapassado” (por julgar, em determinadas ocasiões, o princípio da não-intervenção como superior aos direitos humanos); e até “conivente” ou “cúmplice” para com violadores (aí quase se eliminando a fronteira entre o “Brasil-cooperativo” com o sistema ONU e os “Outrosnão-cooperativos”)113. Porém, é difícil constatar se houve ou não retrocesso, 112

Por exemplo, no período 2006-2007, o Itamaraty não acusou o recebimento de dois documentos (Conectas, 2007, p. 63). 113 Para alguns exemplos, cf.: Bolívar (2008), Adghirni (2009), “Sob...” (2009) “Apoio...” (2009), “Uma...” (2010), Coelho (2010), Reale Júnior (2010), Chade (2010), Vieira (2010), Pacheco (2010), “Sob...” (2010).

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porque desde 2007, com o UPR, modificou-se a dinâmica de resoluções a países, o que complexifica comparações temporais. Mais seguro é sustentar que, no âmbito doméstico, as escolhas brasileiras no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas ganharam maior visibilidade, em virtude do ativismo da Conectas e seus relatórios, e dos trabalhos do CBDHPE. Esse incremento de notoriedade não deve ser desprezado, pois contribui para a transparência de uma matéria fracamente divulgada até 2005. É oportuno aqui ressalvar que, apesar de comumente a mídia operar como veículo para o criticismo de ONGs e do Comitê, também ela formula e difunde criticismo próprio – e, nas reportagens acima, tanto a contestação propagada por este último interlocutor quanto por aqueloutros imiscuem-se. Contudo, faz-se premente destacar que as críticas midiáticas distinguem-se qualitativamente das demais mencionadas. Afinal, é de supor que ONGs, tal qual a Conectas, e o CBDHPE critiquem com o fito de exigir a prevalência dos direitos humanos em nossas relações exteriores, ao passo que a mídia pode estar a “criticar só por criticar”. Por conseguinte, não desassiste razão a Benoni Belli (2009, p. 250) ao salientar que o discurso midiático tende a ser simplificador, “‘pré-digerido’”, “[apegando-se] às fórmulas sintéticas, mais facilmente vendáveis”. O que não se deve fazer é indiscriminadamente generalizar semelhante observação, porquanto ocasionalmente a mídia é mera plataforma para a transmissão de textos críticos não desprovidos de substância, elaborados por outros atores114. Na linha do exposto, registre-se que, endereçando-se exatamente às críticas, Celso Amorim escreveu artigo no Folha de S. Paulo a 15 de agosto de 2010115 (Amorim, 2010a), o que indica que aquelas foram contundentes o suficiente para que o Itamaraty no mínimo se visse compelido a justificarse, embora reafirmando o discurso oficial. E o debate não se encerraria, ao passo que os atos de fala opositores experimentariam refinamentos 116. 114

Nesse sentido, cf. especialmente o artigo de Vieira (2010). Constante do site do MRE como se norteador da política externa de direitos humanos. 116 Por exemplo, em 2009 Asano et al. (p. 4-7), da Conectas, dedicariam contestações específicas a diversos traços pontuais da política externa de direitos humanos conduzida pelo MRE. Uma delas é particularmente pertinente à monografia, visto que se amolda ao segundo tipo de tática interna de 115

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Exemplo paradigmático foi o de Darfur, quando em novembro de 2006 o Brasil absteve-se em emenda117 que, recrudescendo as disposições de resolução anterior, previa que fossem levados à justiça os responsáveis pelo massacre então em curso. O CBDHPE enviou documentos ao MRE requisitando que justificasse a decisão da delegação brasileira (Conectas, 2007, p. 63) e, subsequentemente, no intuito de pressioná-lo a revisar sua postura, veiculou críticas na imprensa nacional118. Embora seja arriscado afirmar se a influência deu resultado, nosso país efetivamente desempenhou papel algo mais positivo na 4ª Sessão Especial do Conselho de Direitos Humanos, sobre Darfur, além do que o Itamaraty emitiu nota a respeito119. Logo, pode-se dizer que, por meio da dinâmica interdiscursiva, o Comitê assegurou alguma prestação de contas por parte do Itamaraty. Se o que provocou o surgimento do CBDHPE foi a insatisfação com o padrão decisório do Brasil na CDH, uma vez instaurado ele pôs-se a lidar com uma miríade de assuntos, estendendo-se desde a atuação brasileira nos sistemas de direitos humanos da ONU e interamericano, até violações a direitos fundamentais ocorrendo dentro do território, migrações e serviço consular ligado à proteção de nacionais no exterior – entre outros. Decerto o Comitê é norteado por um interesse geral em monitorar a PEB de direitos humanos, mas os enfoques sobre essa vasta agenda são tão diversos quanto as entidades que compõem a instituição. Demasiada pluralidade dificulta a coordenação, todavia é inegável que trocas proveitosas têm-se travado, com

crítica de Hansen (2006, p. 28; cf. seção 2.3): a que põe em xeque a adequação da policy empreendida. Com propriedade, os membros da ONG argumentam que a preferência pelo diálogo preconizada pelo Itamaraty só se revela cabível caso o Estado violador esteja disposto a cooperar. Assim, diante de governos recalcitrantes em mitigar os abusos, a possibilidade de se recorrer aos procedimentos ostensivos do Conselho de Direitos Humanos para exercer constrangimento moral não se invalida. Com efeito, há fatos que contrariam a tese dos diplomatas brasileiros de que a persuasão tende a ser mais eficaz do que resoluções condenatórias (Asano & Nader, 2011, p. 123 e 127), como a rejeição da Coreia do Norte em acatar todas as recomendações da ONU, depois de submeter-se ao UPR, para o que contribuíra a abstenção do Brasil. 117 Documento A/HRC/2/9, p. 61 (disponível em: ; acesso em: 29 out. 2011). 118 O CBDHPE publicaria três artigos, de cuja repercussão proviriam outros (CDHM, 2007, p. 6). Ver, e.g.: “Brasil se abstém na ONU para não contrariar Sudão”, n’O Estado de S. Paulo, e “Em péssima companhia”, no editorial do Folha de S. Paulo (apud Belli, 2009, p. 194-195). 119 Disponível em: ; acesso em 29 out. 2011.

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os diplomatas comunicando o andamento das questões que lhes propõem, e com os parlamentares e a sociedade civil expondo suas preocupações. Ademais, o CBDHPE tem-se prestado a articular a participação nas áreas das relações exteriores não exclusivas do MRE, como nas discussões no foro de direitos humanos do Mercosul e na garantia da transparência do Brasil frente às Nações Unidas120. Já em searas mais sensíveis – tal qual a votação da delegação brasileira em resoluções sobre países no Conselho de Direitos Humanos –, é provável que o Itamaraty entreveja no canal aberto pelo Comitê uma via de mão única, que lhe permite convencer os atores concernidos de que tem realizado as melhores escolhas em política externa, enquanto faz ouvidos moucos às sugestões recebidas do Legislativo e dos cidadãos; a propósito, essa é a impressão que nos passa Benoni Belli (2009, p. 248-249), que chega inclusive a deslegitimar a contestação ao MRE, ao tachá-la de “produto da falta de compreensão”. Por outro lado, o CBDHPE oferece também um espaço para onde se podem dirigir as críticas diretas 121. Concluímos que talvez tenhamos nos precipitado em nossa hipótese e pergunta. À luz dos critérios acolhidos, não cabe alegar que se consumou uma democratização nas relações exteriores do Brasil em direitos humanos. Contudo, tampouco seria aceitável ignorar que algo mudou favoravelmente à democratização. Na dinâmica interdiscursiva, o polo crítico restringiu o alcance do oficial, dando azo à criação do CBDHPE, e a ele o MRE agora deve prestar contas. Outrora quase que nula, a consulta à sociedade civil sobre a PEB de direitos humanos hoje se dá com regularidade. O acesso à informação foi facilitado – e mesmo garantido, como no caso de Darfur. Facetas anteriormente invisíveis de nossa política externa ganharam maior notoriedade, acirrando a politização. Em suma, o Comitê sedimentou alicerces para um processo que pode vir a aprofundar-se. 120

Por exemplo, em 2008 o Comitê endereçou cartas denunciando violações internas de direitos humanos aos relatores temáticos da ONU que visitaram o Brasil (Conectas, 2008-2009, p. 86). 121 Vide a observação de Mary Aune, representante do Comitê em seminário de 2008: “[r]essalto a fala da Ministra quando diz que a ação da sociedade civil legitima as atividades do Estado para essas temáticas de direitos humanos. (...) [Mas] não se trata de assinar um cheque em branco. Já conversamos sobre esse assunto. Não se trata de dar uma promissória, mas de realmente participar e trazer as pessoas e as entidades para o diálogo...” (CDHM, 2008; grifos nossos).

5. Conclusão Esta monografia buscou apurar como a dinâmica interdiscursiva que permeou a PEB de direitos humanos na Era Lula propiciou e assegurou sua democratização, mediante o surgimento e funcionamento do CBDHPE. Os objetivos esboçados na seção 1.3 prestaram-se a orientar a pesquisa. Quanto ao primeiro deles, acerca da evolução intertextual do polo discursivo diplomático de 1948 até 2003, desenvolvemo-lo no Capítulo 3. Constatamos quatro grandes fases; ao longo de cada uma, o discurso oficial permaneceu algo homogêneo. Convém resumi-las assim: desde forjada a DUDH, predominou o “Brasil-progressista”, que se pronunciou a favor de avanços no Sistema ONU de direitos humanos até o momento em que a mudança sobreveio, com os Pactos vinculantes de 1955; daí se verificou uma inflexão, manifestada no discurso da PEI, do “Brasil-sui-generis”, que propugnava a transcendência de dicotomias caracterizadoras dos direitos humanos, conexas na guerra fria à tensão Oeste-Leste, como “universalismo vs. relativismo” e “direitos individuais vs. coletivos”; quando a ditadura brasileira viu-se ameaçada pela CDH, nela ingressamos apelando para atos de fala ambivalentes, ora positivos (“Brasil-nacionalista-legalista”), ora negativos (“Brasil-conservador-retrógrado”), a depender da interpretação; e, após a redemocratização, quando os Pactos foram ratificados, articulou-se para o país uma imagem de ruptura para com o passado do regime militar. Pela ótica da intertextualidade, percebemos que traços discursivos de outrora reaparecem na oratória contemporânea; exemplos emblemáticos são a atualização por Celso Amorim, em 1993, dos “três Ds” de Araújo Castro e a preocupação da Administração Lula de atenuar eventuais hierarquias entre o Estado brasileiro e Estados violadores parceiros, à similitude do perfil de “tolerante” construído para o Brasil à época da PEI. Nesses casos não cabe entrever continuidade, mas, antes, ressignificação. No segundo objetivo – a análise do discurso estatal sob Lula –,

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discernimos os seguintes aspectos identitários: “cooperativo-transparente” frente à ONU; “democrático”, que, a partir da proposta da “Diplomacia Pública” na Gestão FHC, passou a revestir o Itamaraty em sua interação com a sociedade civil, sem que se atestasse uma contrapartida satisfatória em termos concretos de democratização; “menos politizado”, na medida em que o Brasil privilegiava a cooperação e o diálogo ante a denúncia, atitude que, na Era Lula, ensejou desabonos à seletividade da desacreditada CDH; e “ponte”, destoando a postura de nosso país de outras posturas reputadas “extremas”, tidas como inaptas a solucionar o problema da hiperpolitização dos direitos humanos nas Nações Unidas, de sorte que nossa delegação não defendia nem fortalecimento da fiscalização, nem sua extinção, e sim um relatório global. Nosso terceiro objetivo consistiu no exame dos discursos críticos e de sua interrelação com a democratização da PEB de direitos humanos pela fundação do CBDHPE. Uma vez que os atos de fala suscitadores da AP de 2005 – em que se originou o Comitê – abordavam os padrões de votação do Brasil na CDH quanto a resoluções sobre países, intentamos apurar quão polemizado estava esse assunto no plano nacional, previamente à audiência. Mapeando o nível de ressonância da matéria em meio à mídia, captamos uma politização moderada, insuficiente por si só para justificar a realização da AP; donde a relevância dos executores do PAPEDH, enquanto agentes cujas críticas pautaram a dinâmica interdiscursiva que se estabeleceu na audiência. Nela, inovou-se ao trazer o texto da Constituição brasileira para a discussão. Ao enfrentar concorrência, a interpretação oficial desestabilizouse e teve seu alcance cerceado. Identidades alternativas às preconizadas pelo MRE tornaram controvertido o zelo da instituição para com os direitos humanos, o que abriu espaço para críticas mais diretas, legitimadoras de policies democratizantes. Destarte, a dinâmica interdiscursiva fundamentou um ambiente político receptivo (isto é, propício) ao CBDHPE. Entretanto, reconhecemos que o Comitê não promoveu abrangente revolução democrática na PEB de direitos humanos, em particular devido

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aos entraves que acometem a prestação de contas por parte do Itamaraty. Por outro lado, ampliou-se a repercussão no âmbito doméstico de temática outrora obscura – os votos do Brasil em questões de direitos humanos na ONU –, em parte, sustentamos, pela atuação do CBDHPE, que faz uso da imprensa como um instrumento informal de accountability para pressionar o MRE a motivar e, até, ajustar suas decisões. No Governo Lula, aliás, a polemização permitiu que a história das relações exteriores do país em direitos humanos não fosse escrita somente por diplomatas; além da versão oficial, houve narrativas críticas, moderadas (e.g., Asano & Nader, 2011) e radicais (e.g., Magnoli, 2008). Também apreciamos outras contribuições aportadas pelo Comitê e, no final, dissemos que não se consumara a democratização. No entanto, de todo modo é vão tentar precisar o ponto exato em que ela se conclui, já que, antes de uma meta, a democratização deve ser encarada como um processo; e, enquanto processo, sem dúvida o CBDHPE favoreceu-a. Ademais, ao persistir emitindo críticas, ele reitera a necessidade da própria existência e mantém aceso o debate, assegurando assim que o canal de contato com o Itamaraty não se feche. A monografia não analisou a fundo os (de)méritos dos argumentos componentes do discurso oficial e dos opositores, algo que sugerimos como objeto de pesquisas futuras. Para tanto, cremos que seria apropriado rumar pela via de teorias normativas das RI, a fim de se efetuar a ponderação entre os valores de cada polo discursivo – e.g., contrapondo os direitos humanos ao princípio da não-seletividade. E seria pertinente perguntar se, ao obstruir condenações, o Brasil estaria combatendo a hiperpolitização do Conselho eficazmente, ou se, ao contrário, revela-se inócua a estratégia de “liderança pelo exemplo” de Belli (2009). Igualmente configura um tema interessante questionar se se operaram alterações de monta na PEB de direitos humanos na transição de Lula para Dilma – à luz de fatos como o voto favorável da delegação brasileira em resolução contra o Irã, no início de 2011, e o compromisso que a presidente acolheu perante o CBDHPE em seminário organizado em 2010 na Câmara dos Deputados (CDHM, 2010).

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