OS LIMITES DO MEDO EM A MENINA MORTA, DE CORNÉLIO PENNA

May 22, 2017 | Autor: L. da Silva Andrade | Categoria: Literatura brasileira, Literatura, Literatura Comparada, Noël Carroll, Cornelio Penna, A menina morta
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OS LIMITES DO MEDO EM A MENINA MORTA, DE CORNÉLIO PENNA Luiz Eduardo da Silva Andrade [email protected] Universidade Federal de Sergipe/PPGL/CAPES

A proposta deste texto é analisar as representações do medo em A menina morta (1954), almejando uma reflexão crítica e histórico-social direcionada a ponderar os reflexos desse sentimento na formação cultural brasileira. Aproximamos o medo à concepção de “horror artístico” de Noël Carroll (1999), de modo que no romance de Cornélio Penna (18961958) ele teria sentido estético, funcionando como operador narrativo que impulsiona a história, sendo capaz de sustentar a tensão do enredo e engendrar as diversas formas de poder na trama. A obra é envolta em sombras que fortalecem o clima de mistério na fazenda do Grotão. Há um movimento de claro-escuro na construção da narrativa, que se estende à ambientação dos espaços físicos e psicológicos. Para essa empresa, partimos do pressuposto de que A menina morta tem traços da estética barroca, sobretudo, na articulação entre a escrita e a composição espacial, ambas labirínticas, que seriam agentes desse medo premente nas personagens. Nesta recuperação histórico-estética típica do modernismo, o autor imprimiria novos sentidos a essas imagens, proporcionando, talvez, uma reflexão sócio-histórica através da ruína de uma família do século XIX, mas ainda presa a uma estrutura social mais antiga. Os critérios de análise consistem em uma abordagem qualitativa estabelecida por um estudo de caráter críticoanalítico.

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Antes de iniciar propriamente o debate vale ressaltar que este ensaio não tem caráter conclusivo, haja vista a pesquisa de mestrado ainda estar em andamento. Visa-se antes fazer apontamentos acerca do medo em tópicos que serão melhores desenvolvidos na dissertação. A crítica literária em torno da obra de Cornélio Penna é pequena, se comparada a outros escritores brasileiros, no entanto, é de grande valor e significação. O mesmo ocorre em relação à questão do medo, que na maioria das vezes é relacionada ao debate históricoreligioso ou psicológico, enquanto que a nossa proposta procura empreender uma análise que parte da esfera sociocultural, lendo o medo como um elemento estético que contribui para a sustentação da narrativa. Sobretudo porque há poucos trabalhos no âmbito da crítica literária que estudem o medo inscrevendo-o na cultura e como elemento de tensão social – ético-estético –, pois que na maioria das vezes ele é tratado a partir da noção individual do sujeito. Na esteira do diálogo estabelecido entre literatura e sociedade, a partir de A menina morta, o intuito é demonstrar o apego ao passado e como se manifesta inclusive no uso de vários pressupostos inscritos na estética barroca, presente no Brasil colonial do século XVII e que se manifestou marcadamente em Minas Gerais, cenário privilegiado em Cornélio Penna. Dessa maneira, é possível dizer que para o autor a memória assumirá um papel fantasmagórico, na medida em que suas obras são assombradas por um passado rico e promessas no futuro, contraposta a um presente, o do momento histórico vivido pelo autor, feito de esquecimentos e ruínas. Não é sem motivo que a narrativa tem uma atmosfera misteriosa, fantasmagórica, sombria, escura, doentia e maléfica. É preciso, antes de tudo, conotar o uso desses elementos, os quais invertidamente, a nosso ver, tencionam clarear possíveis lacunas da escrita. Temos, por um lado, descrições pormenorizadas dos ambientes e, por outro, várias omissões. É um jogo de sensações descrito a cada ambientação, ao ponto que o objeto no canto da sala pode passar despercebido em meio às minúcias, todavia é contraditoriamente esse excesso que vai funcionar como um véu translúcido a sugerir a existência de um lastro falso na aparente superficialidade descritiva. A menina morta foi publicado em 1954 e remonta ao Brasil Império, já na segunda metade do século XIX. A narrativa é ambientada numa fazenda produtora de café no Vale do

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Paraíba, fronteira entre as províncias de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Na fazenda do Grotão vivem a família do Comendador, dono da propriedade, D. Mariana, sua esposa, vários agregados e mais de trezentos escravos. A história se inicia com os preparativos para o sepultamento da menina morta, filha do casal. Personagem que não tem o nome revelado no romance e que arrasta consigo todas as virtudes do lugar, aludidas pela sensação de perda que todos sentem, inclusive os escravos. O clima de mistério é constante, o assunto da morte prematura parece abafado, em verdade fala-se pelos cantos muito mais na falta e nas irrealizações que a morte representa para todos, do que na própria vida da menina. Note-se na passagem a seguir que está em jogo no romance não somente a perda da criança, mas a sensação de que se abria uma mácula no lugar: “Uma grande mola parecia ter se quebrado na fazenda e todo aquele enorme organismo, até ali movido com regularidade dos cronômetros [...] perdera o seu ritmo e hesitava afrouxada no seu agitar constante” (PENNA, 1970, p. 225). Na mesma passagem é dito que “cada qual [dos moradores] sentia no íntimo, ter o Grotão se fendido de alto a baixo, na iminência de ruir, e algum mal estranho corroía suas entranhas...” (PENNA, 1970, p. 225). Vemos nas duas citações que a morte da menina é tratada com um problema social, do ponto de vista da fazenda, e íntimo das personagens. Da mesma forma são os discursos empreendidos sobre o tema, contudo, aquilo que se refere ao âmbito do social é abafado pelo Comendador, restando assim as narrativas privadas sobre o caso. No fundo, como diz Josalba F. dos Santos, a causa da morte da menina torna-se irrelevante, pois “é a sua falta que significa” (2004, p. 200). É justamente no preenchimento desse espaço que os problemas da família Albernaz vêm à tona, embora eles não estejam restritos à falta da menina. Enquanto metáfora, ela é apenas uma centelha a expor os conflitos, levando à consequente ruína da fazenda. Por outra via, podemos supor que a representação da criança está envolvida numa mística que se desfaz com a morte, restando daí a insuportável realidade da vida no Grotão. O romance avança com a tensão entre esconder e revelar a história da família. O apagamento da memória se dá em vários pontos, mas principalmente quando o Senhor do Grotão manda buscar Carlota na Corte. A filha nem chega e já tem um casamento arranjado,

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sem contar nos agrados do pai dando poderes à jovem para governar o ambiente doméstico da fazenda. A moça retorna com a dupla função de “renovar” o nome dos Albernaz e consequentemente

dar

sobrevida

ao

sistema

patriarcal

escravocrata

através

do

casamento/negócio com outra família tradicional. Na verdade há por trás um interesse velado do Comendador em substituir a memória da menina morta pelos “novos ares” trazidos por Carlota, e quem sabe esconder a chaga aberta e o pensamento coletivo de que algum mal tinha se estabelecido no lugar, assim como também cumprir o papel social que seria desempenhado pela mãe, haja vista a ausência desta, primeiro porque vivia reclusa e depois porque deixou o Grotão. Consoante aos mistérios que rondam na fazenda, marcada por crimes e transgressões, há uma estrutura de poder que dissemina o sentimento de medo nas personagens. Não obstante a maior ameaça ao Comendador, núcleo dessa primeira estrutura amedrontadora, é a memória. Por via indireta o leitor observa que a todo custo tenta-se apagar ou fragmentar a história, sugerindo a existência de um passado problemático à manutenção da regularidade do Grotão. A nossa empresa visa destacar como se articula esse medo que todos sentem. Inclusive o Comendador. A institucionalização do poder é ratificado do ponto de vista externo à vida na fazenda com as hierarquias bem delimitadas, conquanto internamente as personagens estão em profundo conflito sobre os seus destinos. O poder que sucede da hierarquia só tem valor no conflito com o outro, é no palco que as cenas são representadas, enquanto no bastidor os dramas pessoais corroem os moradores da casa. A narrativa parece estar assentada em duas camadas conflituosas: ética e existencial. Se por um lado é preciso manter as aparências, por outro ensaia-se a vontade de se libertar daquele mundo. O problema é que essas camadas não estão simplesmente justapostas como blocos individuais, elas estão encaixadas uma na outra, ou seja, a família “ideal” do Comendador precisa das agregadas e do controle dos escravos, da mesma forma as parentas que sonham com liberdade precisam manter a aparência para conseguirem sobreviver na casa. Sendo fatores inseparáveis, o poder na trama parece sustentado por uma espécie de simbiose negativa, em que supressão das personagens é também a ruína do sistema, contudo o patriarcado do

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Comendador só se institui a partir dessa “dominação” do outro, enquanto na mesma medida constrói uma prisão para si. Desde o título do romance há uma noção de finitude: “menina”, uma criança suscitando vida e esperança, contrastada pela ideia de “morte” prematura. A criança é aparentemente a chave da memória e do esquecimento. De forma que o silenciamento do passado empreendido pelo Senhor pode revelar o medo que sente da memória. Curioso é notar que a fala é limitada, contudo o espaço está repleto de móveis antigos reveladores dos costumes de pessoas que por ali passaram. O problema da memória não estaria na simples lembrança dos antepassados, mas no modo como seria feita através da fala. A palavra muda e recria a realidade, sendo capaz de (des)orientar o ouvinte, algo que a tradição do sistema patriarcal tenta afastar. Pensando na mobília antiga e na concretude dessa ocupação espacial, podemos presumir, em um polo oposto à aparente subjetividade da fala, que a permanência no tempo é muito valorizada pela família. Entretanto, a focalização demasiada para descrever os ambientes revela uma preocupação na manutenção da tradição, e nos faz entender que o medo do fim é o movente mais caro da narrativa. Dizem Francis Wolff (2007, p. 17) e Jean Delumeau (2007, p. 41), seja qual for o medo humano, a tendência é que ele aponte para o medo da morte. O mistério, a imprecisão e a dúvida enevoam o romance, ao passo em que o passado é forçado ao esquecimento como se houvesse fraturas na formação sócio-histórica daquele núcleo patriarcal. É notório o debate entre o silêncio e a revelação. Ambos potencializados em medos, representados por fantasmas e figuras diabólicas que assombram a fazenda do Grotão. Medos que remetem a um clima de conflito. Pretendemos caracterizar os medos que aparecem no romance procurando demonstrar como eles margeiam as relações entre as personagens e de alguma forma dão limites psicológicos e sociais às ações na fazenda do Grotão. Os medos funcionariam como uma rede dinâmica que se desloca de um ente para o outro, contudo está centralizado na imagem da morte da menina. O medo da morte, como o maior pavor do ser humano, possibilita uma análise da culpa e do pecado. A proposta, então, é evidenciar a estrutura ética

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do Grotão, que entendemos ser assentada no medo e funcionaria como operador narrativo da manutenção e/ou deslocamento do poder. Pensando nesses aspectos, o medo metaforizaria uma espécie de mal-estar na construção ética da história social (e talvez literária) do Brasil, sendo um pilar de sustentação da estrutura patriarcal vigente, talvez, até hoje. Há toda uma atmosfera sombria no romance que de alguma forma suscita imagens amedrontadoras. Sem contar nos longos corredores povoados por fantasmas a reforçarem o clima de mistério na casa-grande. A ideia da pesquisa é demonstrar como esses elementos contribuem para uma representação assombrada da histórica, por exemplo. O medo em si é apenas uma máscara de um estado de espírito apavorado que nasce do contato com o outro, sem desconsiderar que os objetos da casa-grande vez por outra estão personificados, lembrando a memória dos Albernaz. Em outra medida os labirintos narrativos das negras engendram sentimentos amedrontadores. Não é só a rememoração do passado que causa estranheza, mas também os elementos sobrenaturais que aparecerem nessas histórias. Novamente, há de se examinar o medo a partir de uma possível função ético-estética, uma vez que as narradoras ao se lançarem para “des-cobrir” a memória da família o faz com símbolos culturais que evocam medo na história ocidental, como a bruxa, a feiticeira, a mulher, o touro, o bode, o diabo e outras variações. O medo da morte é inerente ao ser humano, contudo tem como atenuante a imagem de Deus que aparentemente assegura algo melhor depois que ela chega. O conflito ocorre quando o temor está centralizado numa mesma figura divina, pois que a salvação e/ou a destruição depende do mesmo ser. O divino e o monstruoso são apenas formas de elucidar e/ou esconder as transgressões que as personagens fazem. Seria um medo mais introspectivo, mas não por isso significa que ocorre apenas em uma personagem, na verdade todas temem a mesma coisa, só vivenciam isso de formas diferentes. Jean Delumeau (2007), no ensaio “Medos de ontem e de hoje”, dá relevo à comparação entre Idade Média e a contemporaneidade demonstrando que o medo é uma emoção “híbrida”, ao passo que é socialmente condicionada, é também um reflexo dos nossos sentimentos mais primitivos, lançada numa constante atualização cultural. A partir dessa

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premissa, observamos que há um deslocamento na forma como se apreende determinados elementos ditos “naturais” como a noite, que no decorrer do tempo são tornados “culturais”, haja vista as narrativas que ligam o escuro noturno ao mal, aos fantasmas, aos espectros, às bruxas e a Satã. A menina morta se desenvolve em um clima escuro, o céu muito encoberto e a casa sempre noturna de modo que sempre há o medo de encontrar algo indesejado, contudo esses medos são tão recorrentes que fazem parte da história da fazenda, sendo agregados ao convívio. A análise passa pelas características de uma aparente fobia social, que pode representar no medo do outro o desconhecimento de si. Decerto que a hierarquia na fazenda fomenta esse tipo de medo, mas a noção do lugar do outro nem sempre é vista da mesma forma, a depender de quem olha. Os negros têm medo dos brancos por saberem que há castigos e até a morte para quem transgride a norma. Mas é de se notar que tamanha pressão do branco sobre o negro deixa mais evidente qual o lado que sente mais pavor. Evidente que os medos sociais revelam a estrutura de poder existente, mas ele ainda se assenta na representação (mais complexa) que se tem do outro, talvez o componente humano. Por isso que não se pensa numa revolta dos negros, nem mesmo numa exposição clara do passado da família, digamos que é mais torturante fazer isso aos poucos nos labirintos de histórias sem que fique muito claro o pavor imposto. Há um receio premente de que o passado familiar venha a tona. A ruína iminente não é pior que o passado fraturado. De certa forma as personagens ficam sem saída e por isso há a necessidade constante de se apagar a memória da menina morta e D. Mariana com a vinda de Carlota. A vontade de encobrir o passado é, talvez, a mola propulsora dos conflitos no romance. A começar pela menina morta, no pouco que é revelado ao leitor. Ela é o ponto de tensão da narrativa, no qual está representado a esperança de continuidade da vida na fazenda e ao mesmo tempo ela é a própria fratura, dado o seu falecimento. A morte da criança cria uma dobra na fazenda, um desvio naquilo que se tinha como o curso normal que era a manutenção do patriarcalismo e da escravidão. A metáfora dessa morte impõe medo porque marca a transição de um tempo para outro, como se estivesse algo por acontecer. Além disso, a morte de uma criança é sinal de mau agouro, como se aquilo estivesse

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ocorrendo por conta de algum pecado, erro ou coisa do tipo que justifique (do ponto de vista do destino) a morte prematura. Problemas que aos poucos vamos decifrando, com a diferença que o leitor percebe que o problema é sócio-histórico, enquanto que os moradores transitam entre uma noção mística ou racional para a derrocada da fazenda. O medo funcionaria como um operador narrativo que impulsiona a narrativa e ao mesmo tempo sedimenta uma estrutura social arruinada, criando, assim, uma tensão no enredo. As personagens têm medo do Comendador, o qual também tem medo de perder o poder por isso traz Carlota da Corte. O sentimento de estar sendo vigiado é fomentado no Grotão, fomentando uma espécie de insegurança social, individual, econômica, espiritual, que provavelmente condicionam a conduta das personagens. Cria-se dessa forma uma atmosfera de pesada a tal ponto que as relações (éticas) são baseadas nesse sentimento. Entendemos que o sistema patriarcal da fazenda está assentado numa estrutura rígida e tradicionalista que tem na imposição do medo o símbolo de força. Como foi dito no início, esse ensaio visava apenas o apontamento de tópicos relacionados à questão do medo em A menina morta. Um sentimento que tem um poder intrínseco de dar limites, mas que também aplaca quem o produz. Dessa forma, medo teria uma raiz ética capaz de movimentar as ações das personagens. Enquanto perpassa a trama do romance ela seria um operador crítico-teórico da narrativa.

Referências CARROL, Noël. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. Trad. Roberto Leal Ferreira. Campinas: Papirus, 1999. DELUMEAU, Jean. Medos de ontem e de hoje. In: NOVAES, Adauto (Org.). Ensaios sobre o medo. São Paulo: Senac; Sesc, 2007. p. 39-52. PENNA, Cornélio. A menina morta. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970. SANTOS, Josalba Fabiana dos. Fronteiras da nação em Cornélio Penna. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004. WOLFF, Francis. Devemos temer a morte? In: NOVAES, Adauto (Org.). Ensaios sobre o medo. São Paulo: Senac; Sesc, 2007. p. 17-38.

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