Os livros nos inventários da Comarca do Rio das Velhas no século XVIII (1740-1760)

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OS LIVROS NOS INVENTÁRIOS DA COMARCA DO RIO DAS VELHAS NO SÉCULO XVIII (1740-1760) SILVA, MATEUS ALVES1 GEPHE/FAE/UFMG INTRODUÇÃO Os inventários se apresentam como uma das melhores (e poucas) fontes para a pesquisa a respeito da circulação de livros e a possível leitura dos mesmos durante o século XVIII, sobretudo nos arquivos brasileiros. A prática de feitura dos inventários era necessária, visto que era o primeiro passo no longo processo de partilha dos bens que ficavam dos indivíduos que haviam morrido. Nesses documentos podem ser encontradas informações diversas e descrições detalhadas sobre a ocupação do indivíduo, se deixava herdeiros e os bens que possuía. É, especificamente, nessa parte dos inventários que se encontram, para nós, as informações mais relevantes, já que em meio a peças de metais preciosos, ferramentas, roupas e outros materiais, se encontravam - às vezes em separado, às vezes mesclados a outros artefatos - os livros, a biblioteca em posse daquele indivíduo. É justamente nesses livros, na sua descrição e detalhamento, que investiremos nosso olhar. Na tentativa de estabelecer alguns parâmetros, buscaremos compreender o que a posse desses livros parece representar, a existência de determinados livros como reflexo de seus possuidores e também uma possível leitura de alguns deles. Porém, se faz extremamente necessário salientar que a posse dos livros não significa de forma alguma a sua leitura. Como reflete Silvio Gabriel Diniz, “para se avaliar o grau de expansão cultural na Capitania, no século XVIII, nada mais positivo do que descobrir as bibliotecas existentes então. Elas informarão o que as pessoas cultas liam, ou melhor, o que havia para ser lido”. (1959a, p.338) Nesse sentido, acrescentaríamos ao “circuito do livro”, apresentado por Robert Darnton2, mais um elemento. Para além do autor, editor, impressor, distribuidor e vendedor, acrescentaríamos o possuidor, antes de chegar ao leitor propriamente dito. É claro que na maioria das vezes existe a sobreposição desses dois últimos agentes do circuito num mesmo indivíduo, mas não se pode afirmar diretamente que a posse de uma determinada obra implica na sua leitura e vice-versa. O que veremos, em muitos casos, é uma posse de livros que reflete um estatuto social, não 1

Graduando no curso de História – FAFICH – UFMG. Bolsista de Iniciação Científica FAPEMIG. 2 Ver Robert DARNTON. O que é a história dos livros? . In.: O beijo de Lamourette. Mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 112-131.

necessariamente uma prática de leitura. Outros casos, ao contrário, já estabelecem pistas onde informações como essas podem ser inferidas. De qualquer forma, vale perceber tal distinção, evitando assim a associação gratuita na leitura dos inventários, em que podemos com certeza identificar os possuidores, porém, é difícil afirmar se eles também eram leitores dos livros. Como o trabalho pretende analisar apenas os inventários como fonte, o perfil dos indivíduos ali será sempre de receptor passivo das obras (ARAÚJO, 1999, p.12), na medida em que, como dito anteriormente, é apenas a posse que nos é relatada. Essa noção é importante, pois não buscaremos aqui estabelecer relações entre as obras e leituras revolucionárias das mesmas – como exemplo as bibliotecas dos Inconfidentes - como é comum encontrar na historiografia que trata desse tema e que possui um corpus documental semelhante3. Outro ponto importante na análise das obras – e que, para nós se apresenta como primordial na História da Educação – é a possibilidade de se inferir sobre o aspecto pedagógico das mesmas, auxiliando no processo educativo ou ainda sendo o meio principal para a disseminação de conhecimentos utilizados para os mais diversos fins. Cabe aqui ressaltar que não iremos nos ater a um ambiente escolar, formalizado, primeiro pela ínfima presença de instituições de ensino na Capitania e segundo por entendermos que a educação nesse momento ultrapassa os limites de uma escola, sendo difundida nas Igrejas, nas oficinas de oficiais mecânicos e dentro das próprias casas, sendo estas últimas muitas vezes o contato inicial com o mundo das letras, com as regras de sociabilidade e com preceitos morais. Iremos, portanto, buscar estabelecer para cada um dos gêneros encontrados uma correlação entre a sua natureza e o possível aspecto pedagógico que acarreta. A fim de restringir e facilitar a pesquisa para esse artigo, nos detivemos apenas aos inventários post mortem do Arquivo do Museu do Ouro / Casa Borba Gato em Sabará, na tentativa de buscar quais os livros estavam nas mãos dos indivíduos que morreram entre as décadas de 40 e 60 do século XVIII naquela vila e seu termo, centro administrativo da Comarca do Rio das Velhas. Apenas para esse curto período temos um total de 135 inventários, distribuídos nas sessões do Cartório do Primeiro Ofício (CPO) e Cartório do Segundo Ofício (CSO). Desse total de documentos foram selecionados 9 que apresentam livros diversos relatados dentre os bens do inventariado.4 As informações obtidas são bastante reduzidas, como veremos a seguir,

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Ver Jorge ARAUJO. Uma leitura revolucionária. In: Perfil do Leitor Colonial. Salvador: UFBA, Ilhéus: UESC, 1999. p. 437-453. 4 Esses nove inventários correspondem aos que contêm livros, segundo a busca por palavrachave “livro” no Banco de Dados de Educação Colonial do Grupo de Pesquisa em História da Educação da Faculdade de Educação da UFMG (GEPHE/FAE), ainda não publicado, em fase de teste.

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por isso optamos pela utilização desse número de inventários para se obter uma compreensão maior do período sem, contudo, sugerir sua totalidade. Como se pode constatar com a leitura dos itens de bens do Inventário, não é possível estabelecer um padrão de avaliação ou de escrita a ser seguido para a confecção desse rol, pois não se reduz a um único agente a avaliação. De fato, logo no início dos Inventários são aclamados os avaliadores que, mediante um “juramento sobre os Santos Evangelhos”, se comprometem a fazer a “avaliação dos bens que ficaram da morte do falecido”. A partir daí irão relatar cada um dos “bens que possuía o defunto” (terminologia encontrada na documentação). Quanto aos livros propriamente ditos, as informações são vagas, ora relatando autores, ora títulos, funções, estado de conservação das obras, mas sempre atribuindo a elas um valor (em oitavas ou em réis), esta última a única informação que pudemos fixar para todos os documentos. Dessa avaliação um escrivão compõe o texto do Inventário, alguns extremamente detalhados, outros nem tanto. Apenas a partir de tais informações é que podemos adentrar nas bibliotecas dos indivíduos, como faremos a seguir, buscando compreender o que elas comportam e do que delas pode ser inferido. OS LIVROS E OS INVENTÁRIOS Antes de observarmos as obras em si, cabe lembrar a função do livro durante o século XVIII, já que denota práticas de leitura e posse específicas. Neste século o livro poderia ser visto como auxiliador nas tarefas e obrigações religiosas, como função nos ofícios mecânicos e outras profissões, como obras de entretenimento – romances, livros de histórias - e também apenas como um mero artigo de ornamentação das casas. Comecemos então por este último. Márcia Abreu afirma que os livros poderiam ser utilizados como ornamento, na medida em que a eles são atribuídas nos Inventários características como o tamanho e o tipo de encadernação. Dentre esses os romances eram os menos vistosos. (apud VILLALTA, 2005a, p. 10-11) Villalta observa também essa característica de se utilizar os livros como enfeites e ressalta a presença da descrição minuciosa nos documentos, além de uma “prática de decorar casas com estantes que aparentavam ter livros, mas, de fato, não os tinham – eram estantes com livros simulados”. (1997, p. 372-373) Um exemplo: o livreiro e Capitão Manoel Ribeiro dos Santos, morador na cidade de Mariana, ao enviar um pedido de livros para a metrópole faz questão de solicitar “quatro livros em branco de bom papel encadernados como os de letra redonda” que serão intitulados Cartas e que irão compor sua biblioteca, mas que “condigão com os mais inpreços em letra redonda porq'hão de estar na estante junto

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ellez [demais livros] tãobem hé enfeite mais do que os que tenho sujoz cobertoz de oLandilha e enserado”. (DINIZ, 1959b, p. 182) Dos inventários que pesquisamos, alguns deles atentam para a descrição dos livros, como o de Antônia de Azevedo Dias, mulher parda e solteira falecida em 1756. A única informação a respeito dos livros que aquela mulher possuía é a seguinte: “Três livros de quarto, dois de pasta e um de pergaminho vistos e avaliados pelos ditos avaliadores a trezentos reis todos com que se faz $300.”5

Vemos aqui que a preocupação na descrição dos livros está voltada unicamente para os seus aspectos materiais, o tamanho (livro de quarto – quarto de folha) e o formato da encadernação (em pasta ou pergaminho). Notemos que não foi sequer nomeado autor ou título das obras. De qualquer forma, apesar dessas informações condizerem com o dito pelos autores acima, não pretendemos aqui tomar essa biblioteca de Antônia Dias apenas como enfeite e ornamentação, mas demonstrar como esses livros eram percebidos pelos avaliadores. Sua avaliação, a princípio e ao menos para a confecção dos inventários, é totalmente orientada para os aspectos materiais, não importando o conteúdo dos livros. Outro caso interessante é o inventário do Licenciado Manoel Maciel que apresenta uma informação relevante a respeito de 31 dos seus 62 livros: “Três livros encadernados em pasta velhos a meia pataca cada um que importam todos três quartos de ouro (...) [e] Vinte e oito livros velhos capas de pergaminho e muito rotos avaliados todos em três oitavas de ouro (...)”6

Para além das informações já descritas no inventário anterior, este apresenta características peculiares, que atestam a preocupação com a qualidade dos livros. São velhos, outros muito rotos – ou seja, danificados, destruídos. A questão é que eles compõem metade dos livros da biblioteca do Licenciado e não são sequer nomeados como os outros que apresentam maior detalhamento e não trazem consigo características de estado de conservação. Essa qualidade irá refletir no valor atribuído a eles no inventário, muito mais barato que outros livros do mesmo dono. O que se aproxima mais da característica de utilização atestando o manuseio dos livros é a descrição no Inventário de Manoel Lopes da Fonseca7, que possui apenas dois “livrinhos”, no qual um é considerado pelos avaliadores como “exercício para a missa”. Não é apenas um livro que possui um caráter religioso, mas uma função: é um livro para a missa. E essa utilização dos livros nos ofícios religiosos é

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CSO-I(18)156 - 1756 CPO-I(03)32 - 1750 7 CSO-I(06)65 - 1740 6

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constantemente relatada na bibliografia, a princípio por serem os livros religiosos os de maior incidência nas bibliotecas, mas também por serem de utilização pública: “a relação estabelecida com os livros esteve perpassada pela oralidade e indistinção entre o público e o privado: (...) com a leitura oral pública, realizada principalmente nas igrejas, sociedades literárias e salas de aula”.(VILLALTA, 1997, p. 374) Como sabemos, a proibição da instalação de ordens religiosas na recente Capitania de Minas Gerais se configurou como um entrave para o modelo de educação vigente até a metade do século XVIII, predominado pelo ensino jesuíta, nos quais se ensinava principalmente a gramática e as primeiras letras. Mesmo assim, vemos proliferar uma prática pedagógica “recolhida aos lares e sacristias de nossas primeiras matrizes, assemelhando tal ensino às antigas escolas catedrais da Baixa Idade Média, onde o mestre era o Capelão da Igreja, da casa, da família ou da fazenda, além das próprias mães”. (DAVES e ANDRADE, 2002, p. 75-76) Essa prática se configura eminentemente oralizada, o que resulta em lacunas para quem trabalha com a documentação escrita. Só em alguns momentos é que podemos vislumbrar essa relação com a cultura letrada grafada nas fontes documentais, o que pressupõe certo aprendizado para a inserção nesse tipo de ocupação. A disseminação da doutrina católica (tanto através dos livros quanto dos púlpitos) pode ser entendida como uma prática pedagógica, na medida que valores morais e religiosos são repassados e assimilados pela população. Quanto à educação moral, vale ressaltar o seu importante papel não só na manutenção do catolicismo como também da estrutura administrativa colonial, visto que refletem – e adaptam – culturas provenientes do mundo português. Já que estamos analisando essas obras de cunho religioso, importa ressaltar a utilização e a circulação delas durante a colônia. Desde o século XVI já predominavam os livros religiosos, onde se inseriam aí as obras de doutrina, de devoção mística e ascética. Esse quadro irá pouco se alterar até o século XVIII, onde compreende ainda esse predomínio de obras devocionais e religiosas, acrescidas, porém, de outras que relataremos adiante. (VILLALTA, 1997, p. 360-361) Um exemplo dessa constituição de bibliotecas está no inventário de Damazo Ferreira de Carvalho8 que dentre os bens que possuía se encontram: “Seis livros, um do Imperador Carlos Magno, um livro ofício de missa de Nossa Senhora e um manual de missa [outros ilegíveis] avaliados todos pelos senhores em uma oitava e meia de ouro”

Já percebemos aqui os livros de tipologia completamente diferentes, característica típica das bibliotecas do século XVIII. Mas aqui se encontra o ofício de

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Nossa Senhora e um manual de missa. Não há em momento algum do inventário referência de que Damazo de Carvalho fizesse parte da hierarquia eclesiástica ou ainda participasse de alguma irmandade religiosa. Na verdade, essas informações normalmente poderiam ser encontradas nos testamentos, que não foram localizados para esse indivíduo. Importa saber que a presença desses livros no Inventário daquele já atesta uma circulação e certa participação, mesmo que ainda restrita, nos ofícios religiosos. Lendo em público ou em particular, essas obras se valeram para afirmar a doutrina católica naquela sociedade. Mas não são apenas os manuais e ofício de missa que aparecem dentro das bibliotecas e que têm um caráter religioso. Ao contrário, é expressivo o número de obras que apresentam mescladas características religiosas e também literárias. É o caso, por exemplo, do livro “O Pecador Convertido”, que, segundo Villalta é de autoria do Frei Manoel de Deus e é um dos títulos mais freqüentes nas bibliotecas analisadas por aquele autor (1997, p. 361). Essa obra aparece também nos inventários consultados, em posse do Licenciado José Correa Silva9. Outras também como “A Mística Cidade de Deus” que acreditamos ser a célebre obra de Santo Agostinho, irá figurar como obra única do inventário de Manoel da Costa Araújo Pinto10 e também dentro dos livros daquele mesmo José Correa Silva. Com suas características doutrinárias fortemente presentes, esses livros, como dito anteriormente, serão acompanhados de outros de características distintas, que acreditamos pertencer mais à ordem da literatura. Cabe aqui uma breve distinção a respeito de um tipo específico de livros. Os romances, ou prosas de ficção, irão figurar em muitas bibliotecas do século XVIII, período em que se torna destaque nas livrarias e editoras o “romance moderno”11. O caráter eminentemente ficcional gerou discussões acirradas sobre a qualidade dessas obras, já que se diferenciavam abruptamente das leituras de belas letras. Do ponto de vista pedagógico, nos interessa observar a discussão sobre a validade dos romances partindo da formação do público leitor, principalmente o público jovem. A impossibilidade de se distinguir entre o real e o ficcional, além da corrupção de outros gêneros como a História, inquietava àqueles preocupados com a instrução, sendo o romance visto como corruptor do bom gosto e da moral. Do outro lado, os defensores desse gênero literário já vislumbravam seu aspecto pedagógico, na medida em que instruía o leitor através da identificação do mesmo com os personagens e suas virtudes. Os romances, para o bem ou para o mal, eram discutidos sob a tríade

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CSO-I(18)157 - 1756 CSO I(10)107 - 1746 11 Sobre os romances, ver: Márcia ABREU et alli. Caminhos do romance no Brasil: séculos XVIII e XIX. Disponível em http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br 10

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“instruir-edificar-divertir”12 e, de certa forma, subvertiam o padrão clássico de leituras, devido à possibilidade de ser lido por pessoas de pouca instrução. Mesmo que a incidência das obras nas bibliotecas do período analisado ainda seja pequena, cabe aqui destacar a sua presença como mais um elemento importante não só no conjunto dos livros que circularam na colônia como também na visualização de um outro tipo de referencial muito mais informal no processo de aprendizagem. Como exemplo da incidência de romances temos o Inventário do proprietário de terras João Gomes de Araujo13, morador na Lagoa do Rovilha, em Minas Novas. Em seus bens constam “um livro de história da vida dos Reis de Portugal” e também o já conhecido “Cabo da Enganosa Esperança”. Livros de história, livros de estórias, se mesclam numa mesma biblioteca e compõem os bens desses indivíduos. Além deste, temos os títulos do inventário de José Leite Guimarães: “Um livro Exercício da Perfeição de meia folha avaliado em dois mil reis (...) Um dito Cabo da Enganosa Esperança avaliado em oitocentos reis (...) Um dito Entre Temporal e Eterno avaliado em oitocentos reis (...) Quatro ditos de meio quarto, espirituais, avaliados todos em setecentos e vinte reis”

São livros que possuem um valor religioso bastante arraigado, como os quatro pequenos livros espirituais citados ao final, que se apresentam junto a outros que possuem uma forma mais literária. Notemos, novamente, que quando os livros possuem um formato mais simples (como o tamanho) são sequer descritos seus autores e títulos e o valor a eles destinado é bem menor (são setecentos e vinte reis por quatro livros enquanto pelo “Cabo da Enganosa Esperança” são oitocentos reis). A história dos grandes homens está presente, como vimos em dois dos inventários já citados. São os “Reis de Portugal” em posse de João Gomes de Araujo, e também o livro do “Imperador Carlos Magno”. Atestam um valor dado à história naquele período, que servia basicamente como o exemplo de boa conduta e glória a ser seguido por todos. Reforçam a genealogia real e, consequentemente, o poder real. Já comentamos sobre os livros enquanto ornamento e enfeite, das obras devocionais e também das obras literárias. Cabe agora nos atermos a um tipo de obra bastante específico, que tinha por objetivo auxiliar na esfera do trabalho. Estamos falando dos livros relacionados aos ofícios mecânicos e também de outras profissões, como os livros de direito. Segundo Villalta, “aqueles que se dedicavam aos ofícios, na maioria das vezes, possuíam livros relacionados às suas carreiras” (1997, p. 362). De fato, encontraremos nas bibliotecas dos homens que tiveram algum tipo de instrução (segundo seus títulos 12

Cf. Luiz Carlos VILLALTA. Censura e prosa de ficção: perspectivas distintas de instruir, divertir e edificar? In: Anais de História de Além-mar. Lisboa (6): 2005. p. 253-296. 13 CSO-I(11)109 - 1747

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de Licenciados ou Doutores) livros dessa natureza. Essa informação poderia vir a ser completada pelos estudos de Jorge de Souza Araujo, auxiliando assim no panorama que tentamos desvendar a respeito dos possuidores de livros do século XVIII: “Outra característica de leitura do Brasil Colonial, em razão do interesse prático progressivamente demonstrado pelo leitor, são as de natureza médica e da jurisprudência portuguesa. (...) O século XVIII é ilustrativo desse interesse do leitor, o que denuncia uma sensível popularização de temas e assuntos médico-cirúrgicos e uma intensa e extensa penetração de autores profissionais por toda a colônia”. (1999, p. 379)

Se o interesse por obras de caráter médico-cirúrgico aparece em destaque nas bibliotecas desses homens doutos, a princípio será esse interesse de fato ligado, direta ou indiretamente, aos interesses do próprio ofício a que o possuidor se designa. Como exemplo temos o inventário do Dr. João Ferreira da Roza14. Esse homem era dono de uma botica e, segundo relatado pelo seu próprio Inventário, possuía muitos bens relativos a essa ocupação (tesouras, frascos de remédios, etc). Além disso, tinha em seu poder nada menos que sete livros de cirurgia. Se era um boticário ou cirurgião, não se pode atestar apenas tendo como fonte o seu Inventário, mas as duas informações aparecerão como possíveis. É possível que, enquanto Doutor, fosse um cirurgião, mas em momento algum surge essa informação como título em seu nome, prática comum nesse período (Dr. Cirurgião...). Infelizmente, não apareceram em nenhum dos inventários que analisamos os nomes dessas obras ligadas aos ofícios. Porém, se faz necessário salientar que, dentro de outras possibilidades na avaliação (como sugerir apenas as questões materiais do livro) esses livros foram descritos de maneira selecionada (livros de cirurgia, de medicina, etc). Isto pode se dever ao fato de que os ofícios tinham um importante status social – sobretudo os ofícios de cura – e por isso obras relativas a eles serem descritas como tal. Posteriormente também veremos a existência desses livros nas mãos de outros nomes que não são necessariamente ligados aos ofícios mecânicos. A relação entre a leitura e o aprendizado dos ofícios mecânicos ainda é incerta. O que podemos atestar é que, em alguns regimentos portugueses para os ofícios mecânicos, é obrigatório ao aprendiz, antes de ingressar na oficina, o saber ler e escrever, apesar de não ser uma prática obrigatória em todas as corporações de ofício.15 No estudo específico sobre as Minas Gerais, sabemos que não houve a instalação das corporações de ofício, como ocorrera em Portugal, portanto podemos

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CSO-I(07)77 - 1742 Ver: José Newton Coelho MENESES. Ensinar com amor uma geometria prática, despida de toda a teoria da ciência e castigar com caridade: a aprendizagem do artesão no mundo português, no final do século XVIII. In: Varia Historia – Revista do Departamento de História da UFMG (36): 2007. (no prelo). 15

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inferir que aqui ocorreu uma maleabilidade maior em relação ao ensino e aprendizado dos ofícios mecânicos.16 Um outro ponto bastante interessante no inventário do Doutor João Ferreira da Roza é o fato dele possuir “nove cadernos de papel” e também “duas mãos de papel branco”. Essas informações, a princípio, parecem irrelevantes, mas sugerem uma outra prática que está, pelo menos para os estudos ligados ao século XVIII, separada da leitura, que é a escrita. Devemos ter em mente que o aprendizado da leitura muitas vezes se dava dentro da própria casa, junto às mães e depois reforçado pelos professores de primeiras letras, ou seja, “de ler, escrever e contar”. São práticas que variam em relação à condição, ocupação e destinação daquelas crianças17. Além disso, segundo Daves e Almeida, “ao que tudo indica, na época colonial, aprendia-se primeiro a ler. A escrita era uma segunda etapa do processo de alfabetização. Sendo assim o método de ensino era fundamentado em exercícios mnemônicos” (DAVES e ALMEIDA, 2002, p. 78). Pois bem, é bastante comum encontrar dentro dos inventários receitas médicas ou feitas por boticários para a cura de determinadas doenças, inclusive aquelas que levaram o indivíduo ao falecimento. Sendo o Doutor João Ferreira da Roza possuidor de uma botica, é possível que se proponha uma relação entre esse trabalho e os papéis que possuía, vislumbrando assim a utilização desses para a confecção de receitas. Mais do que escrever essas receitas, implica também uma prática de leitura com um objetivo específico. Outro inventário interessante é o do Licenciado José Correia da Silva. Ele foi um homem casado, pai de nove filhos, e morador na região do Sabará. Possuía mais de 90 escravos, o que lhe designa um status considerável naquela sociedade. Dentre os seus livros, destacamos a “Mística Cidade de Deus, Dois livros intitulados a Arte de Furtar” (que, segundo Jorge de Souza Araújo, é de autoria do jurisconsulto, historiador e político português João Pinto Ribeiro (ARAÚJO, 1999, p. 271)) e também “dois livros de Alveitaria”, além do já citado “Pecador Convertido”. Esse indivíduo não vivia na vila de Sabará, mas em seus arredores, como atesta o inventário, o que pode sugerir também algum tipo de ocupação ligada à terra. Já vimos sobre os livros de caráter religioso e literário, mas cabe aqui uma reflexão sobre os chamados livros de Alveitaria. Esse ofício se designa com o que hoje chamamos de Veterinária, ou seja, o trato da saúde e cura de males dos animais. Pois bem, sendo ele José Correia um proprietário de terras, parece interessante encontrar

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Sobre as regulamentações a respeito dos ofícios mecânicos em Minas Gerais e Portugal ver: José Newton Coelho MENESES. Artes fabris e serviços banais Ofícios mecânicos e as Câmaras no final do Antigo Regime. Minas Gerais e Lisboa -1750/1808. 2003. Tese de doutoramento. 17 ver Thais FONSECA. “Segundo a qualidade de suas pessoas e fazenda” – estratégias educativas na sociedade mineira colonial. In. Varia História vol.35

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em sua posse livros como esse. Não há vestígio algum de sua profissão ou ofício, apenas é dito que aquele homem é um Licenciado. Percebemos aqui, então, a presença de obras técnicas ou relativas aos ofícios inclusive nas bibliotecas daqueles que tinham uma ocupação mais rural, ligada à terra. Mais interessante ainda é o Inventário do também Licenciado Manoel Maciel. Como dito anteriormente, são 62 livros, sendo que alguns deles pertencem a coleções de grandes nomes também muito utilizadas na época. Cabe aqui a transcrição, resumida: Treze tomos de livro de quarto de pasta do Padre Vieira (...) Seis tomos de livros de quarto encadernados em pasta de Pe.Feijó (...) Quatro livros de quarto encadernados em pasta de vários autores (...) Dois tomos de livros de Medicina de meia folha encadernados em pasta (...) Seis tomos de livros espirituais em que entra uma Arte Latina e um de medicina (...) Três livros encadernados em pasta velhos (...) Vinte e oito livros velhos capas de pergaminho e muito rotos (...)

São livros de natureza extremamente diversa, é fácil perceber. O mesmo inventário foi analisado por Thais Fonseca, em seu artigo sobre história da educação na colônia (p. 15 e 16). Nele, a autora destaca duas informações que serão para nós muito importantes, que só apareceram no testamento daquele sujeito: era português, solteiro e deixara nove filhas com três mulheres negras, declarados todos forros. Além disso, era minerador. Daí podemos inferir que seu grau de Licenciado fora obtido ainda em Portugal, e viera para cá, como tantos outros portugueses, em busca do ouro. Vejamos então, as obras que possuía. Os treze tomos de Padre Vieira muito provavelmente se referem à coleção de Sermões, obra de caráter extremamente doutrinário e devocional, de grande circulação naquele período. Não encontramos referências aos livros do Padre Feijó. Mesmo assim, ambos atestam o valor e lugar do livro religioso nas bibliotecas, como já havíamos presenciado, tanto na bibliografia quanto nos mesmos inventários. O que irá causar certo estranhamento inicial são as obras de medicina e aquela chamada Arte Latina. Na biblioteca de um Licenciado parece até ser possível tal presença, seguindo a linha dos autores que atestam a presença de livros variados, não apenas restritos ao ofício. O interessante é que a existência daqueles livros de medicina segue justamente a linha dos autores que entendem ser essa uma presença comum no século XVIII, diferenciando o período dos precedentes, ao presenciar a “lógica da popularidade das obras médico-cirurgicas” como uma “necessidade prática do saber público quanto a situações elementares entre os sintomas, presumível diagnóstico, aplicação de remédios à base de ervas e a cura como resultado final” (ARAÚJO, 1999, p. 379).

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Mais do que isso, a existência de obras latinas também atesta o lugar de bacharel daquele indivíduo, compondo assim o ciclo de obras destinadas, segundo Araujo, que mantinham vivo o “desejo de ser, parecer ou permanecer afinado com a expressão social do seu tempo”(1999, 254). Mas a qual livro, de fato, se refere essa “Arte Latina”? Segundo a pesquisa, podemos supor que seja a Arte Latina (ou Gramática Latina) do Padre Manoel Álvares (1526-1583)18, um método de latim que já circulava na colônia desde os séculos XVI-XVII. Esse autor era um jesuíta e sua obra era um dos principais métodos utilizados pelos inacianos. Pois é a essa mesma Arte Latina que o Padre Luis Antônio Verney vai tecer uma série de críticas no seu “Verdadeiro Método de Estudar”. Já é de conhecimento geral que esta última obra (o Verdadeiro Método) foi a base para as Reformas Pombalinas na instrução pública, através do Alvará de 28 de julho de 1759. Nesse alvará se proíbe o “uzo e ensino da Grammatica Latina pela Arte do Padre Manoel Álvares, e seus explicadores Antonio Franco, João Nunes e José Soares e o extenso e inutil Madureira e todos os seus cartapacios” (apud ARAÚJO, 1999, p. 70). O interessante é perceber que, um livro importante como o de Verney tece críticas severas àquela Arte Latina, não só por sua escrita única em latim como as inúmeras interpretações que dela tiveram de ser feitas para o ensino da Gramática. Ao iniciar sua segunda carta, Verney afirma que: Quando entrei neste Reino, e vi a quantidade de Cartapácios e Artes que eram necessárias para estudar somente a Gramática, fiquei pasmado. (...) Sei que, em outras partes onde se explica a Gramática de Manoel Álvares, também lhe acrescenta algum livrinho; mas tantos como em Portugal, nunca vi. (1949, p. 135)

Talvez de todas as obras que procuramos trabalhar essa seja a de maior importância, na medida em que atesta a presença, na colônia, de uma educação também formalizada, já que é uma obra de grande circulação e conteúdo restrito unicamente à instrução. Mesmo que essa educação tenha sido recebida fora da colônia (já comentamos que o grau de Licenciado deve ter sido obtido em Portugal), a presença de tal obra atesta a circulação de saberes entre Portugal e a colônia. Se não podemos inferir unicamente sobre o papel dos livros na formação intelectual desses indivíduos, é interessante observar o lugar de uma biblioteca na sociedade colonial, sendo muito mais do que um aparato de instrução ou deleite, mas um outro elemento fixador dos lugares sociais.

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“Arte Latina” aparece na lista de livros solicitados à Metrópole por Manuel Ribeiro dos Santos, ora sem referências, ora como “Arte Latina do Padre Manoel Alvares”. Cf. DINIZ. Um livreiro em Vila Rica no meado do século XVIII. p. 187, 189 e193. Ver também Jorge ARAUJO. Perfil do Leitor Colonial. p. 70-73.

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CONCLUSÃO Pretendemos com esse trabalho mapear, através de alguns poucos inventários, a composição das bibliotecas na metade do século XVIII em Minas Gerais, especificamente na comarca do Rio das Velhas. Mais do que buscar leitores, reiteramos, o nosso objetivo foi estar atento ao lugar dessas obras por si próprias e sua relação com seus donos, que aqui entendemos como distintos possuidores, e não leitores de livros. Livros religiosos, de estórias, de literatura, técnicos e de adorno. Para cada um deles é possível mapear um trato diferenciado, seja pelas mãos dos avaliadores, dos escrivãos ou ainda mesmo pela própria sociedade, que parece, em certos momentos, ditar as obras que se configuram como as mais importantes e ainda, mais visíveis na composição das bibliotecas. Cabe lembrar aqui que o nosso trabalho só pode contar com o dito receptor passivo, que na verdade se aproximaria muito do nosso “possuidor”. Desse modo, não estamos negligenciando a atuação e assimilação dos indivíduos, a leitura capaz de transformar e informar de que fala Certeau (1994, p. 260-261). Apenas acreditamos que, a partir de um corpo de documentos como é o de inventários não é possível estabelecer essas noções de leitura tão convincentemente. Algumas inferências puderam ser feitas, mas, de fato, ficarão por si mesmas na especulação. Isso não impede, porém, que um trabalho com os inventários não possa ser uma grande chave, pelo menos inicial, para se compreender parte do processo ou do ciclo de leitura proposto por Darnton, mas, usando das palavras do próprio, se “a leitura continua a ser o estágio no circuito dos livros que oferece maiores dificuldades de estudo” (1990, p. 121), a percepção inicial desse mesmo percurso se faz necessária, mesmo que ainda não consigamos chegar a uma composição mais exata dos sujeitos dessa prática. Com relação à educação nesse período, o trato com inventários pode atestar muito sobre o que havia para ser lido na colônia e nesse sentido, o que poderia vir a ser ensinado. Buscamos aqui estabelecer apenas algumas possíveis relações entre o conteúdo das obras e seu caráter de instrução, mas é necessário afirmar que um trabalho que procure desvendar as práticas educativas no seio da colônia deve ser feito de maneira minuciosa, evitando assim comparações e atribuições indevidas quanto à educação nesse período. Procuramos apenas vislumbrar algumas possibilidades de se utilizar dos inventários como fonte para a História da Educação.

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BIBLIOGRAFIA

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