Os lugares da Criminologia: uma breve análise da conjuntura do pensamento e epistemologias criminológicos

July 3, 2017 | Autor: Ana Gabriela Braga | Categoria: Criminologia, Epistemologia, Ciências Criminais, Positivismo Criminologíco
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OS LUGARES DA CRIMINOLOGIA: UMA BREVE ANÁLISE DA CONJUNTURA DO PENSAMENTO E EPISTEMOLOGIAS CRIMINOLÓGICOS

Professora da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Unesp. Coordenadora da Pesquisa “Dar à luz na sombra” (Projeto Pensando o Direito SAL/IPEA). Doutorado Sanduíche realizado junto ao Departamento de Antropologia da Universitat de Barcelona. Doutora e Mestre em Criminologia e Direito Penal pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

Mestranda pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Unesp. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Franca. Bolsista Capes. E-mail: [email protected]

Resumo: O presente artigo busca investigar alguns dos desdobramentos e reconfigurações das funções e lugares dos discursos criminológicos, em especial no Brasil, a partir de três amplos recortes históricos. Por meio da combinação dos métodos dedutivo e histórico, pretendeu-se compreender a formação dos saberes criminológicos, suas hierarquias e horizontalidade, tanto sob a perspectiva interna das Ciências Criminais quanto das relações destas com os outros saberes que produzem conhecimento acerca do fenômeno criminal. Analisa-se o papel do positivismo criminológico na formação do Brasil republicano, que, com a aura do cientificismo, viabilizou a construção de discursos ontológicos, que legitimariam intervenções racistas acerca do crime. Discute-se ainda, a mudança paradigmática na Criminologia na segunda metade do século XX, lugar da Criminologia no século XXI e os desafios frente ao caráter duplamente interdisciplinar do saber criminológico. Por fim, aponta-se para uma abertura dinâmica e crítica da criminologia frente aos seus desafios epistemológicos. Palavras-chave: Criminologia. Epistemologia. Ciências Criminais. Positivismo criminológico.

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INTRODUÇÃO

Uma das complexidades do saber criminológico está no caráter disperso de suas abordagens, que se integram em diversas regiões do conhecimento, objetos e métodos, de forma dinâmica a cada contexto

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histórico. Cândido da Angra (2012, p. 12-18) propõe a figura de um “arquipélago dos discursos criminológicos” para se referir ao “pensamento crítico, livre e autônomo: como o rochedo firme e seguro donde se observa a agitação dos homens no mar revolto da vida quotidiana”. O saber criminológico é produto de uma dinâmica interativa de múltiplos campos científicos, de modo a operar com alterações de configuração em sua própria epistemologia. A partir desta configuração, é possível questionar, não somente o lugar em que a criminologia se situa, mas também como as funções a ela são incumbidas, qual é o seu lugar nos discursos filosóficos e nas produções dela provenientes. Na conjuntura do pensamento criminológico no Brasil, desde o legado deixado pelas correntes do liberalismo e do positivismo criminológico, o lugar concedido à Criminologia seria o de ciência auxiliar às questões normativas da Dogmática-Jurídico-Penal, contemplando o modelo de Ciência Penal pretensamente integrada. A formação dos saberes penais no Brasil foi influenciada pelos pressupostos liberais, mas, sobretudo, pelas concepções do positivismo criminológico, produzidas principalmente pela Escola Positivista Italiana, as quais tiveram forte impacto no contexto brasileiro. Nesse sentido, levanta-se uma primeira hipótese, a ser aprofundada em outros trabalhos, de que o projeto de integralização dialética das denominadas Ciências Criminais acabou por produzir uma relação verticalizada entre a Criminologia e o tecnicismo jurídico, no âmbito do pensamento contemporâneo sobre o fenômeno criminal. Os lugares e as funções exercidas pelo saber criminológico no Brasil estão intimamente relacionados ao projeto de construção de uma comunidade intelectual restrita e elitista, que emergia nos poucos polos universitários no Brasil. Esse projeto de desenvolvimento científico nacional contribuiu para a formação da República com a construção de uma ideologia conservadora, manifesta nos discursos criminológicos voltados à instrumentalização de políticas de controle da população em um período escravocrata e de economia agrária. É nesse momento, que as dimensões históricas do pensamento liberal projetam-se no campo criminológico. Para Angra (2012, p. 14), ao final do século XIX e início do século XX, o positivismo e o racionalismo surgem como vias fundamentadas em parâmetros de cientificismo, com o fim de dar respostas às buscas de contenções da criminalidade, a partir de critérios étnico-raciais. Na segunda metade do século XX, a problemática se desloca para concepções em relação aos recortes epistemológicos e paradigmas da

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Criminologia. A mudança paradigmática propulsionada em meados da década de 1960 pelos países anglo-saxões e com grande impacto no Brasil trouxe a proposição de novas perguntas e uma outra forma de relação entre saber criminológico e sistema de controle. Essa nova configuração impactou a relação da Criminologia com a Dogmática Penal e Política Criminal, na medida em que, i) essa nova Criminologia, ao “desontologizar” o fenômeno criminal, constituía de forma independente seu objeto em relação às proposituras da Dogmática Penal e o sistema de controle tornava-se, ele mesmo, objeto de estudo da Criminologia. Já uma leitura contemporânea do saber criminológico aponta para uma indefinição no plano epistemológico do saber criminológico, frente à não circunscrição disciplinar de seus objetos e métodos e diante de suas interdisciplinaridades – externas e internas. Para Baratta (2006), a intercomunicação interna da Criminologia corresponderia à sua relação com a Dogmática-Jurídico-Penal e a Política Criminal; enquanto sua interdisciplinaridade externa estaria na correlação das investigações no âmbito da Criminologia em relação às diversas regiões do conhecimento das Ciências Humanas e Sociais. Por meio da combinação dos métodos dedutivo e histórico e de uma abordagem interdisciplinar, propõe-se uma descrição contextualizada do pensamento criminológico. Este trabalhou buscou, brevemente, analisar alguns dos desdobramentos históricos da Criminologia no Brasil e suas produções sociais, bem como as indefinições epistemológicas contemporâneas, decorrentes de sua virtude multidimensional de instrumentos e objetos de investigação. A partir de três amplos recortes históricos, buscamos algumas aproximações na compreensão da formação dos saberes criminológicos, suas hierarquias e horizontalidades, tanto sob a perspectiva interna das Ciências Criminais, quanto das relações destas com os outros saberes que produzem conhecimento acerca do fenômeno criminal. Analisa-se o papel do positivismo criminológico na formação do Brasil republicano, que, com a aura do cientificismo, viabilizou a construção de discursos ontológicos, que legitimariam intervenções racistas acerca do crime. Discute-se ainda, a mudança paradigmática na Criminologia na segunda metade do século XX, lugar da Criminologia no século XXI e os desafios frente ao caráter duplamente interdisciplinar do saber criminológico. Por fim, aponta-se para uma abertura dinâmica e crítica da Criminologia frente aos seus desafios epistemológicos.

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O olhar sobre os saberes criminológicos dentro de um modelo mais aberto e interdisciplinar se mostra como um caminho para a desconstrução da perspectiva ontológica da Criminologia. Esta sim, dotada de objetos circunscritos, teorias, enunciados e conceitos sobre o fenômeno criminal, enquanto parâmetros epistemológicos próprios, que lhe confeririam um status de ciência, em seu sentido estrito e propriamente epistemológico, presente no campo da filosofia do conhecimento. 2

AS CIÊNCIAS CRIMINAIS: HIERARQUIAS E HORIZONTALIDADES

Para discutir a construção do conceito de Ciência Penal, recorreremos a dois diferentes modelos alemães clássicos: Karl Binding e Von Liszt. O primeiro, recusando-se a “abdicar do solo firme e restrito da lei” (ANDRADE, 2013, p. 190), se opõe à concepção global das Ciências Criminais, uma vez que um modelo de configuração de Ciência Penal Conjunta poderia resultar numa abertura às outras áreas das Ciências Criminais. Já Von Liszt propõe, sob nome de Ciência Penal Global, um modelo tripartido da ciência conjunta ou global, que compreenderia ciências relativamente autônomas, cuja tarefa sociopolítica, em última caso, é de controle do fenômeno do crime (ANDRADE, 2013. p. 191). Enquanto Binding propõe uma ciência penal fechada à inserção de outros saberes vinculados ao fenômeno criminal, Liszt defende o contrário. Contudo, a abertura propugnada por Liszt em nada ameaça a Dogmática-Jurídico-Penal, na medida em que a propõe a partir de uma concepção hierárquica entre as ciências, na qual a Dogmática seguiria no papel de protagonista na conjuntura das Ciências Criminais. Se no discurso em defesa das Ciências Criminais (BARATTA, 2001; ZAFFARONI, 1999) busca-se uma produção integrada, mas alternativa à concepção clássica de Liszt, levanta-se a hipótese que esse projeto não se concretiza materialmente na produção científica criminal. A Criminologia no Brasil, e na tradição continental, esteve – e, talvez ainda esteja – identificada à unidade composta pela Ciência Penal e acessória à Dogmática Penal. Vera Regina Pereira de Andrade (2003, p. 225) descreve a Criminologia desse modelo como “ciência normativa do Direito Penal, e esta, como Ciência causal explicativa do fenômeno da criminalidade, concebida como realidade ontológica, preexistente à reação social e penal”. Não haveria, portanto, quaisquer distinções entre o campo criminológico e dog-

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mático penal, uma vez que a Criminologia estaria comprometida à construção de uma ciência penal, na qual a “Dogmática será eleita com a faixa de rainha, enquanto a Criminologia e Política Criminal, bem como outras ciências em torno dela gravitarão como ciências auxiliares (segundas, terceiras e quartas princesas)” (ANDRADE, 2013, p. 209). A concepção de Liszt de Ciência Conjunta do Direito Penal, mencionada anteriormente, baseia-se em num modelo tripartido, no qual as ciências são relativamente autônomas, e, apesar de não dialogarem entre si, elas correspondem, de forma conjunta, à investigação científica do fenômeno criminal propugnada pela Criminologia, por meio da política criminal, cujo fim seria de controle da criminalidade (DIAS, 1999, p. 24). Esse modelo é objeto de inúmeras críticas exaustivas e legítimas em relação às matrizes funcionais do paradigma dogmático da Ciência Penal (ANDRADE, 2013, p. 91). Figueiredo Dias (1999) explica que, diferentemente do modelo de Karl Binding, a proposta de Liszt corresponde à relativização da autonomia das Ciências Criminais, “visando por esta via encarecer sobretudo a autonomia da Política Criminal e da Criminologia perante o estudo estritamente jurídico do crime e o seu tratamento “dogmático” e “sistémico”. O autor ainda enuncia: O modelo da ciência conjunta tinha como ponto essencial o dar a compreender que qualquer uma das suas três vertentes seria em último termo relevante para a tarefa da aplicação do direito penal e, por aí, para a tarefa sócio-política de controle do fenômeno do crime. (DIAS, 1999, p. 24-25)

Essa construção moderna da Ciência Penal, de caráter fragmentário, se relaciona com a maneira altamente seletiva dos sistemas de bens jurídicos (em relação ao tratamento normativo da própria lei penal)1, que reduz o saber da Criminologia no ensino técnico-racional, além da problemática da colonização dos pensamentos dogmáticos e criminológicos na América Latina, acerca de um fetichismo eurocêntrico de importação de modelos alienígenas presentes na doutrina brasileira. Do mesmo modo, a fragmentaridade dos institutos das Ciências Criminais é a problemática no que diz respeito ao posto em que a Dogmática Penal estaria notoriamente estabelecida, de modo a instituir a Políti1

Neste sentido, vide HASSEMER; CONDE, 1989.

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ca Criminal e a Criminologia como sendo suas auxiliares. Assim, essa concepção restringe a Ciência Penal ao seu aspecto formal. Comunga-se da noção de Lyra Filho (1997, p. 67) de que a Criminologia “não deve funcionar como um reboque do formalismo jurídico”. Nesse empobrecedor cenário das ciências criminais, a Criminologia macrossociológica, legitimamente, emerge como uma via de possibilidade de desconstrução tautológica (PANDOLFO, 2010, p. 18), de modo a demonstrar as possíveis consequências da herança do pensamento criminológico etiológico, bem como sobre a colonização da Criminologia em relação à Dogmática Penal. Nesses parâmetros, situam-se os recortes epistemológicos interdisciplinares da Criminologia e sua relação com a Política Criminal e Dogmática-Jurídico-Penal. De acordo com Alessandro Baratta (2004), essas subdivisões da interdisciplinaridade presentes na Criminologia corresponderiam às interdisciplinaridades interna e, num outro cenário, à externa, enquanto passagem epistemológica nos diversos campos do conhecimento. O autor assim define a interdisciplinaridade interna do saber: Defino como interna la interdisciplinariedad que se realiza cuando una disciplina académica o un complejo integrado de disciplinas académicas que concurren sobre un único objeto (en nuestro caso el Derecho penal), selecciona y organiza al interior del propio discurso resultados provenientes de otras disciplinas académicas manteniendo la autonomía estratégica y la hegemonía del propio saber específico en comparación con aquellas. Tal interdisciplinariedad, que realiza, un modelo integrado de ciencia del Derecho penal, como el que aquí planteamos, hace uso de los necesarios conocimientos de teoría, historia de la sociedad, psicología social, politología, teoría de la argumentación, ética social, etc. La connotación y los contenidos de tal discurso interdisciplinario están determinados también, por la intervención, en el interior del núcleo de partida del discurso (un saber jurídico-penal integrado) de la criminología “crítica” en la dimensión hasta aquí considerada: la dimensión de la definición o de la reacción social. (BARATTA, 2004, p. 145-146)

A fragmentação da Ciência Penal em disciplinas, vistas como autônomas, pode ser apontada como um obstáculo para a compreensão global – integral – dos saberes criminais, “fato este que gera a incapacidade de compreensão das violências inerentes ao sistema penal e de criação de instrumentos para minimizá-las” (CARVALHO, 2011, p. 13-14). Frente ao

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movimento tecnicista e formalista do saber penal contemporâneo, Alessandro Baratta (1980, p. 24) havia alertado sobre a atual impossibilidade de realização da integralização dialética das ciências criminais e o lugar da Criminologia neste modelo: “a ciência jurídica atual pode unicamente integrar-se com a Criminologia de ontem e só a ciência jurídica de amanhã poderá chegar a integrar-se com a Criminologia e as ciências sociais de nossos dias”. Algumas propostas contemporâneas2 surgem como resposta, a fim de concretizar um diálogo interno entre as Ciências Criminais, como a abertura axiológica e crítica do Garantismo Penal, cuja metodologia seja condizente ao minimalismo-abolicionista e uma saída para a contenção prática das violências inerentes ao sistema penal. 3

DESDOBRAMENTOS DA CRIMINOLOGIA NA FORMAÇÃO DO BRASIL REPUBLICANO

A Ciência Penal emerge no contexto europeu iluminista do século XIX como um saber sistematizado em torno do projeto da burguesia ascendente, que visava limitar os excessos do Estado monárquico e, pretensamente, humanizar as práticas punitivas, tornando-as, senão menos violentas, mais suaves. O modelo do Iluminismo liberal constitui a matriz mediata da construção da Dogmática Penal e marca o projeto penal moderno como promessa de racionalização do poder punitivo do Estado e garantia dos direitos individuais. O esforço pela racionalização e neutralização das funções do direito penal se insere na construção da epistemologia científica moderna, a qual, nos termos de Bachelard (1971, p. 124), se funda no ultrarracionalismo, que realiza-se na libertação de interesses e impermeabilidade de outros axiomas; ou ainda no Positivismo, que subsiste pelas concepções determinas e absolutas (dogmas enquanto princípios de fé), presentes na construção da teoria filosófica do conhecimento. Enquanto as sociedades da Europa Ocidental passavam por profundas mudanças sociais (ascensão da burguesia), econômicas (liberalismo) e políticas (revoluções que destituem os reis absolutistas), o Brasil ainda continuava com a sua aristocracia agrária, escravista, em que a economia agroexportadora era dependente e submetida à política colonial 2

Nesse sentido, é importante leitura de ANDRADE, 2012, p. 194.

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da opressão. O contraste entre esses dois contextos socioculturais também pode ser observado nas formas e nos conteúdos das suas produções discursivas. Em relação ao ensino nesse período no Brasil, Maria Lúcia Aranha (1996, p. 134-135) explica que uma sociedade exclusivamente agrária, que não exige especialização, e em que o trabalho manual se acha a cargo de escravos, permite a formação de uma elite intelectual, cujo saber universal e abstrato volta-se mais ao bacharelismo, à burocracia e às profissões liberais3. Naquele período, a oposição dos liberais-radicais em relação aos liberais-conservadores não foi suficiente para impedir que as forças conservadoras moldassem o Estado brasileiro de acordo com seus interesses. De tal modo, os membros daquela elite agrária e comercial apuraram o pensamento liberal das suas feições mais radicais, que fomentou a construção ideológica conservadora e antidemocrática. Com isto, pode-se afirmar que, apesar de em ambas as regiões terem sido difundidas as ideias do Iluminismo, a construção do Estado de Direito Penal no Brasil ocorreu de forma distinta da Europa, uma vez que nesta houve um Estado liberal voltado à realização da democracia, enquanto que o Brasil aponta para a doutrina de um Estado liberal que não deixa de ser oligárquico (ARANHA, 1996, p. 234). Ainda presentes as marcas da herança colonial, a recepção eurocêntrica do Iluminismo francês pelas elites brasileiras terminou, portanto, por cobrar um alto custo pela sua importação à realidade socioeconômica latino-americana colonizada. No Brasil, o liberalismo assumiu uma dimensão excessivamente conservadora, revelando-se menos doutrinário que justificador, estando as elites interessadas apenas em diminuir o poder do monarca para aumentar o próprio, em generalizar as classes pobres à participação política (ARANHA, 1996, p. 234). 3

Acerca da concepção sobre profissões liberais, Maria Lúcia de Arruda Aranha explica que elas se deram, principalmente, após o período de expulsão dos jesuítas (final do século XIX), em relação à formação das classes dirigentes, a fim de manter a autoridade em relação às senzalas. Uma sociedade exclusivamente agrária, que não exige especialização, e em que o trabalho manual se acha a cargo de escravos, permite a formação de uma elite intelectual cujo saber universal voltase mais para o bacharelismo e para as profissões liberais. A partir disto, tem-se uma atuação profissional que busca valorizar tanto a literatura, quanto a própria retórica, de modo a desprezar as ciências e atividade manual. Isto é possível notar no tocante ao lugar de destaque em que a oratória se situa, em tempos atuais. Nesse sentido: ARANHA, 1996, p. 235.

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Na transição do século XIX4 para o século XX, a composição da estrutura universitária no Brasil – e, de modo geral, presente nos poucos polos universitários de países periféricos –, é marcada, segundo Darcy Ribeiro (1975, p. 111-112), por uma estrutura “profissionalizada, rígida, autárquica, estagnada, duplicadora, autocrática e burocrática, que tem por atributos sua extrema rigidez e seu caráter elitista”. Em um recorte do campo jurídico, a elite judiciária e forense, “vinda das Universidades e das grandes metrópoles, penetra o interior mais remoto, representada por juízes e advogados: e mantém ali, em face do povo-massa, a tradição e o espírito do direito – lei” (OLIVEIRA, 1996, p. 428). De acordo com Márcio César Alvarez (2003, p. 25), ainda que o ensino jurídico presente nas faculdades brasileiras fosse pouco inovador, estas se apresentaram como importantes locais de formação cultural e política das elites. Assim, é possível afirmar que os cursos jurídicos foram importantes polos para a formação política e cultural daquela elite nacional, de modo a influenciar na própria produção social do saber jurídico. Não de outro modo, a figura do jurista é vista numa sinonímia à burocratização do funcionamento dos serviços públicos. Nesse cenário, o instrumento à constituição da estrutura normativa do Direito Penal, baseada em princípios políticos criminais (DIAS, 1999, p. 39), teve como condão a burocratização, a fim de que seus objetivos pudessem ser alcançados. Essa característica é presente ainda na instrumentalização da Ciência Penal que, posteriormente, irá emergir ao tecnicismo jurídico brasileiro. Após a Primeira República, juntamente com a consolidação da Dogmática Jurídico-Penal nacional, há a formação de um movimento intelectual que viabilizou a abertura para outras formas de reflexão sobre a realidade social da época, mediante o movimento do Positivismo. Os discursos criminológicos impulsionam as mudanças paradigmáticas entre os saberes jurídicos e as questões presentes na epistemologia criminológica nesse momento, situando-se principalmente nas ideias de Lombroso, Ferri e Garófalo (ALVAREZ, 2003, p. 74). Contudo, o positivismo criminológico italiano ganha algumas particularidades em solo brasileiro, com o desenvolvimento de teorias inspi4

É importante ressaltar que, até a primeira metade do século XIX, a tradição jusnaturalista permanecia dominante na produção de conhecimentos nas universidades jurídicas brasileiras. Neste sentido, ver ALVAREZ, 2003, p. 25.

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radas no positivismo adaptado às especificidades nacionais. Esse saber constituído na interface com a medicina e a psiquiatria ganha força nos debates jurídicos da época, e servirá para pensar e estruturar a nova ordem social no período pós-escravocrata, que criaria diferenciações, categorias e hierarquias para além da igualdade formal liberal. Alvarez (2003, p. 107) remonta a produção de Cândido Motta5 como um dos precursores dessa nova perspectiva científica no Brasil. Na virada do século XIX e início do XX, diante do presente processo de urbanização nas capitais brasileiras, a emergência em relação ao conhecimento sobre a punição atende à necessidade de discursos científicos alinhados à nova sociedade e ao poder de punir. Contudo, apesar de o conhecimento criminológico centrado no homem delinquente e no estabelecimento de uma política “científica” de combate à criminalidade ter sido foco de grande interesse por juristas e, principalmente, antropólogos, as elites republicanas ainda julgavam essas descobertas insuficientes, de modo a incluir as noções de igualdade social e política, que seriam provenientes desse novo regime republicano. A afirmação no plano discursivo de ideais de igualdade foi uma das bandeiras do período moderno, o qual deu origem ao que se denominou o Direito Penal na sua forma clássica, e funcionou a favor da burguesia para a manutenção da desigualdade material. Nesse sentido, as descobertas advindas do Positivismo Criminológico ainda não se mostravam suficientes, uma vez que careciam de fundamentos valorativos de igualdade num plano formal e abstrato. A justificação teórica que imprimiria legitimidade às categorizações e diferenciações de inspiração positivista viria com a o um desenvolvimento discursivo de categorias e teses da DogmáticaJurídico-Penal nacional, de forma a implantar e instrumentalizar ideias de controle social às ações valorativas e seletivas do Estado (principalmente no que tange às questões raciais, cuja fundamentação factível adivinha de estudos antropológicos e sociológicos da criminologia positiva). A introdução da criminologia no país representa, deste modo, a possibilidade simultânea de compreender as transformações pelas quais 5

Marcos César Alvarez enuncia que o interesse por novas ideias penais a partir do final do século XIX manifestou-se cedo na carreira de Cândido Mota. Nesses relatórios (como percepções científicas) coletados ainda enquanto promotor público, Mota apresentava questões sobre vadiagem, prostituição e mendicidade na capital de São Paulo. Seus dados voltavam-se para uma abordagem quantitativa, visando analisar as estatísticas de criminalidade, também no estado de São Paulo (ALVAREZ, 2003, p. 107).

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passava a sociedade, de implementar estratégicas específicas de controle social e de estabelecer formas diferenciadas de tratamento jurídico-penal para determinados segmentos da população. Como um saber normalizador, capaz de identificar, qualificar e hierarquizar os fatores naturais, sociais e individuais envolvidos na gênese do crime e na evolução da criminalidade, a criminologia poderia transpor as dificuldades que as doutrinas clássicas de direito penal, baseadas na igualdade ao menos formal dos indivíduos, não conseguiam enfrentar, ao estabelecer ainda dispositivos jurídico-penais condizentes com as condições tipicamente nacionais (ALVAREZ, 2003, p. 72). Nesse contexto, com a presença antecessora de ideais liberais e, posteriormente, de concepções da Criminologia Positivista, houve um esforço por parte dos juristas reformadores de estabelecer um diálogo entre essas duas correntes, de modo que pudesse atender às demandas do regime republicano (ao menos do ponto de vista formal e teórico) e, paradoxalmente, manter e fixar desigualdades individuais e sociais por meio do Direito Penal. 4

SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX: MUDANÇA PARADIGMÁTICA NA CRIMINOLOGIA

Na segunda metade do século XX, a projeção da Dogmática Penal e sua ascensão em relação às perspectivas criminológicas no campo jurídico aponta para um novo desenho da relação entre esses saberes, que subexiste até hoje, com a colonização da Criminologia pela Dogmática, e consequentemente o desenvolvimento do saber criminológico passa a ser feito fora do campo do Direito, em áreas como a Psicologia, Medicina, Sociologia e Antropologia. Nesse momento, a Dogmática distancia-se da Criminologia, e esta, fundada pelas percepções fenomenológicas e, posteriormente, etnomedológicas, denuncia as tentativas de neutralização do discurso liberal dogmático acerca de suas promessas não cumpridas e desmarcara as funções não declaradas pelo discurso dogmático-penal. Parte da Criminologia rompe com o paradigma da ação social e emerge um novo paradigma, intitulado paradigma da reação social, o qual, ao deslocar a perspectiva da Criminologia da ação para a reação social, ocasiona mudanças: a) no objeto de estudo, que passa do criminoso

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para o sistema de justiça criminal; b) no projeto etiológico da criminologia ao substituir os questionamentos em torno de “por que o indivíduo comete crime?” para “por que e como o sistema seleciona determinados crimes e pessoas?”. Segundo Juarez Cirino dos Santos (2008, p. 711-713), o paradigma que funda essa Nova Criminologia descarta o método causalexplicativo à adoção do método dialético, fenomenológico e conflitual, e quanto aos objetos etiológicos “criminoso” e “criminalidade” são substituídos por objetos sociais, vinculados à interpretação estrutural – como são os fenômenos criminais. Mister ressaltar que a mudança de paradigma, segundo Thomas Kuhn (2006), é uma reconstrução que altera algumas das generalizações teóricas mais elementares do paradigma posto, bem como muitos de seus métodos e aplicações descobertas pelo novo paradigma. Este último se impõe como um paradigma incompatível ao seu antecessor, cujos métodos e padrões científicos são transformados. Do paradigma etiológico à Criminologia da reação social tem-se uma revolução científica6 em seu próprio campo do saber. Alessandro Baratta (1991) recorre à perspectiva de Kuhn para interpretar essa revolução no conhecimento criminológico: [...] “reazione sociale” corrisponde al nuovo approccio, che ha trasforma la teoria della azione sociale. Le norme e le valutazioni che li condizionano, la struttura comunicazioni si realizzano, costituiscono l’oggetto preminente di indagine. Si tratta de una vera “rivoluzione scientifica”, nel senso in cui questa espressione è stata usata da Thomas Kuhn, un noto teorico della scienza, e cioè un “cambio di paradigma” che interessa l’oggetto e la prospettiva stessa di una disciplina scientifica.7 (grifo nosso)

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Thomas Kuhn (2006, p. 125) apresenta a definição de revoluções científicas como episódios de desenvolvimento não cumulativo, nos quais um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior. Daí de enquadrar a mudança paradigmática (radical, portanto) entre Criminologia Tradicional (desde o positivismo medicinal e sociológico, às teorias da Escola de Chicago, teorias da subcultura, teoria da anomia e tendências correicionalistas) e a Criminologia da Reação Social (labelling approach, criminologia crítica, criminologia dialética, criminologia radical, criminologia da libertação, criminologia feminista, criminologia cultural, etc.). “Reação social” é a nova abordagem que transformou a teoria da ação social. As normas e as avaliações que os afetam e a estrutura de comunicações realizadas constituem objeto primordial da investigação. Trata-se de uma verdadeira “revolução científica”, no sentido em que esta ex-

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A definição epistemológica da Criminologia está relacionada ao paradigma adotado e a produção social do conhecimento. Num primeiro momento, vinculada às análises empírico-etiológicas e explicativas, a ciência criminológica tentou buscar uma relação entre objeto-causa. Daí as duras críticas à aspiração positivista de Criminologia enquanto disciplina autónoma, cujo objeto está delimitado ao cientificismo que pautou essa epistemologia criminológica. A mudança de paradigma constitui um rompimento com essa perspectiva, normativa e determinista, por meio de uma abordagem fenomenológica. Apesar das críticas quanto à limitação e definições de objetos do campo criminológico, a divisão institucional entre a Criminologia Etiológica e Criminologia da Reação Social denota uma mudança paradigmática na construção do seu saber. Ainda que o positivismo criminológico tenha tentado limitar os objetos da Criminologia, a variedade de métodos e abordagens não deixou de estar presente na história e desenvolvimento da Criminologia, cuja peculiaridade está em ser um axioma que vaga por diversas áreas do conhecimento. Com a influência de métodos empíricos das ciências sociais, o paradigma da reação social amplia não só os métodos de investigação, como também os objetos de estudos presentes em outras regiões do conhecimento. A multidisciplinaridade de método e o deslocamento dos objetos de estudos dão forma a uma unidade científica da Criminologia contemporânea, cujos focos de investigação estão situados no processo de criminalização, seletividade penal, controles sociais (formal/informal), abolicionismo, cerimônias de degradação, exclusão social, dentre outros assuntos. No primeiro recorte histórico analisado neste artigo (século XIX) apontava-se para uma formação global e verticalizada das Ciências Jurídicas com o objetivo de investigar o fenômeno criminal. Nesse momento, outras áreas do conhecimento (como exemplificado nas pretensões de antropólogos e médicos brasileiros) seguiram na investigação do fenômeno criminal, auxiliando o Direito nas produções da verdade acerca do crime e do criminoso; já no século XX, a mudança paradigmática na Criminologia ampliou seu objeto e seu alcance. Porém, apesar do crescimento dos estudos dos fenômenos criminais nas Ciências Humanas e Sociais, pressão foi usada por Thomas Kuhn, um notório teórico da ciência, notadamente uma “mudança de paradigma”, que afeta o objeto e a perspectiva própria de uma disciplina científica (tradução nossa).

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de forma geral, eles não são nomeados como pertencentes ao campo da Criminologia, o que aponta para uma identificação da Criminologia, ao menos no Brasil, como um saber reclamado pelo Direito, pouco interdisciplinar em relação a outros saberes psicossociais, conforme se discutirá a seguir. 5

DUPLA INTERDISCIPLINARIDADE: O LUGAR DA CRIMINOLOGIA NO SÉCULO XXI

Da perspectiva interna das Ciências Criminais, pode-se afirmar que a Criminologia a compõe de forma interdisciplinar com outros saberes: Dogmática e Política Criminal. Contudo, o saber criminológico não está restrito ao campo jurídico, e, nesse sentido, abrange outros saberes externos ao Direito, ao que Baratta (2004, p. 176) denomina de “interdisciplinaridade externa”: […] denomino “externo” el control basado en criterios de justicia material y también políticos, que se refieren a los efectos externos al sistema, es decir, la selección y la defensa de los bienes jurídicos a través del control de comportamientos y de situaciones problemáticas: la relación entre beneficios y costos sociales de su intervención. […]. El discurso científico que puede asumir la función de control “externo” del sistema de la justicia criminal no presenta objeto homogéneo como en el caso del control interno.

É majoritário pela comunidade científica o caráter interdisciplinar8 ou (mais além), transdisciplinar, presente na formação do saber criminológico, desde a criminologia causal-explicativa. Essa multiplicidade de lugares de produção do discurso criminológico acarreta definições de Criminologia de modo tão diverso quanto as diversas áreas científicas que a produzem: Os problemas criminológicos tornaram-se mais complexos, as investigações mais abundantes, os horizontes mais amplos. Ninguém ignora que há inúmeras definições de criminologia. O sociólogo, o criminólogo, o jurista, o geneticista, o psiquiatra e uma grande varie8

Neste sentido: DIAS, 1999; GARCÍA-PABLO DE MOLINA, 1999; HERRERO, 2001; CIRINO DOS SANTOS, 2007, p. 111; dentre outros.

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dade de estudiosos encaram a criminologia através de diversos prismas. (CASTIGLIONE, 1962, p. 66)

A Criminologia se caracteriza pela permeabilidade multidimensional de axiomas, como, por exemplo, medicina legal, sociologia, antropologia tradicional, psiquiatria, etc.; que atravessavam o campo jurídico e que são atravessados por ele. Essa particularidade em relação a um campo necessariamente inter/transdisciplinar gera questionamentos acerca da cientificidade, da identidade e legitimidade desse saber. Por isto, uma outra hipótese que aqui se coloca para um desenvolvimento futuro é que a não circunscrição de objetos e métodos próprios à Criminologia, sua colonização pelo Direito e sua dispersão pelas diversas Ciências Humanas e Sociais apontam para uma possível crise epistemológica desse saber. Paradoxalmente, ainda que esteja presente a interdisciplinaridade tanto na Criminologia da Ação quanto da Reação Social, a ausência de uma “definição precisa do objeto de investigação sustenta o argumento de que esta é a verdadeira crise epistemológica: ausência de identidade epistemológica” – essa assertiva, segundo Salo de Carvalho (2011, p 40-41), parece resumir o estado da arte do saber criminológico contemporâneo. Uma quarta hipótese a ser explorada seria a de que parte significativa da produção criminológica vem sendo produzida de maneira esparsa pelas Ciências Sociais brasileiras, as quais não reclamam ou não se identificam expressamente como Criminologia. As áreas das Ciências Humanas e Sociais mantêm a tradição de pesquisas empíricas que investigam questões relacionadas ao fenômeno criminal. O campo jurídico, principalmente a partir da década de 90, parece apontar para um caminho de um pensamento criminológico reflexivo e crítico, onde há uma incessante e legítima busca por um recorte latino-americano da Criminologia. A fim de ilustrar estas noções, no que tange ao referencial teórico filosófico, é possível destacar autores como: Alessandro Baratta (1980), Lolita Anyar de Castro, Roberto Bergalli (1982), Rosa del Olmo (2004), dentre outros. E ainda, quanto ao pensamento criminológico brasileiro, as teses propostas por Juarez Cirino dos Santos (2005), Roberto Lyra Filho (1997) e Vera Regina Pereira de Andrade (2003). Quiçá, seja possível afirmar que, o fato de as produções em Criminologia no campo do Direito estarem mais vinculadas às análises teórico-descritivas do que às abordagens empíricas – essas sim mais próprias da

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Criminologia – isso esteja relacionado ao movimento que o pensamento penal passou a ter a partir da metade do século XX no Brasil. Conforme discutido anteriormente, a Dogmática foi o centro dos estudos jurídicos, enquanto as produções criminológicas ficaram estancadas e colonizadas pelo conhecimento Dogmático-Jurídico-Penal. Para além de questões metodológicas da Criminologia, o ponto-chave da problematização sobre a concepção de interdisciplinaridade externa, no plano epistemológico do saber, decorre justamente de sua composição multidisciplinar e produções em outras regiões do conhecimento. De um lado, para o reconhecimento da Criminologia, dentro da noção tradicional de Ciência, esse não-lugar, ainda que potente, “dificulta o reconhecimento das especificidades da Criminologia, como um saber com combinação única de métodos e de abordagens próprias” (BRAGA, 2014, p. 50). Por outro, em uma concepção sobre epistemologia não cartesiana, a constituição de uma Criminologia desorganizada é vista como uma possibilidade de independência acadêmica e, consequentemente, maior crítica às instituições formais e ao sistema de justiça penal. Portanto, a problematização da complexidade epistemológica da Criminologia interdisciplinar externa está situada no viés dado à noção e reconhecimento de cientificidade. Todavia se essa impossibilidade de ostentar estatuto científico próprio se transforma em intransponível entrave para perspectivas que dependam do status epistemológico – seja para nutrir autoestima, seja para adquirir reconhecimento e respeitabilidade pelas demais ciências –, para pensamentos livres e autônomos, desapegados do mito da segurança científica, o problema pode ser visto como virtude ótima: uma virtude de não-ser ciência. Assumir a virtude de não-ser ciência implica propor temas e problemas criminológicos distintos ou simplesmente sugerir interpretações outras sobre temas tradicionais. Dentre os problemas emergentes dessa criminologia sem compromisso epistemológico, estaria o de mapear a multiplicidade dos campos de investigação, com intuito de compreender os diversos olhares sobre a questão criminal. (CARVALHO, 2011, p. 41-42)

A partir de uma visão crítica do pensamento criminológico, a Criminologia deve abdicar das tentativas de limitação de seus próprios objetos, de modo a afirmar a sua atuação em todos os níveis institucionais,

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científicos, administrativos, políticos, aonde ela concorra com o mesmo direito que outras formas de pensamento. A importância do horizonte de projeção criminológica em eixos multidisciplinares e a partir do método empírico são vetores importantes à edificação de um saber criminológico que reflita e modifique o funcionamento concreto das instituições do sistema de justiça. 6

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalhou buscou discorrer, de forma preliminar e reflexiva, acerca dos possíveis espaços e contextos em que o pensamento criminológico foi produzido, bem como em relação aos seus desdobramentos. O lugar em que a Criminologia se insere está estritamente ligado aos contextos socioeconômicos de cada período histórico em determinados cenários da realidade em que é produzido. Em cada contexto, à Criminologia são concedidas funções específicas (sejam elas declaradas ou não), de compreensão e atuação em relação fenômeno criminal, de modo a atuar em sinonímia àquele contexto. Num período do Brasil republicano, ainda com resquícios da herança colonial, os reflexos do modelo iluminista europeu incidiram com suas particularidades no tocante à presença de uma aristocracia agrária e escravista, em que as pretensões do período iluminista recaíram à formação da elite intelectual, nos grandes polos universitários brasileiros. Nesse momento, o pensamento sobre o fenômeno criminal demonstra acompanhar os interesses de uma parte dirigente daquela aristocracia, cujo fim era a manutenção das desigualdades materiais. Para que tal objetivo fosse alcançado, algumas promessas em relação à igualdade e liberdades formais foram cometidas, porém, não cumpridas, mediante o caráter seletivo do sistema penal já denunciado pela Criminologia da reação social. Acerca do período entre o final do século XIX e início do século XX, o positivismo criminológico surge como um pensamento dotado de rigor cientificista, a fim de compreender possíveis fatores ontológicos e sua relação com a complexidade inerente ao fenômeno criminal. Com isto, esses estudos buscavam legitimar abordagens etiológicas, principalmente no que diz respeito às questões raciais, com fomento ao próprio racismo.

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Se, em um momento anterior, houve a tentativa de conciliação entre as propostas do liberalismo pela Dogmática e conhecimentos da Criminologia Positivista, atualmente pode-se apontar para uma relação verticalizada entre Criminologia e tecnicismo jurídico. Mediante as passagens e funções da Criminologia nesses períodos acima descritos, do paradigma etiológico à criminologia da reação social, as reflexões criminológicas rompem com as visões deterministas e ontológicas, de modo a desconstruir aquelas funções que uma vez foram omissas pelos ideais republicanos e com a criminologia causal-explicativa. Nestes sentidos, a compreensão sobre a epistemológica da criminologia reside na própria mudança paradigmática, cujos métodos e objetos tornam-se mais complexos, multidisciplinares e reflexivos, de modo a questionar o próprio sistema de justiça criminal quanto à seletividade e abordagem das vias de controle social. Destarte, podemos apontar que as problematizações epistemológicas contemporâneas residem na atual interdisciplinaridade externa e suas implicações no plano da Ciência, bem como a respeito das produções empíricas no campo jurídico, que buscam investigar o fenômeno criminal. Outrossim, a multidisciplinaridade de método e deslocamento dos objetos de estudos resultam numa fluidez das produções relacionadas ao saber criminológico fora do campo jurídico. Por fim, diante de toda a dinâmica na configuração das ciências dos saberes, é possível afirmar que, a partir de um recorte epistemológico, a criminologia não tem um lugar lhe que seja próprio de fala, decorrente de toda a complexidade inerente ao pensamento criminológico. Retomando as noções de Cândido da Angra (2012, p. 11), a “Criminologia é uma rainha sem reino”, pois que assim ela seja ao decorrer de seu desenvolvimento. Nesse debate, cabe às pesquisadoras e aos pesquisadores que produzem criminologia o seguinte questionamento: Se esse saber não se situa num campo específico, bem como a sua atuação depende tanto do campo, como do contexto histórico em que ela se insere, quais seriam o lugar atual e as projeções futuras em relação ao campo de atuação e produção da criminologia neste século?

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