Os media e a realidade: Representação e Enquadramento na retórica televisiva

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ISCTE-IUL INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE LISBOA

Os media e a realidade Representação e enquadramento na retórica televisiva: a multidão Tomas Goldstein 02-06-2014

Questões Contemporâneas da Comunicação e da Cultura, MCCTI - CP

Índice Introdução ......................................................................................................................... 2 A representação da realidade ............................................................................................ 3 O framing e a retórica mediática ...................................................................................... 5 A representação da multidão e o papel da televisão ..................................................... 8 Conclusão ....................................................................................................................... 11 Bibliografia ..................................................................................................................... 11

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Introdução

A ideia tipicamente anglo-saxónica de que os meios de comunicação social e, com eles, as notícias são uma transmissão, um reflexo, um espelho da realidade, dominado por valores como a imparcialidade e a objectividade, é contestada há bastante tempo. Mesmo partindo do pressuposto de que a lógica dos meios de comunicação é transmitir a realidade (os acontecimentos ou eventos reais) aos cidadãos, tal sugere, inevitavelmente, uma determinada representação da realidade. O meio, como o próprio nome indica, serve, idealmente, de veículo transmissor do real. Contudo, considerando que essa transmissão envolve uma preferência (por determinado tema), uma escolha (por determinado ângulo) e não ignorando também as várias fazes necessárias à redacção de uma notícia, desde que a informação é obtida e fornecida pela fonte até ao texto final, poderíamos quase afirmar que os meios são, mais do que um espelho, um filtro. O facto de serem considerados um veículo, um meio através do qual se realiza determinada tarefa – divulgar informação e reportar a realidade exterior ao público – é indicativo disso mesmo: um meio toma sempre parte no processo que medeia. A título ilustrativo, correndo o risco de sermos demasiado simplistas, poderíamos recorrer à lógia do “telefone estragado”, elucidativa das alterações, mesmo que inconscientes, que uma informação sofre desde a fonte inicial até ao último receptor. Na seguimento desta reflexão, torna-se lógico olhar os meios de comunicação de massas como autores da representação e, com ela, da construção social da realidade, que se trata de um forte poder, sobretudo pela omnipresença dos media na sociedade e na vida quotidiana dos indivíduos. Segundo Eduardo Cintra Torres (2013:22), os textos mediáticos acabam por constituir representações, no sentido em que os media “acrescentam representações intermediárias entre referente e observador”. Cintra Torres faz uso da reflexão de Hartley (2002b:202, apud, Torres, 2013:22) que afirma que “na linguagem, media e comunicação, as representações são palavras, imagens, sons, sequências, histórias, etc., que ‘significam’ ideias, emoções, factos, etc.” Este é um ponto de partida para se considerar a retórica como um inevitável elemento do processo de representação. A escolha do plano, os elementos icónicos e iconográficos da imagem e do texto, são características que merecem destaque quando se pretende estudar os fenómenos de representação aliados ao enquadramento dos acontecimentos.

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Neste artigo propomo-nos a aplicar as lógicas de construção da realidade e enquadramento (framing) pelos media ao seu potencial para gerar ou destruir multidões, fomentando adesão ou distanciamento. Para tal, a reflexão será acompanhada das questões relativas à retórica televisiva. Teorizamos que a cobertura dada pela televisão a um determinado acontecimento, usando como exemplo a multidão e, especificamente, as manifestações, é exemplificativa do seu papel como construtores da realidade e como definidores de quadros (frames).

A representação da realidade Os meios de comunicação de massas atingiram um nível de penetração na sociedade que os torna um objecto de estudo que não merece ser observado de forma acrítica. Como dizia Silverstone (1994), os meios são ubíquos e estão "enraizados no nosso quotidiano", já que "dependemos [deles], sejam impressos ou eletrónicos, para fins de entretenimento e informação, de conforto e segurança, para ver algum sentido na continuidade da experiência e para as intensidades da experiência." Desde as ideias behavioristas de estímulo-resposta – em a comunicação de massas era vista como um processo de comunicação-reacção – fomos tomando consciência da inevitabilidade de os meios (estímulo) induzirem determinada reacção ou resposta nos indivíduos. Estas teorias iniciais foram descredibilizadas e já Lasswell (1920) admitia uma população heterogénea, não obstante, ajudam-nos a entender melhor a importância da representação que os media fazem da realidade, neste caso a televisão. Jean Baudrillard (1981) trouxe um enorme contributo para a análise da re(produção) do real pela televisão, recorrendo à ideia dos simulacros e à hiperrealidade. Na nossa reflexão sobre o modo como a televisão representa (e consequentemente constrói) a realidade, nomeadamente as multidões, temos por referência a teoria de que os media se reportam muitas vezes a um real inexistente. O hiper-real consiste na criação de “reais sem origem e sem realidade” (Baudrillard, 1981:1) e a isto o filósofo francês designa por “simulação”. Como a realidade só existe quando é mediada, o real é adaptado às demandas televisivas, na medida em que, para serem tornados mediáticos, os "factos televisivos" são originalmente simulações para se aproximarem daquilo que alimenta os meios de comunicação. E as imagens vão, 3

posteriormente, ganhar significado a partir das outras; vão-se auto-multiplicando. Richard Lane (2000) considera que Baudrillard se referia ao afastamento daquilo que é real e, simultaneamente, uma "produção da realidade: as notícias são geradas por notícias, ou a fonte das notícias é, ela mesma, as notícias." Sobre as representações mediáticas, Jean B. afirma que se tratam antes, de facto, de simulações, o que tem um sentido relativamente pejorativo. Enquanto, segundo o autor, dissimular é apenas fingir não ter aquilo que se tem, simular significa fazer de conta que se tem aquilo que não se tem, pelo que o primeiro implica uma presença e o último uma ausência (1981:3). Existe uma clara tentativa por parte do autor de sublinhar que simular não se trata de fingir, já que a simulação, ao contrário do fingimento, "ameaça a diferença entre o 'verdadeiro' e o 'falso', o 'real' e o 'imaginário'. Quando alguém simula uma doença, deixa de ser perceptível se a pessoa em causa está doente ou não, uma vez que essa simulação da doença implica uma produção dos sintomas na pessoa. E é neste ponto que se sublinha o cruzamento entre a representação e a simulação. As simulações (mediáticas, mas não só) têm um poder "assassino", na medida em que assassinam a realidade, por oposição ao poder "dialéctico" das representações, que constituem a mediação "visível e inteligível" do real (Baudrillard, 1981:5). Com o filósofo francês, consideramos as sucessivas fases da imagem: reflecte uma realidade profunda; mascara e desnatura a realidade profunda; mascara a ausência da realidade profunda; e por fim é o seu próprio simulacro. Partindo do pressuposto de que a realidade só existe quando é mediada, poderíamos sugerir que aquilo que nos é transmitido pelos meios como notícia, por exemplo greves, manifestações (mas também assaltos a aviões) não passa de uma simulação: são acontecimentos que estão, a priori, inscritos nos

rituais de

"descodificação e orquestração" dos media e, por isso, antecipados ou condicionados pelas suas possíveis apresentação e consequências (Baudrillard, 1981:22). Tal significa que estes acontecimentos são simulados, até porque são preparados como símbolos com a finalidade de reaparecerem como símbolos, em vez de estarem focados no seu objectivo real. Estamos perante acontecimentos hiper-reais, sem fins ou conteúdos específicos, mas cuja forma de ser vista é alterada uns pelos outros. Daniel Boorstin já se tinha reportado, duas décadas antes, a acontecimentos deste género, designando-os por "pseudo-acontecimentos". O autor debruça-se também sobre a questão da representação de acontecimentos nos media, sobretudo no que concerne a conceder um determinado estatuto de real ao que não é; ao que é fictício. Com Boorstin (1961) 4

dizemos que, mais do que a possibilidade de ser fornecida apenas uma determinada leitura do real, uma perspectiva e uma faceta dos eventos exteriores, os media têm o potencial para serem (ou são mesmo) geradores de pseudo-acontecimentos. Boorstin sugere que os meios se reportam, frequentemente, a acontecimentos cuja origem são os próprios meios, i.e., acontecimentos que, sem eles, não existiriam: trata-se de eventos criados com o objectivo de serem propagados pela comunicação social, como é o caso de muitos discursos públicos e conferências de imprensa.

O enquadramento e a retórica mediática A retórica é uma disciplina que deve ser tida em consideração aquando do estudo das representações mediáticas, na medida em que está intimamente ligada à persuasão, às conotações e aos estereótipos. Se aos meios de comunicação social são associados o agenda-setting, o priming e o framing - todos relacionados com o impacto, a influência ou os efeitos dos media na opinião pública - é imprescindível a relação com a arte da retórica. Antes de nos centrarmos no enquadramento (framing) importa revisitar o significado dos outros dois conceitos incluídos na categoria de efeitos sociocognitivos (dos media). Segundo a teoria do agendamento (agenda-setting), o ênfase dado pelos meios de comunicação a determinado assunto, leva a que o público dê também mais importância ao mesmo. No mesmo sentido, este é o motivo pelo qual os meios têm a capacidade de influenciar o julgamento das pessoas (priming). O priming, como extensão do agendamento, diz respeito ao efeito dos conteúdos mediáticos em posteriores comportamentos ou julgamentos das pessoas (McCombs e Shaw, 1972). O termo, no geral, refere-se à influência que um evento antecedente tem sobre o desempenho de um evento posterior. Finalmente, o conceito de enquadramento reportase à capacidade dos meios para influenciar ou persuadir directamente o público. O enquadramento tem que ver com a “selecção e o destaque de determinadas facetas de eventos ou assuntos e com as conexões que se estabelecem entre eles [propositadamente], de forma a promover uma interpretação, avaliação ou solução específicas (Entman, 2004). Sintetizando, o agendamento significa que os meios dizem às pessoas sobre o que pensar e o enquadramento afirma que, para além disso, os meios mostram também como devem as pessoas pensar sobre esses assuntos a que é dado 5

destaque. Segundo Scheufele (2007) o enquadramento surgiu como uma ferramenta de comunicação para as campanhas modernas e despoletou que a pesquisa académica se centrasse também noutros efeitos cognitivos da comunicação, como o agendamento e o priming. Estes três estão, segundo o autor, interligados ou, pelo menos, baseiam-se nas mesmas premissas. Debrucemo-nos, assim, sobre o enquadramento (framing). Ademais, o cientista político James N. Druckman (2009) destaca a existência de duas diferenças conceptuais no interior da ideia de enquadramento. Por um lado, pode entender-se que se refere a representações "semanticamente distintas mas logicamente equivalentes", como é o caso da escolha por destacar 95% de desemprego versus 5% de emprego. Por outro lado, o enquadramento pode ter uma definição mais "relaxada", no sentido de enfatizar uma consideração alternativa, como é o caso de, falando sobre o bem-estar, decidir dar destaque a preocupações económicas versus humanitárias. Com Druckman (2009) partimos do princípio que um quadro (frame) é uma "preferência individual" que acaba por congregar a avaliação do atributo de um assunto e o peso da saliência ou a relevância (usualmente resultante do agendamento) associada a esse atributo. A construção de quadros nos meios de comunicação social e, consequentemente, nas representações mediáticas da realidade, é uma das razões pelas quais o crivo da objectividade, neutralidade ou imparcialidade é muitas vezes desprovido de sentido. Mesmo que inconsciente, o orador ou o redactor fará sempre uma escolha; escolha essa baseada nas suas experiências, nas suas vivências, naquilo que a pessoa em causa é. É nessa escolha, na apresentação de determinado ângulo sobre o assunto e na preferência por determinadas palavras que reside a evocação a quadros na mente dos cidadãos. Temos, por um lado, o quadro disseminado pelos media, nomeadamente os aspectos preferidos ou seleccionados de determinado assunto, que são enfatizados pelo discurso e, por outro, o quadro sobre o pensamento individual, aquilo que cada um pensa, como sejam os aspectos de um assunto a que o cidadão dá mais importância. Quando o quadro comunicativo afecta o quadro individual dos cidadãos, considera-se a existência de "framing effect" (Druckman, 2009). Assim sendo, considera-se que os quadros na comunicação têm o potencial para influenciar os quadros individuais, não sendo obrigatório que tal aconteça. As tendências no discurso mediático constituem os quadros a que nos referimos e, por isso mesmo, a alteração das mesmas acaba por ter a capacidade de alterar as atitudes e os comportamentos sociais. Como referimos, a escolha de imagens e de palavras é fulcral nesse processo. Considerando os quadros como "estruturas interpretativas incorporadas no discurso 6

político" (Kinder e Santers, 1996), podemos olhá-los como verdadeiras armas de retórica. O estudo do enquadramento e dos seus efeitos é indissociável da retórica (mediática e política). Tendo sido demonstrado o potencial dos meios como influenciadores e mesmo criadores de quadros aquando da representação do real, importa agora perceber o papel da retórica neste processo: trata-se de conectar os estudos sociocognitivos e comunicativos ao estudo da Linguística. "Os media audiovisuais, em especial noticiosos, são metonímicos e sinedóquicos, tal como a literatura realista, no sentido em que se apresentam partes da vida pela sua inteireza" (Baldick, 2001; Hartley, 2002b apud Cintra Torres, 2013:218). Neste sentido, é inevitável a sugestão de que permitem a activação de pré-existentes ou a geração de novos quadros, sendo frequente recorrer a uma "identidade alternativa", através da metáfora, afirmando que X é Y, e também a uma "associação próxima", através da metonímia. Quanto à sinédoque, igualmente um recurso estilístico literário, consiste em referir-se a algo por apenas uma das suas partes, sendo por isso identificada como uma vertente da metonímia. Eduardo Cintra Torres (2013:218-220) estabelece ainda a ligação entre metáfora, sinédoque e comparação e as classificações semióticas do símbolo, índice e ícone, respectivamente. A metáfora corresponde ao símbolo e consiste na distância máxima entre os dois elementos, havendo uma substituição definitiva do referente para chegar à identificação: "(A é B)". A sinédoque corresponde ao índice e apresenta já alguma proximidade ou continuidade entre os dois elementos, havendo uma identificação lógica: "(A' por A; Apor a; a por A)". Finalmente, a comparação corresponde ao ícone e neste caso a identificação é alcançada através da conformidade entre os dois elementos: "(A' é como A)". Com Roger Silverstone (1999) diríamos que a retórica é uma linguagem consequencialista, sendo orientada para a acção, para a influência e para a alteração de atitudes e valores. Sobretudo, "retórica é persuasão" (Silverstone, 1999:31). Partimos do princípio que a realidade que ocupa o espaço mediático, i.e., as representações fornecidas, disseminadas, construídas pelos meios de comunicação de massas são geradas retoricamente: a linguagem dos media é uma linguagem retórica. Sendo uma arte que remonta aos gregos antigos Platão, que a observava como uma adversária filosófica, e Aristóteles, autor de uma ampla sistematização considerada a pedra angular da retórica, esta foi progressivamente introduzida na esfera mediática ou, melhor dizendo, nos estudos de comunicação.

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A mediatização não diz apenas respeito à intervenção dos media na realidade nem ao fenómeno da construção do real pelos mesmos. Segundo Sodré (2002 apud Sacramento, 2009:95) a mediatização refere-se à própria experimentação da realidade nos media, por meio e no interior dos mesmos, nos sistemas, nos seus códigos e modelos de estética. A argumentação mediática é uma arma com a capacidade de mobilizar os cidadãos, envolvê-los em acção política e cidadania e influenciar o público, i.e., a opinião pública.

A representação da multidão e o papel da televisão Os aglomerados de indivíduos sempre foram, pelo ajuntamento de pessoas e vontades em grande número, alvo de interesse por parte dos meios de comunicação social. À partida, faria sentido dar mais ênfase ou destaque aos eventos que agregam mais gente, por significar que interessam a um número maior de espectadores. Mas propomo-nos, neste espaço, a discorrer sobre outro ângulo de olhar uma multidão no espaço mediático: a forma como os media têm a capacidade para, mediante a forma como a representam ou as imagens que escolhem, os quadros que evocam ou criam, e ainda a argumentação utilizada, "inventar" a multidão que quiserem. Tal significa que uma multidão pequena pode parecer grande e vice-versa, que pode ter uma maior adesão consoante o tipo de divulgação anterior de que for algo por parte dos media, e que poderá ter níveis diferentes de impacto, dependendo do papel que os media optem por desempenhar. Segundo Eduardo Cintra Torres (2013:19), uma multidão é um: ajuntamento temporário ou efémero de pessoas reunidas, ou que se consideram reunidas, partilhando símbolos ou valores e também emoções, implicando um significado ou uma vivência social, política ou cultural, e sendo geralmente objecto, ou tendo por objectivo, uma apreciação desse significado por um número maior de indivíduos por observação directa ou em especial pelas suas representações mediáticas.

O investigador português inspirou-se sobretudo em Le Bon, Tarde, Durkheim e Giddens para chegar a esta conceptualização da palavra multidão que, segundo o próprio, constitui uma "multidão de definições" (2013:18). Partindo do princípio que a televisão 8

tem a particularidade de "reapresentar" multidões organizadas ou até de criar as suas próprias multidões, torna-se importante dar especial destaque a este meio de comunicação de massas audiovisual que, precisamente por estas características, consegue

disseminar

imagens

em

movimento

e,

simultaneamente,

sugerir

interpretações. Com Eduardo Cintra Torres diremos que o ecrã televiso apresenta, de forma constante, multidões, seja em espaços informativos, desportivos, ou de entretenimento. Os meios de comunicação de massas precisam, como o nome indica, das massas para sobreviver, pelo que é mister oferecerem conteúdos apelativos e que agradem ao maior número possível. Se por um lado há, em Portugal, uma abertura face a manifestações dissonantes que não existe em Espanha, como foi visível no movimento, tornado mediático, dos indignados, por outro lado há manifestações que parecem merecer menos tempo na agenda. A título de exemplo destaca-se, fazendo uso dos resultados empíricos do professor Eduardo Cintra Torres, o caso da manifestação de conservadores contra a interrupção voluntária da gravidez que, porventura por ser um grupo reduzido ou representar uma opinião minoritária na sociedade, não teve direito ao mesmo nível de cobertura mediática que outros exemplos de protesto social. Por não ter essa cobertura, ou por as suas ideias serem de facto obsoletas, teve a vida dificultada em tornar-se uma multidão expressiva. Este facto é elucidativo da importância de fazer parte da agenda mediática e, sobretudo, de constituir os quadros (frames) desejados. Poderemos também salientar o exemplo contrário, em que uma pequena manifestação de professores deu origem a outras com uma dimensão muito superior. Os media, neste caso, funcionaram como um veículo amplificador, nomeadamente por transmitirem diversas notícias sobre a manifestação antes de ela ter lugar. Tal significa que, ao potenciar a manifestação, os meios criaram a notícia, ou seja, sem a existência dos meios ou a sua intervenção, a realidade tinha sido outra: os media não são, como temos vindo a elaborar, um espelho do real mas antes um simulacro dessa realidade. Segundo Albert Melucci (1996, apud Torres, 2013), as manifestações já são elas próprias um meio de comunicação antes da presença de uma câmara mas, com a sua chegada, os media acrescentam o poder de disseminação. A relação entre movimentos multitudinários e meios de comunicação de massas é uma relação simbiótica, no sentido em que ambos são indissociáveis um do outro, precisando os primeiros dos segundos e vice-versa para sobreviver. Cintra Torres (2013:266), reportando-se à "política mediática do dissenso", recusa a ideia de Herman e Chomsky (1994) relativamente à 9

indústria do consentimento, referindo que se tem, antes, vindo a assistir à incorporação do dissenso nos canais televisivos, sendo que "o próprio protesto de dissenso torna-se material mediático mainstream": os media alimentam-se do protesto e do dissenso que, consequentemente, se tornam mainstream. Atualmente, e em grande parte desde que, durante o Euro 2004, a televisão se apresentou como agregador de multidões, tem se assistido a uma construção conjunta de eventos, entre os meios e os organizadores de manifestações. A "eventificação do quotidiano", como Cintra Torres a coloca (2013: 186) remete para a multiplicação de eventos multitudinários, com o garante de uma vivência mediática, quando não presencial. Segundo o autor, as sociedades actuais vivem em sede permanente e em necessidade por uma efervescência colectiva que condiciona os indivíduos. Antes de terminar, importa fazer referência a um caso concreto, remontando a 2011, que diz respeito a uma das primeira revoluções daquela que viria a ser a Primavera Árabe e que tem como lugar simbólico de explosão a praça Tahrir, no Cairo, Egipto. Esta revolução no Egipto, em 2011, consistiu num conjunto de protestos e manifestações de rua a fim de derrubar o governo de Hosni Mubarak. Depois de, em 2010, um homem tunisiano ter ateado fogo sobre si próprio como acto de revolta, deuse início a uma série de revoluções e instabilidade política em países como, entre outros, Tunísia, Argélia, Jordânia, Egipto, Iémen e Líbia. Apesar de esta onda de revoluções ser amiúde designada por social media revolutions, devido à adesão que as redes sociais permitiram, assim como a instantânea disseminação de imagens e filmes, a televisão continuou a ser um meio imprescindível em todo o processo. Mas, antes, dos meios tecnológicos, nada teria sido possível sem a multidão que ocupou a praça e que serviu de epicentro simbólico a que as televisões e os media em geral faziam referência. A multidão que se juntou na praça tinha de facto um potencial de revolta muito elevado, contudo, não é verosímil que a manifestação chegasse aonde chegou, se não fosse pela transmissão televisiva constante; até porque o governo de Hosni Mubarak demonstrou uma forte capacidade de defesa e de resistência que, porventura, não teria vacilado se não fosse pela disseminação em massa das imagens. Na realidade, foi a televisão que conseguiu levar a multidão a todas as partes do mundo: o facto de o mundo inteiro ter o seu olhar colocado naquela praça, não dava margem de manobra a grandes movimentos por parte do governo egípcio. A televisão consiste, assim, num meio de comunicação de massas com um enorme poder de representação.

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Conclusão Os meios de comunicação de massas apresentam-se como representantes de um mundo real exterior mas, mais do que isso, têm a capacidade para intervir no curso dessa mesmo realidade, de moldá-la, de alterá-la. Não ignorando que há diversos eventos que não teriam sido possíveis ou que, pelo menos, teriam sucedido de outra forma, senão fosse pela entrada dos meios no seu processo de disseminação, tira-se a ilação obrigatória de que os media não actuam como meros veículos transmissores ou espelhos da realidade. Os discursos mediáticos tornam-se capazes de influenciar os posicionamentos, assim como as tomadas de decisão, do público. Consequentemente, apresentou-se a representação do real, pelos meios, como o recurso a simulacros ou a uma hiper-realidade, baseada na reprodução de pseudo-acontecimentos, em que os meios já não se reportam a um referencial exterior mas, antes, a acontecimentos autogerados, i.e., potenciados por eles. A construção de quadros e a retórica utilizada pelos media tornam-nos, associados à eventificação do quotidiano, peças fundamentais para a prevalência de uma sociedade do espectáculo. A argumentação e a retórica, fortemente conectadas com os fenómenos persuasivos, estão presentes nos media e nos discursos mediáticos. Ainda que possa não haver um objectivo claro de manipulação em determinado sentido, a simples escolha de um ângulo, de uma imagem, de uma palavra, de um assunto em detrimento de outros, leva, mesmo que inconscientemente, à influência social. Foi neste sentido que propusemos a impossibilidade de conceitos como a neutralidade, a imparcialidade ou a objectividade, no interior do mundo dos media, nem que seja por, logo a priori serem constituídos por seres humanos. O enquadramento (framing) dos assuntos é um fenómeno que resulta destes processos, já que os meios são capazes, no âmbito do seu papel socializador, de criar quadros e referências para determinados temas ou acontecimentos. A multidão demonstrou ser um bom exemplo para ilustrar o papel dos meios na representação ou na construção da realidade, tendo ficado claro o seu potencial para, intervindo no "mundo real", terem a capacidade de promovê-lo, alterá-lo ou mantê-lo, consoante a postura seleccionada. A televisão tem uma preferência por "um colectivo maior do que ela mesma", o que remete para a sua (obrigatória) actuação como sinédoque: referir-se a algo por apenas uma das suas partes (E. Cintra Torres, 2014). 11

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