Os militares e o plebiscito de 1963 (paper ao XII Encontro Regional de História do Rio - 2006)

August 28, 2017 | Autor: Demian Melo | Categoria: Militares, João Goulart, Plebiscito
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OS MILITARES E O PLEBISCITO DE 1963 Demian Melo Laboratório de Estudos dos Militares na Política O propósito deste trabalho é discutir o processo que culminou na realização da consulta plebiscitária de 1963. Enfocaremos o comportamento de alguns atores políticos, realçando a participação dos militares na crise geral do regime então vigente. Cabe ressaltar que a presente comunicação é um resultado parcial de nossas pesquisas sobre o tema, que serão aprofundadas numa futura pós-graduação. Em janeiro de 1963 os eleitores brasileiros foram chamados a decidir sobre a permanência de uma recente experiência parlamentarista ou a volta ao presidencialismo, adotado como sistema de governo desde a proclamação da República, em 1889.i Resultado de um arranjo institucional que visava a manutenção da ordem constitucional frente à ameaça de setores golpistas das Forças Armadas, o parlamentarismo foi instituído de forma casuística, após a renúncia espetacular de Jânio Quadros, em agosto de 1961. A eleição deste último, em 3 de outubro do ano anterior, havia representado uma enorme novidade no cenário político nacional: pela primeira vez alguém situado “fora” do monopólio da aliança PSD(Partido Social Democrático)/PTB(Partido Trabalhista Brasileiro) - que dominara a cena política desde a Carta de 1946 - chegava ao cargo máximo da nação.ii Vitorioso na disputa contra os candidatos Marechal Henrique Teixeira Lott e Ademar de Barros (PSP), Jânio Quadros não conseguiu ser alçado à presidência juntamente com o candidato a vice de sua chapa, o então senador Milton Campos. Naquele contexto, a legislação eleitoral permitia a disputa dissociada para os cargos de presidente da República e vice, característica que abria brechas para incompatibilidades na composição do Executivo federal. Derrotado Campos, assumiu a vice-presidência o político do PTB gaúcho João Goulart. A vitória de Jânio, no entanto, garantiu que setores até então preteridos do sistema político ocupassem importantes cargos na área econômica e administrativa. Foi o caso, por exemplo, dos grupos ligados aos setores mais internacionalizados do capital, que só acessavam a burocracia do Estado através de canais “paralelos” e que formavam o chamado “bloco do capital multinacional e associado”.iii Por outro lado, o governo Jânio foi marcado também por uma contraditória política

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externa independente e por lances internos calcados num moralismo hilário, como na proibição do uso de biquínis de duas peças nas praias, do lança-perfume e da briga de galos. Nas Forças Armadas, que aqui nos interessam em especial, setores antigetulistas, identificados com a Cruzada Democrática,iv ocuparam a cúpula dos ministérios militares, sendo este um dos signos de mudança na correlação de forças no interior desta que é a principal instituição do Estado. No dia 25 de agosto de 1961, data em que Jânio Quadros renunciou ao cargo de presidente da República, João Goulart encontrava-se em visita diplomática à República Popular da China. Herdeiro político do getulismo, Jango (como também era conhecido) já havia ocupado o Ministério do Trabalho por um breve período (1953-54), durante o segundo governo Vargasv, e a vice-presidência da República, durante o qüinqüênio 1956-1961, ocasião em que governou juntamente com Juscelino Kubitschek, cabeça da chapa PSD-PTB. Opositor do governo representado por Jânio, Goulart fora virtualmente elevado à condição de chefe do Executivo federal numa data muito peculiar: no Dia do Soldado. A ocorrência de solenidades militares na capital e nas principais cidades da República criaram um ambiente propício para que a notícia da renúncia corresse como um rastilho de pólvora entre os setores da caserna. Diante do ocorrido, o deputado Ranieri Mazzili, presidente da Câmara dos Deputados, assumiu temporariamente a cadeira executiva, mas teria que passá-la, conforme rezava a Carta de 1946, ao vice-presidente eleito. Naquela conjuntura, entretanto, os ministros militares de Jânio (general Odílio Denis, brigadeiro Gabriel Grün Moss e almirante Sílvio Heck) pronunciaram-se publicamente contra a posse de Goulart, posição comunicada ao Congresso Nacional pelo próprio Mazzili. A reação aos propósitos golpistas dos ministros militares veio do extremo sul do país, por meio do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Este conseguiu o apoio militar do general Machado Lopes, comandante do III Exército, que se pôs ao lado da legalidade. Através de emissoras de rádio, o governador gaúcho emitia notícias sobre a campanha pela posse de Goulart, formando a chamada “Rede da Legalidade”. O clima de polarização se instaurou e uma guerra civil tornou-se iminente. Contudo, seguindo uma velha tradição nacional, operou-se um acordo político: a posse de Goulart seria garantida mediante a instauração do sistema parlamentarista, que, na prática, retirava os poderes do presidente da República. O grande fiador do acordo, o político mineiro Tancredo Neves, tornou-se primeiro-ministro. O Ato Adicional que instituiu o parlamentarismovi previa a realização de um referendum nove meses antes do final do mandato de Goulart, para que fosse endossada ou não o novo sistema de governo.vii Assim, ficava em aberto a possibilidade de retorno ao presidencialismo.

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Desde o seu discurso de posse,viii João Goulart deixou claro a sua intenção de lutar pela volta ao sistema presidencialista, como podemos ver no trecho abaixo: Cumpre-nos, agora, mandatários do povo, fiéis ao preceito básico de que todo poder dele emana, devolver a palavra e a decisão à vontade popular que nos manda e nos julga, para que ela própria dê seu referendum supremo às decisões políticas que em seu nome estamos solenemente ix assumindo neste momento.

Formou-se então uma ampla frente pelo retorno ao antigo sistema de governo, composta por diferentes matizes do espectro político. Os setores de esquerda e nacionalistas que haviam apoiado a posse de Jango movimentavam-se para a volta do presidencialismo: em primeiro lugar porque consideraram o parlamentarismo um “golpe branco”; em segundo porque ligaram a campanha pelo presidencialismo à implementação de reformas profundas na estrutura social brasileira, as chamadas reformas de base. O partido do presidente, o PTB, ao lado do PCB (ilegal desde 1947, mas com relativa liberdade de funcionamento no período, além de considerável hegemonia no movimento operário), junto a outras organizações como a Ação Popular (AP, setor católico de esquerda, que hegemonizava o movimento estudantil), ao lado de um cada vez mais ativo movimento sindical,x mobilizaram-se pelo retorno do presidencialismo. Por sua parte, políticos conservadores da UDN e do PSD, vislumbrando as eleições presidenciais que se realizariam em 1965, queriam desembaraçar-se do parlamentarismo. A UDN, que em sua Carta de Princípios – aprovada em encontro de seu Diretório Nacional, em fevereiro de 1962 – estabelecia que o parlamentarismo era o sistema de governo ideal, via suas principais lideranças defenderem a volta ao presidencialismo. Já o PSD, maior partido do Congresso Nacional, não conseguiu chegar a um acordo sobre tema, o que leva estudiosos a afirmar que a questão teria levado ao primeiro grande racha na legenda.xi Entre esses diferentes setores amadurecia a idéia de antecipar o referendum sobre o sistema de governo. Em meados de 1962 o primeiro gabinete parlamentarista renunciou, gerando a primeira grande crise do parlamentarismo. Quem substituiria Tancredo Neves? Goulart propôs o nome de Francisco Clementino de San Thiago Dantas, da ala moderada do PTB. San Thiago Dantas, tendo praticado uma política externa independente quando ocupou Ministério das Relações Exteriores, situava-se em rota de colisão com setores conservadores do país. O PSD, maior partido do Congresso, reivindicava o direito de indicar o nome para substituir Neves. Cada vez mais autônomo, o movimento sindical se lançou ao centro do palco,xii ameaçando com uma greve geral caso o Congresso recusasse o nome de Dantas. A direita política, agrupada na Ação Democrática Parlamentar (ADP), verdadeira caixa de ressonância dos interesses do capital multinacional e associado, conseguiu impedir a aprovação do nome indicado por Goulart. Este resolveu propor para o cargo o nome de Auro de Moura Andrade, velha raposa

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direitista do PSD. Imediatamente realizou-se uma greve geral coordenada pelo Comando Geral de Greve, embrião do futuro CGT, paralisando o país e mostrando a força da classe trabalhadora organizada. Antes mesmo da realização da greve, Moura Andrade renunciou, e setores do governo buscaram interceder junto aos dirigentes da greve nacional com o fito de impedi-la. Mas o movimento sindical resolveu mostrar sua força e manteve a greve, buscando com isto influir sobre a composição do novo gabinete. Por fim surgiu o nome de Brochado da Rocha, político gaúcho ligado ao governador daquele estado, cujo gabinete esteve comprometido desde o início com a tarefa de aprovar a antecipação do plebiscito. Os governadores estaduais, em razão das dubiedades existentes no Ato Adicional que instituiu o parlamentarismo, temiam que o sistema fosse aplicado nos estados, debilitando seus poderes. Em meados de 1962 reuniram-se em Araxá (MG) e redigiram manifesto contrário ao parlamentarismo, propondo a antecipação da consulta popular para que fosse decidido o sistema de governo. O evento, que ficou conhecido como Conferência de Araxá, teve como principal animador o governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, elaborador das propostas aprovadas no encontro. Apenas o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, votou contra o documento, embora fosse grande interessado na volta ao antigo sistema de governo, já que se colocava como presidenciável para as eleições de 1965. Importantes setores da imprensa também passaram a posicionar-se pela realização de um plebiscito, como, por exemplo, o Correio da Manhã, que em editoriais dos meses de julho e agosto, em meio à crise sucessória, defendeu a idéia de um referendum simultâneo às eleições de outubro. Cabe lembrar que o mesmo Correio da Manhã era um ferrenho opositor do governo Jango, o que denota a heterogeneidade da frente antiparlamentarista.xiii Em agosto de 1962, os ministros militares lançaram um manifesto reivindicando a antecipação do plebiscito, passando a intervir de forma mais contundente na questão. Os ministros das três armas – Nelson de Melo (Exército), Pedro Paulo Suzano (Marinha) e Reinaldo de Carvalho (Aeronáutica) – propuseram a realização do plebiscito imediatamente, coincidindo com as eleições que se realizariam em outubro, no que faziam coro com a proposta de Brochado da Rocha. A proposta do governo era rejeitada pelos partidos de oposição – UDN e PSD –, que temiam uma forte identidade entre os políticos oposicionistas e o impopular parlamentarismo, prejudicando seu desempenho eleitoral nas eleições vindouras. Para estes, fazia-se necessário separar os dois pleitos, pois também, como já apontamos anteriormente, não havia consenso no interior dessas legendas quanto à matéria. Em 18 de agosto ocorreu uma tentativa de acordo entre o governo e os diversos partidos de oposição, que se materializou numa emenda apresentada por Oliveira Brito. Esta consistia na transferência da decisão

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sobre o plebiscito para o futuro Congresso, a ser eleito em outubro seguinte. Esta proposta malogrou, porque em setembro o gabinete de Brochado da Rocha resolveu submeter a um voto de confiança uma proposta de realização do plebiscito no dia 7 de outubro. O impasse continuou, pois essa emenda foi recusada pela maioria conservadora no Congresso, o que levou à renúncia do gabinete. Na iminência da demissão do segundo gabinete, o CGT ameaçou convocar uma nova greve geral caso o plebiscito não fosse marcado para coincidir com as eleições de outubro. Entre os militares, a tensão aumentava. O comandante de III Exército (Rio Grande do Sul), general Jair Dantas Ribeiro, enviou um telegrama ao ministro da Guerra, Nelson de Mello, afirmando que não teria condições de manter a ordem pública no estado caso o parlamento se recusasse a aprovar a realização do plebiscito. A 13 de setembro foi publicada a seguinte declaração na imprensa: Face à intransigência do Parlamento... e tendo ainda em vista as primeiras manifestações de desagrado que se pronunciam nos territórios dos Estados (sic) ocupados pelo III Exército, cumpre-me informar a V. exa., como responsável pela garantia da lei, da ordem... e da propriedade privada deste território, que me encontro sem condições para assumir a segurança e êxito a responsabilidade do cumprimento de tais missões, se o povo se insurgir pela circunstância de o Congresso recusar o plebiscito para antes ou no máximo simultaneamente com as eleições de xiv outubro próximo vindouro.

Por sua vez, os generais Osvino Alves e Peri Constant Bevilaqua, comandantes do I e II Exércitos, respectivamente, solidarizaram-se com Dantas Ribeiro. Apenas o general Castelo Branco, comandante do IV Exército, recusou-se a apoiar a declaração. O ministro da Guerra, contrariado, considerou a declaração do comandante do III Exército uma manifestação de insubordinação. Por outro lado, o movimento sindical resolveu solidarizar-se com Dantas Ribeiro e convocou uma greve nacional para exigir a antecipação do plebiscito. Em 14 de setembro, Brochado da Rocha renunciou. A greve geral estourou no dia seguinte, tendo uma adesão inferior àquela realizada em julho, mas não menos radicalizada e importante. No dia 16 do mesmo mês, fruto de um acordo em meio à polarização política, foi aprovado o projeto que antecipava o referendum para o dia 6 de janeiro de 1963.xv Ao gabinete de Brochado da Rocha sucedeu o de Hermes Lima. Com a data do plebiscito marcada, este consistiu basicamente num período de transição ao presidencialismo. A certeza da vitória do sistema presidencialista era percebida pelos atores políticos e mensurada nas pesquisas de opinião pública realizadas no período, que apontavam mais de 70% da população favorável ao retorno do presidencialismo.xvi Mas não faltaram defensores do novo experimento, como os parlamentaristas históricos Raul Pila e Afonso Arinos de Melo Franco. Entre o militares, Juarez Távora, da Cruzada Democrática e pertencente aos quadros do Partido Democrata Cristão (PDC),xvii encontra-se entre os principais defensores do sistema. Este pronunciou uma série de conferências radiofônicas – num momento em que este ainda era o mais importante veículo de comunicação de massas –, e emitiu

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pronunciamentos na televisão defendendo a superioridade do sistema parlamentarista. Seus argumentos consistiam em: 1) declarar que o sistema vigente no Brasil era uma caricatura de parlamentarismo; 2) defender a eficiência histórica do sistema, usando, constantemente, o exemplo do Segundo Reinado. Chegava a listar uma série de importantes personalidades políticas formados sob este sistema no oitocentos, afirmando que “a escola parlamentar foi bem mais fecunda em verdadeiros estadistas, que a presidencial”.xviii Mas era do lado pró-presidencialista que se encontravam a maior parte dos militares. Peri Constant Bevilaqua, general que comandava a II região militar, era um forte opositor do sistema parlamentar. Militar legalista, Bevilaqua defendeu a posse de Goulart, mas considerou o Ato Adicional que instituiu o parlamentarismo uma violação da Constituição de 1946. Em seu arquivo particularxix há um manuscrito de sua autoria, redigido no dia 6 de janeiro de 1963 (dia do plebiscito), em que afirma ser o parlamentarismo vigente fruto de “condições anormais”. Esperava, assim, que o povo repudia-se aquele regime nas urnas, o que acabou por acontecer. No mesmo arquivo de Bevilaqua há um telegrama de Goulart, enviado poucos dias depois, agradecendo o apoio do general ao retorno do presidencialismo.xx Deve-se lembrar, contudo, que o general Bevilaqua encontrava-se em profunda contradição com uma das bases fundamentais de sustentação do governo Goulart, o movimento sindical,xxi sendo um ferrenho crítico das organizações sindicais “paralelas”,xxii que levavam este nome por estarem em desacordo com a legislação trabalhista vigente. O período parlamentarista foi marcado por grandes instabilidades políticas, situação que perdurou mesmo após a volta do presidencialismo. Esta permanência revela que a instabilidade do sistema político possuía raízes profundas, remetendo a questões que estão além das alternativas entre presidencialismo e parlamentarismo. Trabalhamos com a idéia de que o sistema político de então se encontrava em “crise orgânica”, situação que é caracterizada quando os partidos políticos tradicionais não são mais reconhecidos como representantes dos interesses das classes sociais,xxiii a exemplo do que afirma René Armand Dreifuss em seu trabalho clássico sobre o golpe de Estado.xxiv Trata-se, portanto, da crise do populismo, forma de domínio político baseado no chamado “estado de compromisso”, que perdurou no Brasil de 1930 a 1964.xxv Todavia, a opção generalizada pelo presidencialismo pode indicar pistas sobre as profundas transformações ocorridas na sociedade brasileira no bojo da crise dos anos de 1960. Os setores das classes dominantes que viriam a assumir os principais postos da política econômica e administrativa no governo militar que sucedeu a queda de Goulart, chamados por Dreifuss de “elite orgânica”, empenharam-se pela volta ao presidencialismo. Segundo este autor:

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É interessante salientar que, ao tentar reverter ao regime presidencial, João Goulart recebeu apoio aparentemente paradoxal do bloco modernizante-conservador. Um dos mais importantes articuladores e apoiadores financeiros dessa operação foi José Luís de Magalhães Pinto, associado ao IPES, sobrinho e homem-chave de José Magalhães Pinto, ele próprio candidato presidencial para 1965.xxvi Isto denota que não era menor a opção que estava em jogo no plebiscito. A verdade é que havia uma opinião generalizada de que o sistema parlamentarista era fraco e incapaz de dar conta da profunda crise pela qual passava o país. A maior parte dos analistas admite que era geral a percepção de uma “crise de autoridade”.xxvii No que diz respeito aos militares, isto era ainda mais evidente, tendo em vista, inclusive, o ideário elaborado pela Escola Superior de Guerra (ESG), que propugnava como desejável um regime em que o poder executivo fosse extremamente forte. Alfred Stepan, estudioso da doutrina da ESG, afirma que um dos temas freqüentes difundidos na escola era o de que “o poder executivo tinha de ser fortalecido”,xxviii especialmente em razão do combate ao inimigo interno comunista. Somava-se a isto o intuito de um Estado à altura das tarefas de modernização econômica do país, o que criava uma grande identidade entre as propostas da ESG e de entidades empresariais como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES).xxix Em meio às demonstrações de fraqueza do parlamentarismo, o “ideário esguiano” encontrou maior recepção junto a setores civis e militares. Não é possível esquecer que as próprias Forças Armadas, como parte do executivo do Estado, era grande interessada no fortalecimento deste poder, já que implicava no seu próprio fortalecimento enquanto instituição. O parlamentarismo, neste sentido, era a antítese deste ideal, pois mesmo que este sistema possuísse (em tese) as prerrogativas de um poder executivo eficiente na figura do primeiro-ministro como de resto é comum a qualquer forma de sistema político -, a experiência concreta daquele parlamentarismo não podia encorajar sua defesa. Por fim, é preciso lembrar que após o plebiscito intensificou-se o processo conspiratório, articulado por setores empresariais em conluio com militares,xxx que culminou com o golpe de Estado de 1964. O conspirador histórico, Cordeiro de Farias, em depoimento que prestou a Aspásia Camargo e Walder de Góes, afirma categoricamente que “podemos situar o início da conspiração, como atividade política relativamente organizada, no momento em que Jango recuperou todos o poderes, após o plebiscito que restaurou o presidencialismo”.xxxi Cabe lembrar que Cordeiro de Farias foi um dos principais dirigentes da conspiração golpista. Mas mesmo militares que à época ocupavam postos inferiores na hierarquia concordam com esta avaliação. Por exemplo, Carlos Alberto da Fontoura, então coronel em serviço no III Exército, afirma que a “conspiração para tirar o Jango começou depois que

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ele voltou ao presidencialismo e assumiu poderes absolutos”.xxxii A participação dos militares no processo político que garantiu a realização do referendum, como de resto em outros momentos relevantes da história brasileira, foi decisiva para o curso dos acontecimentos.

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Por esmagadora maioria (9.457.488 contra 2.073.582), o eleitorado brasileiro decidiu pelo retorno ao sistema presidencialista. Até então, a única experiência de fôlego do parlamentarismo no Brasil havia se dado no período monárquico, a partir de 1847, durante o Segundo Reinado (1840-1889). ii Thomas Skidmore caracteriza o regime de 1945-1964 como composto pelos de “dentro” e os de “fora”. Dentro estavam o Partido Social Democrático (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), ambos criados por Getúlio Vargas, e o próprio PSP adhemarista; por “fora” estava a UDN e seus aliados. SKIDMORE, T. Brasil: de Getúlio a Castelo. São Paulo: Paz e Terra, 1987. iii Os canais “paralelos” são chamados por René Dreifuss de “administração paralela”, muito importante no governo JK. Ver. DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981, Capítulos III e IV. iv A Cruzada Democrática era a chapa dos setores antigetulistas que disputavam as eleições do Clube Militar. Era chamada de “UDN militar”, identificada com o ideário da Escola Superior de Guerra (ESG) e tinha como animadores conspiradores históricos como Cordeiro de Farias. Contra ela organizavam-se as alas nacionalista e legalista das forças armadas. A primeira possuía uma certa identidade ideológica com o Instituo Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Segundo Antonio Carlos Peixoto, o Clube Militar “canalizou e organizou o debate entre as principais correntes militares”. PEIXOTO, A. C. “O Clube Militar e o confronto no seio das Forças Armadas (1945-1964).” In. ROUQUIÉ, Alain. Os partidos militares no Brasil. Rio de Janeiro: Record, s.d., p. 75. v Por pressão de setores antipopulistas das Forças Armadas, que redigiram o famoso “Manifesto dos coronéis” (fevereiro de 1954), Jango teve que ser afastado do ministério. Segundo o manifesto, Goulart era suspeito de simpatias à esquerda, fazendo “vistas grossas”, inclusive, à militância comunista dentro movimento operário. vi Emenda Constitucional nº 4, de 2 de setembro de 1961. vii No Art. 25, da mesma lei. viii Realizado no dia 7 de setembro de 1961. ix Apud FIGUEIREDO, Argelina Cheibub. Democracia ou reformas?: alternativas democráticas à crise política (19611964). São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 56. x Como parte do processo de erosão das bases do “Estado de compromisso”, o movimento operário foi paulatinamente criando organizações próprias, fora do escopo da legislação trabalhista, e por isto eram chamadas de “organizações paralelas”. A isto se somava às Ligas Camponesas, que no campo mobilizava trabalhadores rurais em razão de uma reforma da estrutura fundiária. Por fim, encontra-se o movimento estudantil, cuja UNE era hegemonizada pela aliança entre a AP e o PCB. xi HIPPOLITO, Lúcia. De raposas e reformistas – o PSD e a experiência democrática brasileira (1945-1964). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. xii MATTOS. Marcelo Badaró. Novos e velhos sindicalismos. (1955-1988). Rio de Janeiro: Vício de Leitura,1998. DREIFUSS, R. A. Op. Cit. xiii Alzira Alves de Abreu chama atenção para o fato de a Tribuna da Imprensa, de propriedade de Carlos Lacerda, ao lado do Estado de S. Paulo, terem sido, desde o início, contrários à emenda parlamentarista. O primeiro porque achava que tal emenda era uma proposta do PCB, e o segundo porque afirmava ser o sistema parlamentar “ineficiente na solução dos problemas do Estado moderno”. ABREU, Alzira Alves de. “A participação da imprensa na queda do governo Goulart”. In Anais do Seminário 1964-2004. 40 Anos do Golpe: ditadura militar e resistência no Brasil. Rio de Janeiro: Faperj & 7Letras, 2004, pp.15-25, p.19. xiv O Estado de São Paulo, 13 de setembro de 1962. Apud STEPAN, Alfred. Os militares na política: as mudanças de padrões na vida brasileira. Rio de Janeiro: Artenova, 1975, p.55. xv Lei complementar nº 2, de 16 de setembro de 1962, ao Ato Adicional. xvi Apud, FUGUEIREDO, Op. Cit., p.59. xvii Juarez Távora, antigo tenente revoltoso dos anos de 1920, teve sua trajetória identificada com a oposição ferrenha ao getulismo durante o período de 1945-1964, chegando a disputar pela (UDN) a eleição presidencial de 1955 contra a chapa de Juscelino Kubitschek (PSD-PTB). xviii Parlamentarismo, ou presidencialismo?. Conferência proferida na Rádio Jornal do Brasil. xix Arquivo Peri Constant Bevilaqua, depositado no Museu Casa de Benjamin Constant (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN 6a Coordenação regional), no Rio de Janeiro. xx Telegrama de João Goulart a Bevilaqua, Brasília, 13 de janeiro de 1963.

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Ver DEMIER, Felipe. “A ‘Legalidade’ do golpe.” Revista História & Luta de Classes. Ano 1, Nº 1. Rio de Janeiro: ADIA. Abril de 2005. xxii Entre estas destacavam-se o próprio CGT, o Pacto de Unidade e Ação (PUA), o Fórum Sindical de Debates (FSD), entre outras. Ver MATTOS, Marcelo Badaró. Trabalhadores e sindicatos no Brasil. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2002. xxiii De acordo com GRAMSCI, Antonio. “Observações sobre alguns aspectos da estrutura dos partidos políticos nos períodos de crise orgânica”. In. ____ Maquiavel, a política e o Estado moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, pp. 54-63. xxiv DREIFUSS, Op. Cit. Capítulo IV.Nesse sentido, nos opomos às interpretações que afirmam estar aquele sistema político “em marcha acelerada para a consolidação”. LAVAREDA, Antônio. A Democracia nas urnas: o processo partidário eleitoral brasileiro. Rio de Janeiro: Rio Fundo/IUPERJ, 1991, p. 31. Nesta linha, FIGUEIREDO, Argelina Cheibub. “Estrutura e escolhas: era o golpe de 1964 inevitável?”. In. 1964-2004: 40 Anos do Golpe: ditadura militar e resistência no Brasil. Rio de Janeiro: Faperj/7Letras. 2004. xxv Esta formulação foi feita por Francisco WEFFORT (“O populismo na política brasileira.” In. FURTADO, Celso (coord.). Brasil: Tempos modernos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977) e Otávio IANNI (A formação do Estado populista na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974). Atualmente o conceito de populismo tem sido alvo de crítica quanto a forma passiva como a classe trabalhadora aparece nestes estudos . Entretanto, o ponto que nos interessa continua sendo valido, a saber, o fato deste regime basear-se num compromisso entre o setor oligárquico agroexportador com a burguesia industrial, ao lado do operariado urbano. Sobre a crítica ver a obra coletiva organizada por FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2001. xxvi DREIFUSS, Op. Cit., p.11149, nota 26. xxvii Alguns autores que trabalham com esta idéia são SKIDMORE, Op. Cit., STEPAN, Op. Cit., DREIFUSS, Op. Cit., IANNI, Otávio.(O colapso do populismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968). xxviii STEPAN, Op. Cit., p.134. xxix Segundo diversos analistas, como Dreifuss (Op. Cit.) e Moniz Bandeira (O Governo João Goulart - As Lutas Sociais no Brasil (1961-1964) - Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira. 1977), o IPES ao lado do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) formaram as principais agências de conspiração contra o governo de João Goulart. Segundo Dreifuss, o complexo IPES/IBAD foi “o Estado-Maior da burguesia multinacional e associada” que “desenvolveu uma ação medida, planejada e calculada que a conduziu ao poder” em 1964 (p.145). xxx Através do chamado complexo IPES/IBAD/ESG, estudado por DREIFUSS, Op. Cit. xxxi FARIAS, Osvaldo Cordeiro de. Meio século de combate. Entrevistas à Aspásia Camargo e Walder de Góes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p.543. xxxii D’ARAUJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Celso. (Int. e Org). Visões do golpe: A memória militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p.204.

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