Os mostruários da Fábrica de Santo António do Vale da Piedade

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Descrição do Produto

COORDENAÇÃO

G O N Ç A L O D E VA S C O N C E L O S E S O U S A

II CONGRESSO

O PORTO ROMÂNTICO ACTAS

FICHA TÉCNICA TÍTULO

II CONGRESSO “O PORTO ROMÂNTICO” - ACTAS

COORDENAÇÃO

DESIGN GRÁFICO + E-PAGINAÇÃO

Gonçalo de Vasconcelos e Sousa

Carlos Gonçalves

EDIÇÃO

ISBN

CITAR Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa

978-989-8497-07-9

LOCAL DE EDIÇÃO

Porto

DATA

Junho de 2016

OS MOSTRUÁRIOS DA FÁBRICA DE SANTO ANTÓNIO DO VALE DA PIEDADE

José Francisco Ferreira Queiroz1, José Guilherme Brochado Teixeira2

Introdução Neste trabalho, abordamos sucintamente os edifícios subsistentes relacionados com a Fábrica de Santo António do Vale da Piedade, sob o ponto de vista dos seus aspectos decorativos, e como estes, de forma mais ou menos explícita, constituem um autêntico mostruário, especialmente de azulejos e de calões em faiança3. Os dois edifícios subsistentes de que nos ocupamos situam-se, o primeiro, na Rua Viterbo de Campos, em Vila Nova de Gaia, doravante designado por edifício da fábrica – ainda que tenha servido de habitação e os edifícios fabris propriamente ditos já não existam; e o segundo no Porto, na Rua de Miragaia, nº 12, com traseiras para a Rua Arménia, nº 11, doravante designado por loja, ainda que não tenha sido o único espaço que a Fábrica de Santo António do Vale da Piedade teve para vender os seus produtos, já que, durante anos, os vendeu na própria fábrica e, efemeramente, num depósito geral de várias fábricas do Porto e Gaia4.

Breve apontamento histórico A Fábrica de Santo António do Vale da Piedade laborava já desde finais do século XVIII, sendo propriedade do Vice-Cônsul da Sardenha no Porto, Jerónimo Rossi, falecido em 1821. Contudo, o edifício subsistente do complexo fabril que tratamos nesta comunicação ainda não existia à época. No início da década de 1830, fábrica estava a laborar debaixo da supervisão de Francisco da Rocha Soares, que então dirigia também a Fábrica de Miragaia e que chegou ainda a explorar, sensivelmente por essa altura, a Fábrica de Louça de Massarelos. A partir da segunda metade da década de 1830, Santo António do Vale da Piedade passa a andar arrendada a Bonifácio José de Faria e Costa e a João

1

Historiador de arte.

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Ceramista, com experiência no restauro de azulejos e telhões em faiança.

3

De modo a respeitar as normas enviadas aos autores, o presente texto é uma versão muito resumida do texto original, que contamos publicar integralmente numa outra oportunidade, com eventuais aditamentos. Todas as fotos são de Francisco Queiroz e datam de 2012 (as do edifício subsistente da fábrica) ou de 2014 (as do edifício da loja), excepto a foto do interior do edifício da loja, que é de José Teixeira.

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DOMINGUES, Ana Margarida Portela – A ornamentação cerâmica na arquitectura do Romantismo em Portugal. [S.l.: s.n.], 2009, vol. 1, pp. 168-180. Tese de Doutoramento em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

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de Araújo Lima. Contudo, o primeiro dos dois sócios morre em 1840. A partir de então, João de Araújo Lima passa a ter toda a responsabilidade sobre a sua exploração, num período relativamente alargado, que termina com a sua morte, em 18615. Durante esse período, em que João de Araújo Lima explorou a fábrica, esta aumentou a gama de produção – não só produzia louça, como passou também a produzir estatuária, vasos e azulejos. Nessa altura, teve certa projecção, em Portugal e no Brasil, ao nível da produção de ornamentação cerâmica para exteriores. Terá sido a mais importante fábrica do género, no norte do país, durante as décadas de 1850 e 1860. Ao nível da produção de estatuária e artefactos de remate, terá sido mesmo a principal fábrica portuguesa, durante esse período. Após a morte de João de Araújo Lima, a fábrica ficou em posse da sua viúva. Poucos anos depois, a gestão passaria para dois irmãos da primeira mulher de João de Araújo Lima, um dos quais – João do Rio Júnior – viria a assumir o protagonismo, devido à morte do outro irmão. Debaixo da gerência de João do Rio Júnior, é dotada de uma máquina a vapor. Em meados da década de 1870, a produção já se alargara a louça sanitária, louça de grés e tubos do mesmo material. Logo de seguida, passou a ser gerida por Manuel Alves Ferreira Pinto, através de arrendamento, e foi ainda premiada na Exposição de Filadélfia de 1876 e na Exposição Universal de Paris de 1878. Porém, a concorrência, sobretudo a da Fábrica de Cerâmica das Devesas, fez com que deixasse de ter a primazia na produção de artefactos cerâmicos para decoração arquitectónica. Em 1882, Manuel Alves Ferreira Pinto declarou falência. Iniciava-se a curva descendente da Fábrica de Santo António do Vale da Piedade. Embora o declínio não tenha sido imediato, esta já no período Arte Nova havia sido relegada para a sombra, dado que foram outras as fábricas similares que singraram, na viragem para o século XX. Aliás, em finais do século XIX, já tinha deixado de produzir artefactos em grés, precisamente por não poder competir com a Fábrica de Cerâmica das Devesas6. A fábrica vegetou nas primeiras décadas do século XX, acabando por fechar. Os edifícios fabris propriamente ditos viriam a ser demolidos.

A ornamentação cerâmica no edifício subsistente da fábrica Erguido bem perto do Rio Douro, o edifício de que aqui tratamos é o único subsistente do complexo fabril cerâmico de Santo António do Vale da Piedade. Apesar de estar em risco iminente de colapso, possui uma espécie de mostruário informal de azulejo, assim como diversos tipos de telhas decoradas, produzidas precisamente nesta fábrica, no que se apresenta como um conjunto decorativo único. Sabemos que esta casa serviu para habitação e que era considerada “nova”, em 18767. Apresenta rés-do-chão e mais quatro pisos, com águas-furtadas, no alçado principal, tendo menor cércea no alçado posterior, por questões de cota do terreno. Os azulejos estão aplicados em todo o alçado principal (nascente) e em todo o alçado posterior (poente), com excepção das partes em cantaria (guarnição de vãos, cunhais, cornijas, etc.). Trata-se de azulejos com cerca de 13,5x13,5cm de dimensão, de padrão 1x1 ou 2x2, conforme os casos. Foram pintados em azul-cobalto e, em alguns casos, apresentam

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5

IDEM, Ibidem, vol. 1, pp. 168-180.

6

IDEM, Ibidem, vol. 1, pp. 437-448.

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LEÃO, Manuel – A cerâmica em Vila Nova de Gaia. Vila Nova de Gaia: Fundação Manuel Leão, 1999, p. 471.

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Fig. 1 – Edifício subsistente da fábrica.

outras cores, como o laranja, o amarelo, o vinoso, e mesmo o verde, sempre sobre um vidrado branco opaco estanífero. É possível que os padrões predominantes, no revestimento do edifício, sejam de produção da década de 1870 (ou até da década anterior), e que os padrões colocados de forma mais avulsa, em lacunas, correspondam a azulejos de produção posterior, mas ainda oitocentista (alguns dos quais, aliás, de concepção tão antiga como a dos padrões predominantes). Quer nos azulejos do alçado principal, quer nos do alçado posterior, os padrões são quase todos neoclássicos, privilegiando os motivos florais e alguns motivos geométricos. Estampilhados e mais ou menos retocados à mão livre representam bem o estilo de Santo António do Vale da Piedade, embora não esgotem minimamente a variedade de produção azulejar que esta fábrica teve. Basta lembrar, por exemplo, que não constam aqui padrões de azulejos relevados. São três os padrões predominantes no alçado posterior, arrumados em painéis devidamente separados por cercaduras, correspondendo ao alinhamento dos vãos e dos pisos. Aqui, nota-se uma certa preocupação com a arrumação dos padrões, ainda que o seu reduzido número não sugira uma

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Fig. 2 – Alçado posterior, voltado a poente, do edifício subsistente da fábrica.

função explícita de mostruário. Num dos padrões, nota-se o tom de laranja que foi bem típico da produção desta fábrica. Nas águas-furtadas e, sobretudo, no apêndice da fachada posterior e respectivo canto, subsiste maior variedade de padrões, embora dispostos de forma pouco lógica, parecendo tratar-se de restos, preenchendo lacunas. Ainda assim, pela variedade de padrões, pelo carácter documental dos mesmos, pela história do edifício e pelo seu significado, estas aplicações azulejadas são um dos mais importantes conjuntos do género em Portugal.

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Fig. 3 – Detalhe das águas-furtadas, no edifício subsistente da fábrica.

Acresce ainda o facto dos alçados laterais, norte e sul, apresentarem um revestimento com telhas vidradas, de canudo, achatadas, em cerâmica com vidrado plumbífero, fixadas à alvenaria com parafusos. Artefactos cerâmicos não decorados e destinados sobretudo a impermeabilizar, ainda assim, também publicitavam a produção da fábrica. No mesmo edifício, refira-se ainda os encanamentos de grés para águas pluviais, junto ao cunhal sudeste, em toda a altura da fachada. Não sendo elementos decorativos, documentam um tipo de produção muito comum no último terço do século XIX, na qual a Fábrica de Santo António do Vale da Piedade obteve algum reconhecimento. Mas os artefactos mais interessantes neste edifício subsistente do complexo fabril cerâmico encontram-se nos beirais dos alçados e das águas-furtadas: os calões, ou telhões decorativos, em faiança, estampilhados em tons de azul sobre fundo branco opaco, com retoques de pintura à mão livre. Observam-se vários modelos de calões, ainda que sem uma preocupação clara de os distribuir uniformemente. Nas extremidades, vários destes modelos são relevados e um deles, infelizmente já não subsistente, era mesmo todo em relevo e com pintura policroma. Num dos cunhais, sob os calões, observa-se ainda uma invulgar bacia em faiança, estampilhada a azul, para recolha de águas pluviais.

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Fig. 4 – Alguns dos calões do edifício subsistente da fábrica.

No interior do edifício, vários padrões de azulejos podem ser observados na cozinha e ainda no recebimento. Contudo, o modo como foram aqui aplicados não indicia a intencionalidade de constituir um mostruário formal, visto que predomina um padrão policromo, e os restantes azulejos, de outros padrões, parecem sobretudo preencher lacunas.

O mostruário da loja Essa intencionalidade existe, sim, no edifício da loja da Fábrica de Santo António do Vale da Piedade, embora não em todos os seus revestimentos azulejares. Esta loja, ou depósito, situava-se na antiga Praia de Miragaia e perto da desaparecida Porta Nobre. Não terá sido o único edifício em Miragaia no qual se venderam os produtos da fábrica. De qualquer modo, é possível que os azulejos desta loja sejam de produção coetânea, ou até ligeiramente mais antiga que os do edifício subsistente da fábrica que acabámos de analisar sumariamente.

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Fig. 5 – Fachada principal da antiga loja da fábrica.

A fachada do edifício da loja, em banda e sob um dos arcos da antiga praia de Miragaia, é de dimensões reduzidas. Ainda assim, apresenta um padrão estampilhado a azul sobre fundo branco. O alçado que se apoia no arco imediatamente em frente chegou a possuir calões decorados no beiral, os quais foram retirados no final do século XX. No piso térreo, o edifício da loja está hoje dividido entre um espaço comercial e o recebimento que dá acesso ao vão de escadas, permitindo subir até aos pisos superiores. É precisamente neste recebimento, num estreito corredor, que se conserva boa parte de um mostruário de padrões de azulejaria, alguns dos quais policromos. Trata-se do mais formal de todos os mostruários, pois os vários painéis, todos mostrando exemplares de um determinado padrão, encontram-se divididos por faixas de azulejos brancos e lisos (fig. 6).

Fig. 6 – Mostruário no acesso aos pisos superiores, no interior do edifício da antiga loja da fábrica.

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Acompanhando a escadaria até ao último piso, encontramos silhares com diversos padrões de azulejo, também de produção provável da Fábrica de Santo António do Vale da Piedade. Cada piso apresenta um silhar de padrão diferente, ainda que sem uma preocupação clara em constituir um mostruário formal. Alguns destes padrões são policromos, apesar de predominarem os tons de azul. Também aqui não surgem azulejos relevados, apesar de esta fábrica comprovadamente os ter produzido, e com bastante qualidade.

Fig. 7 – Detalhe do alçado posterior da antiga loja da fábrica.

As traseiras deste edifício da loja confrontam com a escura Rua Arménia. Neste alçado de traseiras, na pouca superfície que sobra entre os vãos, encontramos também um revestimento que mistura vários padrões, sem uma ordem específica, sendo todos eles estampilhados e pintados a azul sobre fundo branco.

Conclusão Com a unidade produtiva situada em Gaia e a loja dos seus produtos localizada no Porto, o Rio Douro acabou por ser a principal estrada para escoamento de produtos da Fábrica de Santo António do Vale da Piedade, sobretudo em direcção ao outro lado do Atlântico, tendo sido grande a sua influência no Brasil. Porém, o seu impacto em Portugal foi também muito forte. No seu período áureo de meados de Oitocentos, as peças para ornamentação de edifícios e jardins, desde azulejos a vasos e estátuas, constituíram a produção mais emblemática desta fábrica que, naturalmente, usou os seus edifícios

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de produção e de venda para ostentar algumas peças, em jeito de mostruário, mais ou menos formal. Por conseguinte, estas peças configuram-se como muito importantes para atribuições. Atendendo à situação dos edifícios analisados neste trabalho, um dos quais em risco de ruir, é importante que sejam salvaguardados e destinados a funções consentâneas com a importância histórica e artística da Fábrica de Santo António do Vale da Piedade.

Fontes e bibliografia8 DOMINGUES, Ana Margarida Portela – A ornamentação cerâmica na arquitectura do Romantismo em Portugal. Tese de Doutoramento em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 2009. LEÃO, Manuel – A cerâmica em Vila Nova de Gaia. Vila Nova de Gaia: Fundação Manuel Leão, 1999.

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Foram consultadas diversas outras fontes e bibliografia. Apresentamos somente as referências citadas ao longo do texto, reservando as demais referências para o âmbito de um texto de maior fôlego.

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