Os movimentos sociais e a circulação do poder

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Os movimentos sociais e a circulação do poder1 Rúrion Melo Universidade de São Paulo/Cebrap

Acatei o mote que faz parte do presente colóquio. Procurei revisitar a questão da democracia e do poder político, também interessado teoricamente nas manifestações recentes que ocorreram no Brasil e em várias cidades do mundo. Mas eu queria me limitar a algumas circunstâncias do caso brasileiro. Eu quero inicialmente reunir muito de maneira breve alguns dos elementos que produzem o diagnóstico da crise econômica e política atual, e que, no meu entender, estão corroborando para uma espécie de perda generalizada de legitimidade política. Há uma confluência explosiva de um sistema político engessado e autocentrado no jogo de poder, um conservadorismo atroz (que bate de frente com pautas centrais dos movimentos sociais ligadas, por exemplo, a questões de direitos humanos, de gênero, raça e sexualidade), um recuo diante de muitos direitos trabalhistas e sociais. O impacto da Lava Jato, com seus escândalos de corrupção, dão um tom hegemônico para a formação da opinião pública de massa. Além disso, os efeitos da política de “austeridade” na economia são acompanhados pela crise em setores produtivos de base, alta da inflação, diminuição do potencial de consumo das famílias. Aquilo que já parecia claro em Junho de 2013 tende a piorar, e colocar o “lulismo” definitivamente em cheque: pois se o lulismo contou com números positivos em vários setores da economia, alavancados pelos incentivos fiscais e pela política redistributiva, Junho de 2013 mostrou aquilo que E. P. Thompson já tinha apontado décadas antes ao investigar os processos sociais no início da revolução industrial, a saber, que a melhora no “padrão de vida” não necessariamente significa uma melhora qualitativa no “modo de vida” das pessoas (THOMPSON, vol. 2, cap. 1). Essa é uma dificuldade sublinhada por muitos autores. O acesso mais amplo à universidade continuou levando a empregos precários. E a composição, reunida na crise econômica atual, de aumento do desemprego e austeridade altera os poucos ganhos do lulismo no que diz respeito ao próprio padrão de vida das pessoas, sobretudo daquelas em situação

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Texto apresentado no Colóquio Democracia e Poder Político, realizado nos dias 21 e 22 de outubro de 2015, na UFSCar. Pelo convite, agradeço a Monika Stival e Luiz Damon Moutinho.

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mais carente e que eram destinatárias dos programas sociais do governo. Diante desse quadro, podemos repetir o mesmo tipo de pergunta já levantada por Thompson: Qual será a consequência política dessas experiências sociais dramáticas para o futuro da democracia? Precisamos olhar para um outro conjunto de fatos. Temos assistido a persistentes manifestações de revolta popular, com movimentos mais ou menos organizados, cobrindo os mais diferentes temas e reivindicações. A sociedade certamente não está fora de cena. Precisamos saber a razão disso e a maneira com que ela se expressa, entendendo assim como seus modos de manifestação podem impactar as relações de poder na democracia que temos. É verdade que já contamos com um aumento substancial de instâncias participativas da sociedade civil, cuja importância não deve ser negligenciada. Mas o que ocorreu em fenômenos como as Revoltas de Junho de 2013, para citar um dos exemplos recentes mais paradigmáticos, colocou espontaneamente diferentes pessoas nas ruas, se espalhando nos centros e nas periferias, sem que isso fosse acompanhado pelo Estado ou por alguma configuração institucional determinada (as revoltas não puderam, naquela ocasião, ser apropriadas por partidos ou grupos políticos tradicionais). E vimos também que manifestações populares de indignação se expressam de maneiras bem diferentes. Mas tais manifestações, ainda que não na proporção que tomaram as Revoltas de Junho, são cotidianas, são expressões tornadas habituais da sociedade, às vezes consideradas pela opinião pública, e muitas vezes simplesmente ignoradas (em torno do ensino, salário, trabalho, terra, violência urbana, desobediência civil etc.). Nas periferias das grandes cidades queimam-se pneus e ônibus cotidianamente, e boa parte das vezes se trata de expressões de indignação contra a precariedade da vida e da violência do dia-a-dia. Somase a isso experiências de desrespeito e sofrimento disseminadas socialmente. Casos de injúria racial aumentaram exponencialmente, violência contra as mulheres (no âmbito familiar e profissional) continuam recorrentes, assim como ocorrências constantes de homofobia. Ora, muitos daqueles que resolveram entender as “razões das revoltas”, considerando tão somente o funcionamento das instituições políticas e econômicas, e uma vez que elas pareciam estáveis e funcionando de maneira razoavelmente ordenada, não encontraram uma justificativa teoricamente relevante para as agitações em questão. Eu, pelo contrário, acredito que todos esses fenômenos sociais têm vinculação direta com o sentimento generalizado de perda de legitimidade do poder político. Mas eles nos mostram que temos de olhar teoricamente para esferas sociais que disputam diariamente 2

os sentidos da democracia. Precisamos olhar para a base da sociedade e diagnosticar também os “modos de vida”, com suas experiências negativas e patológicas tanto quanto seus impulsos de auto-organização e liberdade. O desafio teórico seria mais ou menos o seguinte: como reconstruir a gênese democrática que sustenta, do ponto de vista da cultura política, as críticas e indignações da sociedade em relação à perda de legitimidade das instituições formais do sistema político? A hipótese que considero mais consistente sugere que as indignações e revoltas ocorrem porque os impulsos democráticos da sociedade não cabem, por assim dizer, dentro das configurações institucionais tradicionais do Estado de direito. E isso desafia a teoria democrática a entender por “democracia” muito mais do que um sistema político pode absorver. Por isso, um diagnóstico atualizado sobre a crise da democracia deve lançar luz sobre dois processos de democratização, tanto no que diz respeito ao quadro institucional, em que é central a relação entre sociedade civil e Estado, quanto às possibilidades informais de organização da vida social. Daí a importância dos protestos para contrabalançar ou enriquecer o diagnóstico da crise: se decisões e deliberações políticas continuam engessadas pelas elites no poder, pelos interesses econômicos e pela justificação pública meramente tecnocrática (HABERMAS, 2014), então a radicalização da democracia assume a expressão dos protestos, de tumultos e mobilizações em que as pessoas vão às ruas como uma forma de participar da vida política que os afeta (embora o modo de participação, enquanto tal, seja indeterminado). Considerando que a atividade política está entrelaçada com formas diferenciadas de expressão, que remetem a diferentes histórias e experiências culturais e sociais, a transformação da democracia não pode estar circunscrita a reformas institucionais pontuais – os protestos não irrompem com pautas específicas voltadas a soluções paliativas do sistema político, de reformas eleitorais etc. Mas a indignação generalizada, embora seja socialmente disputada por visões ora mais progressistas e ora mais conservadoras, é capaz de pressionar rumo a reformas mais radicais, sendo construídas em novas instituições formais, novos modos de associação e de representação. Porém, isso depende do tipo de absorção e resposta institucional obtidas por pressão da sociedade. O que me importa pensar antes é como a gênese democrática pode ser reconstruída como um tipo de “poder” que deriva da base da sociedade, e isso exige uma mudança de foco, uma sensibilidade da teoria crítica da democracia para uma práxis política não limitada funcionalmente, que reconheça a riqueza da expressão da vida democrática da sociedade.

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Segundo minha hipótese, tal reconstrução só será possível se a teoria democrática revalorizar práticas autônomas de auto-organização. Neste aspecto, a teoria crítica da democracia elaborada por Habermas pode ser útil. E dois conceitos me parecem frutíferos. Com o conceito de autonomia, Habermas frisou que os cidadãos não apenas reconhecem a validade do direito como simples ordens que lhes são impostas de maneira obrigatória, não exercem somente o papel de meros “destinatários” do Estado, mas também o de “autores” do direito. E com seu conceito de esfera pública, permitiu articular a pretensão normativa de legitimidade atribuída ao sistema político à dinâmica social em que percepções de problemas cotidianos, processos de influência, formas de auto-organização social e situações críticas são diagnosticadas2. Eu não vou entrar aqui na exposição do conceito de autonomia propriamente dito (ligado à sua tese da cooriginaridade entre autonomia privada e pública), pois gostaria de partir diretamente para o conceito de esfera pública, ainda de maneira breve, porque eu penso que é aí que ele expõe o fio existente entre experiências e interações ordinárias (ou seja, o que entendo como a dimensão de enraizamento social da autonomia) e as lutas e pressões sobre o sistema político propriamente dito. Mas a própria solução de Habermas ainda carece de mais aprofundamento para que possamos mergulhar na cultura política que forma a base da sociedade e ver os conflitos e potencias que a vida democrática retêm dentro dela. Em todo caso, ele vai me servir de modelo inicial. Habermas elaborou uma concepção de esfera pública na qual é possível observar um processo de circulação do poder em que a mobilização e a pressão dos cidadãos sobre o sistema político pode provocar transformações institucionais importantes. De forma alguma ele disse que transformações ocorrem necessariamente e que, quando ocorrem, são sempre boas ou democráticas. De início, essa concepção nos serve apenas para reinterpretar sociologicamente o núcleo normativo da autonomia: poderíamos entender que a atuação dos movimentos sociais e da sociedade civil pressionando o sistema político seria indício de que os cidadãos exigem mais do que simplesmente aceitar desempenhar o papel de destinatários. Mas, além disso, ele amplia de tal modo o campo das práticas políticas no espaço social da esfera pública que torna possível lançar luz à gênese democrática do ponto de vista das experiências cotidianas da sociedade. Reivindicações democráticas passam a ser largamente compreendidas quando referidas então à totalidade da vida social. É nesse sentido que podemos entender a manifestação de movimentos 2

Procurei desenvolver alguns aspectos da teoria renovada da esfera pública habermasiana para além das formulações do próprio Habermas em Melo, 2015.

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sociais como expressão de tendências profundamente enraizadas na sociedade. Por esta razão, o conceito de esfera pública é apresentado desde o início por Habermas como um “sistema de alarme com sensores não especializados, mas socialmente sensíveis” (HABERMAS, 1994, p. 435). Pois a esfera pública é um espaço de práticas autônomas de interação e organização, mas também uma dimensão heterônoma de dominação social, cultural e política em que se erguem “barreiras de poder”. Do ponto de vista de uma teoria crítica da democracia, estes problemas podem ser combatidos tanto na forma de tematizações, dramatizações, resistências e conflitos que perpassam socialmente a esfera pública, quanto podem produzir uma série de pressões sobre o sistema político a ponto de democratizar as instituições formais do Estado de direito. Isso no melhor dos casos. O ponto aqui é olhar justamente para essa dimensão negligenciada pela literatura que se debruçou sobre o conceito de esfera pública. Afinal, como as manifestações sociais (que podem ou não se expressar em movimentos organizados) abrem novos espaços políticos, e assim o fazem justamente porque reelaboram diferentes temas da experiência cotidiana? Vejamos um pouco mais. Esse modelo de circulação do poder pressupõe, primeiro, uma relação complexa entre centro e periferia, a qual serve para descrever a possibilidade e os limites da assimilação dos conflitos na articulação entre esfera pública e sistema político (PETERS, 1992, cap. 9). Em segundo lugar, o modelo serve para descrever ainda os processos de comunicação e de decisão do sistema político segundo a imagem de um modelo de eclusas. As eclusas funcionam como um sistema de comportas que podem ser transpostas permitindo uma interconexão entre o núcleo institucional e os influxos da esfera pública. Vê-se que as comportas representam, no modelo de eclusas, barreiras e estruturas de poder presentes na esfera pública e nos centros de poder político, as quais, para serem superadas, dependem de protestos e mobilizações que em momento crítico atingem um grau de tal modo intenso na esfera pública a ponto de modificar as relações de força entre a sociedade civil e o sistema político; e também, como ocorre ordinariamente, da possibilidade que o próprio Estado possui para regular os fluxos de poder que atravessam tal sistema. Esse processo de influência percorre a formação da opinião em espaços públicos informais (nas quais questões controversas passam a ser tematizadas publicamente – desde bares, jornais, televisão, filmes, rádio, universidades, etc.), podem adentrar as arenas formais de deliberação (onde determinados temas são sistematizados na legislação), chegando também à esfera de aplicação no judiciário e na administração. 5

Mas como o modelo habermasiano da esfera pública permite entender então a constante tensão entre um espaço social informal de práticas, experiências e vivências, de um lado, e sua possível tradução institucional, de outro? De que maneira este modelo seria suficientemente dinâmico para apreender uma noção alargada de política em que a circulação de poder percorresse as condições de existência dos sujeitos e pudesse talvez produz consequências sobre o sistema político? Estas consequências podem ser compreendidas como uma circulação “democrática” do poder na medida em que efetuam uma democratização de instituições formais, mas nada garante que isso ocorra de fato. O modelo não deve ser normativamente inflado, pois ele deveria ajudar à descrição de processos práticos que têm uma característica indeterminada, passível de ser modificada pelas disputas próprias do jogo político. Sua vantagem consiste, contudo, em não enquadrar tal processo no modo de funcionamento, nas regras e expectativas do sistema político e das instituições formais. Só podemos então entender de onde a democracia retira sua força legitimadora se nos voltarmos para as experiências sociais, fazendo com que as condições de vida cotidiana produzam os temas que sustentam as posturas políticas. Neste caso, devemos separar analiticamente duas dimensões do processo democrático e, por conseguinte, olhar para duas dimensões de circulação do poder (já que existem barreiras mais “sistêmicas”, de um lado, e formas de dominação social e cultural que se reproduzem na cultura política de fundo, de outro lado). Vejamos antes esta última dimensão. Estou frisando que o conceito de esfera pública pode incorporar uma compreensão ampliada da prática política, permitindo-a “perceber e tematizar os problemas da sociedade em seu todo” (HABERMAS, 1994, p. 441). Sendo uma instância não institucional por excelência, as experiências produzidas no plano das interações sociais da esfera pública (que perpassam os aspectos mais cotidianos das “biografias privadas”) estão abertos a expressões difusas e às vezes opostas de insatisfação. A esfera pública catalisa experiências práticas patológicas desencadeadas em dimensões múltiplas: desigualdades econômicas, sociais e regionais; discriminação de gênero, raça, sexo, origem, língua; violência urbana; exclusão política; violação de direitos (civis, políticos, sociais, culturais) etc. Assim, os problemas gerados pela sociedade são sentidos de modo negativo pelos sujeitos no âmbito de suas histórias de vida socialmente produzidas, e somente por isso são capazes de costurar aquele fio tênue que liga de alguma maneira as condições de existência das pessoas a efeitos com algum 6

tipo de incidência sobre as instituições políticas, alargando a própria compreensão do que significam experiências politicamente relevantes. “Os problemas que vêm à baila na esfera pública política”, afirma Habermas, “tornam-se inicialmente visíveis como reflexo de uma pressão social exercida pelo sofrimento ao espelhar as experiências pessoais de vida” (p. 441-442). Estas experiências encontram sua expressão nas linguagens da religião, da arte, da literatura, entre outras linguagens comuns, vinculando na esfera pública gramáticas existenciais que se entrelaçam com a política. Também essa dimensão das interações sociais cotidianas não pode ser inflada normativamente. Se ela configura a gênese social da própria autonomia, ainda assim Habermas não deixa de destacar que é precisamente nela que se reproduzem os aspectos “opressivos”, “patológicos”, “desiguais” e “reificantes” dos convívios entre as pessoas (na família, na escola, no trabalho etc). Há ainda um outro motivo que torna importante evitar certos riscos em relação aos pressupostos normativos. Não é incomum teorias democráticas de teor mais normativo pressuporem uma “cultura política” de fundo que conta com pessoas acostumadas com a liberdade. O risco teórico se respalda no pressuposto de que toda manifestação proveniente de um “ethos democrático” exprimiria princípios, valores e visões de mundo “progressistas”, levando a mudanças sociais e institucionais cujos resultados seriam mais inclusão social, expansão de direitos, reconhecimento cultural, pluralidade de visões de mundo, mais qualidade da representação política e maior participação cidadã. Esta imagem é falsa. Craig Calhoun mostrou no seu mais recente livro sobre esfera pública que os movimentos sociais mais radicais, desde o século XVIII, acostumados a protestos e revoltas públicas de massa, também tiveram fortes motivações conservadoras (CALHOUN, 2012). E mesmo pesquisas recentes têm ressaltado características intrincadas e multifacetadas do ativismo contemporâneo, salientando seus traços surpreendentemente contraditórios e com motivações igualmente conservadoras (GRAEBER, 2009). Isso significa que, metodologicamente, temos de nos debruçar sobre os contextos sociais de vida e suas formas de auto-organização procurando relativizar dicotomias ideológicas pré-determinadas. Isso poderia dificultar uma compreensão ampla dos processos políticos em disputa. Bem, na dimensão seguinte, em que a circulação de poder poderia ser vista pela forma como os problemas da esfera pública são assumidos pelo complexo do sistema 7

político, também se apresenta um diagnóstico que merece atenção. Ordinariamente, o fluxo do poder se exerce de cima para baixo – e aqui Habermas segue o ceticismo do próprio Peters no que concerne à eficácia dos processos de influência política. A disputa realista pela manutenção do poder, quase um imperativo do modo de funcionamento das práticas dos grupos e partidos no jogo político institucional, bloqueiam as expectativas geradas pela periferia da formação da opinião. Expectativas que muitas vezes não encontram acolhimento por parte da opinião pública veiculada pela grande mídia de massa. Para Habermas, aliás, a grande mídia de comunicação de massa é uma das maiores responsáveis pelo engessamento da esfera pública e, por conseguinte, pelo represamento de novas forças sociais da periferia. Por isso, as barreiras e estruturas de poder, geralmente presentes, só se deixam “vibrar” em situações críticas, com muita mobilização por parte da sociedade. “Nos momentos de mobilização”, afirma Habermas, “começam a vibrar as estruturas sobre as quais se apoia a autoridade de um público que toma posição. Assim, alteram-se as relações de força entre sociedade civil e sistema político” (HABERMAS, 1994, p. 458). Em casos normais, o poder do governo se autonomiza diante da periferia, adotando uma direção centrífuga. Mas quando as pessoas “agudizam seus protestos”, quando se torna claro o “sentido de uma pressão acentuada por legitimação” (HABERMAS, 1994, p. 462), então os cidadãos têm a oportunidade de inverter a direção do fluxo do poder na esfera pública e no sistema político. Vale notar que Habermas atribui a estas ações de revolta e de protesto uma característica “sub-institucional”, em um contexto no qual a esfera pública só teria como resistir e impor a opinião e a vontade produzida na periferia da sociedade com muita persistência de movimentos sociais, uns mais organizados e outros difusos e desorganizados. Bem, aqui já caminho para minha conclusão. A crise da democracia sublinha a importância das disputas na esfera pública. É de se perguntar, no entanto, se revolta e indignação, sendo persistentes, inverteriam de fato o fluxo do poder e superariam os bloqueios existentes. Da minha perspectiva, não vejo outro caminho a não ser apostar nisso. O ônus da democracia é que ela só se conserva de forma prática (em modos de vida auto-organizados e na práxis política dos próprios participantes). E é esta sua forma democrática de expressão, caracteristicamente social, que o conceito de esfera pública ajuda a entender. Isso não significa, como procurei mostrar, que as experiências negativas sentidas no cotidiano deixem de conduzir a reformas institucionais. Pelo contrário, a 8

pressão da sociedade põe em circulação um processo de institucionalização que se deixa avaliar do ponto de vista da gênese democrática que o engendrou. No entanto, a consequência institucional é limitada para medir o êxito desses acontecimentos. Uma esfera pública ativa não almeja acima de tudo mudanças nas instituições do Estado, devendo poder ser avaliada ainda assim como expressão enriquecida da vida democrática na base da sociedade. Por esta razão, a esfera pública de modo algum esgota seu potencial democrático em termos de “institucionalização”. Muito pelo contrário: a esfera pública, por definição, constitui-se como espaço social de autoorganização. E, como mencionei, este espaço social pode ser disputado por grupos e discursos diferentes, nunca imune a discordâncias de opinião, visões de mundo opostas e até conflitos violentos. A outra dificuldade consiste em conseguir inverter o fluxo de poder nas relações horizontais da formação da opinião. Uma opinião pública hegemônica, como sabemos, se preserva na base da exclusão. Porém, ainda que de forma fragmentada, podemos dizer que existe alguma resistência contra a hegemonia da opinião. Na lógica da abertura de brechas e fissuras, novas vozes e novos atores impõem um teor mais plural às manifestações e enriquecem o debate na esfera pública. A tendência é que o sistema político, as elites do poder e a centralização da grande mídia convirjam no engessamento da participação e da deliberação mais qualificadas. Mas as energias difusas, compostas de indignação e aspirações, concorrem na disputa pela abertura de espaços públicos intermediários de manifestação política. E é só em razão dessa base mais plural e difusa que podemos tirar da grande mídia de comunicação o monopólio da formação da opinião e da vontade. Existe assim uma espécie de “contra-poder” que circula na base da sociedade (com fontes de informação e debates mais diversificados e alternativos). Termino então com uma hipótese de investigação voltada à cultura política democrática e à circulação de poder. Ela precisa se desdobrar em dois momentos. Primeiro, e talvez o mais importante, é preciso analisar as bases sociais que compõem as energias políticas liberadas nas manifestações populares e movimentos sociais. Como se formam os novos sujeitos políticos (já que tais processos não podem mais ser explicados com o primado de um partido, uma classe, etc.)? A formação destes sujeitos políticos certamente estará ligada a uma determinada maneira de viver a democracia e seus entraves no cotidiano das relações sociais, e de modo algum sua gramática se reduzirá a lógica do sistema político. Se queremos saber quais são os efeitos de uma vida 9

democrática sobre as instituições do Estado de direito, se queremos entrever a gênese democrática que antecede as formas de pressão sobre sistema político, então as próprias interações sociais precisam espelhar formas de vida autônomas. Mas, insisto, esta análise das bases sociais não pode prescindir das vivências negativas, conflitos e lutas que fazem parte das próprias experiências que se integram às relações cotidianas dos indivíduos. E, em segundo lugar, é preciso investigar como tais experiências são reelaboradas de tal modo a suscitar formas de luta política que podem produzir consequências para as configurações institucionais: por exemplo, experiências de injustiça material, discriminação sexual, racismo e violência de gênero também motivam os sujeitos a disputar a esfera pública, a buscar ter voz nos espaços informais de formação da opinião, e a lutar por direitos.

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