Os múltiplos frames do acontecimento jornalístico

August 24, 2017 | Autor: Eduardo Meditsch | Categoria: Journalism, Journalism Theory, Sociology of Journalism
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Publicado originalmente em VOGEL, D.; MEDITSCH, E.; SILVA, G. Jornalismo e Acontecimento: tramas conceituais. (Volume 4 da série Tecer) Florianópolis: Insular, 2013 p 17-30
Os múltiplos framings do acontecimento no jornalismo
Eduardo Meditsch


Numa de suas frases mais citadas, Nelson Traquina (1993:168) propõe que "as notícias acontecem na conjunção de acontecimentos e textos: enquanto o acontecimento cria a notícia, a notícia cria o acontecimento". Se esta proposição já traz em si indicativos da complexidade do acontecimento noticioso, ao sugerir a combinação de dois elementos (acontecimentos e textos) numa relação dialética em que um cria o outro reciprocamente, os capítulos reunidos neste volume e nos três anteriores da série Jornalismo e Acontecimento, que expressam nossa busca coletiva pela compreensão desta relação, apontam para uma complexidade ainda maior a ser desvendada. Afinal, acontecimentos e textos não devem ser vistos como variáveis independentes na realidade do jornalismo.
Nessa minha última intervenção no debate coletivo do Projeto Tecer, me proponho a ressaltar, após uma releitura dos três volumes anteriores, alguns pontos do que propus em minhas intervenções anteriores (MEDITSCH, 2010, 2012), apontar suas limitações a partir de aspectos levantados pelos textos dos parceiros de jornada que podem contribuir para superar estas limitações e, nesta perspectiva dialogal, sugerir a oportunidade de novos estudos que possam inspirar projetos futuros e contribuir para aumentar o conhecimento sobre "como acontece o acontecimento".
Compartilhamos com Christa Berger a percepção de que a conjunção de acontecimentos e textos, no sentido proposto por Traquina na citação acima, refere-se ao encontro de duas matrizes: "a matriz do jornalismo, que diz como fazer uma matéria e a matriz da sociedade, que orienta sobre o que dizer" (BERGER, 2012, p. 234). A estas matrizes chamaremos aqui de frames, utilizando o conceito tal como definido por Steve Reese:
"Frames são princípios organizativos que são compartilhados socialmente e persistentes no tempo, que operam simbolicamente para dotar de sentido o mundo social." (REESE, 2001, p. 11).
Como destaca o autor, o aspecto mais interessante dos frames é sua qualidade dinâmica, sua capacidade de projetar o conhecimento futuro na medida em que condicionam a percepção das novas experiências. Frames, enfim, são estruturas de significado construídas com um conjunto de conceitos e de relações entre esses conceitos, incluindo regras para o processamento de novos conteúdos (REESE, 2007, p. 150).
A partir desta perspectiva, procuraremos descrever a conjunção de acontecimentos e textos, tal como observada por Traquina, como uma conjunção de matrizes (BERGER) ou frames (REESE), de forma a sugerir sua complexidade, ainda que, aqui, de forma superficial e ligeira.

Os frames do contexto

Diferente da maioria das contribuições dos parceiros desta jornada, meus textos nos volumes anteriores deste trabalho enfatizam a preponderância dos condicionamentos do contexto sobre a produção jornalística do acontecimento. Como propõe van Dijk (2012, p. 13), "os contextos são como as outras experiências humanas - a todo momento e em toda situação, tais experiências definem como vemos a situação presente e como agimos nela". A perspectiva sociocognitiva do linguista holandês propõe uma nova concepção de contexto que dê conta tanto de seus aspectos objetivos quanto subjetivos:

"Esta tese é muito simples, mas é crucial para a compreensão do que é o contexto e de como se relaciona com o discurso: Não é a situação social que influencia o discurso (ou é influenciada por ele) mas a maneira como os participantes definem esta situação. Portanto, os contextos não são um tipo de condição objetiva ou de causa direta, mas antes construtos (inter) subjetivos concebidos passo a passo e atualizados na interação pelos participantes enquanto membros de grupos e comunidades. Se os contextos fossem condições ou restrições sociais objetivas, todas as pessoas que estão na mesma situação social falariam do mesmo modo. Portanto, a teoria precisa evitar ao mesmo tempo o positivismo social, o realismo social e o determinismo social: os contextos são construtos dos participantes." (VAN DIJK, 2012, p. 11 grifo no original)

Esta mais acurada visão de contexto não desautoriza a perspectiva dialética de Berger & Luckmann (1966) sobre a construção social da realidade, que destacamos em nosso primeiro texto para esta série. Pelo contrário, a atualiza. Quando os sociólogos do conhecimento propõem que "A Sociedade é um produto humano. A Sociedade é uma realidade objetiva. O homem é um produto social" e que "qualquer análise do mundo social que deixe de lado algum desses momentos será uma análise distorcida"(apud MEDITSCH, 2010, p. 26), descrevem o processo através do qual qualquer forma de conhecimento é produzida, num ciclo permanente de exteriorização, socialização e interiorização da experiência pelos indivíduos em sociedade, processo este que a nova perspectiva sociocognitiva permite observar de maneira mais detalhada, ao incorporar a esta visão sociológica as descobertas recentes da psicologia cognitiva.
Naquele primeiro texto, criticamos a visão dominante em nosso campo que afirma que o jornalismo ou a mídia são as principais referências dos indivíduos sobre o mundo que os cerca, ou o ator principal, se não o único, na construção social da realidade, demonstrando que esta perspectiva não se sustenta nem pelas evidências empíricas nem pela teoria original de Berger & Luckmann em que supostamente se apoiaria. "Exagerar a importância do pensamento teórico na sociedade e na história é um natural engano dos teorizadores", observam os sociólogos (apud MEDITSCH, 2010, p. 32). Numa analogia, podemos dizer que exagerar a importância da mídia na construção da realidade seja um engano natural dos teóricos da mídia. Mas um engano que precisa ser desfeito para compreendermos melhor como os frames estabelecidos pelas matrizes da sociedade afetam a construção do acontecimento no jornalismo.
Diversos textos publicados nesta série apontam nesta direção, além do já citado de Christa Berger (2012). Leal et al (2010 p. 190), entre outros, destacam que o discurso jornalístico "resulta de complexa rede de interações nas quais fontes, jornalistas, empresas de comunicação, contexto(s) histórico-social(is) e sistemas semióticos atuam e conformam-se mutuamente". Refletem, assim, o debate inicial do grupo, que se fundou, entre outros textos, na obra de Mouillaud:

"Produzir uma informação supõe a transformação de dados que estão no estado difuso, em unidades homogêneas. Um processo que não é a propriedade da mídia. Esta apenas representa o fim de um trabalho social, uma formação que começa a montante dos aparelhos propriamente da mídia. A manifestação é apenas um dos múltiplos operadores pelos quais uma sociedade se torna visível a si própria." (MOUILLAUD, 1997, p. 42)
Mouillaud destaca que o trabalho do jornal está situado no fim de uma longa cadeia de transformações que lhe entregam (por intermédio de uma multiplicidade de agências, instituições públicas e privadas), um real já domesticado: "O jornal é apenas um operador entre um conjunto de operadores sócio-simbólicos, sendo, aparentemente, apenas o último: porque o sentido que leva aos leitores, estes, por sua vez, remanejam-no a partir de seu próprio campo mental e recolocam-no em circulação no ambiente cultural. Se, na origem, o acontecimento não existe como um dado de "fato", também não tem solução final. A informação não é o transporte de um fato, é um ciclo ininterrupto de transformações". (MOUILLAUD, 1997, p. 15)
A informação circula socialmente no ciclo dialético descrito por Berger & Luckmann: "A Sociedade é um produto humano. A Sociedade é uma realidade objetiva. O homem é um produto social". Neste ciclo maior, a informação jornalística precisa ser destacada, para fins analíticos, sem que para isso seja necessário adotar uma perspectiva midiacêntrica. Afinal, "para efetivamente compreender o jornalismo, e em seu bojo um conceito vital como o de acontecimento, é preciso reserva-lhe um estatuto teórico" (BENETTI; FONSECA, 2010, p. 9-10). Nessa direção, é preciso situar o jornalismo dentro do ciclo dialético mais amplo.
Em nosso texto para o terceiro volume (MEDITSCH, 2012), onde analisamos a cobertura de guerra na imprensa norte-americana, buscamos o conceito de Cognição Situada, ainda pouco explorado em nossa área, como mais uma chave para compreender como a atividade específica de produção e reprodução do conhecimento social representada pelo jornalismo se articula com os frames estabelecidos nas matrizes da sociedade e da cultura:
"Interpretamos um texto ou uma situação em parte conectando o mesmo com outros textos e situações que nossa comunidade ou nossa história individual nos fez notar como relevantes para o significado da situação presente. Nossa comunidade - e cada um de nós - cria redes de conexões (e de desconexões) entre textos, situações e atividades. Essas redes de conexões que fazemos, e que são feitas na atividade de auto-organização de sistemas maiores de que participamos, se estendem para trás no tempo, assim como para além no mundo social e material."(LEMKE, apud MEDITSCH, 2012, p. 133)
Embora minha participação, até aqui, nos livros da série, a partir desses dois textos anteriores, tenha enfatizado os frames estabelecidos pelas matrizes da sociedade, minimizando desta forma o provável impacto do protagonismo próprio do jornalismo na construção da realidade (como sugerido, por exemplo, na hipótese do agendamento e noutras perspectivas midiacêntricas), não pretendi com isso ignorar ou subestimar os frames estabelecidos pelas matrizes do próprio jornalismo na construção do acontecimento, que são analisados com mais atenção nos textos dos demais participantes do projeto. Pois é na sobreposição dos múltiplos frames da sociedade e do jornalismo, como num mecanismo ótico complexo em que a difusão da luz é enquadrada e deformada por várias lentes - que se produz a imagem de cada acontecimento que passa pelos seus filtros.

Os frames do texto

Desta forma, nas engrenagens dos sistemas jornalístico e midiático, matrizes próprias também imporão suas marcas sobre o acontecimento. Os frames próprios do jornalismo foram sendo forjados no processo histórico de institucionalização da atividade, que se acelerou com o desenvolvimento dos jornais como empresas, no Século XIX, na Inglaterra e Estados Unidos:

"Inicialmente, o conteúdo valorizado da mídia jornalística geral compreendia temas de interesse geral dos setores produtivos e burocráticos – da política à economia, do clima ao transporte, da legislação à administração pública. À medida que o jornal-empresa abriu-se à conquista de público mais amplo, acrescentaram-se ao rol outros assuntos: o esporte, o crime, o consumo, a moda, a luta dos trabalhadores pela sobrevivência e por uma fatia de poder, a recreação e vida social. A competição no quadro dessa nova temática, com forte conotação emocional e menor compromisso com a fidelidade aos fatos, marca o importante ciclo do sensacionalismo na imprensa dos Estados Unidos, agigantando o negócio da informação. Foi como reação ao sensacionalismo (e ao desgaste da credibilidade e prestigio político das empresas) que se formularam, no início do século XX, na América, regras formais buscando tornar as notícias representações tão perfeitas quanto possível de flagrantes da realidade – algo que reflete, por um lado, o avanço da ciência experimental e a influência do positivismo lógico; por outro, a padronização dos produtos nas linhas de produção da indústria. Os processos então adotados conseguiram por algumas décadas sustentar a busca, que se mostraria utópica, do enunciado jornalístico como conjunto de representações voltadas exclusivamente para o objetivo explícito de informar e formuladas conforme os códigos e valores presumíveis do público."(LAGE, 2013 p. 4)
No capítulo de seu trabalho em que analisa o jornalismo como instituição social, Guerreiro Neto (2013, p. 14-36) também registra como, no contexto da institucionalização da atividade jornalística, institucionalizaram-se também as suas convenções específicas. Estas convenções, que se expressam nos modos de abordar a realidade considerados adequados na profissão, definem os frames particulares com que o jornalismo trabalha suas representações do acontecimento. Tais matrizes e enquadramentos , como observa Ronaldo Henn, encaixam o acontecimento no jornalismo:
"A notícia recebe tratamento discursivo sob diferentes formas textuais que passam pelos gêneros jornalísticos (notícia, reportagem, artigo), pousam em editorias (política, geral, política) e aglutinam-se em chamadas e títulos. O acontecimento, dessa forma, obedece a codificações diversas como a seleção e a exclusão do que é noticiável, a hierarquização, a editoração e as operações semióticas de cada sistema midiático em que se expressa." (HENN, 2010, p. 86-88)
Em trabalho anterior, analisamos como os conteúdos são condicionados pela linguagem aparente e o discurso invisível do radiojornalismo (MEDITSCH, 2007, p. 147-220). Mas como outros trabalhos que caminham na mesma direção, o meu próprio subestima um aspecto marcante do jornalismo como produção social de conhecimento: o peso das matrizes representados pelas rubricas ou editorias na definição dos frames que estruturam, recortam, enquadram e deixam fora do quadro aspectos importantes da realidade.
Também nesse nosso percurso coletivo, vários textos tocam na questão das editorias (além do já citado de Ronaldo Henn, os de Leal et al., 2010, p. 206; Marocco, 2011, p. 211-214; Antunes, 2012, p. 57-61; Tavares, 2012, p. 89; Leal, 2012, p. 94; Berger, 2012, p. 234), porém a maioria não se detém muito em analisá-la. Não por acaso, a maior parte das vezes em que é notada é no terceiro volume da série, volume que é voltado para a observação empírica. Isso pode sugerir que nossos esforços teóricos de compreender o jornalismo a partir de generalizações, como a da não menos importante questão da "comunidade interpretativa" (LEAL, VAZ, ANTUNES, 2010, p. 225), esteja ofuscando aspectos essenciais à compreensão das molduras que definem seus contratos de comunicação na prática. (BENETTI, 2012, p. 152).
Estes contratos foram estabelecidos num processo que, como destaca a citação acima de Nilson Lage, se deu historicamente por adequação da instituição jornalística às estruturas sociais de poder, por um lado, e às motivações comerciais da mídia, por outro. No entanto, estas molduras convencionais foram tão naturalizadas na percepção das organizações, de seus profissionais e do público, que mesmo que não respondam mais às necessidades e interesses informativos da atualidade - o que se expressa na perda de audiência do jornalismo entre os mais jovens (MINDICH, 2005) - seguem vigorando à despeito da crise do modelo de negócio que desafia a sobrevivência da instituição (MEYER, 2004; SANTANNA, 2008).
Como no caso das notícias sobre a morte, que analisamos no terceiro volume da série Jornalismo e Acontecimento, as falhas nas coberturas dos jornais locais de Florianópolis sobre acontecimentos municipais importantes para a vida da população , como a aprovação de um novo plano diretor para a cidade e a alteração dos critérios de cobrança do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) em finais de 2013, sugerem como estas molduras se tornaram estruturais e são difíceis de superar.
Tratadas como questões políticas, as notícias sobre os dois acontecimentos foram enquadradas pelos jornais de Florianópolis como disputas de poder entre partidos ou focaram as manifestações de militantes de movimentos sociais contra as autoridades, que geraram conflitos localizados nos dias de votação na Câmara Municipal. Os aspectos mais substantivos do acontecimento e que supostamente despertariam maior interesse da audiência - a definição de políticas públicas que interferem na vida dessa audiência nos dois casos - foram obscurecidos pelo condicionamento dos profissionais e de suas rotinas a perceber e narrar alguns aspectos em detrimento de outros. Em seu clássico sobre a Opinião Pública, Walter Lippmann (2008) já observara esta limitação da imprensa nas coberturas das greves operárias pela imprensa norte-americana em 1922. O sociólogo Herbert Gans mostrou como esta forma de apresentar as notícias concorre para o desempoderamento político e econômico da cidadania (GANS, 2003).
A sobreposição dos frames

O jornalismo, como a arte, pertence à realidade e a ela se volta, mas de uma maneira que lhe é específica (VOGEL, 2010:75). Desta forma, a sobreposição dos frames do texto e do contexto não se dá apenas por somatório, mas também por um processo dialético de articulação, acomodação e adequação. Na ecologia social, assim como na seleção natural, na busca pela sobrevivência institucional, prevalecem as formas que melhor se adequam às relações de poder vigentes na sociedade, até que estas sejam colocadas também em questão. Nessa arrumação, um elemento complicador para a compreensão do jornalismo é, como propõe, Marcia Benetti (2012, p. 151), a confusão conceitual entre jornalismo e mídia.
Esta diferenciação, que não logramos atingir de maneira clara neste percurso coletivo, é tão importante numa visão do jornalismo como instituição quanto nos estudos do discurso jornalístico, ainda mais que, obviamente, este não pode ser tomado independente daquela. Embora importante e necessária teoricamente, a distinção entre jornalismo e mídia não é óbvia e tem sido dificultada pelas generalizações homogeneizadoras das teorias da comunicação que prevalecem em nossa área e nos induzem a essa confusão. Um erro que, se pode ser tolerado nas teorias exógenas que falam da mídia ao tratar do acontecimento (ZAMIN, MAROCCO, 2010), não deveria mais acontecer nas teorias endógenas de nossos especialistas. Mas, "infelizmente, muitos pesquisadores ainda cometem o equívoco de tomar mídia como sinônimo de jornalismo, acarretando grande prejuízo conceitual a ambos os termos" (BENETTI, 2012, p. 152).
Marcia Benetti observa que o discurso midiático é muito mais amplo do que o jornalístico e contempla modalidades que incluem a ficção: "Entendo que o jornalismo é um gênero discursivo porque conquistou um lugar particular no mundo dos discursos. É este lugar que permite a alguém imediatamente reconhecer: 'isso é jornalismo', e não publicidade, romance, ou doutrina religiosa. A existência desse lugar é preciosa e precisa ser compreendida. É a entrada do interlocutor em uma moldura discursiva que vai definir os modos como ele vai criar sentido para o que lhe é proposto." (BENETTI, 2012, p. 151-152).
Na perspectiva do jornalismo como campo social, a diferenciação entre as instituições jornalismo e mídia também é importante por pelo menos duas razões. Primeiro, porque elas se diferenciaram historicamente. Embora o termo mídia, no senso comum, seja tomado no mesmo sentido em que outrora se utilizou o termo imprensa, a distinção entre um tipo de organização e outro não é desprezível, e tem a ver não apenas com uma questão de abrangência - similar a observada em relação ao discurso - mas também em relação a objetivos. As organizações da imprensa de ontem, ainda que fundadas em princípios tão comerciais e capitalistas quanto a mídia de hoje, existiam em função de um projeto jornalístico que era sua atividade principal, e normalmente eram dirigidas por empresários que se consideravam jornalistas e desta forma compartilhavam alguns valores profissionais com seus funcionários.
Alberto Dines (2009, p. 125-134) descreve a transformação sofrida nessas organizações com a sucessão de gerações em seu comando, quando passam a ser assumidas por descendentes daqueles fundadores que já não serão jornalistas, mas administradores, e que por isso reformulam os projetos originais no sentido de transformá-las em organizações de mídia e outras atividades, fazendo com que o jornalismo deixe de ser a principal fonte de renda e perca gradualmente poder de decisão e autonomia na empresa.
A segunda razão porque é importante diferenciar jornalismo de mídia é que a difrenciação vai permitir enxergar a instituição jornalística como um contrapoder ao poder da mídia, embora com ela viva em simbiose. Os valores profissionais da instituição jornalística, que a indústria da mídia não pode abertamente desrespeitar, sob pena de se deslegitimar, funciona da mesma forma que os valores profissionais da instituição médica quando operam como contrapoder em relação ao arbítrio puro e simples dos interesses do capital no campo da saúde.
O capital cultural do jornalismo, como apontou Christa Berger, é a credibilidade. A meu ver, o capital cultural da mídia não é mais a credibilidade, mas a audiência (ou foi pela credibilidade do meio que o ex-presidente Lula foi ao Jornal Nacional por ocasião de suas posses?). Tendo o capital cultural da audiência assegurado pelo monopólio, a mídia eventualmente se permite abrir mão da própria credibilidade, quando lhe convém, até o ponto em que isso não prejudique esse outro capital que lhe é próprio. Mas, se e quando a perda de credibilidade prejudica a audiência, a simbiose com o jornalismo e com seus valores ainda lhe é útil para recuperar o capital ameaçado.
Numa perspectiva emancipadora, distinguir teoricamente o jornalismo da mídia é um passo necessário para construir a possibilidade de sua autonomia, tornada mais plausível agora do que nunca por conta da revolução tecnológica. A democratização da sociedade implica e requer também uma mudança na forma como "acontece o acontecimento" (SILVA, 2013) no jornalismo.

Referências:

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