Os Nomes da Obra - Herberto Helder ou O Poema Contínuo

June 2, 2017 | Autor: Rosa Martelo | Categoria: Portuguese Literature, Contemporary Poetry, Herberto Helder
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OS NOMES DA OBRA Herberto Helder ou O Poema Contínuo No título Ou o Poema Contínuo, que Herberto Helder usou por duas vezes, a conjunção inicial relaciona-se com o nome de autor e diz-nos como ler a escrita de uma vida. Leia-se em Herberto Helder o outro nome da obra, o outro nome da «canção ininterrupta». O poeta via na escrita um processo de «nomeação física», de montagem das imagens, a invenção de uma «irrealidade objectiva». Em 2013, recuperou um texto anterior para sopesar o caminho percorrido: «cumprira-se aquilo que eu sempre desejara — uma vida subtil, unida e invisível que o fogo celular das imagens devorava. Era uma vida que absorvera o mundo e o abandonara depois, abandonara a sua realidade fragmentária. Era compacta e limpa. Gramatical». Rosa Maria Martelo é professora associada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigadora do Grupo Intermedialidades do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, a cuja Direcção pertence. Doutorada em Literatura Portuguesa, tem privilegiado o estudo da poesia e das poéticas modernas e contemporâneas. No âmbito da Literatura Comparada e dos Estudos Interartísticos, os seus trabalhos centram-se nas relações palavra/imagem, particularmente nos diálogos da poesia moderna e contemporânea com o cinema. Algumas publicações no âmbito do ensaio: A Forma Informe — Leituras de Poesia (2010) e O Cinema da Poesia (2012).

Rosa Maria Martelo OS NOMES DA OBRA

Rosa Maria Martelo

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OS NOMES DA OBRA HERBERTO HELDER OU O POEMA CONTÍNUO

D O C U M E N TA

Este livro inscreve-se na investigação realizada pelo INSTITUTO DE LITERATURA COMPARADA MARGARIDA LOSA Unidade I&D da FCT , Programa Estratégico UID/ELT/00500/2013 POCI-01-0145-FEDER-007339

OS NOMES DA OBRA Herberto Helder ou O Poema Contínuo

Rosa Maria Martelo

OS NOMES DA OBRA Herberto Helder ou O Poema Contínuo

D O C U M E N TA

© ROSA MARIA MARTELO, 2016 © SISTEMA SOLAR, CRL (DOCUMENTA) RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA CAPA: JOHANNES ITTEN, THE ENCOUNTER, 1916 REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE 1.ª EDIÇÃO, ABRIL 2016 ISBN 978-989-8834-19-5 DEPÓSITO LEGAL 409912/16 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS SA RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA

O filme [da alma] é uma secreta murmuração e nela participam obliquamente todas as coisas, há a memória de um crime arcaico, maternal, um baptismo no sangue múltiplo daquilo que vive para morrer, e a paixão, o vento das potências que nos extravia, braços abertos, rosto luzindo, um grito contra a parede. Vê como as folhas das árvores palpitam na claridade! Vê como a noite fecha as tuas janelas! É isto. * A paixão é a moral da poesia: arrisquem a cabeça se querem entender; arrisquem o corpo, a sua medida, se pretendem descobrir o centro do corpo; e sim, arrisquem sobretudo o nome pessoal, para ouvirem o nome de baptismo como o coroado nome da terra. * O nome tornava-se matéria viva, respirada, inspirada.

OS NOMES DA OBRA

Imaginemos que um leitor do século XXII visita um alfarrabista (se ainda os houver daqui a cem anos) e encontra um livro cuja capa ostenta as seguintes palavras: Herberto Helder Ou o Poema Contínuo. Nada impediria este leitor de aqui ver apenas o título e o subtítulo de uma obra presumivelmente anónima. Embora na capa que bem conhecemos (Helder 2004) o tamanho da letra sugira alguma diferenciação entre o título e o nome do autor, este futuro leitor poderia ter uma percepção diferente. E, errando, anotaria no seu avançadíssimo equipamento electrónico: Herberto Helder ou O Poema Contínuo. Sempre em itálico, como um título sem autoria. É muito possível que, ao errar assim, este hipotético leitor tivesse afinal razão e simplesmente lesse o que estava, de facto, escrito na capa da edição da poesia de Herberto Helder, em 2004. Mesmo se o nome Herberto Helder também cumpre, «para os devidos efeitos», como se diz, uma função autoral, a sua associação ao título Ou o Poema Contínuo transporta o nome de autor para dentro das fronteiras da obra, fazendo apelo a uma tradição de títulos em que a conjunção ou associa, através de uma disjunção inclusiva, um nome de personagem a uma descrição equivalente — pensemos na estrutura do conhecido Justine ou Os Infortúnios da Virtude, de Sade, por exemplo. O título Ou o Poema Contínuo foi usado pela primeira vez na «Súmula» de 2001, mas Herberto Helder retomou-o em 2004 para recobrir Os Nomes da Obra



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Poesia Toda, abandonando assim a designação que usava desde 1973 para a recolha da sua poesia. É fácil fazer as contas: quarenta e seis anos depois da publicação de O Amor em Visita, o texto de Poesia Toda, várias vezes depurado, expandido, refeito, apresentava-se explicitamente como um «poema contínuo», sublinhando a constante reescrita que o reelaborava como texto seguido,1 e também as razões de uma grande afinidade com o modo como um filme é contínuo: o fluir ininterrupto das imagens, a rotação vertiginosa da escrita. Talvez o equivocado leitor de que falei acima tivesse razão em alargar o itálico de Ou o Poema Contínuo ao nome Herberto Helder porque é esse o outro nome da obra apurada ao longo desses anos. Um nome que mais aponta uma filiação do que reivindica a paternidade da escrita. Num poema de Do Mundo, podemos ler: «Alguém disse: a estrela absoluta entrou pela tua suavidade. / Travessa a travessa de osso — porque eras virgem — e transmutou-te. / Filho» (2014: 518-519). A transmutação, a obra, representa, portanto, a conquista de uma filiação. E significa a irrelevância da identidade biográfica, inclusive no que ela tem de função (de identificação) autoral extrínseca à obra. Descreve-se, assim, uma aventura na linguagem: a intensificação da experiência de dessubjectivação, levada até um ponto de indistinção comunicante entre sujeito e objecto, até onde se escrevem (escrevem-se) «alguns poemas / abruptos, sem autoria» (idem: 518), e onde um nome, mesmo o nome de autor, se esvazia do seu referente — ou pelo menos aponta o desejo desse esvaziamento. A conjunção presente no título que em 2004 1 Quer em O Poema Contínuo — Súmula (2001) quer em A Faca Não Corta o Fogo — Súmula & Inédita (2008), o entendimento da obra como sequência ininterrupta é sugerido pela exclusão dos títulos dos poemas e pelo facto de mesmo os títulos das obras serem apenas objecto de uma discreta menção entre parênteses a seguir aos poemas respectivos. Na «Nota» que antecede a primeira súmula, Herberto Helder fala de uma música «inteira, ininterrupta» (2001: 6) e menciona o «poema contínuo pelo autor chamado poesia toda», do qual a súmula seria uma «ressalva» (idem: 5).

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passou a reunir todos os poemas significa a entrega sem restrições à voracidade do percurso, o refluxo deste sobre o nome de autor. E decorre de uma síntese tão radical quanto improvável entre a hipertrofia do sujeito romântico e a dissolução moderna dessa tradição. Na verdade, talvez devêssemos escrever Herberto Helder ou O Poema Contínuo: os dois nomes da obra numa relação de equivalência, ambos em itálico.2 Isto porque a conjunção disjuntiva ou é nesta equação inclusiva: uma pista, uma instrução de leitura que radicaliza o paradoxo de o esvaziamento de um nome no mundo poder levar à sua hipertrofia na obra — que afinal o devolve ao mundo. As imagens (figurações) que temos do poeta Herberto Helder estão, por isto mesmo, intimamente ligadas a uma ideia de escrita na qual a dessubjectivação é obtida através da emergência das imagens, em sentido retórico e perceptivo/rememorativo. Recordemos um estranho episódio actualmente narrado em Photomaton & Vox: Numa fábrica de papel registou-se um invulgar desastre no trabalho: um operário caiu num misturador e ficou literalmente transformado em pasta de papel. Só se deu pelo acidente quando os filtros da pasta se entupiram. Nessa altura apenas restavam no misturador uma das mãos da vítima, uma rótula, madeixas de cabelo e tiras de pele. O corpo achava-se integrado nas folhas de papel que entretanto continuavam a sair das prensas. (2013a: 86)

Este fragmento, provindo da secção intitulada «(o humor em quotidiano negro)», tem uma longa presença na escrita de Herberto Helder. 2 Manuel Gusmão observa isto mesmo quando chama a atenção para o modo como o título a começar pela disjuntiva «Ou» faz o nome «Herberto Helder» migrar «da sua condição de nome de autor (que reenvia para um indivíduo humano concreto) para a condição de texto, de fragmento textual de um título» (Gusmão 2010: 364).

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Encontramo-lo uma primeira vez no catálogo da Exposição colectiva Visopoemas, realizada na Galeria Divulgação em 1965, no qual precede a listagem dos títulos dos poemas-colagens com que Herberto Helder participava.3 Mais tarde, em 1973, faz parte de Poesia Toda, mais precisamente da secção “II” de Retrato em Movimento. Passa a integrar Photomaton & Vox logo na primeira edição (1979: 94), aí se mantendo definitivamente. O que mais intriga em tão negro episódio é Herberto Helder dizer, da primeira vez que lhe faz referência, em 1965, que o texto havia de servir de epígrafe a um poema que talvez viesse a escrever, intitulado «O homem que se fez de papel». A ter existido, tal poema nunca teve publicação; e todavia, os trânsitos, correcções e recorrências deste texto ao longo da obra, e sobretudo a possibilidade de ele vir a dar origem a um poema, como então é equacionado, mostram bem o impacto da presumível notícia de jornal usada por Herberto Helder para enquadrar a sua colaboração na exposição Visopoemas: «Porque a imprensa fornece um novo dia e uma noite maior», esclarecerá depois, ironicamente, no incipit da secção respectiva em Poesia Toda (1973). Este episódio pode ser lido como uma alegoria da indissociabilidade entre autor (nome de autor) e obra a que Herberto Helder sempre aspirou. E se parecer estranha a ênfase que estou a dar a um pequeno texto vindo dos anos sessenta, recordaria que existe um fortíssimo parentesco A versão que constava do catálogo de Visopoemas (1965) era, de resto, um pouco diferente: «Numa importante fábrica de papel registou-se um invulgar desastre no trabalho: um operário caiu num misturador e ficou literalmente transformado em pasta de papel. Só se deu conta do acidente quando os filtros da pasta entupiram. Nessa altura, já só restavam no misturador uma das mãos da vítima, uma rótula, uma madeixa de cabelo e tiras de pele. O corpo achava-se integrado nas folhas de papel que continuavam, entretanto, a sair da prensa. (Dos jornais e para servir de epígrafe a um poema chamado “O homem que se fez papel”, que o Autor talvez um dia escreva).» 3

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entre essa micronarrativa e um poema muito mais recente, incluído em A Faca Não Corta o Fogo (2008), também ele escrito com base na notícia de uma morte trágica — a do artista norte-americano de ascendência mexicana Luiz Jiménez, em 2006: um dos módulos da peça caiu e esmagou-o contra um suporte de aço do atelier arrancara a unhas frias dos testículos à boca, beltà beauty beauté, a áspera beleza amarrada pelo sangue, porque tinha pintado com tintas de spray anúncios atmosféricos e depois, no apogeu de qualquer coisa, pôs-se a fazer uma coisa fora de moda, uma coisa animal, acerba, suada, com as técnicas ardentes um respiradouro, com os órgãos do amor, com as mãos uma coisa alerta, e então ele, o escultor norte-americano Luis Jiménez, morreu esmagado pela sua obra: o jornal diz que durante dez anos trabalhou na mesma peça, um cavalo com dez metros de altura raptado ao caos, ligado pelo sangue sombrio, diz a notícia que ele amava as grandes dimensões das imagens, amava a fibra de vidro o ferro o aço e amava a energia das formas rápidas a inoxidável radiação das formas, eu penso que ele meteu os dedos de cada mão até ambos os braços desaparecerem no mundo, Os Nomes da Obra



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já a luz se fazia da madura matéria do mundo, já dez anos em dez metros de beleza arterial arrancada trémula — tu que és tão leve, que tocas com as unhas, que danças, que sopras, e colhes o orvalho e recolhes as chamas cortadas, e abraças, e boca a boca respiras até ao fundo de ti próprio, tu que morres quando respiras, que aprendes dedo a dedo a escrever o teu nome entre os dedos — morreu esmagado pela sua obra (2014: 608-9)

A ideia de morrer transformado em papel — e o mesmo se poderia dizer da imagem do artista esmagado pela grandeza da obra feita4 — envolve uma sugestão de dissolução ou anulação que é estruturante na poética de Herberto Helder, e que se associa à relação entre assassinato e assinatura cedo tematizada. Em «Retratíssimo ou narração de um homem depois de maio», um poema datado de 1961-62, o «[r]etratoblíquo sentado» acabava com a seguinte antecipação: «Vai morrer imensamente (ass)assinado» (2014: 182).5 No contexto da poética helderiana, é difícil não ler os dois episódios que referi como alegorias da relação entre autor e obra. A assinatura, isto é, a conquista de um nome de autor entendido como o outro nome da obra (um ou outro, diz-nos o título que antes ci4 De notar que o poema de Herberto Helder é factualmente muito fiel ao acontecimento que foi noticiado. Cf., por exemplo, a notícia do New York Times de 15 de Junho de 2006: http://www.nytimes.com/2006/06/15/arts/design/15jimenez.html 5 Sobre esta questão, cf. «Herberto Helder — Assassinato e assinatura» (Martelo 2010: 83-114).

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tei, tornando equivalentes a escrita e a assinatura que lhe corresponde), tem como corolário que, nesse processo, «alguém» morrerá «(ass)assinado». Para sobreviver a essa morte, aquele que escreve far-se-á objecto de uma transmutação, transformando-se em poema, em linguagem, em matéria verbal. Jaime Gil de Biedma resumiu particularmente bem este desejo na nota biográfica de Las Personas del Verbo (1982) quando falou da sua relação com a escrita como vontade equivocada de criar para si uma identidade: «eu supunha que queria ser poeta, mas no fundo queria ser poema» (Biedma 2003: 4). A ambição de ser poema parece nortear Herberto Helder desde o início, facto a que não era por certo alheio o modo como, na maior parte dos livros, os poemas evitavam leituras de projecção biográfica. Não que a obra recusasse relacionar-se com a vida; mas ela aspirava a ser em si mesma a «vida verdadeira», como se lê em Photomaton & Vox (2013a: 32), uma espécie de vida magnificada.6 É por isso que Herberto Helder fala do autor como filho da obra: sem dessubjectivação não haveria obra, sem esta obra não haveria esta dessubjectivação (e é a isso que Herberto Helder chama estilo, em Os Passos em Volta, ou pessoalidade, em «Cena vocal com fundo visual de Cruzeiro Seixas»). E apenas interessa o que acontece neste processo, ou o que para ele é convocado, ou o que dele decorre. Ao contextualizar a morte de Luiz Jiménez, o poeta celebra o nascimento de uma obra — no caso uma escultura — enquanto acto de paixão absoluta, de fusão com a matéria, de transmutação: «eu penso que ele meteu os dedos de cada mão até ambos os braços desapa6 Nas obras finais, quando os biografemas emergem mais distintamente, também encontramos algum distanciamento (irónico ou não, não é fácil dizer) relativamente a esta poética. Como no texto de A Morte Sem Mestre transcrito a seguir: «e eu que me esqueci de cultivar: família, inocência, delicadeza, / vou morrer como um cão deitado à fossa!» (Helder 2014: 737). Paralelamente, os poemas são designados como «meus veros filhos em que mudei a carne aflita» (idem: 728).

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recerem no mundo, / já a luz se fazia da madura matéria do mundo», afirma; e o texto está escrito de forma a sugerir um vínculo entre a conquista da obra, ou do nome que lhe corresponde, e um necessário efeito colateral: a «morte do autor» enquanto sujeito apenas inferível na matéria pela qual a obra se fez mundo. A imagem das mãos do artista desaparecidas na matéria e levando com elas os braços inteiros é, a este nível, muito sugestiva. E revela uma significativa simetria com um acontecimento dado como fundador da obra, nesse que é certamente um dos mais extraordinários livros de Herberto Helder e de toda a poesia portuguesa, Servidões (2013): Trouxeram uma vez um porco selvagem caçado nas serras e atiraram-no para cima da mesa da cozinha, uma longa mesa coberta de zinco. Abriram-no de alto a baixo com enormes facalhões e cutelos, o sangue corria por todos os lados, meteram as mãos e os antebraços na massa vermelha, e eles reapareceram depois como calçados de luvas sangrentas, vivas; deitaram então para os baldes as vísceras que fumegavam: os pulmões, o fígado, os intestinos. De tudo aquilo subia um perfume agudo, embriagador, doloroso. À noite tive febre. Havia qualquer coisa pérfida e perversa neste mundo das frutas muito fortes, dos animais esquartejados, dos cheiros, este mundo espesso e quente, um mundo de imagens orgânicas. (2014: 621-2)7

Nestas representações da fusão com «um mundo de imagens orgânicas» podemos reconhecer um tópico da escrita moderna que culminaria no célebre texto de Barthes «A morte do autor» (1968) e em «O que é um 7 O preâmbulo de Servidões reúne três textos de diferentes proveniências. A história do porco selvagem e de outras imagens da infância na ilha da Madeira tinha sido publicada pela primeira vez em 1999, em Cult — Revista Brasileira de Literatura, n.º 27, sob o título «A ordem ininterrupta das magias». Cf. Infra, p. 35.

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autor?», de Michel Foucault (1969), obras que fazem a síntese de uma poética que remonta pelo menos a Rimbaud, ou mesmo ao tópico do poeta-camaleão formulado por Coleridge; mas poucas obras do século XX terão sido tão extremas nesta convicção de que para ser do mundo (expressão que dá título a um livro de 1994) — ou, usando uma palavra cara a Herberto Helder, para estar completa —, a obra deveria libertar-se de tudo o que não fosse a energia da matéria que lhe serve de suporte. No caso, de tudo o que não fosse a matéria da poesia: linguagem, imagem (memória, figuração), som, ritmo. Mas, que essa matéria provém de um corpo que é carne sentinte, matéria que partilha a reverberação do som e das imagens,8 é o que o poema contínuo herbertiano narra ininterruptamente. E aí gera-se um efeito na aparência paradoxal: a narrativa recorrente deste processo de transmutação, ao mesmo tempo que externaliza o autor, faz da obra e das imagens que ela convoca o retrato indirecto de uma figura autoral afinal fortíssima, cujo estilo se define como memória singular, única, isto é, pelo acervo das imagens que o poema organiza e pelo modus faciendi que as transforma em organismo vivo, criado em forma. Depois de recordar «os [poetas] isabelinos todos» e de os dizer fortemente dedicados ao estilo, Herberto Helder descreve-os deste modo: «Todos eles prontos para oferecer a alma a troco do nome. Porque eles mesmos se criavam e criavam o mundo através do nome. O nome tornava-se matéria viva, respirada, inspirada» (2006: 166). E tornava-se «circulatório»: «ao mesmo tempo cerrado sobre si como um corpo e aberto à respiração, pela comunicação múltipla com todas as coisas sensíveis e animadas» (ibid.). Pensemos na carne («chair») como «dobra do visível sobre o corpo que vê, do tangível sobre o corpo que toca», na acepção analisada por Merleau-Ponty em «L’entrelacs — Le chiasme» (1964: 189, passim). 8

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No contexto desta poética, entende-se certamente melhor uma particularidade do processo de circulação que se tornaria habitual na obra de Herberto Helder: a ausência de apresentações públicas, de entrevistas, do autor a acompanhá-la. E todavia, nem sempre fora assim; e mesmo se à medida que a idade ia avançando o poeta se recolheu mais, o certo é que se manteve muito atento ao mundo à sua volta, acompanhando as evoluções políticas, a literatura, o cinema, as artes. As obras mais recentes dão bem conta dessa atenção, nas referências à corrupção política, nas alusões a casos noticiados pelos meios de comunicação, nas imprecações dirigidas aos «burrocratas indizíveis» (2014: 683), nas ironias sobre certo tipo de jovens poetas, etc. O progressivo recolhimento de Herberto Helder acabou, no entanto, por ter um inevitável efeito colateral: os leitores não conseguiam imaginar a pessoa que o autor seria aos setenta anos, aos oitenta, e as raras fotografias divulgadas eram objecto de grande curiosidade. Tanto quanto sei, os escassos minutos em que vemos Herberto Helder na curta-metragem As Deambulações do Mensageiro Alado (1969, 10’), de Edgar Gonsalves Preto, serão mesmo as únicas imagens em movimento que nos ficaram do poeta. E nessas imagens o que sobressai é a auto-ironia com que, sem falar nunca, mima os títulos de três livros seus: A Colher na Boca (1961), Os Passos em Volta (1963) e Apresentação do Rosto (1968).9 9 É esclarecedor o testemunho de Luís Quintais, que encontrou pela primeira vez o nome de Herberto Helder numa entrevista dada por Al Berto, em 1987: «Fui então à procura de Poesia Toda, e depressa descobri que o livro se encontrava esgotado. Mais: descobri que o poeta não dava entrevistas, que não havia quase nenhuma fotografia sua a circular, e que detestava notoriedade pública, o que implicava recusar quaisquer prémios. De alguma forma este apagamento era inextricável da obra. Dir-se-ia que o confronto com a presença que a obra, como acto de linguagem, traz se fazia acompanhar da ausência irredutível do seu criador. Como se quisesse ser só linguagem, e nada mais. Creio

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Em tudo isso terá havido, sem dúvida, muito de acaso; e por parte do autor, nenhuma premeditação comercial. Por certo que não queria criar objectos raros para alfarrabistas no modo como as obras foram editadas sem reedições, com os livros rapidamente esgotados. Ao longo de toda a sua vida, Herberto Helder foi fazendo recolhas dos livros de poesia que publicava: Ofício Cantante (1967), Poesia Toda I e II (1973), Poesia Toda (1981; 1990; 1996), Ou o Poema Contínuo (2004), novamente Ofício Cantante (2009), e por fim Poemas Completos (2014). Publicou ainda duas recolhas selectivas, Ou o Poema Contínuo — Súmula (2001) e A Faca Não Corta o Fogo — Súmula & Inédita (2008). Em todos esses volumes (que ao contrário das obras singulares tinham tiragens bastante significativas), reescreveu e reorganizou os livros de poesia que até então publicara, alguma vezes de forma muito relevante. Suprimiu textos, transferiu outros para livros como Photomaton e Vox, ou para os livros de «poemas mudados para o português», refez e reordenou poemas. E este modo de proceder ganha em ser entendido à luz daquilo que efectivamente foi: tratou-se sempre de escrever a obra (no sentido de uma luta extrema, luciferina, medida em relação com o princípio criador a que as religiões chamam deus) — e daí os frequentes paralelismos com a alquimia, que, embora não devam ser levados inteiramente à letra, constituem chaves hermenêuticas importantes: «— obreiro e obra são uma só forma instantânea / do verbo ouro que percebi imediatamente isso. Como era impossível encontrar à venda o célebre volume da obra reunida, a presença desse acto de linguagem parecia-me, porém, também ela, comprometida». (Quintais 2015: 221-2) Na sequência do seu texto, Luís Quintais descreverá a escrita de Herberto Helder como «uma arte de desaparições», votada a lidar com o irrepresentável. Mas, e isto é importante, sublinha logo a seguir que o poeta lhe acrescenta precisamente a ironia: «A realidade é apenas o que se propõe como tal. Mas devemo-nos munir sempre de uma ironia que coloque dubitativamente a nossa proposta» — recorda Luís Quintais, citando Photomaton & Vox (idem: 224).

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nativo», resume-se em Do Mundo (2014: 505). Ou dito ainda de outro modo: o poema escreve o poeta nos recessos mais baixos, às vezes o nome enche-se de água quebrada no gargalo da bilha, às vezes é um nome esvaziado de água: a sangue grosso, a árduo sopro, quando o rosto inquilino da luz já não se filma. (2014: 531)

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AUTÓNOMO, IRREFERENCIÁVEL, ABSOLUTO

A escrita de Herberto Helder articula de modo improvável inactualidade e experiência do contemporâneo. Talvez por sempre se ter reinventado a partir das leis internas que a sustentam e por conjugar muitas tradições de pensamento e de escrita, ou por reconduzir o mundo à expressão de uma experiência intensiva da força e da beleza, à qual vem juntar-se alguma «furibunda melancolia» (Helder 2009: 113), a escrita herbertiana consegue ser acrónica — sobretudo se tivermos em conta a maneira como resiste a uma articulação sequencial com a tradição aberta pelo alto modernismo —, sem deixar de se manter actual e actuante.10 As duas metades da arte consideradas por Baudelaire no célebre parágrafo em que distinguia como complementares a contingência da modernidade e o eterno e o imutável (Baudelaire 1976: 695) são, neste caso, unidas pelos efeitos de uma tensão verbal incomum. Talvez seja essa tensão a conferir imediata transtemporalidade aos tópicos mais actuais — como veio a acontecer em A Faca Não Corta o Fogo (2008) e depois, de modo mais intenso, em Servidões (2013), A Morte Sem Mestre (2014) e Poemas Canhotos (2015), este último livro publicado já postumamente11. Mas, ao mesmo tempo, a poesia de Herberto Helder também é capaz de fa10 A noção de «máxima abrangência», proposta por Luis Maffei, responde precisamente às dificuldades de integração linear da poesia de Herberto Helder numa cronologia da Modernidade. Sobre esta questão e sobre o reconhecimento generalizado desta dificuldade por parte da crítica, ver Maffei 2007: 49 ss. e 157. 11 Quando o presente livro já estava concluído, foi publicado o volume Letra Aberta, organizado por Olga Lima, que já não foi possível incluir nesta leitura.

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zer inesperadamente circunstanciais e actuais muitos tópicos de reconhecida transtemporalidade: a articulação estabelecida em A Morte Sem Mestre entre a poesia escrita junto aos canaviais da antiga Assíria e aquela que alguém escreveria agora nos arredores de Lisboa (2014: 750) poderia ser um bom exemplo, como veremos adiante. Em 1958, Herberto Helder surpreendeu decisivamente os leitores portugueses ao publicar O Amor em Visita, poema longo que viria a ter maior divulgação a partir de 1961, quando foi integrado em A Colher na Boca. Devido a esse livro — e a Poemacto, publicado logo a seguir —, o poeta ficaria associado a um dos anos mais marcantes da poesia portuguesa do século XX, um ano charneira, como alguns chamaram ao ano de 1961, designadamente devido à emergência de uma consciência objectal do poema à qual Herberto Helder não foi indiferente, a par de outros poetas que por esses anos começaram a publicar, como Gastão Cruz, Luiza Neto Jorge, Fiama Hasse Pais Brandão ou Ruy Belo, entre outros (cf. Nava 1991: 7-8 e Júdice 1992: 152), nomes aos quais devemos juntar também os dos autores ligados à Poesia Experimental. Herberto Helder teve um papel relevante neste contexto de viragem e de renovação da poesia portuguesa, no qual o neo-vanguardismo e as articulações com a tradição modernista desempenharam um papel determinante. Por esses anos, foi editor ou colaborador de várias publicações de carácter vanguardista. Ainda na década de 50 participa no número dois da revista Pirâmide (1959), e mais tarde vai organizar, primeiro apenas com António Aragão e depois também com E. M. de Melo e Castro, os dois números de Poesia Experimental (1964 e 1966), sendo responsável pelo texto de abertura do primeiro número,12 no qual publicou ainda um fragmento de «A Máquina de Emaranhar Paisagens». Participará também no número 12 Trata-se do texto que começa «Era uma vez um pintor que tinha um aquário». Incluído em Vocação Animal (1971), esse poema em prosa passa depois para a secção «As Maneiras», de «Retrato em Movimento», aquando da 1.ª edição de Poesia Toda (1973), sendo posteriormente integrado em Os Passos em Volta, sob o título “Teoria das cores” (cf. 6.ª ed., 1994).

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seguinte com uma sequência de seis poemas visuais. Paralelamente, colabora na exposição «Visopoemas», como vimos atrás. Dez anos depois, será co-editor dos dois números de Nova — Magazine de Poesia e Desenho.13 Sem querer desvalorizar o significado das acções acima referidas, é necessário ter presente o balanço que o poeta fazia do Experimentalismo já nos anos 60, com um distanciamento crítico semelhante ao que o levara a afastar-se do Surrealismo. Recorde-se que, num dos fragmentos de Photomaton & Vox, «(movimentação errática)», alude com ironia a «Monsieur Breton» e descreve o surrealismo como aquele «desastre que se não sabe» (2013a: 126).14 Por outro lado, logo na entrevista que concede a Fernando Ribeiro de Mello, em 1964, é notório que Herberto Helder distingue o Experimentalismo do Concretismo, atribuindo maior amplitude ao primeiro termo do que ao segundo. Começando por afirmar que «[n]ão existe qualquer uniformidade nas experiências em curso entre os colaboradores de Poesia Experimental», distingue, de uma maneira que considera «rudimentar», «duas grandes tendências» na revista, em função das «diferenças profundas imediatamente observáveis»: Uma a que poderei chamar «concretizante», que se apoia, digamos, numa concepção materialista da linguagem, procurando a coisificação da palavra. Outra «abstractizante», em que a ambiguidade e o indefinido, provenientes de uma inclinação barroca do espírito, se inserem no processo verbal,

13 O fragmento «(a paisagem é um ponto de vista)», de Photomaton & Vox (2013a: 58), corresponde à parte inicial do texto preambular de Nova 1. 14 Nuno Júdice faz notar que, na poesia de Herberto Helder, «nunca as […] imagens resvalam para o espaço do arbitrário ou do absurdo da imagem surrealista, transmitindo, pelo contrário, a nostalgia de um instante detonador, vulcânico, de que a metáfora surge como resíduo que guarda, na sua materialidade, a incandescência do momento fundador» (Júdice 1996: 237).

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ÍNDICE

Os nomes da obra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

9

Autónomo, irreferenciável, absoluto . . . . . . . . . . . . . . .

23

Uma espécie de cinema das palavras . . . . . . . . . . . . . . .

45

Início perene . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

67

Ler de perto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

81

Nota . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

89

Bibliofilmografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

91

Índice



95

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