Os Novos Rumos das Relações Internacionais do Oriente Médio - Os Eixos Ancara-Moscou e Teerã-Washington

June 5, 2017 | Autor: Luiza Cerioli | Categoria: International Relations, Middle East Studies, Middle East Politics, Turco-Iranian World, Iran
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V Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacioamerinais Redefinindo a Diplomacia num Mundo em Transformação

Belo Horizonte, campus Coração Eucarístico da PUC Minas 29 a 31 de junho de 2015

Área Temática: Análise de Política Externa

OS NOVOS RUMOS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS DO ORIENTE MÉDIO: OS EIXOS ANCARA-MOSCOU E TEERÃ-WASHINGTON

Luíza Gimenez Cerioli Universidade Nacional de Brasília (UnB)

Ricardo Fagundes Leães Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Fundação de Economia e Estatística (FEE)

RESUMO: A República Islâmica do Irã e a República da Turquia apresentam-se como potências regionais no Oriente Médio, devido às suas características geoeconômicas e estratégicas e, assim, clamam para si o envolvimento com um papel essencial na resolução de questões internacionais nessa área. O Oriente Médio, aliás, pode ser considerado uma das mais complexas regiões dentro dos estudos de Relações Internacionais, dada a intensa interação de diversos atores intra e extrarregionais. O seguinte trabalho visa compreender a dinâmica - historicamente contraintuitiva - de aproximação do Irã e da Turquia com dois atores extrarregionais importantes: Estados Unidos e Rússia, respectivamente. Conhecido como um dos poucos países na região que não possui laços diplomáticos com os EUA, o Irã tem chamado atenção por dar indícios de um interesse em reaproximação com a grande potência ocidental; já a Turquia tem procurado se aproximar da Rússia – seu rival histórico – ampliando relações comerciais energéticas e até manifestando interesse de ingressar na OCX. Nessas circunstâncias, nosso objetivo é demonstrar que esse evento é premeditado, uma vez que a atitude de Ancara em se associar a Moscou está ligada à postura iraniana em relação aos EUA. Assim, através de um estudo de caso comparativo, pretendemos demonstrar que, a despeito de inúmeras diferenças, Irã e Turquia querem se firmar como potências regionais e veem na tentativa de se aproximar dos Estados Unidos e da Rússia um meio para se fortalecerem econômica e diplomaticamente. Para tanto, analisaremos os principais desdobramentos recentes das relações entre esses países, de forma a compreender o que está em jogo e quais as reais possibilidades de haver uma evolução significativa nas relações turco-russas e irano-americanas. Palavras chave: Irã; Turquia; Rússia; EUA

1. Introdução As relações entre Turquia e Irã datam de séculos, quando esses países ainda eram os impérios Turco-Otomano e Persa. De maneira geral, esse relacionamento é pautado por longos períodos de rivalidade intercalados por intervalos de reaproximação (JENKINS, 2012). A busca pela liderança regional caracteriza a inserção internacional histórica de Irã e Turquia. Na visão de Parsi (2012), para compreender esse processo, é fundamental lançar mão do conceito de autopercepção, que norteia as políticas externas iraniana e turca. Assim, vemos que Teerã frisa sua singularidade enquanto o único Estado persa e xiita entre inúmeros países árabes e sunitas, o que lhe confere uma condição de solidão estratégica. A Ancara também estaria reservado um papel de relevância, na medida em que os turcos disporiam de qualidades políticas e econômicas para influenciar e moldar seu entorno geográfico. Ambos, portanto, realçam seus contrastes em relação aos seus vizinhos para justificar sua autoridade. É imperativo salientar, todavia, que a despeito da consonância estratégica entre Turquia e Irã, há significativas diferenças táticas em suas abordagens. Os iranianos, por um lado, apostam na promoção do islamismo político e na luta anti-imperialista como meio para angariar a simpatia dos árabes, sobretudo os mais religiosos e mais pobres. A Turquia, por outro lado, se vale de mecanismos mais tangíveis e palatáveis para as elites árabes, tais como comércio, investimentos, diplomacia e integração internacional (PARSI, 2012). Salta aos olhos, ademais, que os aspectos militares não são enfatizados por esses países, que temem ser vistos como agressores. Todavia, tanto o poderio das Forças Armadas da Turquia – alicerçado na aliança com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) – quanto a autossuficiência bélica iraniana são vetores de suas políticas externas. A eclosão da Primavera Árabe, em 2011, trouxe complicações concretas para as relações entre Turquia e Irã, sobretudo no que diz respeito à Síria, uma vez que a manutenção do governo de Bashar al-Assad passou a contrapor Ancara e Teerã. Nesse ponto, vê-se que, após um período de hesitação, o governo turco cedeu à pressão internacional e passou a demandar a queda de Assad, ao passo que os iranianos permaneceram irredutíveis em seu apoio à Síria, alegando que a permanência de seu presidente é a prioridade de sua política externa (ARAS, 2013). Esse caso, então, serviu como ponto de inflexão para Turquia e Irã, ao colocá-los em lados opostos e forçá-los a buscar a liderança através de posicionamentos distintos em conflitos importantes, o que sinalizava a existência de diferentes projetos de projeção regional. Segundo Aras (2013), após a Primavera Árabe não há mais espaço para arenas independentes na região – as manifestações populares correspondem a uma transformação 1

generalizada do Oriente Médio. Seu impacto ocorre em escopo regional e extrarregional, o que requer uma análise de diversos níveis. Este artigo toma como dois atores extrarregionais essenciais para a compreensão do Oriente Médio a Rússia e os EUA, devido ao complexo jogo de interesse que estão envolvidos. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o Oriente Médio é prioridade da política externa estadunidense, Principalmente devido a necessidade de acessar as reservas energéticas da região.Por outro lado, é possível afirmar que, com o fim da Guerra Fria, o Oriente Médio é uma das únicas regiões em que a Rússia continua tendo um papel central para validar seu poder global, principalmente no que concerne o mercado bélico e o energético (BAEV, 2015). Engajados diretamente no conflito sírio, Estados Unidos e Rússia também se encontram em polos opostos. Assim como a Turquia, os Estados Unidos passaram a enfatizar o caráter autoritário do governo de al-Assad – para deslegitimá-lo enquanto Chefe de Estado – e a fazer ameaças de intervenção militar (ALAM, 2015). Já a Rússia, em consonância com o Irã, manteve-se como um resoluto fiador desse regime, deixando explícita sua obstinação em não tolerar ingerências bélicas norte-americanas no conflito sírio. Dessa maneira, parecia emergir uma natural aliança política – e estratégica – entre, de um lado, Turquia e Estados Unidos e, de outro, Irã e Rússia. Essas coalizões, por razões históricas e conjunturais, eram entendidas como lógicas e intuitivas, fato evidenciado pela postura desses países nas Nações Unidas em diversas instâncias. Apesar da aparente coerência na consolidação de polos Ancara-Washington e Teerã-Moscou, pode-se observar que, paralelamente – e em diferentes intensidades –,eixos inversos têm sido construídos na dinâmica relacional entre os quatro países: cada vez mais, nota-se uma reaproximação entre Irã e Estados Unidos, bem como um acercamento entre Turquia e Rússia. Esse processo tem se materializado através da conclusão do acordo nuclear iraniano – que visa encerrar uma longa disputa e abrir espaço para uma reconciliação entre Irã e EUA. Da mesma forma, apesar das suas divergências, turcos e russos têm chegado a acordos significativos em termos de comércio, investimento e cooperação energética. Além disso, politicamente, salienta-se que o governo turco tem expressado reiteradamente seu descontentamento em relação ao processo de ingresso na União Europeia, o que até poderia inclinar a Turquia a fazer parte da Organização para a Cooperação de Xangai (OCX). Nessas circunstâncias, o seguinte artigo tem como propósito esmiuçar a formação desses dois novos eixos – que podem ser vistos como contraintuitivos à luz de questões históricas e no contexto de Guerra Civil Síria. Tencionamos evidenciar, então, que há uma racionalidade no desenrolar desse processo, na medida em que Irã e Estados Unidos têm estímulos comuns para restabelecer relações diplomáticas e até elaborar uma agenda 2

partilhada. Nessa conjuntura, torna-se mais inteligível a construção de um pacto entre Turquia e Rússia, que teriam um motivo a mais para se avizinhar caso se consolide a aliança irano-americana. É imperativo destacar, no entanto, que pretendemos asseverar que a constituição concomitante desses eixos opostos não implica que sua natureza seja análoga: na verdade, é o escopo subsidiário desse trabalho demonstrar que as características desses blocos são distintas, o que traz implicações decisivas para a balança de poder no Oriente Médio. Além dessa introdução, o artigo contará com duas seções de estudo de caso, nas quais abordamos a evolução das relações bilaterais irano-americanas e turco-russas, de modo a elucidar as razões pelas quais esses Estados têm se aproximado. Na subdivisão sobre Irã e Estados Unidos, abordaremos o seu relacionamento desde a Revolução Islâmica de 1979 – que rompeu a aliança entre a dinastia Pahlevi e o governo estadunidense – até o acordo nuclear firmado em 2015, enfatizando os pontos que unem os interesses de ambos os lados. Em seguida, ao discutir as interações entre Turquia e Rússia, buscaremos analisar de que maneira a rivalidade atávica que assinala sua convivência tem gradativamente dado lugar a um entendimento sobre diversos temas que anteriormente geravam controvérsias. Finalmente, na conclusão, examinaremos o potencial de conformação desse cenário e as discrepâncias que surgem da configuração dos eixos Teerã-Washington e Ancara-Moscou. 2. Os eixos Irã-EUA e Turquia-Rússia 2.1 Relações Irã e EUA As relações entre a República Islâmica do Irã e os Estados Unidos da América são reconhecidamente conturbadas, sendo o Irã um dos únicos países no Oriente Médio que não possui laços diplomáticos com Washington. Durante décadas esses países se acusaram mutuamente devido a um histórico de desconfianças, de percepção de ameaça e de falta de diplomacia efetiva de ambos os lados (COOK; ROSHANDEL, 2009). Se, para os EUA, o Irã impõe significativas ameaças à estabilidade regional por seu comportamento hostil frente a normas internacionais de nuclearização e por seu apoio a grupos considerados terroristas, os iranianos são fortemente contrários às interferências estadunidenses no Oriente Médio. O regime atual iraniano tem, em suas origens, um forte sentimento antiamericanista e opositor de intervenções estrangeiras. Isso pode ser explicado porque o regime prévio, a dinastia Pahlevi, era um parceiro estratégico dos Estados Unidos. Ademais, as condições precárias de abastecimento em que viviam a maioria da população iraniana contrastavam com o luxuoso estilo de vida ocidental da família do Xá. A revolução islâmica iraniana de 3

1979, desta maneira, condenou o Ocidente como algo que não a representava e os Estados Unidos como o “grande Satã” (CHUBIN, 2012).1 No discorrer da Revolução, um grupo de estudantes iranianos invadiram a embaixada dos EUA em Teerã, em novembro de 1979, tornando 52 estadunidenses seus reféns por 444 dias. A chamada “Crise dos Reféns” convenceu a opinião pública estadunidense de que o Irã ator irracional e imbuído de grande ódio. Em 1981, Washington rompeu os laços diplomáticos com o Irã, não os tendo reatado até o momento. Segundo Cook e Roshandel (2009, p. 24), tanto a associação direta que os iranianos fazem entre o regime Pahlevi e os EUA como algo predatório aos interesses nacionais, quanto os efeitos da hostilização da embaixada estadunidense moldaram a interpretação negativa que um país faz do outro. Apesar da ausência de vínculos diplomáticos, nos últimos quarenta não cessou como um todo a comunicação entre Teerã e Washington e a relação entre os países não é inerte, havendo questões estratégicas em que os dois países tentaram se aproximar (PARSI, 2009; LEVERETT; LEVERETT, 2012). O Irã deve ser percebido como um dos países mais estáveis do Oriente Médio, com um sistema político solidificado e dono de uma das maiores reservas de hidrocarbonetos do mundo. Os EUA não podem ignorar a relevância geoestratégica deste país. Igualmente, o Irã reconhece que os EUA são o único país com capacidade de se projetar militar e economicamente em todo o Golfo Pérsico, sendo inegáveis os efeitos prejudiciais internacionais de relação conturbada com tal potência (ROSHANDEL; COOK, 2009). Após a consolidação do regime republicano e a morte do líder da revolução, Aiatolá Khomeini, os seguintes presidentes iranianos buscaram melhor se adaptar a sociedade internacional e demonstraram interesse em abrandar as relações com os EUA. Todavia há um forte sentimento entre a elite política iraniana de que essas tentativas não só não foram correspondidas, mas foram tratadas com desdém por parte do governo estadunidense (CERIOLI, 2014). A ascensão do presidente neoconservador George W. Bush e sua cruzada por democracia no Oriente Médio através da chamada “Guerra ao Terror” intensificou tal sentimento, pois, após terem auxiliado na intervenção do Iraque, Teerã foi surpreendida ao ser classificadas como parte do “Eixo do Mal”, um grupo de países que ameaçariam a estabilidade internacional na percepção estadunidense. Tal decepção com os EUA pode ser considerada como um dos motivadores da ascensão do presidente radical Mahmud Ahmadinejad, que, com o intuito de retomar os princípios da Revolução, assume uma política externa confrontacionista, dogmática e polêmica. Ahmadinejad passar a ser conhecido como defensor da questão árabe-palestina, 1

A expressão “Grande Satã” foi muito utilizada por Khomeini durante os primórdios da revolução para indicar tudo aquilo que vinha da considerada nefasta influência norte-americana (TAKEIH, 2009)

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forte opositor ao Estado judeu e um antiamericanista convicto (TAKEIH, 2009, p. 237-240).2 Ademais, Ahmadinejad deliberadamente vinculou a identidade nacional iraniana com o empoderamento nuclear, já que o projeto nuclear é bastante popular no país, associado à eterna luta contra interesses das potências estrangeiras (TAKEIH, 2009). O projeto nuclear iraniano tem suas origens ainda no regime dinástico e é retomado após a guerra contra o Iraque, nos anos 1980, com o estabelecimento de um projeto civil nuclear para a construção de capacidades endógenas de enriquecimento de urânio (LEVERETT; LEVERETT, 2012).3 Em 2002 descobriu-se a existência de reatores nucleares não divulgados previamente e, assim, que violavam o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP, ratificado por Teerã em 1970). Desde então, a comunidade internacional passou a alertar sobre as reais intenções do projeto e a impor contínuas sanções econômicas ao país, a fim de aniquilar tal projeto.4 O comportamento hostil de Ahmadinejad na arena internacional serviu para que se aumentasse a percepção de que o Irã era um país agressivo, isolando-o cada vez mais em seu pleito por um projeto nuclear. Por mais que Obama tivesse, em 2009, demonstrado interesse em rever as estratégias de negociações nucleares com o Irã, o contexto político doméstico iraniano impossibilitava que isso se concretizasse, já que gerava descrença entre seus aliados (nacionais e internacionais) na efetividade de uma possível aproximação com o país (CERIOLI, 2014).5 Sendo o espaço político para um engajamento com o Irã ínfimo, Obama, ainda em 2009, passou a preparar novos pacotes de sanções econômicas ao Irã, que levaram o país a um contexto de quase total estrangulamento externo de sua economia (CORDESMAN; COUGHLIN-SCHULTE; GOLD, 2013).6

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Para esse grupo conservador, eram vários os motivos que levavam a uma retomada ao antiamericanismo: a clara oposição das potências internacionais ao Irã na Guerra Irã-Iraque, o descaso dos organismos internacionais perante o uso de armas químicas por parte de iraquianos contra civis iranianos, os resultados infrutíferos das tentativas anteriores de engajamento com os EUA, a adição do país ao grupo do Eixo do Mal e, sobretudo, o contínuo sentimento de isolamento internacional. 3 O conflito com o Iraque moldou a percepção de isolamento internacional do Irã, definindo que a segurança do país não poderia depender de nenhuma proteção ou convenção internacional, sendo somente mantida através da fortificação da defesa nacional (COOK; ROSHANDEL, 2009; TAKEIH, 2009). 4 A partir de 2006, o Conselho de Segurança das Nações Unidas passa a exigir do Irã uma suspensão de todos os processos de enriquecimento e reprocessamento de urânio, sob a ameaça de sanções multilaterais. Todavia, insistindo em seu direito soberano de desenvolver o ciclo completo da tecnologia nuclear, comprovado pelo direito internacional e afirmando que tais prerrogativas estão previstas pelo TNP e pela necessidade de encontrar energias alternativas, entre 2006 e 2007, o país expande suas atividades no setor (ABRAHAMIAN, 2008; COOK; ROSHANDEL, 2009). 5 De acordo com Parsi (2009) e Rynhold (2009), Obama ensaiou, em 2009, a primeira tentativa diplomática, por parte dos EUA, de melhorar relações com o Irã. O objetivo central da administração Obama era rever tudo que já se sabia sobre o projeto nuclear iraniano a fim de determinar uma nova estratégia para tratar do tema, evitando reproduzir as escolhas feitas pelo governo anterior. Todavia, desaprovação internacional das consequências do Movimento Verde de 2009 (manifestações iranianas contrárias à reeleição de Ahmadinejad) fez com que crescesse o ceticismo dentro do Congresso estadunidense frente à via diplomática de Obama 6 O cenário econômico iraniano, a partir de 2010, mostrou-se preocupante: cresciam índices de inflação e desemprego, a moeda nacional passou por maxidesvalorizações, a produção nacional apresentou quedas generalizadas e o país passou a ser o mais afetado por fuga de cérebros do mundo. O principal impacto das sanções econômicas tem sido, principalmente, sobre a capacidade do Irã de produzir petróleo (CERIOLI, 2014).

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É em um contexto de isolamento internacional e precárias condições econômicas que o novo presidente iraniano é eleito, em 2013. A candidatura de Hassan Rouhani tinha amplo apoio entre as elites políticas iranianas e do líder Aiatolá Khamenei. Sua campanha eleitoral galvanizou o interesse do povo por mudanças, tendo como sua pauta central: (i) contornar a instabilidade e crise econômica e (ii) reabilitar a política externa do país, neutralizando os danos causados pelo posicionamento confrontacionista de Ahmadinejad (CERIOLI, 2014). De uma maneira realista, o candidato reconhecia que o melhoramento da economia do país só viria com um abrandamento das sanções econômicas, que estavam privando o país de crescer e modernizar-se (MILANI, 2013c). Rouhani estava ciente que o Ocidente aliviaria as sanções somente após alguma reorientação frente à questão nuclear, o assunto mais sensível de sua política internacional. Durante minha campanha presidencial, eu me comprometi em fazer o possível em meu poder para agilizar a resolução do impasse sobre nosso programa de energia nuclear. Para cumprir com esse comprometimento e aproveitar a janela de oportunidade que as eleições me abriram, meu governo está preparado para não deixar pedra sobre pedra na busca de uma solução 7 permanente que seja aceitável por todas as partes (ROUHANI, 2014).

Historicamente, as tentativas internacionais de resolver tal litígio se dão a nível do P5+1 (Estados Unidos, França, Inglaterra, China, Rússia e Alemanha). Esse grupo de países vem se reunindo desde 2006, com o intuito de negociar o projeto nuclear iraniano, deixando-o mais palatável como algo pacífico para a comunidade internacional. Por ambas as partes, diversas propostas já foram lançadas, mas, até 2013, nunca havia se alcançado consenso ou alguma assinatura de acordo. O principal argumento iraniano era que não aceitava o requerimento do P5+1 de que, previamente ao início de negociações, deveria suspender

todas

as

(DAVENPORT, 2014).

suas

atividades

relacionadas

a

enriquecimento

de

urânio

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Como prometido em sua campanha, nos primeiros meses do governo de Rouhani, aconteceu a primeira negociação entre P5+1 e Irã no que tange o projeto nuclear iraniano. No dia 24 de novembro de 2013 foi assinado, em Genebra e com participação dos sete países, o Plano de Ação Conjunta que visava encontrar uma solução para o contencioso tema do projeto nuclear iraniano, sendo dividido em duas etapas: uma primeira fase de seis meses para que se construa a confiança entre as partes para que se passe para uma segunda fase de elaboração de um abrangente acordo de longo prazo (DAVENPORT, 2014). A despeito das desconfianças e de prognósticos céticos sobre a implantação da primeira fase, desde 2013 o Irã reduziu 20% de seu estoque de urânio (BORGER; LEWIS,

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Tradução nossa. Vale destacar que, ainda em 2009, Obama abandonou tal politica e passou a aceitar que o Irã negocie seu projeto nuclear sem a necessidade de total suspensão do ciclo nuclear (PARSI, 2009). 8

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2015). E no dia 2 de abril de 2015, em um discurso conjunto, o Primeiro Ministro iraniano, Javad Zarif, o Primeiro Ministro estadunidense, John Kerry, e a Chefe de Política Externa da União Europeia, Federica Moghrini, oficializaram o acordo, sendo que todas as partes concluíram que as investidas foram bem-sucedidas. O “entendimento político” foi anunciado depois de 18 meses de intensivas reuniões e jogos de barganha, sendo ele histórico por seu conteúdo. O Irã concordou em: (i) reduzir suas centrífugas em 50% e mantê-las neste número para os próximos dez anos, (ii) não enriquecer urânio a cima de 3.67% nos próximos 15 anos, (iii) submeter-se a intensos escrutínios pela Agência Internacional de Energia Atômica nos próximos vinte anos e (iv) interromper o enriquecimento em Fordoo, convertendo essa planta em uma unidade de pesquisa e desenvolvimento (open). No Irã, o acordo foi recebido com muita antecipação e as pessoas foram para as ruas celebrar, ansiosos pela ideia de um país livre de suas sanções (LUCAS, 2015). É possível afirmar que Rouhani recebeu o aval do Líder Supremo, uma vez que esse lhe deu ampla liberdade sob a política externa do país (CERIOLI, 2014). Khamenei estaria buscando maior pragmatismo nas relações internacionais iranianas: ainda comprometido em manter a ideologia do sistema político iraniano, o Aiatolá estava ciente da importância de bons laços com os EUA, priorizando uma relação de benefícios mútuos em determinados temas os quais há confluência de interesse (GANJI, 2013). Podemos afirmar que, se resolvida a questão nuclear e se os países consigam arquitetar o abrandamento de suas relações, existiriam outras áreas em que ocorre a confluência de interesses. Assim como para o Irã, o espaço de influência dos EUA na política regional do Oriente Médio tende a diminuir com os acontecimentos da Primavera Árabe e a ascensão de novos atores políticos.9 Se Washington conseguir aceitar a República Islâmica como uma legítima potência regional, ambos poderiam cooperar para encontrar soluções para as questões da Síria, do Iraque e do Afeganistão – visto que a estabilidade desses países é essencial para a geoestratégia de ambos – assim como na contenção do surgimento de novos grupos radicais islâmicos (LEVERETT; LEVERETT, 2013b). Assim, podemos concordar com Parsi (2014) quando afirma que o interesse comum entre esses dois países não é meramente tático ou temporário, sendo que a realidade da região pode acabar por naturalmente colocar Washington e Teerã no mesmo lado, buscando uma alteração estratégica de suas relações a fim de atingir objetivos comuns. 2.2 Relações Turquia e Rússia

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O surgimento de maiores tensões não só expõe a existente dificuldade dos EUA de elaborar uma grande estratégia para a região, mas também prejudicam os objetivos do país de fazer um pivô asiático, visto que este só poderá ser complementarmente orientado no momento em que o Oriente Médio estiver estável o suficiente (KITCHEN, 2012).

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Desde o século XVI, a rivalidade estratégica foi o mote das relações entre Turquia e Rússia, na medida em que regiões e populações administradas pelos turcos eram alvos da cobiça de Moscou. Com efeito, as empreitadas russas visando ao controle dos eslavos nos Bálcãs e à abertura do Mar Negro foram um componente fundamental para acelerar a dissolução do Império Otomano. Em seguida, com a queda das dinastias que reinavam nesses países e o surgimento da República da Turquia e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, observa-se um processo de reaproximação turco-russo, motivado pela fraqueza dos regimes recém-instaurados. Esse fenômeno, porém, provou-se um ponto fora da curva, uma vez que, após a vitória na II Guerra Mundial, a União Soviética recobrou sua cupidez em relação ao território turco, através da tentativa de instalação de bases militares. Esse desejo foi recebido com sobressalto em Ancara, que tratou de alinhar-se ao bloco capitalista10 para combater a pressão soviética. Se o receio do expansionismo soviético norteou a inserção estratégica da Turquia durante a Guerra Fria, nota-se que o fim da bipolaridade subverteu as suas bases e demandou uma reorientação diplomática, ainda que parcial. Isso porque, embora a Rússia deixasse de ser um risco enquanto vetor de expansão do comunismo, persistiam disputas regionais e desconfianças mútuas que não poderiam ser transpostas de pronto. De fato, Rússia e Turquia encontravam-se em lados opostos em conflitos no Chipre e no Cáucaso, além de disputarem uma esfera de influência da Ásia Central (ÖZBAY, 2011, p. 74). No caso cipriota, nota-se que Ancara apoiava a minoria turca, ao passo que Moscou prestava suporte material à maioria grega. Ademais, no tocante à Guerra de Nagorno-Karabakh, vemos que russos e turcos fizeram uma aliança cruzada com armênios e azeris respectivamente, padrão que se sustenta até hoje. Por fim, na Geórgia, enquanto a Rússia defende a independência das províncias da Ossétia do Sul e da Abcásia, a Turquia patrocina a soberania georgiana (AKTÜRK, 2013b, p. 04). Essa situação se mostrava ainda mais complexa à medida que a Rússia procurava se firmar como o principal – senão o único – fornecedor de gás natural para a Europa. Naturalmente, esse objetivo não era bem visto pelos consumidores europeus, que temiam ficar à mercê de Moscou. Nesse contexto, a produção energética do Azerbaijão apareceu como uma alternativa natural à russa, dadas as vastas reservas desse país. Todavia, como a infraestrutura azeri fora desenvolvida pela União Soviética, não havia meios de transportar petróleo e gás para a Europa. Assim, foi proposta a criação de um oleoduto que saísse do Azerbaijão e chegasse à Turquia através da Geórgia: a rota Baku-Tbilisi-Ceyhan (BTC). Essa sugestão, não surpreendentemente, ia de encontro aos interesses russos, que fizeram o possível para inviabilizá-la. Já os turcos se mostraram favoráveis ao BTC, pois 10

A adesão da Turquia ao bloco capitalista materializou-se através do ingresso turco na OTAN em 1952 (MAGEN & LINDENSTRAUSS, 2013, p. 62).

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tampoucoaprovavam a perspectiva de um monopólio russo e gostariam de transformar a Turquia em um corredor energético. Dessa forma, a despeito de várias barreiras geográficas e financeiras, o oleoduto tornou-se realidade em 2006, levando petróleo azeri à Europa (YERGIN, 2011, p. 71–72). Outro ponto de discórdia entre russos e turcos durante os anos 1990 era o suposto apoio prestado a grupos terroristas curdos e chechenos, respectivamente. Nesse aspecto, não se trata de uma relação idêntica, na medida em que o apoio russo ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) é mais significativo do que a defesa turca dos movimentos chechenos de separação, que acontecia, sobretudo, através de críticas às investidas russas em território checheno (ÖNIS, 2001, p. 71). Por outro lado, já na década de 1920, Moscou mostrou-se favorável a sublevações curdas, permitindo, inclusive, que os separatistas lançassem mão de rádios clandestinas russas para propagar seus ideais, fenômeno que se desenrolou ao longo de toda a Guerra Fria. Em seguida, em 1995, o Terceiro Congresso do PKK foi realizado em Moscou, fato seguido pelo anúncio oficial de que a Rússia não considerava o PKK como uma organização terrorista. Ademais, o governo russo também respaldava os curdos através da Síria, seu principal aliado no Oriente Médio (KARACA, 2010, p. 48). Esses problemas começaram a ser superados, no entanto, em 1999, quando Abdullah Öcalan – líder do PKK – foi extraditado da Síria, sob ameaça turca. O curdo, então, tentou obter asilo político na Rússia, mas seu pedido foi rejeitado pelas autoridades desse país, para satisfação de Ancara. Essa atitude foi recebida como um gesto de boa vontade pelo então Primeiro Ministro turco, Bülent Ecevit, que, em uma visita oficial a Moscou, afirmou: “Nós não queremos nos envolver em assuntos internos da Rússia. Acreditamos que o problema será resolvido através de soluções pacíficas”. Em resposta, Vladimir Putin, presidente russo, asseverou: “Qualquer que seja a fonte, a Rússia não apoiou e não apoiará quaisquer atos terroristas contra a Turquia” (ÖZBAY, 2011, p. 75). Esse processo foi de suma relevância porque, a partir daí, intensificaram-se os contatos bilaterais entre as partes, possibilitando que diversos desentendimentos fossem dirimidos (KINIKLIOĞLU, 2006). Em setembro de 2000, durante o “Encontro do Milênio”, em Nova Iorque, Rússia e Turquia inauguraram um novo padrão de relações bilaterais, que fundamentaria a aproximação dessa década. Nesse momento, representantes de ambos os países frisaram que não havia um imperativo de rivalidade entre eles, mas sim espaço para que a cooperação pudesse paulatinamente florescer. Essa perspectiva se fortaleceu com os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, na medida em que o imaginário negativo sobre o terrorismo sempre foi significativo na Turquia e na Rússia, o que os incentivou a cooperar para combatê-lo (ÖZDAL et ali, 2013, p. 20 e 21). Em novembro desse ano, então, 9

Ismail Cem e Igor Ivanov – Ministros de Relações Exteriores de Turquia e Rússia, respectivamente – assinaram, na Assembleia Geral das Nações Unidas, um memorando chamado “Plano de Ação Entre a República da Turquia e a Federação Russa sobre a Cooperação na Eurásia: Da Cooperação à Parceria Multidimensional”(ÖZBAY, 2011, p. 75). Esse movimento se acelerou a partir de 2004, com o aumento do número de visitas de Chefes de Estado e representantes oficiais. Em um espaço de apenas um ano, Vladimir Putin e Recep Erdoğan estiveram juntos em quatro oportunidades, em uma das quais se determinou a criação de um gasoduto entre os territórios russo e turco através do Mar Negro. Esse projeto – que recebeu o nome de Corrente Azul – foi levado a cabo pelas principais empresas do setor energético da Rússia e da Turquia: Gazprom e BOTAŞ. Em Ancara, a iniciativa foi legitimada com base na dependência turca do gás natural russo, uma vez que 2/3 de todo gás que o país importava vinha da Rússia. 11 Nessas circunstâncias, poderia ser interessante ampliar a infraestrutura energética entre os dois países, a fim de baratear os custos dessas importações. Ainda na temática energética, destaca-se que Moscou se dispôs a financiar e construir a primeira usina nuclear turca, em Akkuyu, às margens do Mar Mediterrâneo (AKTÜRK, 2013b, p. 04). Malgrado esse acercamento, nota-se um estremecimento nas relações turco-russas quando Ancara se mostrou estimulada a levar adiante o gasoduto Nabucco12, que ligaria a Turquia à Áustria. Ainda assim, como prova de boa fé, a Turquia autorizou a Rússia a utilizar suas águas para edificar o gasoduto Corredor Sul, que carregaria gás natural russo até a Áustria, passando por Bulgária, Romênia e Hungria. O propósito russo era, além de assegurar a dependência europeia de seus recursos energéticos, criar uma alternativa ao território ucraniano, em decorrência do acirramento dos conflitos entre os dois Estados (DEUTSCHE WELLE, 2009). No entanto, apesar dessa solução de compromisso entre Rússia e Turquia, ambos os projetos acabaram sendo abandonados por questões de cunho técnico, econômico e político, principalmente após a anexação da Criméia por parte da Rússia, que fez com que a União Europeia aplicasse sanções econômicas a Moscou (FINANCIAL TIMES, 2014). Como sintoma de reaproximação, o comércio bilateral entre os dois países floresceu ao longo dos anos 2000. Em 2002, as vendas totais somavam US$ 5 bilhões, valor que superou a barreira dos US$ 33 bilhões em 2012. Desse montante, a maioria é composta de importações turcas de gás natural russa. Ainda na esfera econômica, atenta-se para um avanço nos investimentos externos diretos, principalmente de empresários turcos do setor de construção civil, além das já referidas inversões russas no segmento de energia da 11

A principal alternativa ao gás natural russo seria o Irã. No entanto, em decorrência das sanções internacionais a Teerã, a oferta desse recurso segue bastante limitada aos potenciais compradores. 12 O gasoduto Nabucco tinha o objetivo de diminuir a dependência europeia do gás natural russo. Para a Turquia, o benefício se daria em função da sua confirmação enquanto corredor energético internacional.

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Turquia (ALIRIZA & FLANAGAN, 2013. p. 04 e 05). Aos fatores econômicos, ademais, acrescentam-se matérias geopolíticas que vem unindo Moscou e Ancara nos últimos anos: há, dos dois lados, um ímpeto para transformar e democratizar o sistema mundial, de forma a limitar as prerrogativas das potências ocidentais e favorecer uma ordem multipolar (AKTÜRK, 2013a, p. 12). O período auspicioso das relações turco-russas, entretanto, foi desestabilizado pela eclosão da Primavera Árabe em janeiro de 2011. Isso porque a sublevação atingiu a Síria, tradicional aliado da Rússia no Oriente Médio. Seu presidente, Bashar al-Assad, foi intimado a renunciar, mas se recusou e, desde então, tem lutado para permanecer no poder. Nesse ínterim, Ancara adotou uma postura hesitante inicialmente, pois não queria pôr um termo no progresso que vinha obtendo com Damasco.13 Contudo, devido à pressão internacional, o governo turco assumiu uma posição contrária ao regime de al-Assad, o que lhe rendeu duras críticas de sírios e russos. Na sequência, com a manutenção da Guerra Civil Síria e a chegada de cem mil refugiados à Turquia, aguçou-se o mal-estar entre turcos e russos, dada a aliança cruzada que se configurou nesse contexto (TALUKDAR, 2014, p. 04 e 05). De rigor, o conflito na Síria não foi o único que antepôs turcos e russos nos últimos anos. Já em 2008, quando da invasão russa à Ossétia do Sul, vê-se que a Turquia assumiu uma posição em defesa da integridade territorial da Geórgia (AKTÜRK, 2013b, p. 04). Além disso, recentemente, com o referendo que formalizou a anexação da Crimeia à Federação Russa, Ancara novamente deu sinais de preocupação, sobretudo em relação à população tártara, um grupo étnico turco de maioria muçulmana. Nesse sentido, o governo turco não apenas evocou a indivisibilidade do território ucraniano, como declarou que o referendo realizado na Crimeia prescindia de base jurídico-legal. Percebe-se, porém, que, em nenhum dos casos, houve uma manifestação assertiva por parte da Turquia, que não deixou de expressar seu ponto de vista, mas tampouco procurou despertar a ira da Rússia (DEVLEN, 2014, p. 01 e 02). Embora a existência desses litígios pareça contradizer a hipótese deste artigo, acreditamos que eles podem ser essenciais para demonstrar que a parceria turco-russa vem se consolidando apesar dos eventuais óbices. Mesmo após o despertar da Guerra Civil Síria, não se verificou uma interrupção dos contatos diretos entre Ancara e Moscou, como atesta o prosseguimento das visitas oficiais de Chefes de Estado. Em 2013, por exemplo, durante uma conversa informal, Erdoğan deixou explícito seu interesse para que seu país ingressasse na Organização para a Cooperação de Xangai, medida que colocaria um fim à

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As relações turco-sírias sempre foram conturbadas em virtude do apoio que Damasco prestava ao PKK. Todavia, com a extradição de Abdullah Öcalan, abriu-se um espaço para uma reaproximação, que de fato ocorreu ao longo dos anos 2000, através do aumento de turismo, comércio e investimentos entre os países (ERTUĞRUL, 2012, p.02 – 05).

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tentativa turca de associar-se à União Europeia14 (THE DIPLOMAT, 2013). Do mesmo modo, já está sendo costurado o traçado de um novo gasoduto, intitulado Corrente Turca, que sucederia os fracassados Nabucco e Corrente Sul. Trata-se de um projeto benéfico à Rússia e à Turquia, visto que contorna o território ucraniano, mantém a dependência europeia do gás natural russo e viabiliza o desígnio turco para se firmar como corredor energético (PAUL, 2015). Em nosso entendimento, essa aparente contradição entre aproximações e desentendimento configura a regra no relacionamento entre Turquia e Rússia. Ocorre que, estrategicamente, há diversas forças que motivam a rivalidade entre os Estados, tais como a disputa por área de influência e as alianças cruzadas. Contudo, sob o ponto de vista tático, há motivos pelos quais Ancara e Moscou tendem a se aproximar, como a questão energética, a promoção do comércio e de investimentos, seus sucessivos atritos com a União Europeia e a disposição para favorecer a reorganização do sistema internacional em torno das potências emergentes. Nessa conjuntura, caso se materialize a associação entre Estados Unidos e Irã, haverá mais um motivo para que Turquia e Rússia se avizinhem, considerando que a formação de um eixo irano-estadunidense na região prejudicaria seus próprios interesses de projeção de poder. 3. Conclusões Nesse artigo, buscamos demonstrar que, nos últimos anos, Turquia, Irã, Rússia e Estados Unidos têm se articulado em torno de dois eixos distintos: de um lado, Ancara e Moscou; de outro, Teerã e Washington. Essa configuração é contraintuitiva, pois o rebentamento da Primavera Árabe – sobretudo na Síria – parecia indicar uma aproximação entre turcos e estadunidenses e entre iranianos e russos, dadas as suas posições em relação ao governo de Bashar al-Assad. No entanto, o que se constata ultimamente é o movimento inverso: enquanto Irã e Estados Unidos procuram resolver suas disputas antigas, Turquia e Rússia toleram suas discordâncias e estabelecem parcerias em diversos assuntos. Ainda que esse processo esteja em curso e suas causas e consequências se apresentem anuviadas, acreditamos que o exame dessa nova dinâmica se faz mandatório para que se compreenda o cenário atual no Oriente Médio. Com o propósito de dar sustentação ao nosso argumento, exploramos o histórico de antagonismos e rivalidades que assinalam as relações irano-americanas e turco-russas. Essa digressão foi realizada não apenas com o fito de contextualizar o leitor, mas porque

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Desde 2007, o ânimo turco para ingressar na União Europeia tem arrefecido, uma vez que os benefícios esperados já não parecem superar os custos. Entende-se, ainda, que a Turquia não conseguiria alçar-se à condição de potência regional se estivesse na UE, pois não seria reconhecida como líder por seus vizinhos. Essa posição é muito bem recebida em Moscou, que apoia a fragilização do bloco europeu.

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julgarmos que ela auxilia a discriminar os pontos consonantes e dissonantes nos dois casos analisados. Convém saber, por exemplo, que Irã e Estados Unidos eram aliados estreitos até a Revolução Islâmica e que, por muitos anos, tiveram objetivos comuns para o entorno geográfico iraniano. De maneira semelhante, é vital levar em consideração que – não obstante a recente reaproximação – Turquia e Rússia sempre foram adversários, o que fazia com que suas ambiçõesfossem inconciliáveis. Interessa realçar, então, que asalianças que destacamos não têm características idênticas, pois aentente entre turcos e russos não poderia ter a mesma dimensão que teria a reaproximação entre iranianos e estadunidenses. Essa distinção se deve ao fato de que, na melhor das hipóteses, Ancara e Moscou manteriam um acordo tático: só haveria união em temas específicos, e cada um estaria buscando atingir sua própria agenda. Entre Teerã e Washington, por outro lado, há espaço para um entendimento estratégico, ancorado na mudança do pivô estadunidense para a Ásia e no intento iraniano de se provar um país respeitável perante a comunidade internacional. Desse modo, mais uma vez, a aproximação turco-russa seria consequência da geopolítica regional e não parte de uma iniciativa estratégica comum. Ainda assim, por tratar-se de um possível desdobramento direto dos acordos do P5 + 1 com o Irã, essa nova conciliação entre Rússia e Turquia tem de ser permanentemente avaliada, sobretudo em decorrência de seus possíveis impactos para outros assuntos que atraem turcos e russos à mesa de negociação. Nossa linha de argumentação, portanto, não pressupõe que a configuração desses novos eixos se daria por meio de dois blocos monolíticos e bem definidos, como havia durante a Guerra Fria. Não se trata de duas alianças que não permitem variações e movimentos aparentemente contraditórios: mesmo que o Irã e Turquia superem seus conflitos com Estados Unidos e Rússia, ainda haveria espaço para um acordo russoiraniano (assim como o referente à venda do sistema de mísseis antiaéreos S-300) ou turcoestadunidense (tal como a venda de cem caças F-35 à Turquia). As atuais relações internacionais, sobretudo no Oriente Médio, são assinaladas pela pluralidade de posturas e comportamentos,

que

possibilitam

a

manutenção

de

política

paradoxais.

Esses

contrassensos, todavia, não implicam a ausência de alguns padrões, como poderão ser as díades Ancara-Moscou e Teerã-Washington. 4. Referências bibliográficas ABRAHAMIAN, Ervand. A History of Modern Iran. Cambridge University Press: Nova York, 2008 AKTÜRK, Şener. Russian-Turkish Relations in the 21st Century, 2000-2012. Russian Analytical Digest, Nº 25, 2013a

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