Os objetos das ciências: imaginações em uma experiência de ensino

June 15, 2017 | Autor: L. Belinaso Guima... | Categoria: Cultural Studies, Estudos Culturais, Ensino De Ciências
Share Embed


Descrição do Produto

OS OBJETOS DAS CIÊNCIAS: IMAGINAÇÕES EM UMA EXPERIÊNCIA DE ENSINO Leandro Belinaso Guimarães (UFSC) Aline Gevaerd Krelling (UFSC) RESUMO O texto relata uma experiência de ensino desenvolvida com alunos do curso de Pedagogia. O foco foi pensar, com os estudantes, sobre a vida dos objetos que habitam um laboratório da ciência. Além da descrição de suas presumidas funções, as aulas acionaram imaginativamente outras vidas, formas e nomes para os objetos. Para tanto, nutriu-se de referências advindas dos estudos culturais da ciência e de pesquisas no campo da educação que articulam imaginação, infância, ciência, arte e cultura. O resultado foi a reinvenção, a recriação, a transformação, através de desenhos, de objetos como pipeta, centrífuga, lupa. Nas experimentações, arte, ciência e imaginação se encontraram e os objetos das ciências foram “transtornados”, transformados em inutensílios, em poesia. Palavras-chave: imaginação, arte, ensino de ciências, estudos culturais

...uma pedagogia imaginativa requer também dos educadores uma reinvenção de si próprios, para que abram espaço e tempo em suas vidas para as experiências da imaginação; Gilka Girardello, 2011, p. 81.

Esse ensaio é um relato de uma experiência de ensino desenvolvida com alunos de um curso de Pedagogia. A disciplina articula à infância e ao ensino questões advindas das ciências. Não vamos apresentar nosso plano de ensino, nem mesmo discutir os princípios pedagógicos que o fundamenta. Preferimos abrir com esse artigo perguntas que se desdobram de, apenas, um conjunto de aulas. Nelas, nosso esforço foi pensar, com os estudantes, sobre a vida dos objetos que habitam um laboratório da ciência. Antes de começarmos contando a vocês sobre como e o que movimentamos nas aulas, gostaríamos de tocar brevemente os motivos que nos levaram a planejar tal temática para trabalharmos em nossa disciplina sobre ciências, infância e ensino em um curso de Pedagogia. Pensar sobre a vida dos objetos de laboratório não é algo inusitado, nem mesmo inovador. Um ciclo de palestras ocorrido em algumas capitais brasileiras em 2012, sendo que um dos principais conferencistas foi Bruno Latour, discutiu a “vida secreta dos objetos”, que implicou, entre outras inúmeras questões, em vê-los como agenciadores de mundos. Estamos muito acostumados, desde a Modernidade instalada através do pensamento cartesiano, no  

4679  

mundo ocidental, a pensar nos sujeitos como aqueles que atuam, pensam, constroem o mundo e nos objetos como inertes, passivos, mercadorias fabricadas para o consumo e o deleite humanos. As conferências desejavam instalar um problema nessa cisão e, sobretudo, em deslocar o humano do seu costumeiro lugar de centralidade na fabricação do mundo. Bruno Latour e Steve Woolgar (1997) nos mostraram, no instigante e ainda atual livro “A vida de laboratório”, que tal espaço tem uma configuração particular por possuir aparelhos nomeados, pelos autores, como “inscritores”. Nenhum fenômeno, argumentam os estudiosos culturais da ciência, que se referiria a estes objetos poderia existir sem a presença dos mesmos. Sem determinado aparelho, jamais um fenômeno (ou uma substância ou um composto) poderia ser “inscrito” no mundo. Os objetos de laboratório não seriam, assim, um simples meio de obtenção de algo, mas participantes ativos em sua “inscrição”, em sua construção, em seu nascimento, em sua possibilidade de existência. Argumentam os autores: “os fenômenos dependem do material, eles são totalmente constituídos pelos instrumentos utilizados no laboratório” (p. 61). Em nossas aulas na Pedagogia não pretendemos abrir essa discussão específica, mas permitir aos futuros professores de crianças pensarem que os objetos nos laboratórios são vivos e atuantes nos processos em que participam. Eles são protagonistas, tanto quanto os cientistas, dos laboratórios que habitam. E, quem sabe, gostariam de ter outras funções, se imaginarem em outros lugares, viajarem, fazerem novos amigos, terem outras vidas. Imaginar tais possibilidades nos permitiu um encontro com a arte em nossas aulas. E foi Mirian Celeste Martins e Gilsa Picosque (2012) quem nos ajudaram a pensar nos objetos como propositores, como provocadores de pensamentos e de sensações. Dizem as pesquisadoras que as crianças tem grande interesse pela vida, pelo desejo de brincar no aqui e agora, no instante presente. E seria muito interessante, nas salas de aula, intervalar o cotidiano pelo jogo e pela brincadeira, criando uma interação entre realidade e imaginação. As crianças dão vida imaginativa aos objetos através das brincadeiras. E em nossas aulas nos aventuramos por esta pista, sobretudo pensando na “ressignificação de objetos”, tal como proposto por Roberta Ninin e Ligia Botelho (2012) a partir da obra artística de Artur Bispo do Rosário. As autoras propõe um jogo que possibilite “encontros sensíveis e lúdicos com o universo de criação de Artur Bispo do Rosário” (p.105), artista popular brasileiro conhecido por transformar objetos cotidianos, ressignificando-os. Diagnosticado como esquizofrênico e paranóico transitou por instituições psiquiátricas, onde em suas celas recriava um mundo com as mãos. Qualquer material, fragmento, elemento da rotina hospitalar ganhava um novo sentido sob sua imaginação. Ao dar novas vidas aos objetos que compunham o seu mundo,  

4680  

Bispo do Rosário reinventava sua própria vida, como expresso em suas palavras: “Dizem que o que eu faço é Arte, mas é minha salvação na Terra.” (NININ e BOTELHO, 2012, p.106) As discussões trazidas por Bruno Latour e Steve Woolgar, por Mirian Celeste Martins e Gilsa Picosque, por Roberta Ninin e Ligia Botelho e, ainda, a arte de Artur Bispo do Rosário, compuseram o mosaico de repertórios e de argumentos teóricos e práticos que nos auxiliaram na construção das aulas sobre os objetos das ciências. Nesta disciplina, muito além de nos prendermos aos conceitos ligados às ciências, temos operado com eles, experimentando e criando em sala, com os futuros professores, práticas pedagógicas voltadas às crianças. Práticas que despertem não só a imaginação infantil, mas principalmente a dos próprios educadores em seu processo de formação. As aulas: experimentações em jogo Movimentados por este mosaico de referências, pensamos em um conjunto de atividades que buscassem dar novas vidas, novos significados para os objetos que vivem nos laboratórios. Acreditamos, assim como Roberta Ninin e Ligia Botelho (2012), que encontrar outros significados para os objetos, outras funções, transforma-os em outra coisa. E para que essa mudança ocorra é necessária a imaginação. Assim, experimentamos com nossos alunos um exercício que culminou na criação de um livro de imagens. A imaginação foi pensada aqui como “um espaço de liberdade e de decolagem em direção ao possível, quer realizável ou não”. (GIRARDELLO, 2011, p.76) Para chegarmos à transformação dos objetos da ciência iniciamos nossas atividades com uma visita a um laboratório de aulas práticas de bioquímica, o qual não se enquadra no perfil tradicional de um laboratório de ciência, repleto de vidrarias e modernos equipamentos, um espaço asséptico e frio. Por ser um laboratório de ensino, a conformação do espaço era mais amistosa e os equipamentos bastante antigos, algo que despertou a atenção dos alunos, que estavam, em sua maioria, tendo contato com um laboratório científico pela primeira vez. Apesar de algumas “velharias”, o espaço serviu adequadamente para a nossa proposta, pois estava repleto de objetos relacionados ao fazer bioquímico. Fomos recebidos pela Coordenadora do Curso de Licenciatura e Bacharelado em Ciências Biológicas e professora da disciplina de Bioquímica, que nos contou um pouco sobre como são desenvolvidas as pesquisas nessa área e nos mostrou alguns objetos e equipamentos presentes no laboratório. Antes de iniciarmos a visita havíamos solicitado aos alunos um olhar mais atento a estes objetos e que escolhessem um deles para fotografar. Curiosos com as  

4681  

novidades contidas neste lugar e na ânsia de registrar cada momento, os alunos fotografaram incessantemente. Solicitamos, então, que escolhessem uma das imagens obtidas (um dos registros dos objetos daquele laboratório) e a trouxessem na aula seguinte. Em nossa segunda aula sobre esta temática, conversamos com os alunos sobre o conceito de objetos propositores a partir do livro de Mirian Celeste Martins e Gilsa Picosque (2012). Também apresentamos a eles algumas imagens de obras do artista Artur Bispo do Rosário. Despertou-lhes a curiosidade o fato do artista ter produzido grande parte de suas obras com objetos encontrados no manicômio (como era denominado tal lugar) onde morou por muitos anos. Através de sua obra os objetos daquele hospital psiquiátrico ganharam novo sentido e valor estético. Após essa conversa, partimos para o trabalho com as imagens dos objetos da ciência que foram fotografados na visita ao laboratório. Primeiramente, mostramos todas as imagens escolhidas pelos alunos e, em seguida, solicitamos que, em duplas ou trios, escolhessem um dos objetos representados nas fotografias e escrevessem uma descrição do mesmo. Após terminarem seus textos, solicitamos que fizessem a leitura para todos de suas produções escritas. Foi possível perceber como os alunos preocuparam-se em utilizar uma linguagem técnica, científica, para descrever os objetos, valendo-se de muitos elementos presentes na fala da professora que nos apresentou o laboratório. Para finalizarmos este dia de atividade, assistimos a um vídeo da escola “Casa Redonda” 1 – presente no livro coordenado por Maria Amélia Pinho Pereira (2013) – intitulado “o corpo, a casa, o eu” e pedimos aos alunos que observassem os objetos utilizados pelas crianças em suas brincadeiras, lançando como pergunta para reflexão: o que está sendo ensinado de ciências com aqueles simples elementos cotidianos (caixas, panos, brinquedos, água)? Começamos nossa terceira e última aula sobre os objetos das ciências com uma conversa sobre as impressões causadas pelo filme. Muitos alunos compartilharam-nas conosco destacando: a brincadeira a partir de objetos simples, cotidianos, pouco tecnológicos, parecendo antigos. Sobre seus usos destacaram que não se tratavam de objetos prontos, com funções pré-determinadas, podendo ser utilizados/agrupados da forma que fosse conveniente                                                                                                                 1

Trata-se de uma escola situada em Carapicuíba, região metropolitana de São Paulo, que também funciona como um centro de estudos. Localizada em um amplo terreno com vasta vegetação, a escola aposta na brincadeira como ordenadora do mundo da criança. Há um cuidado com a qualidade, diversificação e condições dos materiais, objetos e espaços ofertados às brincadeiras. Na “Casa Redonda” o material didático mais valorizado é a própria matéria, experimentada livremente pelas crianças. Agradecemos a Rodrigo Saballa pela indicação do livro sobre esta instigante escola.

 

4682  

às crianças. Além dos objetos, chamou a atenção deles a ausência de interferência de adultos e da figura do professor na organização das atividades. Com estes relatos, conseguimos pontuar algumas das questões que permearam nossas aulas, como o fato das crianças, em suas brincadeiras de faz-de-conta, darem novas vidas aos objetos. A ausência da mediação adulta, pode ser pensada a partir de Girardello (2011), como a necessidade de “haver um equilíbrio entre a estruturação das atividades pelo adulto e a possibilidade de que as crianças possam brincar sozinhas, livres de supervisão” (p.80-81). Depois desta conversa iniciamos o nosso jogo de transformação dos objetos da ciência. É importante destacar que todas as atividades desenvolvidas anteriormente foram passos importantes para a construção deste jogo e entendimento do mesmo por parte dos alunos. Primeiramente, mostramos aos alunos as imagens do livro “Isto não é”, de Alejandro Magallanes (2008) 2. Pensando na pluralidade de significados que um objeto pode disparar, pedimos para que cada dupla/trio formado na aula anterior transformasse o seu objeto, dando nova vida a ele. Esta transformação deveria ser representada através de um desenho, para que ao final compuséssemos coletivamente um livro. Essa foi a primeira rodada do nosso jogo. Quando finalizaram essa etapa, explicamos a segunda rodada do jogo: as duplas/trios deveriam trocar os seus desenhos e operar uma nova transformação, só que desta vez não seriam mais os objetos de laboratório que seriam recriados, pois estes já tinham ganhado nova vida, já eram outra coisa. Por fim, explicamos a nossa intenção de montar um livro de desenhos e dividimos a turma em dois grupos: um ficou responsável pela capa e o outro pelo texto de apresentação. Algumas imagens deste trabalho serão expostas a seguir para pensarmos silenciosamente com elas as potencialidades de criarmos em sala de aula práticas pedagógicas experimentais, artísticas e inventivas, como as que buscamos desenvolver com/sobre os objetos das ciências. As imagens criadas: os objetos e suas novas vidas “Como proporcionar ao aluno processos criativos, aprimorando e fertilizando sua capacidade de imaginar?”. (NININ e BOTELHO, 2012, p.105) Esta foi uma importante pergunta que nos mobilizou na construção das nossas aulas e que buscamos colocá-la em movimento a partir das atividades aqui apresentadas. Com essa proposta de ressignificação dos objetos das ciências, buscamos fugir dos enunciados científicos paralisantes e possibilitar                                                                                                                 2

Agradecemos à educadora ambiental Sara Alves dos Santos Carvalho a indicação do livro, que nos lembrou uma pintura de René de Magritte analisada magistralmente por Michel Foucault (1988).

 

4683  

aos alunos uma “ampliação de possibilidades para percebermos e produzirmos variações no mundo”. (BRAGA e KASPER, 2013, p.40). Ainda em diálogo com estas autoras que discorrem sobre a obra do artista Hélio Leite, acreditamos que em nossas experimentações com os alunos os objetos das ciências foram “transtornados”, transformados em inutensílios, em poesia. E nesse movimento, arte, ciência, imaginação e ensino se encontraram, efetiva e afetivamente. Finalizamos o ensaio apresentando algumas das recriações, reinvenções, dos objetos operados pelos nossos alunos do curso de Pedagogia 3.

                                                                                                                3

Os/as autores/as do nosso livro, produto final das nossas aulas sobre os objetos das ciências, são: Alessandra Santos de Queiroz, Mauro Marques, Iolita Rodrigues, Claudia Gadotti João, Ana Karolina Botelho, Wania Leal, Edir Giacomelli, Aline Becsi, Renata Maçaneiro, Lucas Kamers de Aguiar, Naiara Vianna, Patrícia Machado Fistarol, Gabriela Carolina Luiz, Thuane Brito de Macedo. Agradecemos a todos a entrega à nossa proposição.

 

4684  

 

4685  

Referências:

BRAGA, Jonathan; KASPER, Kátia. Formação, Experimentação, Invenção. Instrumento. Juiz de Fora, v. 15, n. 1, 2013. FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. Tradução Jorge Coli. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. GIRARDELLO, Gilka. Imaginação: arte e ciência na infância. Pro-Posições. Campinas, v. 22, n. 2, p. 75-92, maio/ago, 2011. LATOUR, Bruno; WOOLGAR, Steve. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997. MAGALLANES, Alejandro. Isto não é. Tradução Heitor Ferraz Mello. São Paulo: Comboio de cordas, 2008. MARTINS, Celeste Mirian; PICOSQUE, Gisa. Mediação cultural para professores andarilhos na cultura. 2a. Edição. São Paulo: Intermeios, 2012.  

4686  

NININ, Roberta; BOTELHO, Ligia. Artur Bispo do Rosário e a ressignificação de objetos. In: MARTINS, Celeste Mirian; PICOSQUE, Gisa. Mediação cultural para professores andarilhos na cultura. 2a. Edição. São Paulo: Intermeios, 2012. PEREIRA, Maria Amélia Pinho. Casa Redonda: uma experiência em educação. São Paulo: Editora Livre, 2013.

 

4687  

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.