OS PAIS BARRETO DE PERNAMBUCO: Patrimônio, poder e estratégias familiares na Freguesia de Santo Antônio do Cabo na segunda metade do século XVIII

May 23, 2017 | Autor: Mariely Felipe | Categoria: Historia colonial, História Da Família, Estratégias Familiares
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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA CURSO DE LICENCIATURA PLENA EM HISTÓRIA

OS PAIS BARRETO DE PERNAMBUCO: Patrimônio, poder e estratégias familiares na Freguesia de Santo Antônio do Cabo na segunda metade do século XVIII Mariely de Albuquerque Mello Felipe

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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA CURSO DE LICENCIATURA PLENA EM HISTÓRIA

OS PAIS BARRETO DE PERNAMBUCO: Patrimônio, poder e estratégias familiares na Freguesia de Santo Antônio do Cabo na segunda metade do século XVIII. Mariely de Albuquerque Mello Felipe

Monografia apresentada ao Departamento de História e ao Curso de Licenciatura da Universidade Federal Rural de Pernambuco, como requisito parcial para obtenção do título de Licenciado em História. Aluna: Mariely de Albuquerque Mello Felipe Orientadora: Profª. Drª. Suely Creusa Cordeiro de Almeida.

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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA CURSO DE LICENCIATURA PLENA EM HISTÓRIA

OS PAIS BARRETO DE PERNAMBUCO: patrimônio, poder e estratégias familiares na Freguesia de Santo Antônio do Cabo na segunda metade do século XVIII Mariely de Albuquerque Mello Felipe

Monografia submetida e aprovada com a nota:

_____________________________________________________ Profª. Drª. Suely Creusa Cordeiro de Almeida

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Resumo Este trabalho tem por objetivo recompor e analisar a trajetória da família Pais Barreto na capitania de Pernambuco; os grupos aos quais pertenceu, os espaços que percorreu, bem como as estratégias que a mesma se utilizou para a manutenção da sua condição e bens na segunda metade do século XVIII. Identificar e reconstruir os espaços de ação estabelecidos pela família Pais Barreto é determinante para entender o funcionamento da sociedade colonial, bem como a importância da família como base fundamental das relações sociais, visto que a mesma atuou de forma integrada e prolongada em vários espaços, mediante uma restrita disciplina familiar, para garantir a permanência da condição social e econômica adquirida no primeiro século da colonização, através da forma particular de vinculação de bens, ou seja, o morgadio. Este trabalho foi construído através do levantamento de fontes bibliográficas, associadas às manuscritas, que se encontram depositadas no Arquivo Histórico Ultramarino, e foram digitalizadas pelo Projeto Resgate. O principal foco foram os Avulsos de Pernambuco e os Códices, que se encontra disponível na Universidade Federal Rural de Pernambuco, no Laboratório de História. Também nos utilizamos de textos históricos depositados na Biblioteca Pública Estadual de Pernambuco (BPE) e Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Todo o trabalho se deu sob a orientação da Profª. Drª. Suely Creusa Cordeiro de Almeida (UFRPE). Palavras chave: Família Pais Barreto; estratégias familiares; morgadio.

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Só te conheço de retrato, não te conheço de verdade, mas teu sangue bole em meu sangue e sem saber te vivo em mim e sem saber vou copiando tuas imprevistas maneiras, mais do que isso: teu fremente modo de ser, enclausurado entre ferros de conveniência ou aranhóis de burguesia, (...) (...)Refaço os gestos que o retrato não pode ter, aqueles gestos que ficaram em ti à espera de tardia repetição, e tão meus eles se tornaram, tão aderentes ao meu ser que suponho tu os copiaste de mim antes que eu os fizesse, e furtando-me a iniciativa, meu ladrão, roubaste-me o espírito. Carlos Drummond de Andrade – “Antepassado”

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A Marluce Viana (in memoriam), minha avó, pelo exemplo, pela dedicação a família, e pelo amor que sempre demonstrou por mim. A Lucídio Mello (in memoriam), meu avô, pela alma de criança, pelo carinho e por ter me proporcionado uma infância extremamente feliz.

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Agradecimentos A elaboração deste trabalho se apresenta como a conclusão de mais uma etapa na minha vida. Ao longo desta transformadora jornada criei novos laços e reforcei os antigos. Muitas pessoas me acompanharam nesta minha caminhada, e agradecer pode não ser uma tarefa fácil, nem justa. Para não correr o risco da injustiça, de antemão, agradeço a todos que de alguma forma passaram pela minha vida e contribuíram para a construção de quem hoje sou. Aos meus pais, Elton e Lucimar, pela minha vida e por todo amor que sempre me ofertaram. Por todo esforço empenhado na minha criação e por procurarem sempre me oferecer o melhor que podiam. A vocês eu devo o que sou. Ao meu irmão, Cidinho, por há dez anos ter tornado a minha vida mais feliz, por ter despertado em um amor sem tamanho e por me fazer voltar a ser criança. A minha família Timbaubense, tios, tias e primos por me proporcionarem momentos alegres e por sempre estarem presentes nos momentos difíceis. A Vó Maria e Vô Tonho, pelo amor e orgulho que sempre demonstraram por mim. Obrigada por fazerem de Timbaúba minha segunda casa. Ao meu namorado, companheiro e amigo, Raphael, que acompanha de perto as minhas alegrias e angustias. Obrigada pelo companheirismo, carinho e amor. Aos meus padrinhos Kátia e Raimundo, por se fazerem presentes nos momentos de alegrias e tristezas, e por terem fé em tudo que eu faço. A minha orientadora, Profª. Suely Creusa Cordeiro de Almeida, por quem nutro grande admiração e carinho, e sem a qual esse trabalho jamais poderia ter sido realizado. Obrigada por ter acreditado no meu potencial. A Claydja, Xuxu, pela amizade, por ser tão idiota quanto eu, por sempre estar disposta a me ajudar, por compartilhar crises comigo, enfim, por tudo. Aos amigos que a graduação me deu de presente, Nias, Yago, Durval, Ale, por compartilharem das angustias e alegrias desta caminhada. 7

As minhas companheiras de pesquisa, Jéssica e Luanna , por compartilharem a paixão pela colônia, pelas trocas de ideias, e por se mostrarem sempre dispostas a me ajudar. A Carol, por todos os momentos vividos, e pela amizade. Aos meus amigos do São Bento, que mesmo eu sendo a amiga mais ausente do mundo me recebem sempre de braços abertos. Aos meus filhinhos de quatro patas, Celinha, Ringo, e Dote, pela companhia nas noites de estudo, pelo amor puro e alegrias.

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Sumário Introdução..........................................................................................................11

Capítulo 1 Família e nobilitação..........................................................................................15 1.1 O Conceito de Família..................................................................................16 1.2 Os Senhores de Engenho: de Açucarocracia à Nobreza da Terra..............19

Capitulo 2 “Para conservação e memória do seu nome...”: a vinculação de bens e a formação do patrimônio social e econômico da família Pais Barreto........25 2.1 Para a perpetuação da unidade: a indivisibilidade do patrimônio familiar...26 2.2 Os Pais Barreto: a formação do patrimônio e a fundação do Morgadio de Nossa Senhora da Madre de Deus....................................................................31

Capítulo 3 Os Pais Barreto e a segunda metade dos setecentos: nobilitação, trajetória e espaços.........................................................................................36 3.1 “Por ser dos homens nobres das principais famílias desta terra...”: a nobilitação dos Morgados..................................................................................37 3.2 As propriedades vinculadas: Morgadios de Nossa Senhora da Madre de Deus e Jurissaca...............................................................................................39 3.3 O destino dos não primogênitos e a política de casamentos adotada pela família................................................................................................................43 3.4 Reconstruindo relações e espaços: a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba e o Hospital de Nossa Senhora do Paraíso.........................................49 4. Conclusão.....................................................................................................59 5. Referências...................................................................................................62 5.1 Manuscritos..................................................................................................62 5.2 Impressos....................................................................................................63 9

Introdução É pela e para a família, não necessariamente a consanguínea, que todos os aspectos da vida cotidiana, pública ou privada, originam-se ou convergem. É a família que confere aos homens estabilidade ou movimento, além de influir do status e na classificação social. Pouco, na colônia refere-se ao indivíduo enquanto pessoa isolada – sua identificação é sempre com um grupo mais amplo1. Estudar a instituição familiar contribui de forma decisiva para compreender uma determinada sociedade e as relações sociais que a moldaram, uma vez que a família funciona como uma instituição que media a relação entre o individuo e o meio social2. A família está submetida às condições sociais, econômicas e culturais de uma sociedade, mas, mesmo assim, não perde a sua capacidade de influir sob a mesma. A historiografia sobre a América Portuguesa tem abordado a família sobre definições e enfoques distintos ao longo dos anos, suscitando discussões variadas em torno das diversas formas que esta assumiu na sociedade colonial. Observamos, porém, que uma forma de organização familiar em particular, amplamente utilizada pela elite colonial, foi praticamente esquecida por boa parte dos estudiosos brasileiros deste período. Em 1968, Hélio Viana escreveu que: “Assim como não temos a história das Capitanias Hereditárias, também não possuímos a dos morgadios em outros tempos existentes no Brasil. Todos ainda insuficientemente estudados, quando não apenas ocasionalmente mencionados”. Quase meio século depois a realidade pouco mudou e ainda pouco sabemos sobre o funcionamento desta forma de unidade familiar transplantada de Portugal para as terras do Atlântico Sul. Dos estudos sobre famílias detentoras de vínculos de morgadio, encontramos apenas os realizados sobre os Morgadios de Santa Barbara e o 1

FARIA, Sheila de Castro. A COLÔNIA EM MOVIMENTO: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 21. 2 BOURDIEU, Pierre. Razões práticas sobre a teoria da razão. 9° ed. São Paulo: Papirus, 2008. p. 124 – 127.

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dos Garcia d‟Ávila. Para além destes, contamos com o estudo de caráter mais abrangente, mas por isso não menos importante, realizado por Maria Beatriz Nizza em seus trabalhos sobre a família e a nobreza colonial. Foi buscando preencher essa lacuna historiográfica e responder aos nossos questionamentos sobre a apropriação desta forma de vinculação de bens pelas elites locais que chegamos à família Pais Barreto. Esta família, que fez parte da Açucarocracia e Nobreza local da Capitania de Pernambuco, e manteve o Morgadio de Nossa Senhora da Madre de Deus por mais de três séculos, através de ações prolongadas pesadas através de gerações e de uma rígida disciplina familiar. Escolhemos este recorte temporal específico, pois a segunda metade dos setecentos se configurou como um período singular na Capitania de Pernambuco, mediante a instituição da Companhia de Comércio de Pernambuco e Paraíba, que afetou toda a dinâmica em relação ao comércio e produção local. Como donos de avultados engenhos, os membros da família foram diretamente afetados por essas mudanças. Observamos, também neste período, um maior dinamismo das ações dentro da família Pais Barreto, poia a mesma passou a ser detentora de outro vinculo de morgadio e assumiu a administração de um vinculo na forma de Capela, o Hospital de Nossa Senhora do Paraíso. Nosso trabalho trilhou o caminho histórico e partindo da análise documental e da revisão bibliográfica objetivamos, então, entender o funcionamento desta prática de vinculação de bens familiares, a forma que ela foi apropriada pela família Pais Barreto, e as estratégias utilizadas pelos seus membros para manter o patrimônio econômico e social adquirido pelos seus ascendentes no século XVI. Para tanto, organizamos as etapas metodológicas para a elaboração deste trabalho visando o alcance dos supracitados objetivos. A primeira etapa da pesquisa constituiu de um levantamento e seleção bibliográfica, através da qual selecionamos autores que retratassem a família, a política, a economia e o contexto social do recorte temporal escolhido, para que, assim, nos aprofundássemos teoricamente sobre o período e objeto em questão, como: 11

Maria Beatriz Nizza da Silva, Sheila de Castro Faria, Russel-Wood, João Luís Picão Caldeira, José Ribeiro Júnior, entre outros. Objetivou-se também o apoio nos conceitos de Açucarocracia e Nobreza da Terra, amplamente abordados e discutidos nas obras sobre as elites pernambucanas de Evaldo Cabral de Mello; de casa e linhagem, abordados com primor por Nuno Monteiro; de economia do dom e Monarquia Pluricontinental, destrinchados por Antônio Manuel Hespanha; de família, utilizado pelo sociólogo Pierre Bourdieu. Ademais, foram realizadas visitas à Biblioteca Pública Estadual de Pernambuco (BPE), e ao Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, no qual consultamos o acervo de Sylvio Paes Barreto, descendente da família por nós estudada e estudioso da genealogia da mesma. Grande parte do trabalho foi construída por meio da leitura e análise de documentos manuscritos, legados pelas autoridades administrativas no recorte estipulado. O corpus documental utilizado para a construção da nossa narrativa consiste, basilarmente, dos Códices e Avulsos de Pernambuco do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), material digitalizado pelo projeto resgate que se encontram disponíveis no laboratório de história do programa da pósgraduação na Universidade Federal Rural de Pernambuco, bem como, fontes transcritas encontradas na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB). O primeiro capítulo discute acerca da construção do imaginário em torno da família, as obrigações reciprocas dentro da unidade familiar e as estruturas familiares utilizadas pelos membros da elite. Ainda neste capitulo, buscamos destrinchar os grupos formados pelas famílias dos senhores de engenho na Capitania de Pernambuco, e os mecanismos de ascensão social utilizadas pelos mesmos para alcançarem a qualidade de nobres da terra. O segundo capítulo se concentra em discutir a instituição de morgadios como parte do viver à lei da nobreza, as ações sociais inerentes a essa prática, e a abordagem da propriedade vinculada pelas legislações. Também procurarse-á estabelecer como se deu a formação do patrimônio da família Pais Barreto, através da chegada do ascendente mais remoto da mesma na

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Capitania de Pernambuco, bem como a instituição do Morgadio de Nossa Senhora da Madre de Deus. O terceiro capitulo se preocupa com a recomposição e análise das trajetórias dos membros da família Pais Barreto na segunda metade dos setecentos,

mediante

a

identificação

dos

cargos

ocupados

pelos

administradores do morgadio, das políticas de casamentos intrafamiliares e extrafamiliares desenvolvidas, e das suas propriedades. Numa sociedade extremamente hierarquizada como a da América Portuguesa, um indivíduo era definido pelas suas posses e distintivos de nobreza que possuía. Observamos, então, um grande esforço desempenhado pela família para manter sua posição como parte das famílias principais da terra, assegurando seu lugar no topo da pirâmide social local.

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Capítulo 1 Família e nobilitação

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1.3 O Conceito de Família A partir do século XV, os sentimentos e as realidades da família passaram por mudanças profundas. Ao longo do medievo, a educação das crianças era garantida pela aprendizagem junto aos adultos, e, a partir dos sete anos, elas passavam, então, a viver com uma família que não era a sua. Esta situação mudou quando, na Europa, a aprendizagem passou a ser substituída pela escola, ou a educação doméstica. Os sentimentos de família e de infância, então, se aproximaram, e a unidade familiar passou a se concentrar em torno da criança. Segundo Philippe Ariès, o clima sentimental era agora completamente diferente, mais próximo do nosso, como se a família moderna tivesse nascido ao mesmo tempo que a escola, ou, ao menos, que o hábito geral de educar as crianças na escola.3

A família passou a ser vista como um elemento orgânico, natural, no centro de uma sociedade formada por um agregado de indivíduos estranhos entre si e desvinculados. Esta concepção organicista da unidade familiar derivava de representações muito antigas, mas que sempre esteve presente, ou seja, a ideia de que haveria um laço especial com o qual a natureza ligara os indivíduos que faziam parte de uma família. O elemento base desse laço era o amor, que se desdobrava em diversos sentimentos recíprocos, como o amor dos pais pelos filhos, superior aos demais, fundado na ideia de que os pais continuavam nos filhos4. A imagem da família se encontra presente por todos os lados no discurso social e político no Antigo Regime português, e na sociedade da América Portuguesa, seja para enaltecer as qualidades da mesma ou para trabalhar de forma a manter a sua unidade e patrimônio.

O apreço pela

imagem familiar provinha, justamente, do fato da mesma constituir uma experiência natural e comum, uma vez que todos possuíam uma família. Essa unidade

se encontrava,

assim, fundada

em

relações e sentimentos

pertencentes à própria natureza das coisas.

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ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. p. 159 HESPANHA, Antônio Manuel; MONTEIRO, Nuno. A família. In: MATTOSO, José (Dir.). História de Portugal. Lisboa: Edital Estampa, 1998. v.4, pp. 245- 246. 4

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Família queria dizer, primeiramente, “as pessoas de que se compõe uma casa, pais, filhos e domésticos” 5. Este sentido originário abrange todos os indivíduos que viviam numa casa. Assim, o pater e a mater, aparecem como noções que rementem não só às conexões genealógicas, mas de dependência de autoridade. Estudos nos mostram que havia um predomino, ao menos quantitativo, dos grupos domésticos conjugais, família nuclear, formada por pai, mãe e filhos, desde o início da era moderna, entretanto, esse modelo de organização familiar não se adequa ao estudo das famílias da elite, cuja análise é um dos objetivos basilares do nosso trabalho. Segundo Hespanha, a família era(...) uma palavra de contornos muito vastos, nela se incluindo agnados e cognados, mas ainda criados, escravos e , até, os bens. Em relação a toda esta universalidade valiam os princípios inicialmente enunciados, nomeadamente o da unidade sob a hegemonia do pater, ao qual incubiam direitosdeveres sobre os membros e as coisas da família6.

A noção de família extrapolava, assim, os laços de consanguinidade, estando intimamente ligada à coabitação. Entretanto, no dicionário de Antônio Moraes Silva, de 1813, mesmo podendo observar grande similaridade com os conceitos de dicionários europeus mais antigos, uma vez que, para ele, a família era formada pelas “pessoas de que se compõe a casa, e mais propriamente subordinadas aos chefes, ou pais de família 7”, o mesmo adicionou a esse conceito “os parentes e aliados”. “Aliado”, por sua vez, pode ser encontrado como um adjetivo derivado de “aliar”, ou seja, fazer aliança. Sendo assim, podemos relacionar este termo a uma relação estabelecida através do parentesco por afinidade, relações como a de compadrio ou de aliança política, que independiam, portanto, da coabitação8.

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BLUTEAU, Rafael, C.R. 1638-1734,Vocabulario portuguez e latino, aulico, anatomico, architectonico, bellico, botanico, brasilico... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728. v.4, p. 28. 6 HESPANHA, Antônio Manuel; MONTEIRO, Nuno. Op. Cit., v.4, p. 250. 7 SILVA, Antônio. Diccionario da lingua portugueza - recompilado dos vocabularios impressos ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. p. 597 8 FARIA, Sheila. A Colônia em Movimento. Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. pp. 40-41.

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Ao pater família cabia educar os filhos moralmente, espiritualmente e civilmente, fazendo-lhes aprender as letras, dando-lhes de comer, beber e onde habitar. Ao pater também cabia a obrigação de dotar os seus rebentos para o matrimônio religioso ou carnal. Os filhos, por sua vez, deviam ao pater obediência, gratidão e obséquios, estes deveres os obrigavam a respeitar e acatar as decisões dos pais. Os filhos deveriam, através do dever de gratidão, oferecer ajuda aos pais necessitados, em vida, ou em morte, fazendo-lhes as exéquias.9 He Regra e Preceito geral de todos os Direitos Natural, Divino, e Humano, que cada hum se deve alimentar, e sustentar a si mesmo; da qual Regra e Preceito geral so são exceptuados em primeiro lugar os filhos, e toda a ordem dos descendentes; e em segundo lugar os pais, e toda a serie dos ascendentes. Em primeiro lugar são exceptuados os filhos e toda a ordem dos descendentes; porque como os pais lhe devão o ser, e a vida, dicta a razão que são obrigados a conservarem-lha, contribuindo-lhes primeiro que todos com os alimentos necessários para este fim.10

O trecho supracitado nos mostra com clareza os deveres mútuos existentes no seio familiar, entre ascendentes e descendentes. Nele também fica clara a predileção pelos direitos do descendente, uma vez que a vida do mesmo, a sua existência, foi dada pelos pais, cabendo, então, a quem lhes deu o “ser” a sua manutenção. Além de ser uma obrigação “natural”, o sustento dos filhos

também

garantiam,

consequentemente,

a

própria

existência

e

continuidade dos pais através das suas descendências. A família funcionava, e ainda funciona, como base das relações sociais e principio coletivo de construção da realidade coletiva, como uma estrutura mental inculcada socialmente e naturalizada através do senso comum, percebida como algo natural11. Mas a ideia de família só poderia ser concretizada por meio de ações prolongadas para a afirmação da mesma. Sendo assim, a unidade familiar funcionava como uma verdadeira instituição, procurando instituir e organizar, de forma duradoura, em cada um dos seus membros, partes desta unidade, sentimentos, e consequentes formas 9

HESPANHA, Antônio Manuel; MONTEIRO, Nuno. Op. Cit., v.4, pp. 247 - 248. LOBÂO, Manoel de. Tractado das Obrigações Recíprocas Que Produzem as Acções Civis. Lisboa: Imprensa Nacional, 1828. § 1 11 BOURDIEU, Pierre. Razões práticas sobre a teoria da razão. 9° ed. São Paulo: Papirus, 2008. p. 124 – 127. 10

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comportamentais, capazes de lhes garantir a integração, condição básica para a manutenção da sua existência. As famílias passaram, então, a se valer do seu papel determinante na reprodução da estrutura do espaço social, e das relações sociais, elaborando as suas estratégias de perpetuação, através da transmissão do nome de família, do seu status e patrimônio material12. Para garantir e manter a sua condição, muitas famílias nobres se utilizaram de outros sentidos habituais da família, como o de linhagem e “casa”. O conceito de linhagem utilizado pelas famílias nobres portuguesas pode ser entendido como o de um grupo alargado, com diferentes ramos de descendentes, organizados numa base unilinear em função da ascendência paterna. Ou seja, era um grupo formado por vários indivíduos que descendiam de um mesmo “chefe de linhagem”, um pater, distante, em comum. No interior das linhagens mais restritas se reconheciam específicos laços genealógicos, e seus indivíduos se encontravam associados a um particular apelido e brasão de armas13. A pertença a essas famílias decorria da varonia, da ascendência por linha masculina, embora haja algumas restrições. Entre os séculos XVII e XVIII ocorreu uma desvalorização da linhagem em favor da casa, sendo umas das principais causas para tal desvalorização a multiplicação dos ramos secundários e o uso de alguns apelidos fidalgos por plebeus, o que tornava a pertença a uma linhagem e família relativamente falsificável. Diferentemente da linhagem, que constituía uma referência remota, incorporada em favor de acontecimentos de muitos tempos atrás, o conceito de casa fazia referência a acontecimentos muito mais recentes, o que a tornava mais palpável e facilitava comprovar pertença a mesma. A noção de casa podia ser entendida como um conjunto coerente de bens simbólicos e materiais a cuja reprodução alargada estavam obrigados todos os que nela nasciam ou dela dependiam- cada um no seu lugar, por demais conhecido e bem definido14.

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BOURDIEU, Pierre. op. cit. 129-131. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Casa e Linhagem: o Vocabulário Aristocrático em Portugal nos Séculos XVII e XVIII. Penélope – fazer e desfazer a História, nº 12, 1993. p. 43-44. 14 Ibidem. p. 50. 13

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A casa representava, assim, um valor fundamental para quase todas as elites sociais, e a família ou linhagem nobre, consubstanciada no apelido, eram referenciadas, não como fundamentais para o funcionamento da mesma, mas como elementos estruturantes do seu capital simbólico. Essa forma de organização familiar tinha como elemento basilar os bens, que eram vinculados principalmente na forma de Morgadio, no qual sucediam os primogênitos e seus descendentes15. Como bem sabemos muitos destes modelos de reprodução social, amplamente utilizados em Portugal, foram copiados na colônia, e na Capitania de Pernambuco algumas das famílias oriundas da nobreza local também adotaram esta forma de organização familiar. Mas, primeiramente, devemos compreender como se deu a formação do grupo das famílias principais na Capitania, e de como as mesmas alcançaram a condição de nobres.

1.2 Os Senhores de Engenho: de Açucarocracia à Nobreza da Terra. Desde o principio da efetiva ocupação do território da América portuguesa, os portugueses necessitaram organizar uma exploração agrícola rentável, e que, ao mesmo tempo, despertasse o interesse dos investidores metropolitanos, assegurando recursos para a defesa e manutenção dos seus domínios. Já amplamente cultivada nas Ilhas Atlânticas, a cana de açúcar surgiu, então, como a melhor alternativa16. Em 1549, já se podia entrever as estruturas sociais das áreas de produção açucareira da Capitania de Pernambuco, uma vez que as categorias de povoadores já eram enumeradas, pelo então donatário, entre aqueles que construíam engenhos de açúcar ou cultivavam partido de cana, a diferença estava nos números de cada um, uma vez que haviam mais lavradores do que proprietários de engenhos17. Assim como na Madeira, os homens que compunham esta elite da terra, chamada de Açucarocracia, formada em menor número pelos lavradores de cana, foram chamados de senhores de engenho, 15

Essa forma de vinculação de bens será melhor trabalhada e aprofundada no segundo capítulo deste trabalho, juntamente com o estudo do Morgadio de Nossa Senhora da Madre de Deus, da família Pais Barreto. 16 FERLINI, Vera Lúcia. A Civilização do açúcar. São Paulo: Brasiliense. 1998. pribe. 15-17 17 MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: O imaginário da restauração pernambucana. São Paulo; Alameda, 2008. pp. 127-128

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expressão que faz referência aos antigos senhores medievais, uma vez que a propriedade era um privilégio real e dos grandes senhores eclesiásticos e laicos. A forma mais habitual de se ter acesso à extensões de terra, nesses primeiros momentos, acontecia através de doações de sesmarias, oferecidas, em grande parte, como recompensa pelo auxílio prestado por alguns na conquista da terra, principalmente através das campanhas encetadas contra os índios caetés. Mesmo assim, devido ao ônus da tarefa de povoamento, poucos sesmeiros se tornaram senhores de engenho, uma vez que, a posse de terras, mesmo abundantes, não era suficiente para garantir a posição de uma família, se não viesse aliada a recursos para montar fábrica e adquirir mão-de-obra18. O engenho de açúcar era levantado com recursos próprios ou mais frequentemente, emprestado e transmitido por compra e venda, de modo que, via de regra, só os filhos do Reino (...), demográfica e economicamente dominantes, dispunham do cabedal necessário19.

Sendo assim, poucos duartinos20 e seus descendentes, conseguiram ascender à Açucarocracia, ao longo do primeiro século da colonização, por conta própria. Muitos alcançaram essa elite local graças às alianças com reinóis que chegaram no terceiro quartel do século XVI. Essas alianças ocorriam, principalmente, através do casamento de suas filhas que oferecendo parcelas das sesmarias dos pais como dote, atraíam os reinóis endinheirados. O caso de João Pais Barreto, que chegou a Capitania de Pernambuco em 155721, e deixou praticamente um engenho para cada filho, parece não ter sido algo rotineiro, pois “na formação da Açucarocracia pernambucana, o papel dos troncos duartinos consistiu menos em fundar engenhos do que em dispensar terras e mulheres a quem podia erguê-los” 22.

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MELLO, Evaldo Cabral de. O bagaço da cana. São Paulo: Penguin & Companhia das Letras, 2012. pp. 24-26. 19 MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: O imaginário da restauração pernambucana. São Paulo; Alameda, 2008. p. 129. 20 Grupo de colonos fixados durante o governo de Duarte Coelhos, de seus filhos e sua viúva, D. Brites de Albuquerque. 21 Esta informação a respeito do ano da chegada de João Pais Barreto a Capitania, também fornecida por Pereira da Costa, pôde ser confirmada por uma pequena genealogia elaborada em um requerimento de um descendente do mesmo ao Conselho Ultramarino. AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 85. Doc. 7027. 22 MELLO, Evaldo Cabral de. Op cit, p. 132.

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Desde o medievo, a agricultura era vista como um ofício nobilitante, honroso e admirável em Portugal, desde que o cultivo fosse feito em terras próprias.

Desta forma, a posse de avultadas extensões de terras,

paralelamente ao controle de numerosos dependentes, e a sua constituição enquanto potentado local aproximava a Açucarocracia da condição de nobreza. Como aponta Stuart Schwartz: Esses homens mantiveram-se no ápice da hierarquia social, projetando uma imagem de nobreza, fortuna e poder. Essa imagem sustentou-se em seu permanente controle da terra e dos escravos e no tradicional papel de potentado local que muitos deles encarnaram. (...) Os senhores de engenho ditaram os padrões sociais na colônia e foram os que mais se aproximaram dos modelos vigentes na metrópole. Assim, examinando a composição e o comportamento desse grupo, podemos estabelecer a norma com a qual os demais indivíduos na sociedade eram comparados23.

Aliada à posse de terras, de engenhos e o cultivo de cana, que já se configuravam como atividades de caráter nobilitantes, a ascensão das elites locais da colônia à Nobreza ocorreu, majoritariamente, através dos serviços prestados à Coroa, a partir da chamada “economia de mercê”. Essa prática do Antigo Regime português era derivada de uma visão corporativa da sociedade, que apontava uma concepção de poder régio limitado. Desta forma, ao expandir seus domínios, o Império Português “abriu o leque” de prestação de serviços à Monarquia, e, consequentemente, também ampliou o seu próprio campo de ação. A Coroa assim se configurava como uma “instância reguladora do acesso e reprodução dos estatutos nobilitantes24”. Desta forma, o monarca representava simbolicamente o copo social e político, mantendo seu equilíbrio e harmonia, zelando pela religião, preservando a paz e a ordem, garantindo, sobretudo, a justiça. Atributo mais importante da realeza, a justiça correspondia ao principio de „dar a cada um o que é seu‟, repartindo prêmio e castigo, respeitando direitos e privilégios, cumprindo contratos estabelecidos.25

A nobreza e a fidalguia titular praticamente não estiveram presentes na colônia, excetuando-se os casos de alguns vice-reis e Governadores. A 23

SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos; engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo; Schwarcz, 2011. p. 224. 24 MONTEIRO, Nuno. O “Ethos” Nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império e imaginário social. In: Almanack Braziliense, n.02, 2005. p. 5. 25 BICALHO, Maria Fernanda. Conquista, Mercês e Poder Local: a nobreza da terra na América portuguesa e a cultura do antigo regime. In: Almanack Braziliense, n.02, 2005. p. 22.

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chamada nobreza “civil” ou “política” existiu de forma majoritária na América portuguesa, surgindo primeiramente, ligada ao exercício de certos cargos e a participação em feitos militares que tratassem da conquista do território ou da expulsão de estrangeiros do litoral. Depois, com a ampliação da malha administrativa e das Tropas Auxiliares, o exercício nesses ambientes também passou a nobilitar. Segundo Maria Beatriz Nizza, A vontade do rei em transformar alguém nobre aparecia, segundo os tratadistas da nobreza, de duas maneiras: uma expressa, a outra tácita. A primeira ocorria quando o monarca, “de palavra ou por escrito”, declarava alguém “fidalgo, cavaleiro ou simplesmente nobre”. A segunda forma tinha lugar quando fosse conferida a um indivíduo alguma dignidade, posto ou emprego “que de ordinário costume andar gente nobre” 26.

No caso de Pernambuco, a nobreza local se identificou diretamente com a Açucarocracia, mais especificamente, quando este grupo passou a afirmar além da sua antiguidade na conquista e povoamento da Capitania, o seu protagonismo na guerra de Restauração Pernambucana. Uma nobreza em terra já existia, formada pela pequena nobreza portuguesa transplantada e por alguns colonos protagonistas na conquista do território, mas no post bellum os critérios para ascensão à mesma sofreram algumas mudanças e surgiu uma Nobreza da Terra. Passou-se, então, a valorizar mais a descendência de um herói das guerras holandesas ou de um colono duartino do que a nobreza reinol ou um parentesco com um fidalgo da Casa Real. Nobreza da terra designava basicamente as famílias açucarocráticas de Pernambuco durante o século e meio de colonização, os filhos e os netos de indivíduos, que embora destituídos da condição de nobres no Reino, haviam participado das lutas contra os holandeses ou exercido as funções de gestão municipal, os chamados „cargos honrados da república‟.27”

Um descendente de colono de extração plebeia poderia alcançar a qualidade de nobre da terra, por ato da coroa, como recompensa por serviços prestados durante a guerra, ou através do exercício de cargos honrados, mas não deixava de ser essencial que, por trás destas ações, ao menos de início, operasse a fortuna familiar e a posse de avultados bens, para que assim se

26 27

SILVA, Maria Beatriz Nizza. Ser nobre na colônia. São Paulo: Editora UNESP, 2005. p. 18 MELLO, Evaldo Cabral de. Op cit, p. 162

22

pudesse legitimar o acesso às posições de prestígio, ou seja, viver a lei da nobreza 28. Desta forma, quem, mesmo descendendo de fidalgo lusitano ou de povoador da Nova Lusitânia, não houvesse logrado enraizar-se em engenho de açúcar tendia a cair no esquecimento nobiliárquico, excluindo-se da memória genealógica. No final das contas, a família nobre e a propriedade açucareira tornaram-se praticamente coextensivas 29.

Numa sociedade latifundiária, monocultora e escravocrata como a da Capitania de Pernambuco, além de adquirir o estatuto de nobre, se deveria “tratar-se à lei da nobreza” mediante a posse de cavalos, escravos e, principalmente, de propriedades. A posse de terras e engenhos constituía, portanto, num dos principais fatores para a aproximação com a nobreza da terra. Neste sentido, alguns senhores de engenhos buscaram garantir que as suas propriedades permanecessem sob a posse de suas famílias através dos anos e vicissitudes da vida, vinculando-as por meio da fundação de morgadios, cuja administração caberia ao primogênito.

28 29

BICALHO, Maria Fernanda. Op cit. pp. 24-25 MELLO, Evaldo Cabral de. Op cit, p. 173

23

Capítulo 2 “Para conservação e memória do seu nome...”: a vinculação de bens e a formação do patrimônio social e econômico da família Pais Barreto.

24

2.1 Para a perpetuação da unidade: a indivisibilidade do patrimônio familiar. Vincular propriedades e bens em forma de Morgadio expressava um esforço de perpetuação da família e da riqueza que a mesma havia adquirido. Consistia numa ação de regulamentação jurídica e administrativa de um patrimônio, através do qual também se transmitiam regras de conduta social e modelos de comportamento. A forma de relacionamento com o mundo dos antepassados também era transmitida através das gerações30, uma vez que fundar um morgadio era um ato calcado no passado, mas que se projetava no futuro, e a manutenção do mesmo dependia quase que integralmente, de como os herdeiros do vinculo se comportariam mediante as vontades expressas pelo instituidor. Portanto, em regra, a instituição de um morgadio correspondia à fundação de uma “casa e morgado”, geralmente associada à perpetuação do apelido de uma linhagem e às respectivas armas, ficando os ulteriores sucessores dos bens vinculados para o efeito com a administração dos mesmos na sua totalidade, mas com obrigações pias várias e de fornecerem alimentos ou dote aos colaterais. Criava-se, assim, um conjunto de direitos e obrigações recíprocas31.

Existem muitas divergências em torno das origens do hábito de se vincular os bens da família. Para alguns, o Morgadio surgira em Portugal através da fusão do direito romano com o dos antigos Godos, originando as “leis da avoenga”. Essas leis tinham em comum com as leis do morgadio a finalidade de conservar os bens na mesma família, mas diferiam em todo o resto, como o direito de primogenitura e o privilégio de um sexo sobre o outro32. Para outros, este hábito teria sua origem no direito consuetudinário, ou seja, nos costumes de um povo, tendo chegado às legislações através do seu uso constante pela população. O jurista Manuel de Almeida e Sousa de Lobão sintetizou o assunto com bastante clareza:

30

ROSA, Maria de Lurdes. O Morgadio em Portugal Sec. XIV – XV. Lisboa: Editorial Estampa, 1995. pp. 23-25. 31 MONTEIRO, Nuno. Morgado. In: MADUREIRA, Nuno Luís. (Coord) MARTINS, Conceição. MONTEIRO, Nuno. (Orgs) História do Trabalho e das ocupações. vol.3. A Agricultura: Dicionário. Oeiras: Celta, 2002, p 79. 32 CALDEIRA, João Luís Picão. O morgadio e a expansão no Brasil. Lisboa: Tribuna da História, 2007. pp. 23-24.

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seja qual for a analogia que as Constituições de mais antigos direitos tenham com os Morgados (... ) o modelo, tipo, e origem deles, quais os admitimos, tem por base fundamental, e por seu protótipo as Leis, e Costumes da nossa Nação ( ... ) As primeiras Leis fundamentais regularão a sucessão do Reino como hum próprio e verdadeiro morgado33.

Embora os primeiros morgadios portugueses tenham sido instituídos pela população fidalga ainda na Baixa Idade Média, as primeiras compilações legislativas portuguesas, as Ordenações Afonsinas (1446) e Manuelinas (151214), não incluíram nenhum título a respeito da sucessão vincular, mas apenas alguns incisos que estabeleciam algumas diferenciações e normas a respeito da propriedade vinculada34. As Ordenações Afonsinas determinavam a distinção entre o morgadio instituído por particulares ou em bens da Coroa e da Igreja, reforçando o valor da carta de instituição para o primeiro caso. Já as Ordenações Manuelinas, abordando a figura do herdeiro, estabeleciam o direito da primogenitura e a masculinidade na sucessão dos bens da Coroa, além de diferenciar a Capela Familiar do Morgadio, que, até então, eram utilizadas como sinônimos. Segundo essa legislação, se o fim principal do instituidor fosse a salvação das almas através do estabelecimento de obras pias, a instituição seria denominada capela, se fosse conservar o nome e bens na família e as obra piedosas constituíssem um encargo parcial seria chamada de morgadio35. As Ordenações Filipinas, de 1603, foram as primeiras a incluírem um título específico sobre os morgadios, mais especificamente a respeito do funcionamento da sucessão ao vínculo, que, em síntese, reproduzia o modelo de sucessão da monarquia, tendo como principal fundamento a primogenitura e a varonia. No título denominado “Por que ordem se succederá nos Morgados e bens vinculados” se determinou que concorrendo na sucessão dos Morgados irmãos, varão e femea, ordenamos, que sempre o irmão varão succeda no 33

Lobão, Manuel de Almeida e Sousa de. Tratado prático de morgados. 2 ed. Lisboa: Impressão Régia, 1814. Cap I § 8. 34 MONTEIRO, Nuno. Morgado. In: MADUREIRA, Nuno Luís. (Coord) MARTINS, Conceição. MONTEIRO, Nuno. (Orgs) História do Trabalho e das ocupações. vol.3.A Agricultura: Dicionário. Oeiras: Celta, 2002, p 77 – 78. 35 CALDEIRA, João Luís Picão. O morgadio e a expansão no Brasil. Lisboa: Tribuna da História, 2007. p. 51-55.

26

Morgado e bens vinculados, e preceda a sua irmã, posto que seja mais velha. E o mesmo será nos outros parentes em igual grao mais chegado ao ultimo possuidor, porque sempre o varão precederá na sucessão à femea posto que ella seja mais velha36.

A sucessão dos bens vinculados

tinha, além da indivisão e

inalienabilidade dos mesmos, como principais alicerces a primogenitura e a varonia, uma vez que o filho mais velho tinha direito a herdar os bens vinculados e, mesmo que mais novo, o irmão precedia a irmã mais velha na sucessão. Esse costume dos primogênitos encabeçarem a unidade familiar era anterior ao surgimento dos vínculos, e sua difusão pode ser explicada por elementos da tradição judaico-cristã, como passagens contidas no Êxodo e Deuteronômios37, e feudais, de que, por presunção, o amor dos pais seria maior em relação ao filho mais velho, atribuindo um caráter sagrado e praticamente sacerdotal ao mesmo. A origem quase divina deste fundamento dos direitos da primogenitura fazia com que estes fossem inderrogáveis38. Mesmo com toda uma legislação voltada à regulamentação em torno do funcionamento da sucessão dos bens vinculados e do morgadio em si, um dos mais importantes elementos desta instituição era a figura do instituidor do vinculo. Eram as vontades deste, expressas por testamento ou contrato, que regulamentava o funcionamento do Morgadio da família 39. Após tratar da estrutura da sucessão vincular, as Ordenações Filipinas determinaram que essas formas só deveriam ser implementadas se o instituidor assim determinasse, pois a palavra deste era a ordem definitiva para o funcionamento do morgadio. Tal determinação pode ser observada com clareza no seguinte trecho:

36

Ordenações Filipinas, L° IV, tít. 100 §1 “Quando um homem tiver duas mulheres, uma a quem ama e outra a quem despreza, e a amada e a desprezada lhe derem filhos, e o filho primogênito for da desprezada, será que, no dia em que fizer herdar a seus filhos o que tiver, não poderá dar a primogenitura ao filho da amada, preferindo-o ao filho da desprezada, que é o primogênito. Mas ao filho da desprezada reconhecerá por primogênito, dando-lhe dobrada porção de tudo quanto tiver; porquanto aquele é o princípio da sua força, o direito da primogenitura é dele.” Deuteronômio 21: 15-17 38 HESPANHA, Antônio Manuel. Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos histórico-antropológicos da família na época moderna. Análise Social, Lisboa, vol.28, n. 123, p. 951-973, 1993.pp. 964 – 966. 39 ROSA, Maria de Lurdes. O Morgadio em Portugal Sec. XIV – XV. Lisboa: Editorial Estampa, 1995. p. 38-41. 37

27

E tudo o que acima dito he, se entenderá, não declarando, ou dispondo o instituidor em quaisquer dos ditos casos em outra maneira, porque o que ele ordenar e dispozer se cumprirá40.

Além do cumprimento das cláusulas estabelecidas pelo instituidor no documento de instituição do vínculo, a outra forma de manutenção da memória do mesmo acontecia através da perpetuação do apelido da linhagem. Nesse sentido, observamos a constante atribuição do nome e sobrenome do fundador aos filhos primogênitos e sucessores da administração do morgadio. Tal costume visava além da homenagem ao instituidor do vinculo, uma identificação mais fácil dos herdeiros nos meios sociais, corroborando, assim, para a manutenção da condição dos mesmos enquanto membros da elite. Até 1770 não havia nenhuma exigência para a prova de nobreza na institucionalização de um morgadio, mas o mesmo era visto como um verdadeiro código de conduta, se impondo como referência para os grupos aristocráticos e, consequentemente, a todos aqueles que buscavam reproduzir os seus comportamentos41. Segundo as Ordenações Filipinas aqueles que instituem morgadio de seus bens, e os vinculam para andarem em seus filhos, e descendentes, conforme cláusulas das instituições que fazem, e ordenam, é para a conservação e memória do seu nome e acrescentamento dos seus estados, casas e nobreza, e para que em todo o tempo se saiba a antiga linhagem donde procedem42.

Desta forma, a prática de vincular bens para um sistema de primogenitura na herança, que seguia em sua maioria, a mesma ordem adotada para a sucessão ao trono monárquico, aparecia como uma das características do “viver à lei da nobreza”. A nobreza aparecia, assim, de forma tácita na legislação, uma vez que, como visto no trecho supracitado, a fundação de um vinculo tinha como objetivo primordial a conservação da memória e nome das famílias e “o acrescentamento dos seus estados, casas e nobreza”.

40

Ordenações Filipinas, L° IV, tít. 100 §3 MOTTA, Márcia Maria Menendes. Minha casa, minha honra: morgados e conflitos no Império português. In: MONTEIRO, Rodrigo Bendes; CALAINHO, Daniela Buono. et al. Raízes do privilégio: mobilidade social no mundo ibérico do Antigo Regime. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. pp. 639-666. pp. 645 - 646 42 Ordenações Filipinas, L° IV, tít. 100 §5. 41

28

Ainda no século XVI, momento de maior proliferação dos vínculos no Reino, muitas criticas a instituição vincular foram elaboradas por juristas e outras camadas da população. As principais queixas eram referentes aos efeitos da amortização das terras decorrentes da instituição de vínculos e do caráter antinatural do direito de apenas um filho herdar os bens da família. Também se alegava que a imoderada faculdade de vincular bens tornara excessivamente vulgar a posse de morgados, quando estes deviam ser “distintivos da nobreza‟” e tal vulgarização era contrária à constituição da monarquia43.

Uma possível solução para essas queixas só chegou à legislação no Reinado de D. José e, por influencia do liberalismo e ilustração pombalina, foram adotadas algumas medidas a fim de moderar as instituições de vínculos, que, em demasia, também prejudicavam o giro do comércio44. A lei de 03 de Agosto de 1770 deixou claro que só podiam encaminhar petições para a fundação de morgadios fidalgos, nobres ou aqueles que tivessem prestados serviços à Coroa, nas armas ou nas letras. Esta mesma lei também determinava que os morgadios que rendessem menos de cem mil reis deveriam ser extintos e que apenas podiam ser instituídos vínculos com rendimento de um conto de réis no Reino e no Brasil45. A proibição da fundação de morgadios no Brasil só veio a acontecer em 1835, já no Império, e a extinção dos mesmos em 1837. Segundo Maria Beatriz Nizza, as ideias em torno da existência de poucos vínculos no Brasil foram oriundas do discurso utilizado em prol da sua extinção, elaborado no intuito de minimizar o impacto social da abolição destes46. Os morgados teriam sido mais numerosos na América portuguesa do que se expõem, bastando abrir as obras de alguns genealogistas coloniais para nos depararmos com diversos indivíduos instituidores e administradores de morgadios47.

43

SILVA, Maria Beatriz Nizza. Herança no Brasil colonial: os bens vinculados. Revista de ciências históricas, Univ. Portucalense, Porto, vol. V, p.291-319, 1990. p.297 44 Idem. 45 CALDEIRA, João Luís Picão. O morgadio e a expansão no Brasil. Lisboa: Tribuna da História, 2007. pp. 109 – 110. 46 SILVA, Maria Beatriz Nizza. Op Cit., pp. 291 – 292. 47 Como o Governador Geral do Brasil Mem de Sá, Jerônimo de Albuquerque, e o morgadio da família Marinho de Pernambuco, conhecido vulgarmente com Caiará.

29

Sem dúvida existiram muitos pequenos morgadios ainda desconhecidos nominalmente pela historiografia, mas os mais afamados vieram a ser o da Casa da Torre dos Garcia D‟Ávila, cujo território vinculado de adentrava pelos sertões das Capitanias do Norte, o de Santa Barbara, situado na Capitania da Bahia, e o Morgadio de Nossa Senhora da Madre de Deus, situado na Freguesia de Santo Antônio do Cabo na Capitania de Pernambuco. Conhecido vulgarmente como Morgado do Cabo, este último veio a ser um dos vínculos de maior longevidade na América portuguesa. 2.2 Os Pais Barreto: a formação do patrimônio e a fundação do Morgadio de Nossa Senhora da Madre de Deus. Assim como alguns filhos não primogênitos dos Morgadios reinóis, impedidos pela ordem de nascimento a herdarem os bens vinculados, o que em alguns casos poderia corresponder a grande parte dos bens familiares, João Pais Barreto, se viu compelido a tentar a sorte e aventurar-se no Ultramar. Originário do Minho, região situada ao Norte de Portugal, o filho de Antônio Velho Barreto e Marianna Pereira da Silva, “cuja nobreza era manifesta”, era “natural e da melhor nobreza de Viana, descendente dos morgados da Bilheira, senhores da Torre Constantino Barreto”, situado na foz do rio Lima, que desembocava ao sul de Viana de Castelo 48, e teria chegado a Capitania Duartina em 1557, quando tinha por volta de 13 anos de idade49. Ainda na segunda metade do século XVI, no sul da Capitania, as regiões próximas ao que viria a ser a Freguesia de Santo Antônio do Cabo se encontravam ocupadas pelos indígenas. Duarte de Albuquerque Coelho, então Donatário, por acreditar que estas terras “eram as mais férteis e melhores, determinou de lhes fazer despejar por guerra”.50 Para isso, ordenou que a gente de Igaraçú fosse por capitão Fernão Lourenço, que era o mesmo capitão da dita villa; com a gente de Paraty Gonçalo Mendes Leitão, irmão do Bispo, que então era Pedro Leitão e casado com um filha de Hyeronimo de Albuquerque; com a gente da várzea do Capiguaribe 48

FONSECA, Antonio José Victoriano Borges da. Nobiliarquia Pernambucana. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1935. v.2. p. 26. 49 Esta informação a respeito do ano da chegada de João Pais Barreto a Capitania, também fornecida por Pereira da Costa, pôde ser confirmada por uma pequena genealogia elaborada em um requerimento de um descendente do mesmo ao Conselho Ultramarino. AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 85. Doc. 7027. 50 SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. São Paulo: Weiszflog Irmãos,1918. p. 198.

30

Christovão Lins, fidalgo alemão. E da gente da Villa, mercadores e moradores, porque eram de diversas partes do reino, ordenou outras três companhias, e por capitão dos viannenses João Paes51.

Após algumas campanhas, a guerra contra os indígenas foi encerrada, e as terras conquistadas foram logo sendo repartidas e doadas em forma de sesmarias para os que lutaram na sua conquista. Como agradecimento pelos serviços prestados a Coroa, João Pais Barreto recebeu a sua parcela de terra situada ao longo da bacia do Arassuagipe, mais tarde chamado de Pirapama. Os sesmeiros desta região, Segundo Frei Jaboatão, começaram logo a lavrar, as quaes, como acharam tanto mantimento plantado, não faziam mais que comel-o e plantal-o da mesma rama e nas mesmas covas. E com isto foram fazendo cannaviaes e engenhos de assucar com que enriqueceram muito, por a terra ser fertilíssima, e só um, que por isso se chamou João Paes do Cabo, chegou a fazer oito engenhos52.

O numero de engenhos levantados por João Pais Barreto foi realmente excepcional, pois como sabemos os colonos duartinos não lograram a “melhor parte do quinhão”, uma vez que não dispunham de cabedais suficientes para edificar engenhos. Com isso, muitos duartinos se viram impelidos a repassarem as terras adquiridas ou a estabelecerem alianças através do casamento de suas filhas com reinóis com interesse e condições de investirem no fabrico do açúcar53. Acreditamos, então, que o sucesso de João Pais no cultivo da terra tenha se dado graças a uma pequena fortuna familiar que o mesmo trouxe consigo ao deixar o Reino, provavelmente, correspondente às suas legitimas da herança, e também adquirida através do seu casamento com Inês Guardes de Andrade, “filha do abastado agricultor e proprietário rural, Francisco de Carvalho Andrade” e de sua mulher Maria Tavares Guardes, do Engenho São Paulo54. João Pais recebeu a doação de sesmarias na várzea do Pirapama e na ribeira do Una. Segundo Pereira da Costa, “veio de tais concessões de terras a 51

Idem. Idem.p. 200. 53 MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: O imaginário da restauração pernambucana. São Paulo; Alameda, 2008. p.132 54 COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Anais Pernambucanos. Recife: Secretaria do Interior e Justiça, v. 1,1951-1966. pp. 488 - 489 52

31

construção dos primeiros engenhos da localidade, ocupando o primeiro lugar o que recebeu o nome de Madre de Deus”, e por tal precocidade auferiu a alcunha de Engenho Velho55. Além deste, João Pais edificou o engenho Jurissaca, de invocação São João Batista; o engenho Guerra, de invocação Santo Antônio; o engenho Novo, de invocação São Miguel; o engenho Algodoais, de invocação São Francisco; o engenho Ilha ou Ilhetas, de invocação Nossa Senhora do Guadalupe; o engenho Garapu, de invocação Espírito Santo; e o engenho Santo Estevão56. Além destes oito engenhos, ele comprou o engenho Pirapama a Cristovão Lins, em 1586 57, e o Utinga aos herdeiros de Felipe Cavalcanti58. Estes engenhos formaram a base econômica da família Pais Barreto, e o avultado número destes, associados à prestação de serviços à Coroa, refletiu na construção de uma condição para a família, enquadrando-os como membros da Açucarocracia, metamorfoseada em “Nobreza da Terra” no Post Bellum. Visando salvaguardar o patrimônio construído, e consequentemente, manter a condição da família, João Pais Barreto resolveu, então, adotar a forma de sucessão vincular da qual o mesmo havia sido excluído pela sua família no Reino. E em outubro de 1580, juntamente com sua esposa, Inês Guardes, instituiu o Morgadio de Nossa Senhora da Madre de Deus em favor do seu filho primogênito, João Pais Barreto, o segundo, e a todos primogênitos varões que viessem depois dele. Os bens vinculados foram o engenho da Madre de Deus, depois Chamado engenho Velho, situado em uma légua terra que os instituidores possuíam- à margem do rio Arassuagipe nos brejos do Cabo de Santo Agostinho, - e duas casas situadas na vila de Olinda, cujos bens, tirados das têrças de cada um deles, constituíram o patrimônio do vinculo, sendo a sua renda, então, estimadas em mil cruzados anuais59.

55

COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Anais Pernambucanos. Recife: Secretaria do Interior e Justiça, v. 7,1951-1966. p. 325 56 Idem. p 326 57 No requerimento do Capitão Patrício José de Oliveira ao rei (D. José I), pedindo provisão para demarcar e tombar as terras de seu engenho Pirapama, na freguesia do Cabo de Santo Agostinho, pela sua antiga posse, títulos, confrontações e limites, temos a informação de que o engenho teria sido comprado por João Pais Barreto neste ano. AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 118. Doc. 8992. 58 MELLO, Evaldo Cabral de. O bagaço da cana. São Paulo: Penguin & Companhia das Letras, 2012. p. 101. 59 COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Op. cit. v1, p. 488

32

Até o momento, não encontramos o documento de instituição do Morgadio de Nossa Senhora da Madre de Deus, acreditamos, inclusive, que o mesmo esteja entre os diversos documentos da Misericórdia de Olinda que não resistiram ao tempo. Mas, para nossa sorte, tivemos acesso ao codicilo60 de João Pais Barreto, datado de 1617, onde o mesmo faz a divisão dos bens não vinculados, que, talvez, não tivessem sido mencionados no testamento, entre os filhos não primogênitos, que não foram desprezados da partilha após a sua morte. Ficou determinado que: Miguel Pais Barreto herdasse o engenho Algodoais; Antônio e Estevão Pais Barreto partilhassem o Utinga; Felipe Pais Barreto herdasse engenho Garapu. Além destas doações João Pais Barreto solicitou que seu filho homônimo, cumprisse a escritura de dote da sua filha Dona Luiza de Souza, também chamada de Catarina Barreto que aparece no codicilo com seu nome completamente aglutinado ao do marido, Dom Luiz de Souza. O dote de Dona Catarina, consistia, por sua vez, do engenho Jurissaca, com uma légua de terra, onde também se deveria instituir um morgadio. No mesmo documento, João Pais Barreto, deixa por seu testamenteiro o seu filho João Pais Barreto e administrador de toda a fazenda e tutor de seos irmãos para que os acomode como bem parecer e reparta as terras direitamente e coma entre eles e tenha cuidado na sua may e seja seo administrador(...) e pede que seos filhos pelo amor de Deos se hajão bem uns com os outros e q. obedessão o irmão João Pais e hajão por bem o q. ele fizer e testemunhas da verdade61.

Como podemos observar no documento acima citado, a indivisibilidade do patrimônio, e a unidade familiar forçada por essa ação, realçavam os direitos e deveres mútuos entre os familiares que viviam na sombra do administrador. Nesse sentido, o Morgado, título dado ao herdeiro do vinculo, passava a ser o tutor, não só dos bens vinculados, mas de irmãos e membros da linha secundária da linhagem, que lhes deviam obediência e respeito. O administrador do morgadio era, assim, uma continuação do próprio pai.

60

O codicilo consiste em um escrito onde são expressas as últimas vontades de um indivíduo, através do qual se pode adicionar alguns termos ao testamento. 61 PIO, Fernando. Cinco documentos para a história dos engenhos de Pernambuco. In: Revista do Museu do Açúcar. N. 02, 1969. p. 19

33

João Pais Barreto, o velho62, teria morrido, no mesmo ano em que escreveu o codicilo supracitado, com ares de santidade. Segundo Borges da Fonseca, ele teria sido mais famoso pelas virtudes de que Deus o enriqueceu do que pelos bens temporaes, que possuio com santo temor de Deus, distribuindo com grandes sommmas de dinheiro em obras pias, principalmente na Casa da Santa Misericórdia de Olinda, de que foi muitas vezes Provedor e nella edificou o hospital em que se veem gravadas as suas armas63.

Os descendentes de João Pais Barretos seguiram cumprindo as suas vontades através da conservação do seu patrimônio, e também almejando manter a memória do ilustre ascendente viva por meio da perpetuação do apelido da linhagem. Neste sentido, observamos a constante atribuição do nome do instituidor do morgadio aos filhos primogênitos e sucessores diretos do vinculo, e dos oito Morgados que administraram o vinculo até a sua extinção, em 1837, encontramos cinco João Pais Barreto, dois Estevãos e um Francisco. Em relação a essa prática, Maria Beatriz Nizza atenta que “a repetição

dos

mesmos

nomes

e

sobrenomes

tornam

a

genealogia

pernambucana uma das mais complicadas do Brasil colonial” 64. Acreditamos que para os descendentes de João Pais Barreto foram transmitidos,

além

de

nomes

e

propriedades,

formas

de

ação

e

comportamentos dentro da sociedade em que viviam que contribuíram para a manutenção da condição social e econômica da família na segunda metade dos setecentos.

62

Apelido dado para diferencia-lo de seu filho homônimo e primeiro morgado, João Pais Barreto, o moço. 63 FONSECA, Antônio José Victoriano Borges da. Nobiliarquia Pernambucana. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1935. V.2. p. 26 64 SILVA, Maria Beatriz Nizza. A história da família no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 35

34

Capítulo 3 Os Pais Barreto e a segunda metade dos setecentos: nobilitação, trajetória e espaços.

35

3.1 “Por ser dos homens nobres das principais famílias desta terra...”: a nobilitação dos Morgados. João Pais Barreto (5.1)65 teria assumido a administração do Morgadio de Nossa Senhora da Madre de Deus em 1711, com a morte do seu homônimo pai. Em 1735, recebeu a patente de Capitão-Mor da Freguesia de Santo Antônio do Cabo, por ser dos homens nobres das principaes famílias desta terra, afazendado e de bom procedimento, Morgado e filho de João Pais Barreto capitão-mor que foi da mesma Freguesia, cujo posto exerceram até falecimento todos seus antepassados, pelo bem que tem servido a Vossa Majestade66

Ao fazermos o levantamento dos postos militares exercidos pelos Morgados, observamos uma recorrência da ocupação das mais altas patentes da Freguesia do Cabo. Com base nos dados arrolados, notamos que todos os membros da família, administradores do Morgadio, receberam postos militares no Terço, na Ordenança ou nos regimentos no Cabo, excetuando-se a patente de Capitão de Cavalos da Ordenança da Muribeca. No quadro abaixo, podemos

observar

os

principais

cargos

militares

concedidos

aos

administradores do vinculo da família entre os anos de 1684 e 1774. Quadro 01 – Patentes Militares recebidas (1684 – 1774) Nome Estevão Pais Barreto (3.2) João Pais Barreto (4.1) João Pais Barreto (5.1)

Estevão José Pais Barreto (6.1)

Patente Capitão-Mor da Freguesia de Santo Antônio do Cabo Capitão-Mor da Freguesia de Santo Antônio do Cabo Capitão-Mor da Freguesia de Santo Antônio do Cabo Capitão de Cavalos da Ordenança do Distrito da Muribeca Tenente Coronel do Regimento da cavalaria Auxiliar da Freguesia do Cabo Mestre de Campo do Terço Auxiliar do Cabo

Data de concessão 1684 1701 1734

1750

1766

1775

Fonte: AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 13. Doc. 1302 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx.48. Doc. 4314 AHU- Avulsos de Pernambuco Cx.19. Doc 1873 AHU – Avulsos de

65

Esta numeração dos membros da família Pais Barreto é referente ao mapa genealógico da mesma. Ver Anexo I. 66 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx.48. Doc. 4314

36

Pernambuco Cx.77. Doc. 6403 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx.106. Doc. 8233 APEJE – Patentes Provinciais. Livro 02 Fl. 26.v

A importância do exercício de postos em Ordenanças e Tropas Auxiliares decorria não só de representarem um atestado de nobreza a quem os ocupava, mas também dos privilégios que eram concedidos a estes oficiais. Desejava o rei que as pessoas alistadas nas companhias auxiliares o fizessem com “melhor vontade” e o servissem “com melhor gosto”. Assim, deixaram de ser obrigados a contribuir com “peitas, fintas, talhas, pedidos, serviços, empréstimos, nem outros encargos dos Concelhos”.(...) Seriam além disso “filhados aos foros da Casa Real” aqueles que o merecessem, “conforme as qualidades de suas pessoas”67

Acreditamos, então, que a ocupação recorrente dos mais altos postos da Freguesia de Santo Antônio do Cabo mostra que a família possuía uma posição prestigiada localmente. Além do prestigio, as demais vantagens conferidas a quem exercia estes postos também podem ter corroborado para o interesse continuado dos Pais Barreto pelos mesmos. Das patentes alcançadas pela família destacamos a de Capitão-Mor e de Mestre de Campo. O posto de Capitão-Mor deveria ser ocupado por pessoas da “melhor nobreza e cristandade” 68, e consistia na mais alta patente das Ordenanças. Já o posto de Mestre de Campo, alcançado por Estevão José Pais Barreto (6.1), por sua vez, configurava-se como o mais alto comando dos corpos auxiliares69. Numa sociedade extremamente hierarquizada como a da América Portuguesa, aqueles que aspiravam à condição de nobres não se satisfaziam com uma fonte única de nobreza, e mesmo já tendo acesso a um posto militar, a uma propriedade vinculada ou a um ofício civil, pretendiam um hábito das ordens militares ou a familiatura do Santo Ofício. Era através da graça de várias mercês, reforçadas umas pelas outras, que a nobreza de um indivíduo se impunha socialmente. Ser cavaleiro professo da Ordem de Cristo era um fator de grande prestígio para aqueles que conseguiam vestir seus hábitos, e constituía de uma posição bastante almejada pelos que faziam parte dos “principais da terra”.

67

SILVA, Maria Beatriz Nizza. Ser nobre na colônia. São Paulo: Editora UNESP, 2005. P. 150. SALGADO, Graça (coord.). Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil Colonial. 2° ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p.312. 69 Ibid. p. 308 68

37

Todos aqueles que objetivavam fazer parte da Ordem deveriam passar pelas provanças, uma investigação efetuada por um comissário escolhido entre os cavaleiros residentes no lugar de domicílio do interessado que se destinava a determinar se o cavaleiro tinha “defeito de sangue”

70

ou “defeito mecânico”

71

.

Os membros da família Pais Barreto sempre tiveram acesso à Ordem De Cristo sem grandes dificuldades, até que em 1705 Felipe Pais Barreto(4.2) teve seu hábito negado, pois ao serem feitas as suas provanças, ficou determinado que o mesmo possuía casta de cristão-novo através de sua mãe72. Tal episódio, belamente destrinchado por Evaldo Cabral de Mello, terminou por revelar a ascendência serfardita de muitas famílias da Nobreza da Terra. Provavelmente por temerem um novo escândalo, os Pais Barreto não fizeram solicitação alguma de hábitos por cerca de setenta anos. Só após a extinção dos estatutos de pureza de sangue pelo Marquês de Pombal, em 177373, Estevão José Pais Barreto requereu habilitação para a Ordem de Cristo, cujo hábito e tença lhes foram conferidos em 177474.

3.2 As propriedades vinculadas: Morgadios de Nossa Senhora da Madre de Deus e Jurissaca. Como administrador do Morgadio de Nossa Senhora da Madre de Deus, em 1753, João Pais Barreto(5.1) entrou para a concorrência da polêmica sucessão do Morgadio de Jurissaca, ao qual se encontrava vinculado um engenho de mesmo nome. Este engenho havia sido dado por João Pais Barreto(1.1), o velho, a sua filha Catharina Barreto (2.8) como dote pelo seu casamento com D. Luiz de Souza, e a sua pretensão era: Para que nele se fizesse um Morgadio de mil cruzados para sempre com a obrigação de cinco missas e que na ordem de sucessão determinou o dito João Pais que sucedesse o

70

Se descendia de sangue mouro, judeus, negro ou indígena. Se era descendente de um individuo que exercera atividade ou ofício manual. 72 Para mais informações sobre o processo de habilitação de Felipe Pais Barreto e a descoberta de ascendência marrana de várias das família mais importantes da Capitania de Pernambuco ver: MELLO, Evaldo Cabral de. O nome e o sangue: uma parábola familiar no Pernambuco colonial. 2° ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000. 73 OLIVAL, Fernanda. Rigor e interesses: os estatutos de limpeza de sangue em Portugal. Cadernos de Estudos Sefarditas, n° 4, 2004, pp. 151-182. p. 182-183 74 HOC - Registo Geral de Mercês de D. José I, liv. 27, f. 84. ANTT. Disponível em: http://digitarq.arquivos.pt/details?id=1941510. Acesso em: 10 de janeiro de 2015. 71

38

primeiro filho que tivesse seo genro D. Luiz de Souza e não os tendo, a filha mais velha75.

D. Luiz de Souza não formalizou a criação do Morgadio, mas sim seu filho D. João de Souza, que lhes anexou outros bens, como determinado na instituição. D. João de Souza, e sua esposa, Ignez Barreto, filha de Felipe Pais Barreto (2.6), não deixaram descendência. Assumiu, então, no Morgadio de Jurissaca o filho natural de D. João de Souza, Francisco de Souza, iniciando uma linha bastarda de sucessão. Depois dele, sucedeu seu filho com Úrsula Cavalcante, o também D. Joao de Souza, que em 1749 faleceu sem sucessão76. A querela se deu em torno da dúvida sobre quem teria instituído o Morgadio, concorrendo João Pais Barreto (5.1), João Marinho Falcão, Francisco de Souza, e João de Souza Passos. Segundo Lobão, em caso de controvérsia sobre a sucessão do Morgadio por morte do último possuidor, se deveria analisar se o mesmo foi legítimo sucessor ou intruso, pois mostrandose como intruso não deve ser entendido como o último possuidor.77 Logo se apurou que D. João de Souza havia simplesmente cumprido com o que o instituidor havia solicitado para que o mesmo fosse formalizado, com acrescentamento das terças de cada parte, totalizando 40 mil cruzados. Ficou, então, decidido que o Morgadio havia sido criado por João Pais Barreto(1.1), estabelecendo-se pertencer ao autor João Pais Barreto a sucessão do Morgado como legítimo sucessor dele por linha legítima e varonil dos mesmos instituidores João Pais, o velho, e sua mulher Ignez Guardez e ser o que se acha em grau mais próximo com os dito sem defeito algum, preferindo aos mais oponentes pelos fundamentos ponderados.78

Assumir a administração do Morgadio de Jurissaca não significava, porém, que o mesmo fosse se aglutinar ao Morgadio de Nossa Senhora da Madre de Deus, passando a ser um só, uma vez que esta ação era indesejada

75

Documentos. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. n.282, 1969. p. 68 Documentos, Op. Cit. p. 68-70 77 LOBÃO, Manuel de Almeida e Sousa de. Tratado prático de morgados. 2 ed. Lisboa: Impressão Régia, 1814. pp. 195-196 78 Ibid., p. 78 76

39

pela Coroa79. A legislação Filipina advertia que em casos de morgadios ajuntados por via de casamento, após o nascimento dos filhos, cada um deveria herdar um vinculo diferente, ocorrendo, assim, a sua separação 80. Este, porém, não foi o caso dos Pais Barreto e a partir de 1753 aquele que fosse herdeiro do Morgadio do Cabo também herdaria o vinculo de Jurissaca, mas, mesmo

assim,

a

cada

vinculo

pertenciam

bens

diferentes,

regidos

singularmente pelas ordens do seu instituidor. Ao realizarmos o levantamento dos engenhos pertencentes à família Pais Barreto na segunda metade do século XVIII, percebemos que cinco dos dez engenhos erguidos ou comprados por João Pais Barreto (1.1) permaneceram sob a posse da mesma. Dos cinco engenhos, quatro se encontravam vinculados ao morgadio da Madre de Deus, e um ao morgadio de Jurissaca e outro desvinculado, como podemos observar no quadro 02. A família não possuía, assim, bens livres.

Quadro 02- Relação dos engenhos dos Pais Barreto entre os séculos XVII e XVIII Engenhos

Engenhos sob a posse da família Pais Barreto no Século XVII

Engenhos sob a posse da família Pais Barreto no século XVIII

Algodoais, Garapu, Guerra, Ilha, Jurissaca, Novo, Pirapama, Santo Estevão, Utinga e Velho. Guerra, Ilha, Jurissaca, Santo Estevão e Velho.

Engenhos vinculados

Velho (Madre de Deus)

Velho, Guerra, Ilha, Santo Estevão e Jurissaca

Número total de Engenhos

Número de engenhos vinculados

10

1

5

5

Fonte: AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 95. Doc. 7501. AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 118. Doc. 8992. AHU – Avulsos de Pernambuco Cx.153. Doc. 11038.

Com base nestes dados, acreditamos que ao instituir o Morgadio de Nossa Senhora da Madre de Deus, João Pais Barreto (1.1) determinou que os 79

Ordenações Filipinas, L° IV, tít. 100 §6. Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4p992.htm Acesso em: 30 de novembro de 2014.

80

Idem.

40

futuros administradores adicionassem as sortes de terras que viriam a herdar aos bens vinculados81. A este respeito, um requerimento de João Pais Barreto (5.1) solicitando provisão para poder sub-rogar as terras que na partilha foram incorporadas ao seu morgado com outras mais próximas do mesmo, em 1734, reforça a nossa ideia. Diz João Pais Barreto [...] administrador do Morgado dos Pais alocado no engenho por invocação de Madre de Deus na Freguesia de Santo Antônio do Cabo distrito da capitania de Pernambuco aonde é o suplicante morador e entre as mais terras que na partilha se adjudicarão ao dito morgado, bem assim foy sua sorte de terras, que ficam para a parte de Tinunga e Parassinunga, as quais além de serem em muita distancia são pouco rendosas e de nenhuma utilidade para o dito morgado, por ficarem em distancia de vinte légoas [...] os porquanto as quer sub-rogar com outras mais perto e de melhor utilidade para o Morgado, o que não pode fazer sem ordem de Vossa Majestade.82

Como podemos observar no documento supracitado, mediante a partilha dos bens não vinculados, a parte que cabia ao administrador deveria ser também vinculada, acreditamos que não por inteiro, mas uma parcela dela. Sabemos que no Morgadio os bens não poderiam ser partilhados ou vendidos, mas mediante autorização régia, poderiam ser sub-rogados (trocados) e aforados, desde que tal ação fosse entendida como de melhor utilidade para o mesmo83. Borges da Fonseca ao tratar da genealogia dos Pais Barreto em sua Nobiliarquia Pernambucana, escrita entre 1748 e 1777, diz que o Morgadio do Cabo “hoje comprehende, além do engenho velho, o da guerra, o da ilha e com pretensão ao de Santo Estevão”. Já em 1782, Estevão José (6.1) em um requerimento solicitando o envio de sua irmã (6.2) para um recolhimento diz ser: Legitimo administrador do morgado denominado vulgamente de cabo, que contem quatro engenhos moentes e correntes, a 81

Essa determinação parece ter sido prática corriqueira nos Morgadios fundados no século XVI. O primeiro Governador Geral do Brasil, Mem de Sá, teria determinado na instituição de um morgadio fundado por ele que os sucessores anexassem dois terços de suas terras aos bens já vinculados. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza. Ser nobre na colônia. São Paulo: Editora UNESP, 2005. pp. 123-124 82 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx.40. Doc. 3316 83 MONTEIRO, Nuno. Morgado. In: MADUREIRA, Nuno Luís. (Coord) MARTINS, Conceição. MONTEIRO, Nuno. (Orgs) História do Trabalho e das ocupações. vol.3.A Agricultura: Dicionário. Oeiras: Celta, 2002, p 79

41

saber o engenho velho que hé cabeça do morgado, engenho da ilha, o de guerra e o Santo Estevão.84

Observando este documento, acreditamos que o engenho Santo Estevão tenha sido incorporado ao morgadio entre as décadas de 1750 e 1780. É interessante atentarmos paro o fato de que uma Lei pombalina instaurada em 03 de agosto de 1770 determinava que os morgadios que rendessem menos de cem mil reis deveriam ser extintos e abolidos. Desta forma, a ação de incorporar esse engenho ao vinculo pode não ter sido suscitada pela simples obrigação de anexar parte das propriedades herdadas, mas sim como uma forma de garantir os rendimentos que passaram a ser exigidos ao vinculo, assegurando a existência do mesmo.

3.3 O destino dos não primogênitos e a política de casamentos adotada pela família. A prática da estreita disciplina familiar era inerente ao modelo reprodutivo vincular e se generalizava, praticamente como uma norma, àqueles que adotavam esta forma de sucessão aos bens familiares. Os mais gerais aspectos da difusão deste modelo vincular se relacionavam, assim, com a centralidade da noção de casa e a apertada disciplina familiar à qual se procurava impor a todos os filhos do administrador do vínculo. Dos filhos e filhas não primogênitos se esperava o cumprimento de certas obrigações, e o engrandecimento da casa na qual haviam nascido também dependia das suas contribuições85. Ao realizarmos o levantamento dos filhos não primogênitos e irmãos dos morgados de Nossa Senhora da Madre de Deus e Jurissaca, na segunda metade dos setecentos percebemos que se tratavam exclusivamente de mulheres. O destino mais desejável para as mesmas, como parte da nobreza da terra, era, então, o casamento com um indivíduo de igual nobreza ou a clausura em um Convento ou Recolhimento.

84

AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 146. Doc. 10661. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Casa e Linhagem: o Vocabulário Aristocrático em Portugal nos Séculos XVII e XVIII. Penélope – fazer e desfazer a História, nº 12, 1993. p 57-58. 85

42

O sexto administrador do morgadio de Nossa Senhora da Madre de Deus e sucessor do vinculo de Jurissaca, João Pais Barreto (5.1), teve duas irmãs, Ignez Brites Xavier Barreto (5.2) e Maria do O de Albuquerque(5.3). Ignez Brites, cedeu à prática da endogamia, amplamente difundida na família, como veremos a seguir, e se casou com seu primo, em segundo grau, João Paes Barreto e Mello86. Já outra irmã do morgado, Maria do O de Albuquerque (5.3), ainda vivia solteira no período em que Borges da Fonseca escreveu sua obra sobre a nobiliarquia pernambucana87, e a respeito da mesma não encontramos outras informações documentais. Para o levantamento dos nomes e encaminhamentos das filhas do sexto morgado não pudemos contar com o apoio do genealogista supracitado, uma vez que o mesmo ao falar de João Pais Barreto (5.1) afirma, apenas, que o morgado teria, na época, “filhos menores”

88

. Contamos, então, apenas com as

informações oriundas da documentação oficial, onde encontrar um registo sobre uma mulher é uma raridade, pois a mesma só é mencionada quando “perturba a ordem estabelecida, quando desempenhou papéis que a sociedade mão lhe atribuiu, ou se exacerbou no cumprimento do papel feminino89”. O sexto morgado teria tido, então, além de Estevão José Pais Barreto (6.1), outras quatro filhas. Mesmo conhecendo o nome de apenas uma destas filhas, conseguimos traçar parte do caminho seguido por duas. Uma das filhas de João Pais Barreto, cujo nome desconhecemos, ao contrair matrimônio, o fez com Francisco do Rego Barros (6.3a), membro de uma família de senhores de engenhos, que deteve o cargo de Provedor da Fazenda por praticamente um século. Por ser irmão de Francisco, João do Rego Barros frequentava a sua casa, aonde veio a “deflorar” a irmã da cunhada do seu irmão, Brites Manoella Luzia de Mello (6.2). Após o ocorrido, em 1755, Brites enviou um requerimento ao Conselho Ultramarino no qual se alegava que João do Rego Barros

86

FONSECA, Antonio José Victoriano Borges da. Nobiliarquia Pernambucana. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 193.v.2. p. 30 87 Idem. 88 FONSECA, Antonio José Victoriano Borges da. op. cit. p. 30. 89 LEITE, Miriam Moreira. apud ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. O Sexo Devoto: normatização e resistência feminina no Império Português XVI-XVIII. Recife: Editora Universitária/UFPE, 2005. p. 224.

43

Entrou a tratar de amores a suplicante e de baixo de promessas de casamento a deflorou deixando-a com filho, pejada, e por que com pretextos frívolos se desviava de cumprir as mesmas promessas90.

No mesmo documento a suplicante solicitava que o seu deflorador fosse preso, lhes fazendo justiça. Após o embate e a ameaça de prisão, João do Rego Barros aceitou se casar como reparação, mas ele e sua esposa nunca dividiram o mesmo teto91. Para além dos embates, o casamento de duas filhas com membros da família Rego Barros constituía de uma aliança importante para os Pais Barreto, pois além de possuírem engenhos, terras e fazerem parte da nobreza da terra, eram detentores de um cargo de grande influencia na Capitania de Pernambuco. Com esses casamentos, as filhas cumpriram o seu papel, determinado pela sua família e pela sociedade em que viviam, de colaborar para o engrandecimento da unidade familiar.

Figura 01- Casamentos entre as famílias Pais Barreto e Rego Barros

5.1

João Pais Barreto ( 6º Morgado)

6.1 Estevão José Pais Barreto ( 7º Morgado)

5.1a

6.2

Manoella Luzia de Mello

6.3

Brites Manoela Luzia de Melo

Francisco do Rego Barros

Maria Manuela de Mello

6.3a

6.2 a Francisco do Rego Barros

João do Rego Barros

Fonte: FONSECA, Antonio José Victoriano Borges da. Nobiliarquia Pernambucana. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 193.v.2. p. 26-34. AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 78. Doc. 6506.

Em relação às práticas matrimoniais dos administradores dos vínculos, percebemos a preferência destes por casamentos no interior da família. Esta prática se apresentou como uma forma de realizar um casamento com alguém 90 91

AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 78. Doc. 6506. AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 146. Doc. 10661.

44

cuja nobreza era assegurada e os ascendentes conhecidos, além de uma forma de manutenção do patrimônio dentro da família. Acreditamos que através destes casamentos, os bens deixados pelo casal, na parte correspondente ao sucessor do vínculo, poderiam ser incorporados ao patrimônio do Morgadio, garantindo assim a sua perpetuação no tronco correspondente ao da sucessão vincular. Como podemos observar na figura 02, esta ação já era praticada pelos administradores do vinculo desde o século XVII, quando Estevão Pais Barreto (3.2) se casou com sua prima em primeiro grau Maria de Albuquerque (3.2a). A ação foi repetida pelo seu neto João Pais Barreto (5.1) ao se casar com sua também prima Manoella Luzia de Mello (5.1a). Estevão José (6.1) também se casou a sua prima, em segundo grau, Maria Isabel Pais Barreto (6.1a). Figura 02- Casamentos Interfamiliares D. 1617

1.1

João Pais Barreto (1.1)

Inês 1.1a Guardes de Andrade

2.2

2.6

Estevão Pais Barreto ( 2º Morgado)

2.6a Felipe Pais Barreto

Brites de Albuquerque

Catarina 2.2a de Castro e Távora

1

3.2 Estevão Pais Barreto ( 4º Morgado)

3.2a Maria de Albuquerque

D. 1711 4.1a Maria Maior de Albuquerque

4.5a

4.1 4.5 João Pais Fernão Barreto ( 5º Rodrigues Morgado) de Castro

5.1 João Pais Barreto ( 6º Morgado)

Brites Maria da Rocha

5.1a

Manoella Luzia de Mello

4.2 Felipe Pais Barreto

2 4.2.1

6.1

Estevão José Pais Barreto (7º morgado)

4.2 a Margarida Barreto de Albuquerque

Felipe Pais Barreto

Maria 4.2.1a Isabel Barreto

6.1a Maria Isabel Paes Barreto

Fonte: FONSECA, Antonio José Victoriano Borges da. Nobiliarquia Pernambucana. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 193.v.2. p. 26-34

45

3

Para a realização de casamentos deste tipo era necessário que os contraentes elaborassem petições, justificando a necessidade do casamento com um parente, uma vez que o matrimônio só poderia ser realizado se o Sumo Pontífice concedesse a dispensa. Sem a aprovação papal, os contraentes do matrimônio poderiam ser acusados pelo crime de incesto92. Ao nos depararmos com uma disciplina familiar tão restrita, como a adotada pelos Pais Barreto, surgiu o seguinte questionamento: O que poderia acontecer caso algum membro da família se recusasse a cumprir com a função que

lhes

fosse

designada,

intervindo

no

projeto

pretendido

pelos

administradores dos morgadios? Em 1782, Estevão José Pais Barreto, já como sucessor dos vínculos da família, requeria à Coroa licença para enviar Brites Manoella, então viúva de João do Rego Barros, para um recolhimento. Segundo Estevão, Brites deixou a casa em que vivia com ele, onde nunca havia lhes faltado nada, e Esquecida de seo nascimento, da sua honra e dos muitos parentes tão conhecidos e destintos naquele País tomou a resolução de vir para a Vila do Recife distante oito léguas da Freguesia do Cabo(...)onde alugou casa menos decente, na qual vive com toda a liberdade de suas acções e paixões. Tem se presenciado nella acções indecorosas com pessoas de muito menor esfera, com quem acompanha de noite só com as suas escravas, e é público que com esta se prostitue, de que nisso tem causado escândalo ao povo93.

Ao cometer tais ações, Brites Manoella se desonrava e maculava a honra da família, que como membros das “famílias principais” da Capitania presavam pela manutenção do prestigio alcançado. Segundo Suely Almeida, a clausura sempre foi um recurso utilizado pelas famílias para solucionar os casos em que a honra da família corria risco, e era completamente aceito pela sociedade da época94. Ao nos debruçarmos com maior atenção sob as justificações de Estevão José para recolher a irmã, encontramos como testemunhas inqueridas o Padre Domingos Pereira de Mello e o Padre José Gomes Diniz, Regente e Capelão 92

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil colonial. São Paulo: EDUSP, 1984. p. 131-133 93 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 146. Doc. 10661. 94

ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. O Sexo Devoto: normatização e resistência feminina no Império Português XVI-XVIII. Recife: Editora Universitária/UFPE, 2005. p. 225.

46

do Hospital de Nossa Senhora do Paraíso, respectivamente. O Hospital era, então, administrado por Estevão. Com base nessas informações, acreditamos que os testemunhos de ambos não demonstravam imparcialidade alguma. A maculação da honra de Brites Manoella e da família parecem não ter sido motivo único para as pretensões de recolhê-la. Ao longo da documentação Estevão José Pais diz que Brites teria feito um requerimento ao Juiz de Fora, Obrigando-o a fazer inventario dos bens que ficaram por falecimento de meu pai o Capitão Mor João Pais Barreto e não obstante mostrar ao dito ministro que meu pai ficara devendo a Companhia Geral principal 2.632$412 e ao Mestre de Campo Luiz Pereira Vianna 3.190$830 e outras muitas dividas para as quaes não chegam ordens. Mandou-lhe o dito ministro entregar todos os bens do casal por terem feito os meis herdeiros obtenção da henrança em que entram dezoito escravos já penhorados pela Companhia e Hospital do Paraíso, o quaes está de posse da dita herdeira que seja herdeira a dita minha irmam e fiquem as dividas por pagar não chegando ordem para pagamento delas, fazendo-me vários vexames com alçadas de oficiaes para lhe entregar os bens que lhe mandou adjudicar95.

Os questionamentos de Brites sobre a divisão dos bens familiares parecem ter sido tão levados em consideração quanto o modo, em total desacordo com a sua posição social, em que a mesma vivia. A Rainha D. Maria autorizou o recolhimento de Brites Manoella mediante o pagamento de uma pensão suficiente para o seu sustento96. O exemplo de Brites nos deixa claro que não podemos perder de vista a capacidade que as pessoas tinham de agirem para além dos modelos que lhes eram impostos.

3.4

Reconstruindo

relações

e

espaços:

a

Companhia

Geral

de

Pernambuco e Paraíba e o Hospital de Nossa Senhora do Paraíso. A segunda metade dos setecentos foi marcada por um conjunto de ações reformistas implementadas pelo Marquês de Pombal, objetivando, o aumento do tráfico africano, a intensificação da agricultura comercial da América Portuguesa e o incentivo à indústria reinol. Neste contexto, mediante

95 96

AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 146. Doc. 10661. AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 146. Doc. 10661.

47

uma política mercantilista e defensora do lucro do monopólio97, a Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba foi instituída em 30 de julho de 1759, como uma das peças vitais destas reformas. O preambulo do seu texto de instituição já deixava claro os seus principais objetivos: Os homens de negocio das praças de Lisboa, Porto, e de Pernambuco, abaixo assignados, em seu nome, e dos mais vassalos de vossa majestade, havendo conhecido, e experimentado quanto a real grandeza de Vossa Magestade favorece, protege, e promove os comuns interesses do Comércio: e esperando que será do Real agrado o novo estabelecimento de huma Companhia Geral para as Capitanias de Pernambuco, e Paraíba, com a qual, muito consideravelmente, se augmentem os lucros, que se podem tirar daquele Commercio; sendo ele regulado pelas direcçoens competentes, que ordinariamente se não encontrão em comércios livres; tem convindo em formar a referida Companhia, havendo Vossa Magestade por bem de sustentar com a concessão, e confirmação dos estatutos98.

O governo da Companhia era geograficamente distribuído através de uma junta de administração sediada em Lisboa, composta por um provedor, dez deputados, três conselheiros e um secretário, e de duas administrações subalternas, no Porto e em Pernambuco, que, por sua vez, eram compostas por um intendente e seis deputados99. A Companhia gozava de garantias e facilidades diversas, como foro próprio com tribunais privativos, permissão para levantar gente do mar e guerra para as suas frotas, além do comercio exclusivo das duas Capitanias de Pernambuco, e Paraíba com todos os seus Districtos, para que nenhuma pessoa possa levar, ou mandar ás sobreditas duas Capitanias, e seus Portos, nem deles extrahir, mercadorias, gêneros, ou fructos alguns, mais do que a mesma Companhia; exceptua-se porém o Comercio de Pernambuco, e Paraíba para os Portos do Sertão, Alagoas, e Rio São Francisco do Sul, o qual será livre a todas, e qualquer pessoas como até agora o tem sido100.

O monopólio do comércio em Pernambuco e nas suas Capitanias subalternas, Paraíba, Rio grande do Norte e Ceará, seria de vinte anos, contados a partir da expedição da primeira frota, partida em oito de agosto de 97

JÚNIOR, José Ribeiro. Colonização e monopólio no nordeste brasileiro: a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, 1759-1780. São Paulo: HUCITEC, 2004. p. 7. 98 Instituição da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba. AHU_ACL_CU_INSTITUIÇÃO DA COMPANHIA GERAL DE PERNAMBUCO E PARAÍBA, COD 450, p. 3. 99 JÚNIOR, José Ribeiro. Op. Cit.,. p. 83-85 100 Instituição da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba. AHU_ACL_CU_INSTITUIÇÃO DA COMPANHIA GERAL DE PERNAMBUCO E PARAÍBA, COD 450, p. 15.

48

1760, podendo ser renovado por mais dez anos caso a Companhia requeresse e o Rei concedesse. Porém, tal prorrogação não chegou a acontecer devido a inúmeras queixas e denuncias enviadas pela população da Capitania contra a instituição Pombalina101. Desde a sua instituição, a Companhia foi vista com desconfiança pela sociedade local e seus interesses constantemente entraram em choque. Tais conflitos se tornaram crônicos, uma vez que o objetivo da empresa era evidente: favorecer o Estado português e as suas casas comerciais em detrimento dos interesses da população local102. Ao longo do período do monopólio muitas representações foram feitas pela elite local, que reclamava, principalmente, dos juros e comissões auferidas pelos homens de negócio que comandavam o órgão local da Companhia e o não pagamento dos gêneros da terra em dinheiro. A respeito deste problema, numa representação feita pela câmara de Igaraçu se alega que o açúcar, principal gênero da Capitania, se acha em termos de caducar por que cada hum dos engenhos depende para vapontamento anual de oficiaes de carapina, pedreiros, caldereiro, ferreiro, oleiro e feitor, exceto mestre de asucar, branqueiros e mais oficiaes e trabalhadores, que trabalham nos seis meses em que se moi, a quem hé percizo satisfazer com dinheiro diariamente sem o qual nam podem prover se dos mantimentos, caresem quotidianamente. A Companhia nam dá dinheiro, mal efeitos, ecom dificuldade; com os quaes nam pode qualquer dos Senhores de Engenho comprar alimento necessário para a sua sustentagem e dos seus escravos103.

Além do pagamento em produtos, os quais os moradores podiam vender, mas alegavam que a “operação lhes trazia prejuízo”

104

, a Companhia

também impunha os preços de compra dos produtos da terra e valor de venda

101

SILVA, Poliana. HOMENS DE NEGÓCIO E MONOPÓLIO: Interesses e estratégias da elite mercantil recifense na Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba (1757-1780). Recife: UFPE, 2014. 320 p. Dissertação ( Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História, Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco. p. 57-58. 102 DIAS, Érika. A capitania de Pernambuco e a instalação da Companhia Geral de Comércio. In: Congresso internacional: O espaço Atlântico de antigo regime: poderes e sociedades. Actas P. 1 20. Disponível em: http://cvc.institutocamoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/erika_dias.pdf. Acesso em: 20 de outubro de 2014. 103 104

AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 118. Doc. 8099. Idem.

49

das mercadorias trazidas da Europa.

Os senhores de Engenho, então,

solicitavam que a Companhia acompanhasse o preço de compra do açúcar que era estabelecido pela Mesa de Inspeção, que, mesmo sendo uma instituição pombalina, no período do monopólio intercedeu em favor da elite local 105. A Mesa de Inspeção de Pernambuco foi instalada em abril de 1752, com a função de examinar a qualidade dos gêneros com grande aceitação nos mercados europeus, o tabaco e o açúcar, além da sua expedição e taxação. Por estar entre as suas atribuições a definição do preço máximo dos produtos, o que impunha uma noção de limite, a instalação da mesma desagradou as câmaras de Olinda e do Recife, bem como os membros da Açucarocracia. Contudo, a permanência da Mesa gerou uma acomodação e a mesma foi instrumentalizada para viabilizar os interesses locais, passando a ser uma variável importante depois da instalação da Companhia. A atuação da Mesa de Inspeção passou, então, a contrapor os interesses da Direção da Companhia, se aliando às pretensões dos senhores de engenho, lavradores, criadores de gado e dono de fábricas de curtir couro106. Através da Mesa e das Câmaras, os produtores locais passaram a reivindicar e fazer uma verdadeira frente de oposição à Companhia. Entre os membros desta facção de oposição ao monopólio107, encontramos vários membros da família Pais Barreto. Determinamos as suas participações mediante a identificação das suas assinaturas em algumas representações feitas contra a Companhia, como a que, em 1770, solicitou ao Rei, como supremo Senhor e Monarcha e Pay destes seos opremidos filhos, se condoa, e tenha compaxão deles, sendo servido, por sua Real Grandeza, e Paternal Amor, determinar a extinção e fim da Companhia Geral de Pernambuco e Parayba,

105

JÚNIOR, José Ribeiro. Op. Cit., p. 142-144. SOUZA, George F. Cabral. O rosto e a máscara: estratégias de oposição da Câmara do Recife à política pombalina. Atas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades. Lisboa: UNL, 2005. p. 2-5. 107 Para mais informações sobre a formação deste partido de oposição à Companhia ver: DIAS, Érika.«As pessoas mais distintas em qualidade e negócio» : a Companhia de Comércio e as relações políticas entre Pernambuco e a Coroa no último quartel de Setecentos. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2014. 587 p. Tese (Doutorado) - Especialidade em História dos Descobrimentos e a Expansão Portuguesa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. p. 243 – 283. 106

50

para os suplicantes se verem restituídos a antiga liberdade em que vivião108.

Anexas ao documento supracitado, encontramos outras cinco petições coletivas feitas em oposição à Companhia. Em pelo menos três delas encontramos as assinaturas do sétimo Morgado do Cabo, Estevão José Pais Barreto, do seu sobrinho Pedro Velho Barreto e do seu primo Estevão Pais Barreto109. Desta forma, podemos nomeá-los como membros do partido opositor à Companhia, que além de insatisfeitos com as suas ações, também se encontravam endividados com a mesma e poderiam ver na sua extinção uma chance de controlar os seus endividamentos e lucrar com o livre comércio. O monopólio da Companhia endividou os moradores da Capitania de várias formas. Através do baixo preço estipulado para a compra do açúcar, que, como já vimos, raramente era pago em pecúnia, e dos altos preços dos produtos trazidos pelas frotas da Companhia, como tecidos, produtos vindos do Reino e escravos. Para conseguir compradores para os seus produtos, os administradores da empresa de monopólio precisaram oferecer créditos aos senhores, que dependiam, sobretudo, do uso da mão de obra escrava 110. Antes da instituição da Companhia, já era usual que os senhores adquirissem escravos com credito, objetivando pagar os seus custos com o resultado da safra seguinte. Durante o monopólio, os escravos que os pernambucanos conseguiam comprar eram o refugo do tráfico, e, em muitos casos, faleciam antes mesmo de completar o ciclo de realização do investimento111. Desta forma, a perda destes escravos tornava o cumprimento dos compromissos com os credores impossível. Após o fim do monopólio, que durou de 1759 a 1780, os administradores da Companhia logo se apressaram em apurar o rol dos devedores, além de pressionarem o governador a agir de forma mais contundente, chamando os 108

Representação dos senhores, lavradores de açúcar, agricultores de tabaco e demais povos da Capitania de Itamaracá, pedindo solução para o miserável estado em que se encontram devido a Companhia Geral do Comércio de Pernambuco e Paraíba. AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 118. Doc. 8393 109 Idem. 110 MARQUES, Tereza Cristina de Novaes. Falências Mercantis e execuções de propriedade de terras: notas de pesquisa sobre Pernambuco. Século XVIII ao início do XIX. In: ALMEIDA, Suely Creusa. SILVA, Gian Carlo. SILVA, Kalina Vanderlei. SOUZA, George F. Cabral de. (Orgs). Políticas e estratégias administrativas no Mundo Atlântico. Recife: Ed Universitária UFPE, 2012. p 292 – 293. 111 MARQUES, Tereza Cristina de Novaes. Op. Cit. p. 293.

51

devedores à responsabilidade112.

As dívidas na Capitania de Pernambuco

chegavam a pouco mais de três milhões novecentos e oitenta e quatro mil cruzados, em 1777113. As listas com os devedores nos mostram com clareza o estado de grande endividamento em que se encontrava a Açucarocracia, grupo cuja análise é de maior interesse para o nosso trabalho. Os Pais Barreto, principalmente os administradores do morgadio, deviam avultadas somas à Companhia, conforme podemos observar no quadro abaixo.

Quadro 01 - Membros da família devedores da Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba. Devedor

Ocupação

Engenho

Antônio Paes Barreto de Sá Estevão José Pais Barreto ( 7° Morgado) Estevão Pais Barreto Albuquerque Estevão Pais Barreto Melo Felipe Pais Barreto Francisco Pais Barreto João Pais Barreto( 6° Morgado)

Lavrador

Garapu

Valor da dívida em réis 550.943

Senhor de Engenho

Jurissaca

11.325.191

Senhor de Engenho

Estiva

2.339.738

Senhor de Engenho Rendeiro

Bombarda

1.377.742

Algodoais

185.289

Rendeiro

Tintuba

64.236

Senhor de Engenho114

****

2.633.232

Fonte: AHU – Avulsos de Pernambuco Cx.137. Doc. 10206

João Pais Barreto parece ter se empenhado nos pagamentos das suas dividas à Companhia, e no rol de 1791 ele aparece como devedor de uma quantia já bem reduzida de apenas 291.365 réis. O mesmo empenho não pode ser percebido pelo seu filho. A dívida no valor de 11.325.191 réis fez com que Estevão José Pais Barreto aparecesse no rol dos “devedores de sommas 112

AHU – Avulsos de Pernambuco Cx.137. Doc. 10206. AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 137. Doc. 10242. 114 Na documentação ele aparece como devedor diverso, acreditamos, então que a sua divida não se encontrava relacionada a um engenho específico. 113

52

avultadas” à Companhia em 30 de dezembro de 1777115. Em 07 de agosto de 1779, foi feita a penhora116 das rendas do engenho Jurissaca, do qual era rendeiro Francisco do Rego Barros, seu cunhado117. Além da penhora dos rendimentos do Jurissaca, em 1781 o Morgado se comprometeu com o pagamento de um conto de réis anuais até que a divida fosse saldada118, mas, provavelmente em decorrência dos juros pelo não pagamento da quantia estipulada, dez anos depois, sua divida subiu para a quantia de 14.032.505 réis119. Como sabemos, o Engenho Jurissaca se encontrava vinculado na forma de Morgadio, portanto, seus bens não podiam ser vendidos ou alienados para o pagamento de dívidas. Segundo Pacoal de Melo Freire, os bens vinculados só poderiam ser vendidos para saldar as dividas do instituidor. No caso das dívidas do possuidor, segundo o jurista: Não se vendem os bens, mas arrendam-se, sendo os seus réditos e proventos atribuídos aos credores(..) porém, esta adjudicação ou assignação judicial não prejudica o sucessor, para quem os bens devem passar livres e sem ônus algum120.

O sucessor do vinculo só se tornava herdeiro das dívidas do administrador anterior se as mesmas tivessem sido contraídas por causa necessária para a utilidade do morgadio, devendo ser pagas pelos seus frutos121. Este parece ter sido o caso das dividas contraídas por Estevão José, pois o seu filho, e sucessor do vinculo, Francisco Pais Barreto (7.1) aparece

115

AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 137. Doc. 10242. A realização de penhoras foi muito utilizada no processo de liquidação da Companhia. Cabe salientar que no caso dos senhores de engenho o que o credor reivindicava era o fruto da terra, ou escravos isentos de penhoras anteriores. A legislação do Antigo Regime protegia os bens de raiz, e o credor tinha apenas o direito de reter parcelas da produção, e nos casos em que as dívidas superassem o terço do valor da propriedade a mesma poderia ser objeto de penhora e arrendamento em hasta pública, até que a dívida fosse saldada com o produto do arrendamento. As dividas muito elevadas também poderiam ser pagas com o produto da venda dos bens, desde que ambas as partes estivessem de acordo. 117 AHU_ACL_CU_ Relação do estado das execuções que a Companhia faz aos seus devedores, Cod. 1898. 118 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 142. Doc. 10428. 119 AHU_ACL_CU_ Relação do que devem os devedores a junta de arrecadação dos fundos da Companhia, Cod. 1894. 120 FREIRE, Pascoal de Melo. Instituições de Direito Civil Português. Tit. IX § XXIX Disponível em: http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verobra.php?id_obra=76 . Acesso em: 10 de novembro de 2014. 116

121

Idem

53

devendo à Companhia, no rol de 1830, 23.353.124 réis 122. Após a morte do mesmo, já como Marquês do Recife, em 1851, os acionistas de Lisboa eram alertados sobre o patrimônio da família, estimado em 60 contos, do qual acreditavam ser possível receber algo das antigas dívidas 123. Com base nos dados acima arrolados, acreditamos que a família só pôde continuar com a posse dos Engenhos Jurissaca, vinculado ao morgadio de mesmo nome, Velho, Guerra, Ilha e Santo Estevão, vinculados ao morgadio de Nossa Senhora da Madre Deus, graças a essas vinculações, uma vez que as mesmas não permitia a venda das propriedades para o pagamento das grandes dívidas da família. A vinculação dos bens cumpriu, assim, o seu papel de salvaguardar o patrimônio da família, atravessando as vicissitudes da vida. O contexto de grande endividamento vivenciado pela família Pais Barreto no período do monopólio da Companhia de Pernambuco e Paraíba nos ajuda a compreender o funcionamento da relação da mesma com uma outra instituição no mesmo período: O Hospital de Nossa Senhora do Paraíso e São João de Deus. Em 1762, como consequência por herdar o Morgadio de Jurissaca, João Pais Barreto, o sexto Morgado do Cabo, assumiu a administração do sobredito Hospital, fundado por D. João de Souza e Ignez Barreto em 1697. Desde o principio, a sua administração passou por diversos conflitos. O primeiro deles aconteceu com a Câmara do Recife e os membros da recém-criada Irmandade da Misericórdia do Recife, que reclamavam para si a administração do Hospital e da Igreja, anexa ao mesmo. Em 1735, ao se ver sem sucessão direta, D. João de Souza, neto, natural, do fundador homônimo, redigiu uma escritura de doação da Igreja e do Hospital do Paraíso à câmara do Recife e à população da Vila, para neles se alocar a Irmandade da Misericórdia do Recife tendo em vista “A suma desconsolação em que os são os moradores desta Villa de Santo Antônio do 122

ANTT. Feitos Findos. Conservatória Geral da Companhia de Pernambuco e Paraíba. Caixa 4. Apud. MARQUES, Teresa Cristina. O empenho que não se dissolve. Notas de pesquisa sobre o endividamento de senhores de engenho de Pernambuco, século XVIII, início do XIX. p. 19. 123 Idem.

54

Recife por não terem nela hua Casa de Misericórdia”

124

. Antes de falecer, D.

João também doou todos os seus bens ao Hospital, adjudicando-lhe o “engenho chamado Tarapixe, com três légoas de terra onde habitam vários indivíduos que tratam da agricultura pagando foro” 125. A doação do Hospital, da Igreja e dos demais bens não pôde ser confirmada à Misericórdia, uma vez que os mesmos já se encontravam vinculados e a sua administração cabia àquele que sucedesse como Morgado de Jurissaca. Confirmar as doações de D. João à Irmandade significaria, então, desrespeitar as ordens dadas pelos seus instituidores, o que era inconcebível. Após a posse de João Pais Barreto como administrador do Hospital, os membros da câmara da Vila do Recife o acusaram de marginalizar vários pleitos, apontando-o como principal causa de se retardarem as obras de caridade do dito Hospital. O Presbítero Antônio da Costa Nogueira, regente do Hospital do Paraíso, admitiu que o administrador houvesse feito um requerimento para punir com a excomunhão os membros da Irmandade da Misericórdia caso fizessem algum ato do oficio divino na Igreja do Hospital. Em 1763, a Câmara do Recife, acreditando não ser possível vencer esses obstáculos, solicitava o Colégio, a Igreja e demais edifícios que haviam pertencido aos Jesuítas, “fundados com a esmola do mesmo povo”, para lá se instalarem126. Assim como seu pai, Estevão José Pais Barreto exerceu uma administração bastante conflituosa à frente do Hospital. Em 27 de julho 1780, o Padre Antônio Gorjão escreveu uma carta à Rainha sobre o estado de decadência do Hospital: Ha vinte anos, pouco mais ou menos, que tomou posto desta administração, não lhe competindo, João Pais Barreto e pela morte deste, Estevão José filho legítimo, morgado do Cabo, só cuidou em destruir os seus bens e este seguiu o mesmo desacordo nomeando vários capelans e expulsando aos existentes tanto que não cooperavam para os seus furtos, pois deve quantia crescida ele e seos parentes ao dito hospital[...]sendo o regente representante hum dos clérigos nomeados por Estevão José que não só andava no curativo dos 124

AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 48. Doc. 4319 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 137. Doc. 10205 126 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx.100. Doc. 7794 125

55

pobres se não do asseio da igreja e do aumento e reedificação daquele hospital, como é público, por não condescender com os furtos que fazia o dito administrador, publicou os furtos que este fez de dois braços de prata com sagradas relíquias que se conservavam no altar mor, cuja prata mandou converter em obra para o serviço de sua casa e parentes.127

Segundo o mesmo padre, Estevão José e seus parentes deviam cerca de dez mil cruzados ao hospital128, e justificava o não pagamento da dívida pelo fato de ser Morgado e ter os bens vinculados. Mediante estas acusações, e considerando o contexto de grande endividamento dos administradores com a Companhia de Pernambuco e Paraíba, acreditamos que para a família Pais Barreto, estar à frente da administração do Hospital de Nossa Senhora do Paraíso, significava, além de agregar para o status social da família, ter acesso a muitos bens129, configurando-se como um local de fácil acesso a crédito e empréstimos. Seria uma alternativa à Companhia. Além do que, as prestações de contas, segundo os capítulos de instituição do Hospital130, deveriam ser feitas ao seu padroeiro e administrador de seis em seis meses, e apenas uma vez por ano ao Ouvidor Geral, o que facilitava a manipulação dos bens. As acusações contra a família e as dividas que a mesma tinha com o Hospital parecem não ter abalado a participação da família na sua administração. Em 1796, ainda encontramos Estevão José Pais Barreto como administrador do Hospital de Nossa Senhora do Paraíso131, e em 1805, seu filho Francisco Pais Barreto, futuro Marquês do Recife, já havia assumido administração do mesmo132, durante a qual fundou em suas dependência a Academia do Paraíso. Após a extinção dos vínculos, em 1837, os prédio que constituíam o seu patrimônio passaram à administração da Santa Casa. Os

127

AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 137. Doc. 10205 Em 1782 Estevão José Pais Barreto diz, ao solicitar o envio da irmã a um recolhimento, que dezoito escravos deixados por seu pai se encontravam penhorados pela Companhia e pelo Hospital do Paraíso, o que comprova que a dívida realmente existia. AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 146. Doc. 10661 129 Só de engenhos o Hospital de Nossa Senhora do Paraíso possuía o Tarapixe e o Algodoais, deixado pelos seus instituidores, com “mais de trinta e quatro peças de machos e femeas(..), com trinta bois e quarenta bestas”. Documentos. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. n.282, 1969. p. 88. 130 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 155. Doc. 11156 131 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 205. Doc. 13985. 132 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 256. Doc. 17163 128

56

demais bens, inclusive o Engenho Algodoais, ficaram com a família por decisão judicial de 1857133.

4. Conclusão 133

Documentos. Op cit. p. 67.

57

Grande parte de nossas conclusões acerca do objeto de estudo se encontra dispersa ao longo de cada tópico e capitulo deste trabalho. No entanto, para o entendimento das ações e práticas da família analisada se faz necessário retomar algumas das colocações mais importantes. Na segunda metade dos setecentos, pudemos perceber um esforço continuado dos membros da família Pais Barreto, que faziam parte da sucessão vincular, em manterem a condição privilegiada alcançada pelos seus ascendentes ainda no século XVI. Para isso, eles se utilizaram de mecanismos amplamente difundidos entre aqueles que faziam parte da Nobreza local, como o pedido de provisão de patentes militares nas tropas auxiliares e ordenanças, e a solicitação de Hábitos da Ordem de Cristo. O acesso as mais altas patentes da Freguesia de Santo Antônio do Cabo, posse de muitos engenhos na mesma Freguesia e a intensa participação no contexto social da região desde o principio da sua conquista se apresentaram para nós como sinais de que a família se configurava como um verdadeiro potentado local. A prática de vinculação dos bens, iniciada pelo mais remoto ascendente dos Pais Barreto na Capitania de Pernambuco, se configurou como o principal fator de ordenação das ações intrafamiliares e extrafamiliares. Mediante esta restrita disciplina familiar, os Pais Barreto procuraram salvaguardar o seu patrimônio e, consequentemente, manter o seu lugar enquanto família principal da terra. A regulação das praticas e estratégias familiares cabia ao administrador do vinculo, era ele quem assegurava que todos cumprissem o seu papel dentro da unidade familiar, inibindo os que punham em risco os projetos e pretensões que visavam o engrandecimento da Casa. Estudar as práticas da família Pais Barreto neste recorte temporal especifico nos permitiu analisar o período extremamente dinâmico e singular vivido pelos moradores da Capitania de Pernambuco. Neste momento temos uma mudança do padrão do comércio com a instituição da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, e a sua posterior falência. Esta mudança na dinâmica comercial afetou toda a Açucarocracia local, gerando avultadas dívidas, cobradas ao longo de vários anos. Os morgados surgem, então, nas listas de devedores mais avultados. A cobrança destas dividas, por sua vez, 58

nos proporcionou observar o comportamento em relação aos bens vinculados através de uma perspectiva extremamente singular. A vinculação dos bens como forma de proteger o patrimônio familiar cumpriu o seu papel e permitiu que a família atravessasse as incertezas, como as vividas neste período, sem grandes perdas.

ANEXO 1: Genealogia da família Pais Barreto 59

D. 1617

1.1

2.1

João Pais Barreto (1.1)

2.2

Inês 1.1a Guardes de Andrade

2.4

2.3

2.5

2.6

2.7

2.8

2.1a João Pais Estevão Pais Cristovão Miguel Barreto ( 1º Barreto ( 2º Pais Pais Morgado) Morgado) Barreto Barreto

Ana Corte Real Corte Real

3.1a

3.1

4.1

5.2 João Pais Barreto ( 6º Morgado)

6.1 Estevão José Pais Barreto ( 7º Morgado)

6.1a Maria Isabel Pais Barreto

7.1

D. 1711

João Pais Barreto ( 5º Morgado)

Maria Maior de Albuquerque

3.2a

Margarida de Castro

4.2 Felipe Pais Barreto

4.3 Diogo Pais Barreto

Maria de Albuquerque

4.4 Antônio Pais Barreto

Fernão Rodrigues de Castro

4.6

4.7

Miguel Pais Barreto

Francisco Barreto Corte Real

Manoella Luzia de Mello

Maria do O de Albuquerque

6.2

4.5

5.1a

5.3

Ignez Brites Xavier Barreto

2.2a Catarina de Castro e Távora

3.3

Estevão Pais Barreto ( 4º Morgado)

4.1a

5.1

Felipe Antônio Catharina Pais Pais Barreto Barreto Barreto

3.2

João Pais de Castro ( 3º Morgado)

Anna de Couto

Diogo Pais Barreto

6.3

6.4

6.5

Simbolos do Genograma

Brites Manoela Luzia de Melo

1779 - 1848 69

Francisco Paes Barreto ( 8° Morgado)

Masculino

Feminino Falecimento

Fonte: FONSECA, Antonio José Victoriano Borges da. Nobiliarquia Pernambucana. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 193.v.2. p. 26-34. AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 146. Doc. 10661.

5. Referências 5.1 Manuscritos 60

Arquivo Histórico Ultramarino 

Códices

AHU_ACL_CU_INSTITUIÇÃO DA COMPANHIA GERAL DE PERNAMBUCO E PARAÍBA, COD 450. AHU_ACL_CU_ Relação do estado das execuções que a Companhia faz aos seus devedores, Cod. 1898. AHU_ACL_CU_ Relação do que devem os devedores a junta de arrecadação dos fundos da Companhia, Cod. 1894. 

Papéis Avulsos de Pernambuco

AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 118. Doc. 8992. AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 13. Doc. 1302 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 19. Doc. 1873 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx.48. Doc. 4314 AHU- Avulsos de Pernambuco Cx.19. Doc 1873 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx.77. Doc. 6403 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx.106. Doc. 8233 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 100. Doc. 7794 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 48. Doc. 4319 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 137. Doc. 10205 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 155. Doc. 11156 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 137. Doc. 10206 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 137. Doc. 10242. AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 95. Doc. 7501 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 118. Doc. 8992 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx.153. Doc. 11038 61

AHU – Avulsos de Pernambuco Cx.40. Doc. 3316 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 146. Doc 10661 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 78. Doc. 6506. AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 142. Doc. 10428. AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 118. Doc. 8393 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 118. Doc. 8099

5.2 Impressos ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. O Sexo Devoto: normatização e resistência feminina no Império Português XVI-XVIII. Recife: Editora Universitária/UFPE, 2005 ___________________. SILVA, Gian Carlo. SILVA, Kalina Vanderlei. SOUZA, George F. Cabral de. (Orgs). Políticas e estratégias administrativas no Mundo Atlântico. Recife: Ed Universitária UFPE, 2012. BICALHO, Maria Fernanda. Conquista, Mercês e Poder Local: a nobreza da terra na América portuguesa e a cultura do antigo regime. In: Almanack Braziliense, n02, 2005 BOURDIEU, Pierre. Razões práticas sobre a teoria da razão. 9° ed. São Paulo: Papirus, 2008. CALDEIRA, João Luís Picão. O morgadio e a expansão no Brasil. Lisboa: Tribuna da História, 2007. COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Anais Pernambucanos. Recife: Secretaria do Interior e Justiça, 1951-1966. v. 1 v7 DIAS, Érika.«As pessoas mais distintas em qualidade e negócio» : a Companhia de Comércio e as relações políticas entre Pernambuco e a Coroa no último quartel de Setecentos. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2014. 587 p. Tese (Doutorado) - Especialidade em História dos Descobrimentos e a Expansão Portuguesa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. FARIA, Sheila de Castro. A COLÔNIA EM MOVIMENTO: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

62

FERLINI, Vera Lúcia. A Civilização do açúcar. São Paulo: Brasiliense. 1998. pp. FONSECA, Antonio José Victoriano Borges da. Nobiliarquia Pernambucana. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1935. v.2 HESPANHA, Antônio Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. As redes clientelares. In: MATTOSO, José (Dir.). História de Portugal. Lisboa: Edital Estampa, 1993. v.4, __________________; MONTEIRO, Nuno. A família. In: MATTOSO, José (Dir.). História de Portugal. Lisboa: Edital Estampa, 1998. v.4 JÚNIOR, José Ribeiro. Colonização e monopólio no nordeste brasileiro: a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, 1759-1780. São Paulo: HUCITEC, 2004 LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. Lobão, Manuel de Almeida e Sousa de. Tratado prático de morgados. 2 ed. Lisboa: Impressão Régia, 1814. p. 195-196 MADUREIRA, Nuno Luís. (Coord) MARTINS, Conceição. MONTEIRO, Nuno. (Orgs) História do Trabalho e das ocupações, vol.3. .A Agricultura: Dicionário. Oeiras: Celta, 2002, p 79.

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