OS PARADIGMAS DA GEOGRAFIA E AS TRANSFORMAÇÕES DO TERRITÓRIO

June 1, 2017 | Autor: Jorge Gaspar | Categoria: Human Geography, Cultural Geography
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GEOGRAFIA E ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO DOS PARADIGMAS AOS NOVOS MAPAS Como outros ramos do saber que mantêm a identidade desde a sua fundação na Antiguidade Clássica, a Geografia tem conseguido “actualizar” os paradigmas em função das transformações que se operam no seu objecto - o território. Os “novos mapas” que desenham o Portugal em mudança vão implicar também a configuração de uma “nova geografia”. JORGE M. B. GASPAR

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Geografia, apesar de constituir um dos mais nos currículos académicos acabam por recorrer/acresantigos ramos do saber, nunca conseguiu uma centar, temas da Geografia Humana(1). “definição” precisa, configurando através do tempo diferentes conteúdos conceptuais e operativos. OS PARADIGMAS DA GEOGRAFIA Sucessivamente, desde a Grécia Antiga, foram-se E AS TRANSFORMAÇÕES DO TERRITÓRIO autonomizando ramos que, em geral, têm contornos Sendo o território o objecto de estudo da Geogramais precisos e adquirem maior coerência enquanto disfia, os paradigmas desta disciplina têm-se afirmado e ciplinas científicas. consolidado, tanto no contexto académico, como no Esta dificuldade de localização no conspecto das de configurações territoriais, resulciências, manifesta-se na sua insertantes de transformações nos domíção académico-universitária, ocornios social, económico, tecnolórendo o ensino da Geografia nas gico, político, em princípio assomais variadas faculdades: de Ciênciados. cias Naturais, de Ciências, de CiênNo caso português tem sido escias Matemáticas, de Ciências se o caminho seguido na evolução Sociais, de Humanidades/Letras, de da disciplina. Os primeiros geógraCiências Económicas, de História e fos portugueses conhecidos, que Geografia. nos legaram obras escritas, aparePor influência de Piaget, a tencem ligados aos descobrimentos, dência dominante na actualidade é navegação e comércio, em que a copara colocar a Geografia no conjunrografia (descrição dos lugares) e a to das Ciências Sociais, classificação cartografia aparecem intimamente que é bastante redutora e contra a ligados. A Geografia afirma-se, asqual se têm manifestado alguns geósim, na linha que radicava na tradigrafos de grande prestígio (Ribeiro, 1976). Na realidade, é crescente a Licenciado e doutorado em Geografia pela Uni- ção da Grécia Antiga e se difundiu tendência para a institucionalização versidade de Lisboa, Jorge Gaspar é professor no Mediterrâneo, em estreita decatedrático na Faculdade de Letras. Após uma académica de “duas geografias”, pós-graduação na Universidade de Lund, regres- pendência da navegação e do couma no âmbito das Ciências da Na- sa ao prestigiado Centro de Estudos Geográfi- mércio. da Universidade de Lisboa; durante alguns Todavia, entroncando ainda nas tureza e outra no âmbito das Ciên- cos anos foi docente do Curso de Arquitectura da cias Sociais. O que é curioso é que, ESBAL. Autor de 13 livros e de uma centena de mesmas raízes clássicas não deixa contraditoriamente, depois se vai trabalhos de investigação, a sua colaboração também de se associar à estratégia tem sido crescentemente solicitada: programas buscar o complemento que falta... (internacionais) RURE e VALIS, consultor da OC- político-militar, numa linha que se por vezes com soluções um tanto DE, coordenação da “análise e prospectiva do mantém coerentemente até aos nos“retorcidas” – é o caso, em Por- desenvolvimento regional”, do “plano regional sos dias. de ordenamento da área metropolitana de Listugal, das denominadas engenha- boa”, etc. Membro do conselho editorial de vá(1) É particularmente elucidativa a análise dos rias/ciências do Ambiente, que em rias revistas internacionais, presidente da conteúdos de algumas dissertações de mesComissão Nacional de Geografia, Jorge Gaspar grande medida radicam nos conteú- é membro da Academia Europaea e da Acade- trado e de doutoramento nesta área algo difusa das “Ciências do Ambiente” dos da Geografia Física, mas que mia das Ciências de Lisboa.

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A “exploração/descoberta/conquista”, vieram a consolidar o papel da Geografia, em particular na 2.a metade do século XIX, em que na onda que atravessa toda a Europa, é fundada uma Sociedade de Geografia em Lisboa (2) , que tem um papel importante na vida política portuguesa e muito particularmente na “legitimação científica” de um império colonial português em África, constituíndo-se como um Lobby de poder (cf. R. Ortigão, Farpas, II; 1883): A Geografia representada na fase áurea da Sociedade de Geografia de Lisboa podemos dizer que está no encontro de dois paradigmas (cf. Johnston, 1979), o exploratório e o determinista. Na sequência da importância adquirida na 2.a metade do séc. XIX, é natural que em 1911, com a reforma da Universidade Portuguesa, a Geografia apareça autonomizada e em associação com a História, constituindo uma licenciatura nas novas faculdades de letras. Adoptando o paradigma determinista, e abrindo caminho em breve ao paradigma possibilista (em que a explicação de raiz histórica adquire importância, relativamente à explicação naturalista do determinismo), a Geografia vai continuar a desempenhar um papel ideológico importante, agora mais relevante no ensino primário e secundário: confirmação da autonomia (natural e histórica) do País, identidade nacional, legitimidade e necessidade do império colonial. O ideário reformador/revolucionário e modernizante do regime ditatorial emergente da revolta militar de 28 de Maio de 1926 também teve consequências na geografia académica e a reforma de 1931 separa a Geografia da História, associando-a de forma anárquica a uma série de disciplina das ciências exactas, de molde a conferir-lhe um cariz pretensamente mais moderno e científico, para que as “ciências geográficas” (nova designação da Licenciatura) pudessem desempenhar um papel consentâneo com as pretendidas transformações que o País deveria encetar. Entre outras questões de conteúdo geográfico, destaca-se a das novas divisões administrativas que o País deveria observar no processo de modernização; ainda em 1926 (Dezembro) é criado o 18.o distrito do Continente (o de Setúbal), constituindo até hoje a única alteração no quadro definido pela reforma de Passos Manuel (1835). Na sequência da constituição de 1933 e para responder ao prometido no quadro territorial, Salazar chama o geógrafo prestigiado da Universidade de Coimbra, Amorim Girão, para que este analise e proponha uma nova divisão, em que a província deverá ser a unidade de âmbito regional. Ao desempenhar-se desta missão, o Professor Amorim Girão procede à primeira análise sistemática do que poderia ser a segmentação territorial do País, observando critérios que, relevando sobretudo do paradigma possibilista, não deixam de impor algumas directrizes ditadas pela natureza, nem tão pouco de apontar algumas linhas de cariz mais economicista, antecipando de certo modo o que seria conhecido pelo paradigma neo-clássico (Girão, 1933). O estudo e as propostas de Amorim Girão infor-

maram a nova divisão administrativa que correspondeu à criação, no Continente, das 11 províncias, que vigoraram oficialmente desde 1936 até à Revisão Constitucional de 1959. Na realidade, a manutenção dos 18 distritos, então com um século de existência e reforçados na sua lógica com a implantação de infraestruturas rodoviárias e ferroviárias, bem como pela instalação nas sua sedes de equipamentos estruturantes (liceus, hospitais, direcções distritais, ...), não permitiu que a nova autarquia, a Província, manifestasse as eventuais potencialidades num processo de desconcentração e descentralização administrativa. Uma nova fase para a Geografia só viria a ocorrer nos anos 50 e no contexto da atenção que as colónias – agora denominadas províncias ultramarinas – mereceram ao regime de Salazar na tentativa de responder às solicitações de autonomização provenientes da Organização das Nações Unidas. Do lado da credibilidade científica da disciplina, estava Orlando Ribeiro, rodeado de uma pequena equipa, que com ele tinham cometido a grande proeza de realizar em Lisboa o Congresso Internacional de Geografia, da União Geogáfica Internacional, em 1949 – o primeiro desde 1938 quando a periocidade habitual é de 4 anos. Por outro lado, Orlando Ribeiro já tinha publicado uma obra de reconhecido mérito científico e um nome feito enquanto professor universitário. A disponibilização de avultadas verbas para realizar pesquisas nos territórios coloniais muito contribuiu para o reforço da investigação em Geografia, tanto em infraestruturas (consolidação do Centro de Estudos Geográficos, fundado em 1943), como em recursos humanos (alguns dos discípulos de Orlando Ribeiro farão importantes obras sobre temas africanos, incluindo teses de doutoramento, como nos casos de Francisco Tenreiro e de Ilídio do Amaral). É neste contexto que se afirma o que se designou por Escola de Lisboa, que conseguiu reconhecimento no País e nalguns países mais próximos cultural e cientificamente: Brasil, Espanha, França, Itália, Alemanha. Um certo apagamento da Geografia na Universidade de Coimbra, onde após o falecimento de Amorim Girão, A. Fernando Martins foi durante muitos anos o único doutorado, que com um pequeno núcleo de assistentes viviam assoberbados com o trabalho docente, e aquela orientação determinante para os territórios coloniais, originou um défice na produção geográfica sobre Portugal, situação que só começou a modificar-se no início dos anos 70. Entretanto, dominava o paradigma possibilista que só começou a perder alguma força também no início dos anos 70, com a assumpção do paradigma neo-clássico, reconhecido pela Comunidade dos geógrafos como a “Nova Geografia”, expressão lançada por Peter Gould no início dos anos 60. O fim do “império colonial”, o aumento dos meios humanos e uma “ânsia” de reconhecer o País que se generaliza após 25 de Abril de 1974, originam um

(2) Existiu também uma Sociedade de Geografia no Porto, com uma feição mais “comercialista”.

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movimento de renovação dos estudos geográficos, inovando-se nos temas, nos métodos e nas técnicas. Em concomitância alargam-se as perspectivas teóricas, emergindo novos paradigmas, com relevância para os enfoques marxistas ou neo-marxistas. A integração na Comunidade Económica Europeia constitui, por um lado, uma alavanca para os estudos regionais e urbanos, sobretudo na perspectiva do ordenamentro do território e do planeamento das actividades, e, por outro lado, contribuiu para um significativo incremento do intercâmbio internacional, tanto de investigadores e docentes, como de alunos. Progressivamente, o quadro de referência para a investigação em Geografia passa a ser a Europa e, por via desta, chega-se à globalização. Acompanhando as transformações nas dinâmicas territoriais mundiais e de uma forma mais acelerada, os estudos geográficos portugueses mais rapidamente se integram nas novas correntes do pensamento e da prática científica. Existe hoje um consenso sobre a necessidade de uma visão integradora na análise e síntese das profundas transformações do território. No fundo procura-se uma actualização da vertente “paisagista” do paradigma possibilista. Chegou a pensar-se que as ferramentas técnicas desenvolvidas ou adaptadas pela “Nova Geografia” permitiriam essa síntese integradora, nomeadamente através do recurso às análises estatísticas multivariadas; estas, todavia, acabaram por se revelar bastante limitadas e por vezes enviezadoras da complexidade do território. As abordagens mais recentes orientam-se para uma análise realista de casos-estudo, procurando encontrar as chaves dos mecanismos de dinamismo espacial. Entretanto, esta perspectiva tem-se mostrado, de uma maneira geral, excessivamente economicista, chegando a dimensão económica a revelar-se a única, o que não só empobrece o entendimento dos fenómenos com expressão territorial, como levanta obstáculos à integração de saberes. Em contrapartida, este enfoque manifestou-se muito adequado para o entendimento das articulações, interacções e coerências entre os vários níveis espaciais: do local ao global. Mas aqui também podemos defrontar-nos com dificuldades que, no essencial, se traduzem na “imposição” de um formato, no qual “obrigamos” a realidade a encaixar-se. Assim, o que se tem conseguido com a leitura “planetária”, do local ao mundial, é apenas um múltiplo comum dessa cadeia, fundamentalmente traduzido por mecanismos de racionalidade económica. Nestas abordagens, tem faltado, por exemplo, a dimensão cultural, também ela cada vez mais coerente com o processo de mundialização, que se reflecte nos padrões de comportamento, nos valores e nos mecanismos de produção e difusão de informação. De facto, existe uma assinalável interacção entre as dimensões cultural e económica que, no entanto, a

Geografia contemporânea ainda não conseguiu definir e integrar. Por outro lado, a evolução recente da Humanidade e do Planeta trouxe, para o primeiro plano das preocupações do Homem, a dimensão biológica, que se traduz na interface com o território, na cada vez maior valorização das questões ambientais. Em complemento, a sempre presente (explícita ou implícita) dimensão sociológica completa o quadro de referência. Estamos aqui, de novo, a aproximar-nos do cerne da Geografia, “encruzilhada” de saberes, que relevam da interacção do Homem com o Meio em que vive.

PORTUGAL: NOVOS MAPAS - TÓPICOS PARA UMA ABORDAGEM Portugal na dimensão global O posicionamento de Portugal à escala mundial sofreu grandes transformações e reajustamentos ao longo dos últimos 20 anos. Enquanto País altamente deficitário em recursos energéticos, Portugal foi dos países mais sensíveis aos sucessivos choques petrolíferos, a partir de 1973. Este ano marca o início da grande viragem, que, no entanto, já se vinha a evidenciar, na esfera económica e social, desde finais da década de 60, que se traduziria em novos enquadramentos geo-estratégicos e em alterações políticas, económicas, sociais e culturais, que se manifestam em diferentes planos: A crise mundial, à semelhança do que se passara em 1929 ou no fim do século passado, travou a emigração, verificando-se uma inversão, com o incremento do retorno dos principais destinos na Europa (França e Alemanha); O esforço da Guerra Colonial, em África, tornou-se insustentável e acelera a queda do regime ditatorial que com diferentes configurações vinha desde 1928 – como consequência imediata, além da acentuada turbulência social e económica, dá-se a desvalorização; O posicionamento político do País a nível mundial embora não se modifique no essencial (manutenção na NATO...), sofre algumas alterações, num curto período de pouco mais de um ano de agitação social e alguma incerteza político-estratégica; A crise económica e a turbulência sócio-política levam às nacionalizações, que têm importantes consequências internas: acentua-se, a especialização económica do País em produtos manufacturados com grande incorporação de mão de obra e tecnologia pouco evoluída, com grande destaque para os têxteis; Portugal ao deixar de ser uma potência colonial perde peso específico no contexto internacional, que de certo modo vai sendo progressivamente compensado pela imagem positiva de um pequeno País que consegue, em plena crise mundial, ultrapassar múltiplos problemas económicos, sociais e culturais, e 53

consolidar um regime democrático; reforça-se, assim, a credibilidade de Portugal, tanto no contexto das Nações Unidas, como no do Continente Europeu. Estão criadas as condições políticas, externas e internas, para a aproximação da Europa e para a integração na Comunidade Económica Europeia. A concretização destes processos terá profundas consequências no território português, à escala global, regional e local.

Comunidade, só será conseguido se se enriquecerem mutuamente as culturas que desenham as paisagens dos territórios, da aldeia à metrópole, do município à Comunidade Europeia. As Grandes Tendências da Transformação do Território Aceleração do processo de urbanização Portugal é o País menos urbanizado da Comunidade Europeia, tanto na perspectiva da concentração da população em centros urbanos ou assimiláveis (em 1991, apenas 49% da população residia nas áreas metropolitanas e em lugares com mais de 2 000 habitantes; valor ainda assim muito superior aos 34%, apontados pelo INE e que corresponde às aglomerações com mais de 10 000 habitantes), como na perspectiva da população directamente dependente das actividades mais afins da ruralidade: a população activa na agricultura deverá situar-se actualmente em torno dos 14- 15 %, valor idêntico ao da Irlanda (15 %). Por outro lado, a industrialização dispersa e disposta no terreno de uma forma caótica, tem evidenciado elevadas externalidades negativas, que acabam por se traduzir em ineficácia. Por último, o processo de terciarização da economia favorece ou até implica a urbanização, o que não significa necessariamente concentração nas grandes aglomerações. A evolução da estrutura da economia na última década evidenciou o crescimento do terciário e em particular dos serviços, patente em todas as regiões, reflectindo-se naturalmente na urbanização, que se traduz no crescimento físico e funcional de todos os núcleos com vida urbana, da vila sede de concelho às Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto. Em traços globais, o processo de urbanização tem duas “normas” principais: a do Litorial e a do Interior. No Litoral a par com a estabilização das duas áreas metropolitanas, verifica-se o crescimento de todos os centros de pequena e média dimensão, bem como dos espaços na órbita imediata dos dotados de boa acessibilidade. A prazo configura-se assim, tanto no Litoral algarvio (de Lagos a Vila Real de Santo António), como no Litoral ocidental (de Viana do Castelo a Setúbal – eventualmente até Sines, num futuro mais longínquo), uma vasta região metropolitana, a funcional mancha urbana, contínua, na fachada atlântica da Europa, que ainda se estende para norte, pela Galiza. Nesta “nebulosa” destacam-se pela sua grandeza, quantitativa e qualitativa, as duas metrópoles de Lisboa e do Porto. No Interior o processo de urbanização já começou a evidenciar – com duas décadas de atraso – os traços do processo sofrido pela Espanha interior: as cidades médias e algumas de menor dimensão bem localizadas, crescem por sucção do espaço rural envolvente. O êxodo que ainda se manifestou no Alentejo

O Território e a Integração de Portugal na Comunidade Europeia Contradição de objectivos? Dois dos objectivos essenciais da intregração de Portugal na Comunidade Europeia, a convergência real com o nível de desenvolvimento médio da Comunidade e a redução das assimetrias regionais no País, aparecem para certos estudiosos ou políticos, como algo contraditórios. Para alguns, Portugal só poderá aproximar-se da Europa se concentrar as acções de fomento económico nas áreas com maior potencial competitivo no plano nacional e internacional, pelo que seria impossível cumprir, à letra, aqueles dois objectivos. Sendo competir a palavra de ordem, a nova chave de todo o processo de desenvolvimento, e sendo essa estratégia necessariamente válida para todos os níveis espaciais de actuação dos agentes económicos (mundial, nacional, regional, local...), torna-se indispensável encontrar as compatibilidades, as articulações mais convenientes entre esses vários níveis espaciais. Na realidade, o desafio coloca-se à capacidade de cada unidade territorial conseguir – maximisando as suas potencialidades, valorizando os habitantes – os melhores desempenhos nas articulações com os níveis territoriais imediatamente acima e abaixo. Esta optimização dos desempenhos para ser robusta e sustentada, não poderá contrariar determinantes ou balizamentos de outras esferas, em que avultam a cultural e a ambiental. A dimensão cultural do desenvolvimento deverá ser perspectivada enquanto herança, enquanto dinamismo actuante e enquanto futuro. A cultura de uma comunidade – do local ao global – está em permanente movimento e interacciona-se com as outras dimensões, mormente com a económica e a social. O processo de desenvolvimento em curso em Portugal, que tem na integracão na Comunidade Europeia o principal motor, não poderá consumar-se sem disfunções perigosas se se realizar ao arrepio da cultura local e nacional (da ruralidade à urbanidade), mas também não terá êxitos se não conseguir integrar-se no processo de interacção cultural da Europa e do Mundo. Ora este enquadramento tem tudo a ver com a reestruturacão do território. O sucesso da integração portuguesa na Comunidade Europeia, enquanto caminho para a realização económica, social e política da

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e no Centro e Norte interiores na década de 80 significou em boa medida a fraca capacidade de retenção das cidades existentes nessas regiões, não obstante alguns comportamentos mais dinâmicos, como os de Castelo Branco, Viseu e Évora.

Alguns centros urbanos mais próximos da fronteira espanhola poderão beneficiar deste processo, estabelecendo-se como pólos intermédios na relação entre o Interior da Península e o Litoral português.

PESO DA POPULAÇÁO RESIDENTE SEGUNDO A DIMENSÁO DE LUGAR EM 1991

Fonte: INE

localização e recursos disponíveis (naturais e humanos), o Litoral continua a evidenciar mais potencialidades e se já não se manifesta como área de atracção para o êxodo rural (apenas em relação a populações de outros continentes), é nitidamente mais atraente

Reforço da Litoralização Pela escala (só no território português, a faixa litoral ocidental comporta mais de 7 milhões de habitantes, progressivamente mais interaccionados), pela 55

para os investidores, nacionais e estrangeiros. Assim, a Litorialização, ou seja, o maior peso do Litoral em relação ao Interior, continuará a manifestar-se em parte pela concentração demográfica (sobretudo resultante do próprio crescimento natural, a que se juntarão imigrantes, predominantemente de África), mas sobretudo pelo reforço qualitativo da base económica.

eventuais consequências nos domínios político e cultural: se no passado (desde a fundação de Portugal...) a Litoralização foi um dos mais fortes suportes da individualização de Portugal (cf. Gaspar, 1987; Gaspar, 1982), já que o País, voltando-se para o Atlântico, suportava melhor as pressões na fronteira terrestre, no futuro a resultante da Litoralização poderá ser de sinal

Entretanto, o Interior, como resultado do processo de concentração urbana e eventualmente ainda alguma emigracão para o Litoral e estrangeiro, deverá observar significativos ganhos de produtividade – tendo em conta o baixo nível de partida. Assim, é plausível que em termos de capitação, o Interior, ou pelo menos alguns dos seus segmentos territoriais registem alguma aproximação dos níveis de desempenho económico e de infraestruturação do Litoral. Para tal, continuarão a contribuir de forma significativa as transferências financeiras que se operam tanto no País (do Litoral para o Interior), como no exterior (remessas de emigrantes, fundos comunitários). Será interessante cruzar estas perspectivas de desenvolvimento na esfera económica e social, com

contrário – com a eliminação da fronteira terrestre as populações/as cidades do Interior terão, nalguns casos, (talvez em quase todas as regiões...) vantagens em reforçar os laços com o Interior da Península (Leão, Castela, Estremadura, Andaluzia), o que poderá contribuir para um decréscimo da coesão nacional, com reflexos na estruturação económica e social do território. Aumento do Rendimento Disponível das Familias e Transformações na Ocupação e Organização do Território Satisfeitas as necessidades básicas, os aumentos de rendimentos são progressivamente orientados para 56

mesmo de uma civilização, com a emergência de novos padrões culturais e territoriais. A seguir ao automóvel (3), quer por razões de valorização simbólica, quer pelas exigências financeiras que implica, o bem que tem observado mais alterações na sua configuração e uso é a habitação. Quantitativamente, a principal tradução do fenómeno é o generalizado alargamento do consumo de espaço; qualitativamente são as novas formas urbanas, respondendo a novos valores comportamentais. A casa maior, os quartos grandes, os salões substituindo a sala, a garagem... são componentes do programa de residência das classes médias, cuja mobilidade residencial aumentou de forma notável nos últimos dez anos. A melhoria de rendimentos permite a migração de áreas congestionadas ou mesmo de fogos congestionados para subúrbios ou novas áreas urbanas menos densas – os standards residenciais, medidos pelo número de m 2 por habitante têm progredido manifestamente. Assim se explica que o crescimento físico das aglomerações seja muito superior ao crescimento demográfico. Em muitas situações assiste-se à clara expansão das áreas urbanas, enquanto os níveis populacionais permanecem estacionários. A terciarização da sociedade tem a sua principal manifestação físico-territorial nas áreas urbanas consolidadas, sendo clássicos os modelos que mostram as tensões e dinâmicas de expulsão das actividades terciárias relativamente à população residente. Todavia, não é possível explicar a diminuição de população que se verificou na última década nas áreas consolidadas das principais cidades do País e mesmo em várias cidades de pequena e média dimensão apenas a partir daquele processo de “invasão” terciária. Na realidade, em muitas áreas residenciais a diminuição da população não ficou a dever-se à entrada dos escritórios, mas sobretudo ou quase exclusivamente ao alargamento do espaço de residência per capita. Desde logo a diminuição da dimensão média das famílias é outra componente do aumento do consumo de espaço: as estatísticas mostram bem o ritmo em que se dá esta queda, ao mesmo tempo que mostram a variação da dimensão média dos alojamentos. Assim, no aumento do consumo de espaço-residência é necessário distinguir a componente que decorre da satisfação de necessidades básicas, que se ampliam naturalmente pelo acesso a novos bens e a novas práticas, de um aumento de consumo que releva fundamentalmente de valores simbólicos, de ostentação, decorrentes de processos de mimetismo relativamente aos comportamentos de outras classes sociais ou de outras culturas.

novos consumos, cada vez mais “consumidores” de espaço e com profundos efeitos na ocupação e organização do território. O automóvel constitui o elemento paradigmático deste processo, não só porque é em si mesmo um grande consumidor de espaço (vias, estacionamento), como proporciona ou até induz outros consumos com incidência territorial. O automóvel altera a leitura da cidade e os modos de vida das populações. O simples facto da neces-sidade de estacionamento leva muitas famílias a deixarem o centro para se deslocarem para a periferia; este fenómeno, típico da sociedade americana ainda antes da 2.a grande guerra, está agora a atingir o auge na sociedade portuguesa. Associado ao uso do automóvel processam-se ainda mudanças no padrão de localização do comércio e de outras actividades económicas, tanto na esfera do consumo como na esfera do trabalho. Os exemplos mais evidentes na reestruturação do espaço e com forte incidência na transformação das paisagens, são os surtos de hipermercados e centros comerciais periféricos, por um lado, e a deslocalização dos escritórios para junto dos nós das auto-estradas, por outro. Configuram-se assim novas formas de urbanismo, que alguns autores anunciam como fim da cidade e

(3) Outros bens a que a população vai tendo acesso com o aumento de rendimento têm implicações na organização do território. Destaque-se a “revolução” recente do audiovisual e em particular da televisão e do vídeo – que retém mais as pessoas em casa, reduzindo os espaços públicos de espectáculo e, por outro lado, diminuindo as práticas de sociabilidade, tanto públicas como privadas.

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das práticas dos tempos livres, torna-se necessário promover a educação para o consumo do espaço, no sentido de valorizar o território que habitamos: continência no uso e abuso de infraestruturas e equipamentos colectivos; respeito no usofruto da natureza, quer na praia, quer na montanha ou na planície; reaprender a viver a cidade nas suas várias expressões físicas e sociais, valorizando os seus centros, dando-lhes uma alma. Por último é necessário também uma educação para o uso do espaço do lar, portas a dentro: aprender a organizar a casa, percebendo-lhes as funções, aprofundando as suas virtualidades. É a partir da casa e do seu domínio territorial que melhor se pode compreender e valorizar a rua, o bairro, a cidade, o País, o Mundo.

A este aumento de consumos especificamente residenciais, acrescem os que completam a função habitar; também aqui a tendência é para a expansão, o incremento do consumo territorial. Além do que já referimos para o automóvel e do que tratamos noutro capítulo sobre o aumento dos tempos livres e das respectivas práticas, são mais estritamente da esfera habitacional alguns serviços, públicos ou privados, em que avultam a educação e a saúde, e que também exigem a disponibilização de mais espaço, até pela crescente componente de transporte automóvel que implicam. A propósito deste último aspecto chamamos a atenção apenas para duas situações: os estabelecimentos de ensino superior e os hospitais tendem cada vez mais a localizar-se na periferia, por vezes muito afastados, dos centros urbanos, privilegiando a acessibilidade por transporte individual, em detrimento do transporte público; prejudicando naturalmente os estratos sociais de rendimentos mais baixos. Perante as tendências depredatórias do espaço e desorganizadoras do território que se observam, e que são particularmente evidentes por excessivas no caso

Mais Disponibilidade de Tempo Livre e Generalização dos Lazeres A duração do tempo de trabalho tem manifestado uma tendência para a diminuição, tanto à escala da vida humana, como dos ritmos – anuais, mensais, semanais e diários. Por outro lado, diversificaram-se os

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modelos de utilização do tempo livre, tanto numa perspectiva social, como funcional ou etária. Os tipos e estratégias de utilização do tempo diversificaram-se. Em todo este processo complexo há uma constante: o aumento do consumo de espaço. Este aumento, que é promovido por vários agentes económicos, do imobiliário (casas secundárias) ao turismo (hotéis, restaurantes e outros equipamentos), ao ensino (cursos de Verão, conferências, seminários), à cultura (exposições, museus, vivência do património histórico-cultural), tem também incidência na prá-

tica da administração pública, na medida em que implica a provisão de mais infraestruturas de base, de transportes, de saneamento, de energia, de desporto e de outras actividades de tempo livre. É talvez por esta via que o ser humano se apresenta como o maior depredador do território e da natureza. O mito da sociedade de lazer, aparece muito associado a um outro que é o do regresso à natureza, que as diferentes formas de turismo aproveitaram para diversificar a oferta e aumentar a dimensão económica.

EMPREGO POR SECTORES DE ACTIVIDADE, 1981 E 1991

Fonte: INE, Contas Nacionais

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Trata-se de um fenómeno que rapidamente se mundializou, rasoirando valores e comportamentos de diferentes civilizações, proporcionando novas bases económicas nacionais, regionais e locais, por vezes duradoiras, noutros casos extremamente efémeras. Por outro lado teve consequências, particularmente a nível local, na transformação dos modos de vida, das paisagens e dos patrimónios, natural e cultural. As práticas e a economia dos lazeres e tempos livres são responsáveis, em diferentes domínios e segmentos do território, pelas profundas transformações operadas sobretudo a partir dos anos 60 e que aceleraram na última década. Numa primeira fase o principal motor do processo é a “clientela” estrangeira, sobretudo europeia, mas, progressivamente, a maior “responsabilidade” cabe à população portuguesa. À escala regional, as transformações mais evidentes observam-se na Madeira e no Algarve, sendo tam-

bém notáveis na periferia das duas principais cidades. Naqueles casos, a uma polarização da base económica em torno das actividades originadas pelo Turismo, correspondeu um processo de urbanização e concentração das populações, acompanhado do abandono de certas actividades tradicionais (agricultura, pesca, conservas). Mas o aspecto mais marcado é o da mobilização de enormes recursos, onde avultam a água e o solo, tudo contribuindo – sobretudo no Algarve – para a transformação da paisagem, com destruição definitiva de significativo património natural . Entretanto, foram criadas infraestruturas e equipamentos, das estradas à hotelaria, das barragens aos campos de golfe, que determinam um modelo de ocupação e organização do território. O tempo livre, explorado pelos agentes do turismo, tem a característica de implicar diversificação e de as suas actividades estarem sujeitas a bruscas muta-

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Em certas situações desta “mistura” funcional e social resultaram e, nalguns casos, poderão continuar a resultar vantagens que se traduzem na maior robustez da economia, na diminuição da conflitualidade social, na flexibilidade necessária para ultrapassar as crises, bem como num activo processo de mobilidade social. Este quadro é bem nítido na faixa urbano - industrial do litoral, do Minho ao Oeste, onde a agricultura tem um peso muito grande nas economias familiares. Entretanto, devido a um conjunto de externalidades negativas, de natureza económica, ambiental e social, tem vindo a manifestar-se um movimento no sentido de se proceder a uma “arrumação” da casa. Em termos institucionais o facto traduz-se principalmente pelo lançamento de um conjunto de planos de ordenamento, nomeadamente os regionais (PROT – planos regionais de ordenamento do território), os municipais (PDM – planos directores municipais e outros PMOT – planos municipais de ordenamento do território) e alguns no âmbito das áreas protegidas (Parques Naturais e Áreas de Paisagem Protegida). O esforço de ordenamento em curso, bem como os novos comportamentos (expectáveis) por parte dos agentes económicos levarão a uma maior especialização funcional do território, a que poderá associar-se, nas aglomerações urbanas, ou quasi-urbanas, uma tendência para a segregação social do espaço. Um caso particular, onde o fenómeno é nítido é o dos empreendimentos turísticos, onde a “exclusividade” constitui um factor importante de sucesso, tanto no Litorial como no Interior. Mas é na cidade e sobretudo nas duas principais áreas metropolitanas que se tende para uma maior especialização funcional do espaço, em grande medida pelo processo de planeamento económico e territorial e, de forma ainda mais marcada, para a segregação social. A principal dimensão da especialização funcional manifesta-se no processo de terciarização dos principais centros urbanos (e mesmo de alguns subúrbios, onde predomina a classe média) e na correlativa “expulsão” das actividades industriais, quer para determinados eixos ou subúrbios (no caso das áreas metropolitanas), quer para núcleos periféricos das áreas urbanas ou para centros urbanos de pequena e média dimensão, até aqui dominados pelas funções terciárias de gestão do território. A cidade portuguesa, pouco marcada pela revolução industrial, manteve, em geral, um elevado grau de integração/mistura social, característica da cidade pré-industrial. A segregação que se projecta a partir de finais do século XIX é sobretudo visível em certos subúrbios industriais (Barreiro, Matosinhos, Alhandra) e nalguns bairros das metrópoles que se degradam com a implantação de indústrias (casos de Alcântara e de Xabregas - Poço do Bispo em Lisboa), mas que ainda mantêm até aos nossos dias pequenos “enclaves” da burguesia ou aristocracia.

ções nos mercados, com o aparecimento e desaparecimento de comportamentos modais. Assim, na sequência da Costa de Lisboa e das outras praias do Litoral Ocidental, do Sado ao Minho, verificou-se e continua a verificar-se uma forte pressão dos vários agentes sobre o Litoral, que representa um perigo à salvaguarda de um valioso património, com alguns valores únicos mesmo num contexto internacional, casos da Costa de Lisboa e da Costa Alentejana. Mas o “assalto” das duas últimas décadas, destruindo estúarios, praias, dunas, de Norte a Sul, implica hoje já não só medidas de salvaguarda, como um enorme esforço de recuperação, tanto mais difícil quanto a urgência ou sequer pertinência não está interiorizada na maioria da população e, particularmente, de muitos responsáveis, do Estado (do poder local ao central) à sociedade civil (promotores imobiliários, empresários das áreas do turismo e até organizações que relevam de um pretenso “amor à natureza” – veja-se o que se passa com a praga dos todo-o-terreno...). A ânsia de consumo de espaço e de mergulhar na natureza, com o aumento das disponibilidades financeiras das famílias e da respectiva mobilidade (o automóvel...) tem deslocado nos últimos anos parte significativa das procuras para o Interior. Um Interior que se esvaziou demograficamente e descaracterizou culturalmente em grande parte do seu território. Ora a “lazerificação” generalizada do Interior, facilitada pela desvalorização enquanto recurso agrícola, florestal e pecuário, constitui um perigo, não só para a salvaguarda da paisagem e dos valores biogenéticos, como também para a defesa de recursos estratégicos, que não se poderão pôr em causa no curto e médio prazo. A recente reforma da Política Agrícola Comum pode ter várias interpretações operativas e estratégicas. Mas em qualquer delas não pode deixar de estar presente a dimensão estratégica da ocupação do território e a preservação do seu potencial produtivo, bem como a necessidade de usar parcimoniosamente, procurando a sua rendibilidade, recursos essenciais como a água, a energia e o solo. Torna-se pois necessária uma política de fomento e ordenamento do território em que a questão do tempo livre e do lazer constitua uma preocupação central, na sua interacção com as outras questões das esferas económica e social. Especialização Funcional e Segregação Social do Espaço O território português, observado a diferentes escalas e dimensões – do regional ao local, do urbano ao rural – caracterizou-se e caracteriza-se ainda por um certo grau de promiscuidade: da indústria com a agricultura, dos bairros de lata que encostam a áreas residenciais das classes mais favorecidas, da ruralidade que penetra a cidade. 61

tactos com estratos sociais “inconvenientes” para determinado grupo. Começam assim a aparecer os condomínios fechados e a segurança é uma determinante no desenho urbano e arquitectónico: nos prédios de habitação, nas moradias, nos conjuntos residenciais e também nos de terciário, com destaque para os centros comerciais. Estas novas formas de habitar têm vindo a definir-se da classe alta para os vários estratos da classe média, potenciadas pelo papel já não só das imagens que chegam do Brasil através das telenovelas, mas pela própria introdução de profissionais do marketing imobiliário originários dequele país. E as influências na segregação manifestam-se não só nas áreas mais burguesas, mas também nos subúrbios das classes médias, nos referidos condomínios fechados – espaços de residir e de práticas de lazer em clausura – uma nova moda que tende a conferir estatuto e segurança aos seus habitantes, em muitos casos ainda “recém urbanos” – eles ou os pais migraram recentemente do meio rural, pelo que não são sensíveis às anteriores formas de urbanidade, tão fortes na cidade mediterrânea. Estas formas de vida respondem também aos novos valores individualistas do consumo: a casa como fortaleza onde se pode ter acesso a tudo – as práticas do lazer, a ligação por satélite à informação de todo o Mundo, os grandes espectáculos públicos em cassettes e CDs, à medida das revistas de sociedade e de decoracão. Em contraponto, constrói-se a cidade marginalizada, dos excluídos daqueles grupos, que marcam segmentos do território que se degradam rapidamente, além da larga parte do mundo rural a que nos referimos noutro ponto. São os idosos nos bairros antigos, são os idosos dos subúrbios das décadas de 40, 50 e 60, cada vez com maior peso e a que agora se juntam quantidades crescentes de pessoas sem emprego, já não só os jovens, mas também aqueles que em idade madura, desempregados aos 45 ou aos 50 anos, descolam da sociedade, após meia dúzia de anos de confiança e ilusão. São ainda, noutro extremo, os que nunca se conseguiram integrar, os potencialmente analfabetos e as minorias étnicas de imigração recente, de quem também ninguém poderá esperar que sejam solidários. A segregação social do território é a principal ameaça ao sucesso de uma proposta de resistência a crises, de recuperação da economia ou de desenvolvimento social. É, em diferentes dimensões, uma barreira cultural ao progresso que tarda.

É interessante notar que a política social e económica de Salazar com incidências no território, se exceptuamos a concentração projectada para a Península de Setúbal e, em menor grau, para o eixo de Lisboa Vila Franca de Xira, não é marcadamente segregacionista. Pelo contrário, na prática de ordenamento urbano, procurou-se tanto ao nível da grande cidade (Lisboa e Porto), como das cidades de província (em particular as capitais de distrito), manter, por vezes recriar, ambientes urbanos de “integração” dos diferentes estratos sociais. O Restelo burguês, com a sua envolvente de bairros sociais, Alvalade e mais tarde Olivais-Sul (já de forma mais mitigada) são exemplos que saltam à memória. Mas a nitidez do modelo também ressalta nas capitais de distrito, onde uma nova classe média do aparelho de estado vai viver nos novos bairros, bem planeados e edificados, paredes meias com as “casas para pobres” na sua feição de memória rural. Uma certa atitude de “permissividade” relativamente à localização dos bairros de lata, indica também essa atitude não segregacionista que caracteriza, em geral, o processo de crescimento das nossas cidades nas últimas décadas. As urbanizações desordenadas – tanto de residências principais como secundárias (Algarve!... Caparica!...), incluindo as clandestinas – favorecem a “promiscuidade” social, mas acabam por se tornar desqualificadoras, gerando quer o estigma desses segmentos do território, quer o aparecimento de tensões sociais. Todavia, ainda hoje se verificam investimentos em residências luxuosas, lado a lado com o caos e a miséria urbanística e social: de Norte a Sul, de Moledo ao Algarve, da Aroeira a Cascais. A partir de meados dos anos 80, após o período em que a crise foi mais pronunciada, verifica-se uma nítida tendência para a polarização social e, ao mesmo tempo, um aumento de segregação social do espaço. Note-se que, pelo menos ao nível da iniciativa pública, o assumir a compartimentação social do espaço urbano já se manifestara desde finais dos anos 60 e as três maiores iniciativas públicas de promoção de áreas residenciais são a demonstração brutal da viragem: referimo-nos a Chelas e aos chamados “planos integrados” de Almada e de Setúbal, todos ainda por concluir, mas constituindo na sua dimensão de “ghettos” sociais, dos maiores problemas da Área Metropolitana de Lisboa. Mas do lado da iniciativa privada do mercado, há uma resposta e, ao mesmo tempo, a promoção de certos valores que se acentuam, como o da casa enquanto referência de estatuto social, associada à localização – é a importância do endereço, do cartão de visita e, ao mesmo tempo, a necessidade de ostentação. Por outro lado, empola-se a questão da segurança, que não implica apenas o problema da invasão patrimonial (assalto, roubo), mas também o dos con-

O Mundo Rural Da Integração à Marginalização As definições de meio rural ou de população rural são cada vez mais difíceis de conseguirem consensos. A associação entre rural e agrícola embora ainda seja

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patente, cada vez se afasta mais de uma coincidência estreita. Existe um grande número de agricultores que se integram em hábitos e ritmos de vida assimiláveis aos dos que habitam a cidade e se dedicam a activi-

ficamos que se tem vindo a definir, embora de forma não explicitada, um modelo de ordenamento equivalente. O Plano Rodoviário Nacional constitui o principal instrumento desta estratégia, que inclui ainda uma maior selectividade no conceito de rede ferroviária, a que corresponde o encerramento de um grande número de linhas e de ramais. Daqui decorrerá entre outros efeitos o da marginalização de extensas áreas rurais, que terão dificul-

dades da indústria ou de serviços; muitas empresas agrícolas têm a sua actividade organizada em moldes semelhantes aos de unidades transformadoras, praticando ritmos de trabalho semelhantes. Por outro lado, e em número ainda muito maior, estão aqueles que continuando a viver em meio rural, dedicando mesmo algum do seu tempo a tarefas agrícolas ou pecuárias, têm a sua principal actividade e fonte de rendimento na indústria, no comércio ou nos serviços. As recentes alterações no quadro económico e político da Comunidade Europeia apontam para um reforço das potencialidades decorrentes dos efeitos de aglomeração e das centralidades. Tem-se verificado a emergência de novas configurações territoriais em regiões tradicionalmente dominadoras. A Europa aparece com uma faixa central (a decantada “banana”) que se estende da metrópole londrina ao mediterrâneo (Lombardia/Piemonte/Costa Azul), passando pela Holanda/Bélgica, Alemanha, Suíça, ficando Paris e Lyon nos limites desta faixa. A partir deste conjunto de cidades principais e revelando dinamismo, nacional ou regional, estão a ser desenhadas e construídas várias infraestruturas de acessibilidade que apontam no sentido de potenciar a interacção do espaço europeu a partir das polarizações mais fortes. As chamadas redes transeuropeias constituem o principal suporte de uma estratégia de ordenamento à escala da Europa, que terá como resultado um acréscimo na capacidade competitiva do sistema, mas que, por outro lado, irá acentuar a perificidade e promover a marginalização de vastos espaços, sobretudo os que relevam da ruralidade. Se olharmos Portugal à escala intra-nacional veri63

dade em se inserir nos mercados agrícolas e onde a prática da agricultura a tempo parcial será difícil ou inviabilizada na medida em que não se oferecem condições para o investimento na indústria, nem se atingem limiares de consumo que justifiquem a criação (ou manutenção) de actividade de comércio e de serviços. O processo de marginalização tende a ser cumulativo. À quebra, relativa ou absoluta, de acessibilidade, junta-se o envelhecimento da população, limites físicos da dimensão das explorações agrícolas, a dificuldade no acesso à informação ... O incremento das acessibilidades gerais, tanto a nível da Europa, como do País, das regiões e até dos próprios municípios induz o aparecimento de novas marginalidades. Particularmente crítica é a situação das áreas rurais afastadas dos itinerários rodoviários, dos centros urbanos, e que nem sequer atingem os limiares demográficos que, numa lógica de rendibilidades, permitam a provisão dos serviços a que todos os cidadãos têm direito. Ao contrário do que sugeriram nos anos 70 alguns sinais de alteração de tendências, tanto em Portugal como nalguns países desenvolvidos, os anos 80 vieram acentuar a fragilidade do novo mundo rural, não só do que vive principalmente da agricultura, como mesmo do que já tem grande parte da sua população a trabalhar na indústria e nos serviços. Esta fragilização das áreas rurais manifesta-se em vários domínios: económico, demográfico e social, mas é mais marcada e talvez mais definitiva, no plano cultural. De facto, a par da perda de importância relativa no plano económico e na valorização social, verifica-se a queda dos valores da cultura rural e camponesa, o que resultando principalmente da desigualdade de oportunidades que se observam no campo relativamente ao meio urbano, está também associado à difusão rápida dos padrões de comportamento da sociedade de consumo. Mesmo as pequenas aglomerações urbanas das áreas rurais – sedes de concelho e núcleos assimiláveis – não têm conseguido criar empregos suficientemente atraentes para os jovens que aí frequentaram o ensino básico e secundário. Assim, continua a verificar-se uma emigração selectiva e crescente à medida que se desce no escalonamento dos centros urbanos. O abandono das áreas rurais não deve ser visto apenas a partir do seu dinamismo interno, é necessário também observar de fora para dentro. Na realidade, vem-se acentuando o esquecimento a que o mundo urbano em geral e os antigos emigrantes das áreas rurais em particular votam as aldeias que antes visitavam com maior frequência. Esta situação é sobretudo nítida nos emigrantes no estrangeiro, mas também é patente na população que emigrou para as principais cidades e que nas férias é atraída por outros destinos de lazer (e de investimento), como o Algarve e o estrangeiro.

É necessário incentivar acções de promoção das áreas rurais, que tenham como finalidade principal a atracção dos naturais dessas áreas, que muitas vezes ainda aí mantêm património assinalável e que poderão valorizar. Esta questão poderá ser equacionada no contexto do turismo em espaço rural, cujo conceito deverá ser alargado, no sentido da diversificação da oferta e da manutenção das características essenciais do mundo rural. Uma Perspectiva Integradora: A Ambiental Em grande medida por influência externa, mais recentemente, com as transformações em curso, também pela assumpção interna, as preocupações com os problemas ambientais tomaram uma dimensão de relevo, que se traduz nos discursos políticos e, de forma algo vaga, na hierarquia de valores dos cidadãos. Entretanto, algo foi feito no âmbito da preservação, da regulamentação e, globalmente, no sentido de se confirmar uma estratégia nacional de preservação da Natureza. Todavia, o que foi feito fica aquém da degradação e da destruição que se conseguiu nas últimas décadas. Na realidade, a preocupação com a qualidade do ambiente e a salvaguarda do património constituem muito mais peças de retórica, permanentemente renovadas, do que o resultado de alterações culturais e comportamentais. Os factos comprovativos destas afirmações podem verificar-se no dia a dia, desde o plano das mais altas esferas políticas (a nível nacional e local), ao comum dos cidadãos, de qualquer estrato social. A consciência da questão ambiental embora em afirmação crescente continua a ser insignificante, ao lado das “grandes questões” do quotidiano dos diferentes agentes económicos: o aumento da produção, dos lucros, dos salários, do consumo, das realizações materiais com efeito mediático. No passado, a paisagem, a qualidade dos meios hídricos ou do ar que se respira, nunca constituíram preocupações maiores dos portugueses, por muito que se queira valorizar a herança que recebemos. Até certo ponto, com a excepção do montado alentejano (que algumas campanhas cerealíferas destruíram em grande parte), a paisagem rural portuguesa é mal cuidada, as linhas de água nem sempre tiveram o melhor tratamento, as espécies florestais clímax foram desde cedo substituídas por espécies exóticas, tendo em vista simplesmente critérios de rendibilidade de curto prazo, as construções se nuns casos respeitam as condições do meio, em muitos outros deslocam-se para locais menos convenientes, obedecendo apenas a critérios de acessibilidade viária. A maior parte das paisagens rurais portuguesas denotam instabilidade, promiscuidade de usos, precaridade das opções de valorização económica. Vista do ar, a paisagem portuguesa, 64

o conhecimento de um eventual modelo só por si permitiria obviar as indefinições na organização do território. Nem, por outro lado, afirmamos a impossibilidade de configuração de um quadro de ordenamento do território, de base, que permitisse inserir, nos devidos momentos, as transformações económicas e sociais – esse quadro, onde se afirmariam as invariantes e os valores “intocáveis”, esbarra ainda (e tememos que tal situação continuará por tempo indeterminável) com barreiras de natureza económica, social, política e cultural. O espaço agrícola e florestal enfrenta grave crise, potenciada pelas indefinições, cujos resultados a curto e médio prazo são particularmente negativos para as populações e as empresas; mas a longo prazo as consequências são mais profundas, pois estão em causa a salvaguarda de recursos naturais, que mexem com toda a organização social e cultural do País, com a sobrevivência não só de natureza económica, mas também de identificação: como será a paisagem de Portugal no final deste século? Que relação existirá entre os cidadãos e o conjunto do território nacional? Cada País tem que se reconhecer nos seus produtos, nas suas paisagens, nas suas raízes; e estes não se podem resumir a estradas, fábricas e aglomerações cada vez mais descaracterizadas, sem memória, sem alma. O espaço urbano terá cada vez um papel mais importante no apego das populações aos lugares e isto significa não só o apego dos que trabalham, mas também dos que investem ou dos que procuram esses lugares para a satisfação das suas próprias necessidades de natureza social e cultural. As paisagens urbanas terão que ser tratadas de molde a que os cidadãos aprendam a respeitá-las e a amá-las, identificando-se, sentindo as novas formas de uma Pátria renovada. As paisagens urbanas terão que se afirmar na nova realidade europeia, tanto pelos sinais de pertença a uma mesma família, como pelas marcas de uma diferença que resulta de uma história e de uma geografia próprias, construídas ao longo de séculos e que poderão (deverão) enriquecer o património europeu. As paisagens urbanas portuguesas necessitam de edificar as novas catedrais, as novas praças e ruas de prestígio, referências maiores no mapa mental de estantes e passantes. E esses padrões, essas marcas de uma personalidade, não poderão ser os hipermercados e centros comerciais periféricos/suburbanos/anurbanos, que cada vez mais desempenham as funções de locais de culto e de lazer, de uma civilização que se desurbaniza, reduzindo a cidadania à religião do consumo: de bens materiais e imateriais, de tempo livre, de território, de paisagens.

aproxima-se mais da que se pode observar em países menos desenvolvidos do Mediterrâneo ou no mundo Tropical, do que da sábia, laboriosa e sempre renovada construção dos países da Europa, com idênticas carga histórica, densidade demográfica e matriz cultural. Se olharmos as paisagens urbanas, a situação não é diferente. Apesar de algumas excepções (localizadas em áreas de cidades como Évora ou Lisboa) a maior parte das paisagens urbanas, inclusivé os núcleos históricos, denotam desleixo, senão abandono de qualquer preocupação de edificação de um quadro devidamente orientado pela qualidade. Isto é patente não obstante a recente preocupação de reabilitação de alguns núcleos históricos e áreas centrais das cidades. A situação das paisagens urbanas é sobretudo catastrófica nas áreas de desenvolvimento recente. Pela sua extensão (da ordem das largas centenas de Km2 e abrangendo 4 milhões de habitantes) a realidade é particularmente constrangedora e preocupante nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto; trata-se não só de um crescimento desordenado e infringindo as normas elementares do bom senso, com a generalizada destruição dos valores ambientais e arquitectónicos, como também da total promiscuidade, com conflictos no uso do solo e na estruturação social e económica do espaço. As áreas centrais das aglomerações urbanas ou perderam vida e encetaram um processo de obsolescência, ou congestionaram-se, enveredando por outro processo de degradação, que levará ao mesmo resultado. As periferias urbanas perderam personalidade, identificação, atingindo aí a máxima dimensão a promiscuidade dos usos e das valorizações do solo: das fábricas aos bairros sociais, dos condomínios fechados pretensamente luxuosos aos armazéns ou usos agrícolas marginais, em processo de declínio expectante. A aproximação de uma cidade portuguesa, além das dificuldades decorrentes da insuficiência das infraestruturas rodoviárias, tornou-se um acto doloroso, pela pobreza da paisagem, pela evidência da destruição do património cultural e natural, pela patente expressão da crescente polarização social. A integração na Comunidade Europeia se, por um lado, trouxe a valorização das preocupações ambientais e do quadro de vida, por outro lado acelerou uma certa instabilidade na ocupação e organização do território que já se vinha a sentir. A falta de um claro e apoiado modelo económico para Portugal, no contexto comunitário, dificulta a definição de uma estratégia de ordenamento para o País e para as suas diferentes parcelas territoriais e sectores de actividade. Não queremos com isto dizer que

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