Os Paradigmas de Aristóteles e Demócrito na Questão da Vida

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Pedro Mota


ENTRE OS PARADIGMAS DE DEMÓCRITO E DE ARISTÓTELES



Fora as recuperações teleológicas da organização vital, a vida
apresenta-se ao cientista contemporâneo como uma forma de auto-regulação-e-
reprodução em desenvolvimento filo e ontogenético, ou seja, uma génese,
conservação e reprodução de relações complexas entre moléculas não-
simétricas hidrocarbónicas azotadas que surgiram a partir de mecanismos de
atracção e repulsão de moléculas mais simples ditas inorgânicas, relações
que constituíram sistemas capazes de gerar a partir da transformação
interna de matéria exterior os próprios meios de que se servem para
reproduzirem a sua actividade[1].
Embora autores como Bunge afirmem «que não existe ainda uma teoria (um
sistema hipotético-dedutivo) abrangendo todas as espécies biológicas e
todos os aspectos básicos (as propriedades necessárias e suficientes) dos
organismos»[2], constatação que permanece actual, aquela fórmula definidora
(ou antes, descrição genérica) mais ou menos adequada a todos os seres
vivos, deixa de lado qualquer sugestão de animismo ou de vitalismo para
caracterizar a matéria viva.
Entende-se por vitalismo a recusa da hipótese mecanicista segundo a
qual todas as propriedades do ser vivo constituem as mesmas leis físico-
químicas próprias do nível molecular com o qual aquele se compõe. Para o
vitalismo a realidade viva não se resume a uma conjugação de moléculas que
agem umas sobre as outras e de órgãos dotados de configurações distintas
adequadas à produção, transformação, por meios químicos, de outras
moléculas, e seu transporte, por meios mecânicos, garantindo assim a
manutenção da forma e da troca de matérias do corpo tal como uma fábrica
que assimila matérias-primas, as faz passar pelas suas máquinas, que se
alimentam com elas, e que expele uma certa quantidade de produtos acabados,
designados mercadorias.
A este materialismo simplista, o vitalismo opõe a «afirmação de que há
no ser vivo algo de irredutível às leis físico-químicas, que a autonomia, a
individualidade de um organismo, são mais do que uma simples aparência»[3].

Sempre que uma vida estivesse para nascer, uma certa substância
material deveria experimentar um impulso inicial que teria origem, não na
sua materialidade, mas numa força de outra ordem, a qual ao mesmo tempo
iniciaria o processo de diversificação daquela substância em partes
distintas, que, orientadas na sua diferenciação e na sua função por aquele
princípio vital, passariam a constituir a estrutura física do corpo. É
claro que o vitalismo, mais do que tentar uma explicação (necessariamente
analítico-sintética) para o problema da organização natural, substituiu
simplesmente um postulado misterioso (uma energia que organiza por si
mesma) ao animal-máquina feito de peças, de fluidos, de figuras que, por
choques e pressões, se põem em movimento umas às outras.
As concepções materialistas não deixaram, no entanto, de se opor,
contra todas as ilusões da evidência, ao vitalismo. Para elas, a matéria
não é caracterizada por um estado de inércia. O movimento é uma propriedade
da natureza.
Todavia, nem sempre aqueles que investiram numa visão materialista do
mundo puderam ser coerentes consigo mesmos, tanto por causa da sua formação
religiosa quanto pelas circunstâncias históricas em que se inseriam. Por
exemplo, quando, com a crescente importância da mecânica (rudimentar
embora) e com a criação de uma ciência correspondente, Descartes, no século
XVII, procurou interpretar o mundo, fê-lo à medida dessas produções humanas
e teve por isso de conceber uma filosofia cujo dualismo espírito/matéria é,
em parte, a expressão da insuficiência da sua metade mecanicista.
Às regras que determinam as mudanças nas partes da natureza, como leis
do seu movimento, leis que lhe são específicas e que podem ser descritas e
formuladas sem recurso à divindade, Descartes vai ter, pois, que juntar a
paradoxal tese da conservação metafísica da quantidade de movimento.
Para o mecanicismo, os elementos constitutivos dos corpos naturais
podem combinar-se, mediante as ligações que as suas características
próprias permitem, em corpos compostos, formando ocasionalmente um sistema
de articulações, alavancas, pressões, tudo isto posto em andamento, como já
se disse, pela interacção das peças, explicada em termos de dinâmica e de
geometria.
Se o mundo inteiro é uma máquina, também os animais o são. Estas
máquinas seriam construídas com peças independentes, fabricadas à parte
umas das outras. Porém, como chegou a suceder que as peças se tivessem
reunido para comporem seres tão sofisticados?
O mecanicismo, enquanto filosofia insuficientemente materialista,
deixa, sob a sua posterior metamorfose organicista, uma porta aberta para
que o vitalismo reentre no teatro da ciência. Que melhor explicação para a
existência de uma ordem no mundo e nos seus entes do que tudo ser montado
segundo um plano que previamente ideara a figura? O próprio modo de
reprodução dos seres vivos – que de uma célula informe faz gerar um
indivíduo ao mesmo tempo tão unido e tão diverso – sugere a imanência de um
sentido, a eficiência de uma finalidade.
Consultemos agora a polaridade clássica Aristóteles/Demócrito, a
respeito de cujas filosofias, em última análise opostas, devemos contudo
evitar cair na tentação da caricatura.
Elas, se bem que não sejam absolutamente originais, são os lugares em
que, pela primeira vez, com sistema e explicitação, mecanicismo e vitalismo
se expuseram ao julgamento de tantos quantos no ocidente deitaram mãos ao
trabalho de investigar a natureza do vivente e cujos ecos se ouvem através
dos séculos, prolongando uma polémica que iluminou o pensamento de autores
da modernidade, como Haller, Sthal, Diderot, Kant, Hegel, Goldstein,
Oparine[4].
Demócrito de Abdera, que viveu entre cerca de 460 a. C. e cerca de 370
a. C. é o mais famoso dos filósofos atomistas da Grécia Antiga. Demócrito
argumentava em favor da autodeterminação da matéria. É importante saber,
antes de entramos no cerne da sua doutrina, que esta foi em parte uma
resposta ao argumento eleata contra o movimento, ou seja, a uma das
primeiras teses idealistas contra o movimento como propriedade da matéria
em geral.
Detenhamo-nos, pois, na comparação entre duas visões do mundo e
atitudes epistémicas paradigmáticas que, pela pena de sucessivos
pensadores, se foram digladiando no decorrer dos tempos até aos nossos dias
e que, antagónicas alternativas, se oferecem a uma escolha que decide, em
geral e até certa medida, da perspectiva pela qual a vida é olhada e
praticada. Parménides de Eleia e Demócrito de Abdera podem bem ser tidos
pela incarnação original e radical desses dois modelos.
Há, entre outros, um célebre argumento de um dos (supostos) eleatas
mais célebres, Zenão (inventor, no dizer de Aristóteles, da dialéctica,
oposição debatida e rebatida de teses), que visa demonstrar, ad
impossibile, o absurdo da divisão (física) ao infinito da recta e,
admitindo o carácter de descontinuidade (física) do ser, recusada pelos
eleatas e defendida pelos atomistas, a falsidade do movimento, ou, pelo
menos, dado que ele é aparente, a sua incompreensibilidade[5].
Mas, a acreditar na tese eleata da identidade entre ser e pensar,
parecendo supor o princípio da continuidade do ser, correlato da
impossibilidade do pensar conceber o movimento, Zenão, através de outro
paradoxo, vai deduzir também o oposto, isto é, que o movimento é uma
ilusão,[6].
Ora, em si mesmos, estes paradoxos apenas põem em evidência a confusão
pitagórica entre espaço, tempo e aritmética, entre a realidade do movimento
– sem dúvida susceptível de análise - e os números ou pontos geométricos –
que não devem ser vistos como elementos reais, físicos ou num Esteprimeiro
lugar,ida pelos atomistas,éricos.[7]
Trata-se, em primeiro lugar, do Argumento do Estádio. Este tem a forma
de um paradoxo falacioso bastante simples, que é o seguinte: um atleta deve
percorrer uma pista afim de atingir a meta; todavia, isso é irrealizável
porque terá primeiro de perfazer metade da distância, devendo
necessariamente ter percorrido a metade dessa metade, de modo que antes se
obrigará a alcançar o ponto médio desta última fracção, e etc.; com base na
hipótese de que o espaço é fisicamente divisível até ao infinito, não só é
impossível, em qualquer quantidade de tempo, chegar à meta como nem sequer
é pensável avançar o mínimo dos mínimos de espaço.
Em vez de se analisar o espaço percorrido num dado período de tempo
mediante uma unidade convencional de medida, infinitamente divisível, tomam-
se o espaço e o tempo como consistindo eles mesmos nesse processo de
medição.
Assim, a própria divisão é tempo e, como é ad infinitum, ocupa um
tempo infinito, pelo que, uma vez que ser e pensar são o mesmo, não pode
haver movimento.
Desacreditando a possibilidade de se pensar o movimento contínuo, pelo
menos dentro da doutrina pitagórica, que identificava número e monada,
contagem e tempo, o que também ia em socorro da eleática negação da
mudança, Zenão passa de seguida ao ataque à tese de que o espaço e o tempo
são compostos de mínimos indivisíveis, quer dizer, sendo os números monadas
ou algo que ocupa um espaço, de tal modo que este é descontínuo. Foi
precisamente isto que os pitagóricos, a bem dizer, tinham defendido, para
além da confusão acima referida, e para cujas consequências o polemista
pretendera conduzi-los, em resultado do vaivém dialéctico em que os
embrulhou.
O argumento que Zenão considerou adequado para completar o paradoxo
contra o movimento (quer se considere o mundo contínuo ou descontínuo, não
pode ser pensado o movimento, pelo menos do ponto de vista do matematismo
idealista da época) foi o que dá pelo nome de A Seta Voadora: em cada
momento, a flecha ocupa um lugar e um instante; como estes são
descontínuos, nada se passa nem nada pode passar entre um lugar e o outro
ou entre um instante e o outro; assim, adoptando esta teoria do espaço e do
tempo, é impossível conceber o movimento[8]. Se, porém, como vimos,
defendêssemos a tese ontológica contrária, o resultado seria o mesmo.
Como os eleatas não podiam relativizar o princípio do terceiro-
excluído (mudar a lógica se esta não consegue dar conta da realidade),
relegaram o movimento para o mundo da ilusão e puseram em marcha uma longa
tradição especulativa que iria colocar muitos mais problemas do que aqueles
que seria capaz de resolver. Mas, pelo menos, ficámos com os problemas.
E, como diz Jean-Paul Dumont, «Tal foi o ensino da escola de Eleia
que, mantendo, a identidade total do pensamento e do ser, levou, com receio
de se contradizer, o realismo até ao absurdo ou, se preferirmos, o
idealismo até ao absoluto»[9].
Em suma, dos pitagóricos aos eleatas estamos perante um caso típico de
confusão da teoria com a realidade, transformando ilusoriamente a primeira
no fundamento da segunda, com a agravante de se confundir também a
propriedade (objectiva) mensurável da realidade (que a matemática reflecte)
com uma propriedade dinâmica que se pode medir (com o auxílio de técnicas e
convenções).
Mas o movimento não é idêntico à medida: esta é que é uma propriedade
daquele. O movimento existe e só porque existe é que é mensurável. Por
isso, o movimento não se discute; o que se pode e deve discutir é a teoria
da medição.
Esta, no tempo de Zenão, era estática, segmentava, segundo uma unidade
arbitrária, que se podia diminuir à vontade, o espaço percorrido. Tal
divisão convencional e implementada em fracções é a divisão sobre um espaço
definido, que se pode efectivamente percorrer num tempo que depende de uma
velocidade real, que só tem a ver com a distância e não com as divisões
feitas sobre essa distância: por mais divisões que nela sejam traçadas, a
distância mantém-se a mesma.
Só muito mais tarde, com Newton e Leibniz[10], é que a medição fixista
dá lugar ao cálculo de fluxões, ou infinitesimal, dando conta pela primeira
vez, teoricamente, do facto do infinito actual, da unidade do finito com o
infinito, da distância que separa um ponto do outro ser composta de um
número infinito de pontos efectivamente percorrido, ou seja, em termos
matemáticos, que um mesmo ponto é ele mesmo uma distância infinitesimal,
que portanto, um ponto é já um movimento, não o movimento real, mas que, em
termos formais, dá mais conta da quantidade no movimento que as teorias
anteriores[11].
Todavia, ainda teríamos de esperar por Dedekind[12], na segunda metade
do século XIX, para ver unidos continuidade e descontinuidade num segmento
de recta, e resolver o problema da congruência da imagem do ponto como
tendo uma extensão não nula, ainda que a menor conceptível, portanto do
número, com a noção de continuidade[13].
Voltando à Antiguidade, recordemos que Demócrito havia observado a
contenda entre dois campos: o do continuismo metafísico eleático e o do
matematismo descontinuista pitagórico, não menos metafísico.
Era evidente que a assunção deste último, se bem que mais consonante
com a evidência empírica da descontinuidade do real, o reduzia de tal
maneira a uma quantificação discreta e idêntica que se tornava pasto, como
vimos, de argumentos contra a existência do movimento, não menos
constatável empiricamente.
Impunha-se minar, não só a ontologia eleática como o quantitativismo
pitagórico, que não opunha, como aquela[14], o inteligível, representado
pela matemática, ao sensível dos corpos, mas que, reduzindo a essência da
realidade ao ponto (unidade que tem posição), às combinações numéricas,[15]
constituiu um lugar de partida, quer para uma futura oposição
racional/sensível, quer para um misticismo sincrético, mais próximo das
origens, e substituir-lhes uma física referida às coisas e à relação entre
o dado destas e os seus constituintes e leis de combinação imanentes.
Contra o dualismo, cujas sementes começavam a germinar com a mística
combinatória dos filósofos de Samos, Demócrito vai defender um monismo
rigorosamente materialista, que não confunda entidades mentais abstractas e
objectos reais, mistura insustentável que conduz inevitavelmente à sua
oposição.
Num salto dialéctico, o grande pensador de Abdera conservará a ideia
pitagórica de um mundo formado por entidades discretas, mas trocando-lhe os
números por elementos dotados de propriedades físicas, e aceitará de
Parménides a tese de que não pode haver movimento sem não-ser, mas, numa
reviravolta, afirmando o aparente contra-senso de que o não-ser é[16]. Pois
para Demócrito, o contra-senso devia residir afinal na crença de que o
vazio é não-ser.
Desprezando qualquer especulação sobre pretensas distinções entre ser
e existência, que iria fazer as delícias de milhares de anos de metafísica,
considera que o vácuo existe e que o movimento é intrínseco à natureza das
coisas, isto é, dos átomos[17].
A postura metodológica de Demócrito em vez de derivar o movimento de
uma coerência com princípios especulativos, explícitos ou não, começou
antes por constatá-lo para em seguida procurar construir uma teoria que
fosse consistente com ele.
Aliás, nem sequer se preocupou com questões como a origem do
movimento, porque para ele essa pergunta provavelmente não teria
sentido[18]: o movimento é espontâneo, inerente aos átomos, e seria caótico
se não fosse a colisão recíproca destes, que, por efeito das diversas
formas e tamanhos que apresentam, se vai orientando em direcções e figuras
privilegiadas, como o turbilhão.
É assim que se formam os corpos e as suas partes, dos mais ínfimos aos
macroscópicos: os átomos colidem e emaranham-se de acordo com as
possibilidades de encaixe que resultam das suas diversas formas, mantendo-
se juntos até que novas colisões os sacudam e façam desagregar-se os seres
que se haviam por aquele modo constituído.
Demócrito não faz intervir aqui qualquer outro princípio que não seja
o das acções mecânicas entre os referidos indivisíveis, idênticos a si
mesmos mas possuindo uma grande diversidade de formas e tamanhos, e cuja
agregação é a única causa da infinita variedade de seres e movimentos
derivados que povoam e agitam o universo[19].
Afirmando-se como um lídimo herdeiro da escola jónica no que toca à
procura de causas naturais ou princípios materiais (a água, o indefinido, o
fogo) para fenómenos empíricos, fazendo descansar os deuses na paz eterna
do seu Olimpo, e não se deixando encantar pelo ponto de fuga na perspectiva
de um Ser e de uma Verdade transcendentes que começam a tomar forma nas
escolas itálicas, o nosso autor foi capaz, juntamente com Epicuro (não
esquecendo o seu mestre Leucipo), de nos oferecer a única filosofia da
natureza que, passados dois mil e quinhentos anos, ainda se nos afigura
como parente, embora vetusta, das concepções modernas, pois foi nesses
tempos clássicos aquela que substituiu aos elementos primordiais, como
traços mais gerais das constatações empíricas, e às substâncias, tomadas na
sua imediaticidade linguística, realidades que se podiam compreender em
termos de grandezas físicas quantitativamente determinadas, congregando
nesta grandiosa ideia a esperança longínqua de uma operacionalidade das
teorias[20].
A doutrina de Demócrito revela com mais clareza os limites no seu
tentame de entender de maneira atomística a vida. E é curioso como um termo
eufémico usado no presente para denotar a morte possa já ter possuído uma
função explicativa nas opiniões sobre a vida que correram na Antiguidade,
pois que para este pensador aquela não consiste senão num equilíbrio entre
o inspirar e o expirar.
O ser vivo é aquele que se conserva no jogo das relações de pressão
entre o interior e o exterior, pelo qual entram e saem os átomos esféricos,
que a aparência macroscópica e a linguagem comum, que a traduz, denominam
de fogo e de alma. Quando o animal deixa de opor resistência à compressão
da atmosfera, o seu fogo e a sua alma expiram e ele morre. Viver é, pois,
abrir os pulmões enchendo-os de átomos esféricos e ter a força, após a
pressão atmosférica os ter feito sair, de voltar a faze-los entrar[21].
Todavia, parece não ter explicado de onde vem essa capacidade, que energia
interna é necessária para que tal ciclo se repita inúmeras vezes. Na
verdade, estava-se ainda muito longe da descoberta do metabolismo como a
característica mais essencial da vida.
O que se deve reter, como a promessa de um ar renovado, são as ideias
gerais, de projecto, que vão muito para além da ingenuidade à qual o tempo
de Demócrito era incapaz de fugir.
Essas ideias representam um materialismo avant la lettre, que tantas
contribuições iria dispensar ao conhecimento do homem, e será por isso de
uma ridícula sobranceria e de pouca elegância fazer graça à custa de
afirmações como aquela segundo a qual o espírito, ou a alma, está espalhada
pelo corpo, dando-lhe movimento e autonomia, e é constituída por átomos
esféricos que vibram nos interstícios dos outros elementos indivisíveis que
formam a estrutura corporal, pois os átomos esféricos são, nas suas
relações com os outros, ora alma ora fogo, ora um pouco de ambos[22].
É que, subjacente a esta pobreza conceptual, respira uma sabedoria
telúrica: o que o vulgo denomina de alma não é, para Demócrito, mais do que
um produto da matéria, talvez melhor, da realidade física, tese que veremos
repetida, com outros desenvolvimentos, muitas centenas de anos mais tarde,
por exemplo, com Diderot, no século XVIII, e com Engels, na centena
seguinte. Será caso para dizer que as ideias não se esgotam nos conceitos.
Ora, avista-se no horizonte um outro projecto, diametralmente oposto,
no que toca à relação entre as partes e o todo, e que irá fazer também
escola até aos nossos dias, acompanhando o primeiro num desacordo cuja
fecundidade a espaços irá fazer justiça ao valor e significado duplo da
palavra dialéctica.
Trata-se do programa vitalista, tematizado em extensão e profundidade
pela primeira vez por Aristóteles.
Este espírito universal, contudo, foi em si mesmo um lugar de disputa,
no qual se entrechocaram as duas correntes filosóficas dominantes do mundo
grego antigo.
Para não nos alongarmos demasiado, concentremo-nos sobretudo nas duas
categorias ontológicas básicas do estagirita: a matéria e a forma.
Elas já possuem história quando vão passar às mãos do filósofo, uma
história que as fez ziguezaguear, cada uma, entre sentidos opostos ao sabor
das perspectivas de interesse e das noções de bem e de mal.
Contrastando com o seu mestre, para Aristóteles a matéria é mais
potência que resistência[23], embora sendo menos força de enteléquia que
indeterminação[24].
Se enriquece a noção pré-socrática de natureza, mãe de todas as
coisas, não a resgata por completo do dualismo idealista que opõe
universalidade e particularidade, inteligível e sensível[25].
No sentido mais fortemente abraçado pelo estagirita, matéria é o
substrato dotado da capacidade[26] de realizar a forma, ao qual o termo de
hilemorfismo[27] se aproxima melhor[28]. Nesta consideração da vida,
Aristóteles é, digamos assim, um quase-materialista, mas um quase-
materialista de contornos vitalistas, que não se pode confundir com a tese
da sensibilidade geral da matéria, que, por sua vez, alguns comentadores
interpretam como um quase-hilozoísmo[29], e que haverá de ter, na era
moderna, como defensor um Diderot, o qual ao mesmo tempo, algo
paradoxalmente face ao ponto de vista daqueles, irá insistir na agregação
por atracção de átomos e de moléculas através do conjugar das suas energias
activas e potenciais: um certo e vago antever da teoria molecular
moderna[30].
Por outro lado, voltando ao estagirita e ao papel da matéria na sua
filosofia da natureza, há aquele segundo sentido para o qual Aristóteles
cambia quando trata de questões como a que virá a resultar no principio da
individuação, no qual a matéria parece ressurgir como contingência,
resistente ao conhecimento, como elemento irracional.[31]
Sendo, portanto, contingente o que distingue as coisas umas das
outras, nomeadamente dentro de uma mesma espécie, então pergunta-se o que é
necessário, uma vez ser possível observar uma certa ordem no mundo e,
sobretudo, no modo como uma certa qualidade de seres se desenvolvem, desde
um gérmen informe até uma organização individual presentificada que,
excepto o caso dos monstros, dos atípicos, é inevitavelmente a da espécie
que os precede.
A distinção semântica entre matéria e forma, tornada modelo
ontológico, apesar do titânico esforço de a reconduzir a um sínolo[32], que
não seria só conjunção estática mas substância real, analisada em termos
como aqueles que não passariam de aspectos de uma e a mesma dinâmica, não
pode todavia impedir-se de deixar um resíduo lógico que se manifesta na
habilidade que Aristóteles tem de usar para impedir a fixação das
determinações duais do sínolo na semântica originalmente contraditória de
cada um dos termos, sem ao mesmo tempo cair no extremo de os confundir[33].

E como ignora na sua substância a quantidade (poson), ou seja,
desprezando-a enquanto categoria ontológica substancial, reduzindo-a a uma
predicação inessencial[34], resta-lhe o puro verbalismo, um jogo funcional
no domínio semântico das palavras, ficando a braços com subtilezas
especulativas a propósito de, dado o ponto de partida significante de cada
um dos termos, qual das atribuições (acto, potência) respectivamente lhes
cabem e do que se há-de significar com um em função do que se significa com
o outro, e em especial da magna dificuldade de se saber onde acaba a
potência e começa o acto, além do mistério do instante inicial da potência
e da questão de, aqui, precisarmos já, ou não, de fazer intervir a acção.
O resultado de tudo isto é, está bem de ver, um círculo vicioso,
logomaquia impotente para penetrar na estrutura geral objectiva do ser.
Assim, uma vez que essas duas palavras existem e lhes podemos atribuir
significados diferentes, devem representar dois aspectos distintos, ainda
que do mesmo processo.
A forma será, pois, um aspecto do ser que tem algo de próprio e que o
aspecto matéria não tem: é o acto, que se distingue da potência. Mas
distingue-se-lhe de que maneira? O acto, sem dúvida, não é uma coisa.
Poderia ser considerado simplesmente uma função da matéria, como fazem os
autênticos materialistas, mas disso a Metafísica não se parece aproximar.
Segundo o que está escrito nesta obra, a matéria é apenas o substrato que
tem, numa expressão ambígua, a potência de actuar (ou ser actuada)
orientada para e por uma forma.
Mas o simples facto de distinguir logicamente os dois termos de um
sínolo indica que para Aristóteles a substância do real é mais do que
matéria, é unidade desta com a forma, a qual aparece, pois, não como uma
determinação da primeira mas, pelo contrário, como um determinante dela,
que, na sua qualidade de aspecto material, é o determinável. Desqualifica,
pois, a matéria através de uma análise que se quereria apenas lógica mas
que resulta em efeitos ontológicos, muito embora Aristóteles insista sempre
na unidade realmente indissociável da substância[35].
A matéria é apenas uma das causas da existência de algo, distinta
daquelas ditas formais.
E, para percebermos melhor como assim é, atentemos no princípio
teleológico que, neste autor, dá pelo nome de causa final, um dos
significados da forma.
É que esta constitui o plano de estrutura, ligada à aparência das
coisas, designada pela palavra, que substantifica e ajuíza predicando, à
imitação da frase indo-europeia, mas que também pode consistir num processo
de desenvolvimento para um fim, que é a sua própria forma, no caso dos
seres vivos.
Este fim não é senão, de facto, a realização da causa final que a
matéria tem a potência de atingir mas que ainda não é. E se a matéria
possui essa capacidade de se tornar o que ainda não é, isso só é possível
na medida em que a causa final é, enquanto energeia, o funcionamento duma
capacidade de actualização. A forma, como causa, já é, enquanto a matéria é
o substante indeterminado de uma mudança predestinada.[36]
Se quisermos, portanto, caracterizar a ontologia de Aristóteles,
devemos fazer uso de uma hermenêutica cuidadosa, sendo-nos dadas duas
saídas: a ideia de que para ele a matéria é o substrato inferior de uma
forma que a enquadra numa finalidade adequada e que é a causa, na ordem do
sentido, pré-determinada e determinante, ainda que imanente, razão da
eternidade das espécies; ou interpretá-la como um esforço de criar, com
elementos teóricos insuficientes, uma concepção monista materialista da
realidade que tivesse em conta não só a estrutura como também o devir,
reduzindo a categoria de forma ao significado de aptidão da matéria para se
auto-organizar e desenvolver.
Todavia, dadas as relações terminológicas verificadas na sua
filosofia, devemos tender mais para a primeira interpretação do que para a
segunda. A biologia aristotélica é, com efeito, teleológica e
funcionalista. Os órgãos não são os primeiros na ordem do sentido do ser
vivo: são as funções[37].
No De Anima o filósofo, a respeito do vivente, ao aplicar a este a
teoria do ser em geral, determina a forma como a alma, sendo causa, e a
matéria como corpo, sendo instrumento[38].
Ao compreendermos a biologia na sua ontologia, será aceitável usarmos
este raciocínio analógico: não há instrumento sem instrumentista, mas
também não ocorre a ninguém que tivesse havido um instrumentista que
houvesse aprendido a tocar sem instrumento. Mais: o instrumentista de
Aristóteles só o é em potência na medida em que está em acto, ou seja,
quando dá vida ao instrumento. E, reciprocamente, este é-o por ser tocado
segundo uma ordem de ritmos e de harmonias que torna efectivo, actual, o
que antes estava apenas em potência, que era apenas uma peça morta de
madeira e cordas. Todavia, embora o instrumentista (a alma) não seja acto
sem o instrumento (o corpo), este, como ser material, não ganha forma sem
aquela, e aquela não é senão o seu princípio organizador e director, como
tal imanente e não transcendente.[39] E, do mesmo modo que o instrumento
está em potência até que um instrumentista se decida a tangê-lo, pondo-o
assim em acto, também, mostrando-se aqui melhor como a forma tem a primazia
sobre a matéria, ou o acto sobre a potência, a transformação do barro numa
casa consiste no impulso, como causa eficiente, dado a uma matéria capaz,
pela causa final ou formal, ou seja, pela precedência ontológica de uma
estrutura energética, ou funcionamento duma capacidade dirigida para um
estado de completude hilemórfica.[40]
Podemo-nos, pois, inclinar para a opinião de que Aristóteles
antropomorfizou a Natureza, numa relação de continuidade com a esfera do
éthos.
Com efeito, numa concepção fixista e teleológica do mundo, ele crê que
"o olho existe para ver", e não que o "ver" seja produto duma evolução
ecológica e fisiológica.[41]
Não espanta, pois, que ao longo dos milénios se tenha hipostasiado
(reificado e subposto) este princípio teleológico, isto é, tomado à letra a
expressão apresentando-a como uma força própria, uma virtude imaterial,
imitada do projecto do artífice, a finalidade, imanente no caso do seres
naturais ou imprimida de fora no que respeita aos artefactos. Do mesmo modo
que o artífice tem a virtude, o poder de dar forma ao barro ou à madeira, a
alma é a virtude dos corpos orgânicos, a qual, como fim organizador, se
distingue da sua matéria. A visão é a energeia ou virtude do olho; a vida a
virtude do corpo. [42]
Ao "atomismo físico" de Demócrito contrapõe-se agora o "epigenetismo"
aristotélico, derivado de uma concepção teleológica da natureza. A biologia
mecânica reencontra um adversário agigantado por um génio até à altura só
com paralelo no seu Mestre idealista.
O que é, então, a epigénese e que relação tem com o vitalismo, de que
já falámos nas páginas iniciais deste pequeno ensaio, que vamos ter de
pensar concluir?
É preciso notar desde já que Aristóteles se opõe, por diversas mas
pertinentes razões, não só a Demócrito como ao médico Hipócrates e ao
filósofo de Agrigento, Empédocles.
Este último propusera uma notável doutrina segundo a qual a adequação
das partes aos fins, dos órgãos à funções, se deve à selecção natural, que
resulta na sobrevivência dos mais aptos. A contingência constituiria deste
modo a lei da estruturação do seres vivos. Para ele, os monstros não
poderiam subsistir simplesmente por causa de uma inadaptação mecânica do
corpo ao meio[43].
Empédocles poderia ter sustentado ainda, em abono – e em complemento -
da sua doutrina, que a monstruosidade tem tendência a desaparecer e a dar
lugar a um padrão reprodutivo devido ao acaso selectivo.
Foi, de facto, por aí que Aristóteles pegou, contra-argumentando com a
evidência empírica de que a suposta redução da monstruosidade não se poderá
dar a posteriori, mas a priori, ou seja, não após o nascimento mas antes
dele, no acto da reprodução[44].
É que os animais são gerados conforme o tipo, sendo a monstruosidade,
para fazer justiça à palavra, um desvio, um erro, fruto do acaso. Não é o
contrário que se passa: o tipo ser produto do acaso.
A reprodução deve obedecer, antes, a um plano pré-estabelecido, a que
o estagirita chama de causa final, que representa uma ideia teleológica do
vivo e que para ele deve ser pensada como finalidade interna[45].
Nada de diferente, aliás, se verá dois milhares de anos depois na
doutrina de um outro grande filósofo: Kant.
Por fim, lembremos que contra Hipócrates e a sua pangénese,
Aristóteles vai propor uma noção tão interessante quanto difícil é de
entender a sua capacidade explicativa: a da já referida epigénese.
O Médico acreditava que a contribuição dos progenitores vinha da
totalidade do seu corpo, cujos dissemelhantes materiais estariam reduzidos
a uma dimensão microscópica no gérmen, pois era indiscutível a parecença
entre o filho e os pais[46].
Passando por cima das múltiplas objecções de Aristóteles, para não nos
alongarmos muito, este contrapõe, estabelecendo uma analogia significativa
com a relação entre o artífice e o artefacto, que o carácter do sémen não é
ser constituído nem por sangue nem por carne mas por aquilo que a partir de
si permite gerar sangue e carne, e esse aquilo não é senão o movimento de
um plano diferenciador que, imanente à sua matéria indiferenciada, por isso
mesmo já dotada de uma dynamis de diferenciação, actua como se fosse um
carpinteiro, causa final e causa eficiente, a conferir uma forma funcional
ao substracto de que se serve, que lhe é natural ou adequado[47].
Note-se, de passagem, que se deve evitar a confusão entre pangénese e
a célebre doutrina do preformismo.
Esta, como o termo indica, não insiste tanto, como a outra, na
presença no ovo das matérias constituintes do corpo desenvolvido, mas mais
na presença das suas partes no mesmo[48].
Aristóteles contesta-a, fazendo certamente uso da sua prática de
dissecação, aprendida do pai, com a prova de que, se assim fosse, os órgãos
estariam formados todos ao mesmo tempo, quando o que se observa é o
aparecimento sucessivo de tecidos e órgãos, que considera obedecer a uma
lei de diferenciação, antecipando von Baer, a de que o carácter mais geral
precede o mais específico[49]. É por isso que, representando o crescimento
a função vital mínima, portanto mais geral, e sendo o coração o órgão cuja
função é alimentá-lo, é este o primeiro a ser formado.
E é nisto que consiste a epigénese, ou epigenesia, pois o seu étimo
grego provém da união do prefixo epi (sobre) com o lexema génesis (geração)
para designar a "teoria" da formação dos seres orgânicos por gerações
graduais.
Haveria, portanto, um emergir, uma passagem da potência à existência,
por fases, das múltiplas formas do corpo, em função de um plano que
construiria, por sucessivas sobreposições de condições suficientes às
necessárias, em termos funcionais e estruturais, um organismo completo, o
que quer dizer uma planta ou um animal que pode executar por si mesmo o
ciclo da vida.
É a esta completude do ciclo que Aristóteles aplica a expressão
genérica de causa final, pela qual os vários órgãos recebem a sua razão de
ser, formando-se para o papel que ela os chama a desempenhar. Não admira
que esta doutrina conduza a uma certa inclinação para interpretar a forma
reificando-a de algum modo. Sendo esta palavra uma transposição latina para
as causas não materiais – que nesta língua significa tanto disposição das
partes quanto molde -, o seu correspondente aristotélico – energeia, que
quer dizer funcionamento, actividade, acto, actualização –, é capaz muito
facilmente de receber um sentido coisificado ou uma distinção substantiva
relativamente ao conteúdo.
Mas mesmo que fossemos fiéis à interpretação que Aristóteles dá de
eidos[50], ou do menos platonizante génos[51], essa fidelidade pode, nos
epígonos, inclinar-se insensivelmente para a noção de força vital[52], em
suma, para a doutrina do vitalismo.
Este, muito simplesmente, resume-se à defesa do princípio de que a
essência da vida é a força vital, o que não passa de uma pueril tautologia,
tentativa inglória de dar um fundamento primeiro a algumas supostas leis,
como a da precedência do geral sobre o específico.
Terminamos este ensaio, com a seguinte declaração, que decorre da
linha de raciocínio que lhe presidiu:
Para os materialistas e os físicos, não há necessidade de evocar uma
qualquer forma para explicar o movimento, seja de que tipo for. O
movimento, enquanto processo ou estrutura, na sua aparente estabilidade,
instável e provisória, é intrínseco à matéria, a realidade última do "ser",
só com respeito à qual a forma deve ser referida, enquanto determinação (e
não como determinante), significando a sua estrutura e maneira de ser, que
não se pode encarar de um modo puramente qualitativo, como é o da
terminologia aristotélica, mas deve ser explicada através de relações
qualitativo-quantitativas. Apenas uma física desse género mostrará,
superando as seguintes palavras aristotélicas que nada esclarecem e muito
antropomorfizam, que a matéria não é apenas potência: é sobretudo acto.
Em suma, para os materialistas, a distinção própria do hilemorfismo,
nos termos da análise lógica que produziu, foi, não só improfícua como
levou para caminhos gnosiologicamente ilusórios e humanamente devastadores.

Porém, o seu poder hipnótico mostrou ser tão penetrante, o seu falso
sentido de harmonia de tal maneira apaziguador, que ainda no século XVIII
homens como Diderot tinham que combater com todas as suas energias esse
poder do passado. Sem menosprezo para o génio universal e imperecível de
Aristóteles – em muitos domínios do saber, não tanto no deste, apesar do
seu conceito genial de finalidade interna, da concepção do ser vivo com um
organismo –, poderíamos terminar com este gnoma, do qual só os seus
epígonos têm culpa:
As Luzes brilham mais quando as trevas são densas.

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[1] Cf. OPARINE, A Origem da Vida, ver. port., Silva Couto, Porto, Brasília
Editora, 1972; NOVIKOFF, Alex, HOLTZMAN, Eric, Cells and Organells, N. Y.,
Holt Rinehart and Wiston, 1976, trad. esp. Roberto Zarza, México, N. E.
Interamericana, 1978, pp. 32-37 (metabolismo da célula); DANCHIN, Antoine,
"Vida", in Enciclopédia Einaudi, Lisboa, IN-CN, 1985, Vol. 6, pp. 87-144;
MANSO, Carlos, FREIRE, Ana, AZEVEDO, Maria, Introdução à Bioquímica Humana,
Lisboa, FCG, 1986, 3ª ed., pp. 13-27.
[2] Cf. BUNGE, Mário, Epistemologia, trad. Claudio Navarra, São Paulo, TAQ,
1987, 2ª ed., p. 88.
[3] CLEREMBARD, André, Dicionário das Grandes Filosofias, ent. "Vitalismo",
Lisboa, Ed. 70, 1982, pp. 340-341.
[4] «As concepções democritiana e aristotélica (...) constituíam os dois
principais sistemas antitéticos, dois pólos opostos da interpretação dos
fenómenos naturais. O primeiro reflecte os inícios da filosofia adoptada em
seguida pela maioria dos cientistas modernos; o segundo tinha uma visão
teleológica da vida. A doutrina aristotélica tem sido o espectro que tem
infestado toda a história da biologia»(BECH, William, "Organismo" in
Enciclopédia Einaudi, Lisboa, IN-CM, 1991, Vol. 19, p. 77)
[5] Cf. CARAÇA, Bento de Jesus, Conceitos Fundamentais da Matemática,
Lisboa, Sá da Costa, 1989, 9ª ed., p. 78.
[6] Cf. SIMPLÍCIO, Phys., 145, 27 (Fr. 8, v. 26); 146, 15 (Fr. 8, v. 42);
146, 7 (Fr. 8. v. 42).
[7] Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, A 5, 985 b 23; CARAÇA, Bento de Jesus, Op.
Cit., pp. 72,73.
[8] Cf. ARISTÓTELES, Op. Cit., Z 9, 239 b 30.
[9] DUMONT, Jean-Paul, Dicionário das Grandes Filosofias, ent. "Eleatismo",
p. 89.
[10] Cf. LEIBNIZ, "Nova methodus por maximis et minimis, itemque
tangentibus", in Acta Eruditorum de Lípsia, 1664; NEWTON, Philosophia
Naturalis Principia Mathematica, 1687.
[11] Cf. CARAÇA, Bento de Jesus, Op. Cit., pp. 251-254.
[12] Cf. OSTROWSKI, A., Lições de Cálculo Diferencial e Integral, trad.
port. Pedro Braumann, Lisboa, FCG, 1981, 4ª ed., Vol. I, p. 25. Pode ler-se
aí o "Teorema da continuidade de Dedekind". É com este matemático que o
infinito actual começa a tornar-se inteligível, pelo teorema segundo o qual
há uma correspondência biunívoca entre o todo e uma sua parte própria. Cf.
também em CAMPOS, Ferreira, Introdução à Análise Matemática, Lisboa, FCG,
4ª ed., 1991, pp. 271-283.
[13] Cf. CARAÇA, Bento de Jesus, Op. Cit., pp. 302-312.
[14] Na verdade, o sincretismo da quantidade e da qualidade (as coisas
diferentes são números diferentes) era uma característica do pitagorismo
comum.
[15] Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, I, 5, 985.
[16] Cf. Idem, Op. Cit., A 4, 985 b 4.
[17] Cf. Idem, Phys., II, 4, 196; CÍCERO, De Fato, 10, 23; ÉCIO, I, 23, 3.
[18] Cf. KIRK, G., RAVEN, G., Os Filósofos Pré-Socráticos, trad. port.
Louro Fonseca e out., Lisboa, FCG, 2ª ed., 1982, pp. 431-432.
[19] Cf. ARISTÓTELES, Sobre Demócrito ap. Simplício, De Caelo, 295, 11.
[20] Cf. DIÓGENES LAÉRCIO, (sobre Leucipo) IX, 31 (DK 67 A 1), (sobre
Demócrito) IX, 45; ÉCIO, I, 26, 2.
[21] Cf. ARISTÓTELES, De Respirat., c. 4; Idem, De Anima, I, 2, 403.
[22] Cf. Idem, De Anima, A 2, 405 a 11.
[23] Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, XII, 5, 1071; XII, 3, 1070; XII, 2, 1069.
[24] Cf. Idem, Op. Cit., 1048 b – 1050 a.
[25] Cf. Idem, Op. Cit., 1036 a, 1029 a.
[26] Possibilidade inexplicável da matéria, suporte irracional,
ininteligível, do ser.
[27] As substâncias naturais são constituídas por uma unidade indissociável
de matéria e forma.
[28] Cf. Idem, De Anima, 412 b.
[29] O hilozoísmo é uma doutrina segundo a qual toda a matéria é dotada de
vida.
[30] Cf. DIDEROT, Le Rêve de d'Alembert, Paris, Éditions Sociales, 1962,
p. 27.
[31] Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, Dð,ð 1040 b 5-16; Z, 1034 a 5-8; Z, 1035
b 27-31; I, 1054 a 34; Z, 1036 a 8.
[32] Cf. Idem, Metafísica, VII, 11, 1036; VIII, 1, 1042.
[33] Cf. Idem, Op. Cit., XII, 3, 1033.
[34] A mat, Δ, 1040 b 5-16; Z, 1034 a 5-8; Z, 1035 b 27-31; I, 1054 a 34;
Z, 1036 a 8.
[35] Cf. Idem, Metafísica, VII, 11, 1036; VIII, 1, 1042.
[36] Cf. Idem, Op. Cit., XII, 3, 1033.
[37] A matemática (ciência da quantidade discreta e da contínua) é, para
Aristóteles, apenas apropriada ao estudo dos objectos físicos, de cujo
movimento se abstrai e de que abstrai as figuras, planos e volumes; a
matemática é analítica, não sintética, e por isso sem homologia com o corpo
vivo, as partes destes devendo ser consideradas em função do seu todo,
fazendo assim pouco sentido um método que apenas as dividida, some, figure.
Também significativo é o facto de que a substância segunda, a única
inteligível, é definida, como o nome indica, somente em termos
qualitativos, substantivos. E uma substância não se pode transformar, em si-
mesma, numa outra substância. Além disso, a geração é a actualização de uma
forma substancial. No estudo dos seres vivos, as causas finais são, pois,
as verdadeiramente eficientes, não as materiais. O que é essencial é que a
forma se eterniza incorporando-se numa série ininterrupta. Não há
continuidade quantitativa, mas uma descontinuidade qualitativa irredutível.
Cf. ARISTÓTELES, De Partibus Animalium, 30-640 a 8; Metafísica, Z, 1033 a
24 – b 19; Z, 1034 b 18; Δ, 1070 a 21-24.
[38] Cf. Idem, Metafísica, Z, 1041 a 5 – b 30.
[39] Cf. Idem, Op. Cit., Θ, 1049 b4 – 1050 b 2; Θ, 1050 b 6 – 1051 a 2.
[40] Cf. Idem, Op. Cit., H, 1043 a 16, 33; H, 1044 b 1.
[41] Cf. Idem, De Anima, II, 4, 415.
[42] Cf. Idem, De Anima, I, 1, 403.
[43] Cf. Idem, Metafísica, 1049 a – 1050 a.
[44] Por certo, estamos demasiado distantes do tempo de Aristóteles, de uma
época cujos habitantes possuíam uma complexa imagem do mundo tão diferente
da nossa, que devemos ter legítimas dúvidas acerca da interpretação que
fazemos da terminologia por ele usada. O passar dos séculos tratou de
tornar para nós ainda mais ambíguas e obscuras pelo menos algumas das suas
categorias básicas. É por isso – e por conjuntamente se pôr em relevo este
ou aquele aspecto do seu pensamento e respectivo significado contemporâneo
e histórico, em detrimento doutros – que não nos podemos admirar da
existência de interpretações divergentes – quiçá complementares – da obra
do estagirita. Sobretudo, enfatiza-se ora o carácter conservador da sua
doutrina ora se põe o acento no progresso epistemológico que teria
protagonizado. Por exemplo, Robert Lenoble, parecendo desprezar as ideias
de filósofos materialistas anteriores ou contemporâneos, e dando um
desconto, por considerar produto duma inércia natural, à identificação de
Aristóteles entre vida e energia da razão cósmica ('nous', espírito
ordenador) que actualiza todos os movimentos e formas do universo (cf.
Meta. 1072 b), o qual entende precisamente a alma como a forma que
actualiza a vida dum corpo natural (cf. De An., II, 412 a), defende que o
filósofo realizou um progresso, pelo facto de objectivar e definir, e
escreve: «O pensamento mágico oscilava entre dois temas, em nada
contraditórios mas ambivalentes: todo o ser é símbolo, todo o ser é uma
alma. Para Aristóteles, o ser define-se pela sua "natureza", e neste
sentido "a Natureza é um princípio (αρχη) e uma causa (αιτια) de movimento
e, igualmente, de repouso para a coisa na qual reside imediatamente
(πρωτωζ) e na qualidade de atributo essencial (καθαυτο) e não acidental (μη
κατα, συμβεβηκοζ) dessa coisa". O ser natural é substância: "και εστι παντα
ταυτα ουια" (Física, II, 192 b). Sejam quais forem as discussões que venham
a estabelecer-se mais tarde (não sem múltiplas confusões) sobre este tema
maldito da substância, há que compreender que foi o meio de transformar
estes mesmos símbolos de coisas em "factos", o qual também tornou possível
a observação objectiva. A constituição e a multiplicação de "substâncias"
dotadas de uma estrutura independente do homem, projectava no mundo inteiro
a faculdade recentemente adquirida pela consciência de diversificar os seus
centros de interesse.» (LENOBLE, R., História da Ideia de Natureza, trad.
Teresa Pérez, Ed. 70, Lisboa, 1990, pp. 70-71). Lamento, quanto às citações
e palavras gregas, não ter a possibilidade de usar os "espíritos" próprios
da sua grafia.
[45] As virtudes, a que os estóicos deram um impulso milenar, apenas
travado pela filosofia mecânica moderna, que abriu caminho à ideia de que
não há qualquer poder que não seja o das relações fenoménicas funcionais,
constituíram aquilo a que Gaston Bachelard chamou de "obstáculo animista".
A "ciência", esquecendo o lado positivo de Aristóteles (observações e
classificações metódicas, passe evidentemente as suas definições
substancialistas), foi-se degradando pela preguiça dos pleonasmos e
valorização mágica das palavras até chegar a expressões indeterminadas como
"a virtude dormitiva do ópio".
[46] Cf. ÉCIO, V, 19, 5 (DK 31 A 72); ARISTÓTELES, De Caelo, Γ, 2, 300 b 30
(Fr. 57); Pys. B 8, 29; SIMPLÍCIO, De Caelo, 587, I; 587, 20.
[47] Cf. ARISTÓTELES, Phys., II, 8.
[48] Cf. Idem, De Generatione Animalium, 744 b 16; De Caelo, 291 b 13, a
24; De Partibus Animalium, 686 a 22; Phys., II, 9.
[49] Cf. Idem, De Generatione Animalium, I, 17-18.
[50] Cf. Idem, Op. Cit., 722 b 1 – 724 a 9.
[51] Cf. Idem, Op. Cit., 733 b 23.
[52] Cf. Idem, Op. Cit., 736 a 35 – b 5.
[53] Cf. Idem, Metafísica, 1013 a; De Gen. et Corr., II, 335 b.
[54] Em todo o caso, ambos ousiai (essências).
[55] Cujo sentido carregado de um poder misterioso surge com a facilidade
de uma degradação mística do esforço racional do estagirita no definir dos
termos de energeia e entelécheia. Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, 1049 b –
1050 a; 1048 b.
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