Os Partidos Politicos nas Relacoes Internacionais do Brasil, 1930-1990 (1993)

June 2, 2017 | Autor: P. de Almeida | Categoria: Political Parties, Brazilian Studies, Brazil, Brazilian Politics, Brazilian Foreign policy
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Os Partidos Políticos nas Relações Internacionais do Brasil, 1930-1990 Paulo Roberto de Almeida Versão resumida de trabalho apresentado no IV Seminário Nacional do Projeto “Sessenta Anos de Política Externa Brasileira: 1930-1990”, coordenado pelo Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (MRE) e pelo Departamento de Ciência Política da USP e realizado em Brasília, em 31/03 e 01-02/04/1993. Publicado na revista Contexto Internacional (Rio de Janeiro: vol. 14, nº 2, julho/dezembro de 1992, pp. 161-208). Trabalhos Publicados nº 116. Sumário: Introdução 1. Partidos Políticos e Política Externa no Brasil: desencontros I. A Retirada dos Partidos Políticos da Política Externa: 1930-1945 2. Pouca Política Externa e Muitos Partidos Políticos: o primeiro período Vargas, 1930-1937 3. Nenhum Partido Político e Muita Política Externa: os anos de guerra e a redemocratização, 1937-1945 II. Os Partidos Políticos sem Política Externa: 1945-1964 4. Os programas dos partidos no pós-guerra, 1945-1961 a) Partido Social Democrático b) União Democrática Nacional c) Partido Trabalhista Brasileiro d) Partido Democrata Cristão e) Partido Socialista Brasileiro f) Partido Comunista g) Outros Partidos 5. A “Política Externa” dos partidos políticos: o regime constitucional de 1946 A) Governo Dutra B) Governo Vargas C) Governo Kubitschek D) Governos Quadros-Goulart 6. Os Partidos Políticos na Política Externa: a experiência parlamentarista, 1961-1963 III. A Política Externa sem Partidos Políticos: 1964-1985 7. Poucos Partidos Políticos e Várias Políticas Externas: o longo período autoritário, 1964-1979 8. Vários Partidos Políticos e uma Política Externa: a abertura política do multipartismo limitado, 1979-1985 a) Partido Democrático Social b) Partido do Movimento Democrático Brasileiro c) Partido Popular d) Partido Trabalhista Brasileiro e) Partido Democrático Trabalhista f) Partido dos Trabalhadores IV. O Retorno dos Partidos Políticos à Política Externa: 1985-1990 9. Muitos Partidos Políticos e a busca de uma Política Externa: a redemocratização de 1985 a) Partido da Frente Liberal

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b) Partido da Social Democracia Brasileira c) Partido Socialista Brasileiro d) Partido Democrata Cristão e) Partido Liberal 10. A Constituição de 1988 e as relações internacionais do Brasil 11. Excesso de partidos e nenhuma política externa: a campanha presidencial de 1989 Conclusões

Introdução O presente trabalho persegue um duplo objetivo: por um lado, verificar o papel político e institucional ocupados pelos partidos políticos brasileiros no debate e no encaminhamento das grandes questões relativas às relações internacionais do Brasil entre 1930 e 1990; por outro, examinar o espaço e a importância dos temas de política externa nos programas e nas atividades dos partidos políticos brasileiros ao longo desse período. O início e o final do período estudado estão balizados por dois eventos históricos de relativo impacto para o sistema político e a própria vida partidária no Brasil: a Revolução de outubro de 1930, provocando uma ruptura fundamental com o “velho” estilo de se fazer política (eleições “a bico de pena”, máquinas políticas que raras vezes podiam ser verdadeiramente identificadas a formações partidárias, cooptação institucional pelas oligarquias estaduais, etc.), e as eleições presidenciais de 1989, rompendo um jejum de quase 30 anos na escolha direta do Presidente da República. Entre essas duas datas o Brasil passou por quatro processos constituintes, três golpes de Estado militares e outras tantas rupturas da ordem constitucional, dois longos períodos ditatoriais e apenas uma fase plenamente democrática em regime multipartista. Dos vários processos de elaboração constitucional, apenas dois — a Assembleia Constituinte de 1946 e a Constituinte Congressual de 1987-88 — podem realmente ser identificados com a formação de um sistema político pluralista e moderadamente reformista do ponto de vista social. Em ambos os casos, quando também atuaram de forma intensa partidos políticos comprometidos com linhas doutrinais relativamente claras, as questões do relacionamento internacional do País tiveram importância secundária nos debates parlamentares ou na vida partidária. Ocorreu também, ao longo desse período, uma reformulação significativa nos fundamentos e na atuação efetiva do Estado nas relações internacionais do Brasil, sem que os

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partidos políticos tenham tido uma influência preponderante nas grandes linhas de inflexão da política externa brasileira. O presente estudo, que dá continuidade a pesquisas anteriores do Autor sobre a matéria ou sobre temas correlatos,1 não tem a pretensão de cobrir em todos os seus detalhes o itinerário histórico da interação partidos políticos — política externa nos últimos 60 anos da vida republicana brasileira. Ele representa, ainda assim, uma contribuição conceitual e metodológica de caráter multidisciplinar — isto é, no âmbito da história e da sociologia política — sobre esse tema geralmente negligenciado da reflexão acadêmica na área das relações internacionais do Brasil. Mais precisamente, ele constitui um primeiro mapeamento sistemático da atuação dos partidos políticos brasileiros no contexto do sistema político e da própria reflexão doutrinal sobre a política externa institucional. 1. Partidos Políticos e Política Externa no Brasil: desencontros Caberia lembrar, antes de mais nada, que os partidos políticos, enquanto tais, não têm “política externa“, mas tão simplesmente posicionamentos ideológicos e práticos sobre as relações internacionais e os desafios externos de seus respectivos países. Com efeito, por sua própria natureza, a política externa tende a elevar-se acima dos partidos para adquirir um caráter nacional abrangente.2 Na medida em que os partidos políticos efetivamente disponham de uma “política externa” em seus programas, esta geralmente consiste ou numa formulação vaga de princípios 1

Ver Paulo Roberto de Almeida, “Uma Interpretação Econômica da Constituição Brasileira: A Representação dos Interesses Sociais em 1946 e 1986”, Ciência e Cultura, vol. 39, nº 1, janeiro 1987, pp. 34-46; “Partidos Políticos e Política Externa”, Política e Estratégia, vol. IV, nº 3, julho-setembro 1986, pp. 415-450; “Relações Exteriores e Constituição”, Revista Brasileira de Política Internacional, ano XXIX, nº 115-116, 1986/2, pp. 83-90; “As Relações Internacionais na Ordem Constitucional”, Revista de Informação Legislativa, ano 26, nº 101, janeiro-março 1989, pp. 47-70; “Relações Internacionais e Interesse Nacional: As Relações Econômicas do Brasil e a Ordem Constitucional”, Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, anos XXXIX a XLI, 1987/1989, nºs 69/71, pp. 164-183; “A Estrutura Constitucional das Relações Internacionais e o Sistema Político Brasileiro”, Contexto Internacional, ano 6, nº 12, julho-dezembro 1990, pp. 53-69. 2 A referência básica é o artigo de Marcel Merle, “Partis Politiques et Politique Etrangère en Regime Pluraliste”, Revue Internationale des Sciences Sociales, vol. 30, nº 1, 1978, consultado na tradução brasileira: “Partidos Politicos e Politica Exterior no Regime Pluralista”, Relações Internacionais, ano I, nº 3, setembro-dezembro 1978, pp. 78-85; esse artigo foi transcrito em sua obra Forces et Enjeux dans les Relations Internationales, Paris, Economica, 1981; ver também “Politique Intérieure et Politique Extérieure”, Politique Etrangère, vol. 41, nº 5, 1976, pp. 409-22, bem como a seção “Le rôle des partis politiques” na segunda parte de seu livro La Politique Etrangère, Paris, Presses Universitaires de France, 1984, pp. 72-79.

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gerais sobre as relações internacionais ou numa reafirmação particularizada das prioridades partidárias num dado momento da conjuntura política nacional. O discurso e a prática dos partidos brasileiros em matéria de política externa não constituem, como se verá mais adiante, uma exceção a esse princípio. A experiência brasileira apresenta, efetivamente, evidências concretas sobre o papel relativamente secundário, quando não marginal, dos temas de política externa na reflexão e na atividade dos partidos políticos. Tanto no regime pluripartidário de 1946, como no período bipartidário que caracterizou a maior parte do regime autoritário inaugurado em 1964, os partidos políticos mantiveram-se ou foram mantidos à margem dos grandes temas de relações internacionais, como também, e principalmente, do próprio processo decisório na área da política externa. Esse alheamento não os impediu, contudo, de, por vezes, atuar intensamente, em questões específicas das relações exteriores do País. Contribuíram para esse interesse, em grande parte do período aqui estudado, tanto a existência de lideranças políticas educadas no cosmopolitismo elitista dos anos da primeira República como a necessidade de uma definição nacional em face dos grandes problemas da inserção internacional do País, num período ainda fortemente caracterizado pela dependência econômica vis-à-vis a potência hegemônica ou pelos maniqueísmos da guerra fria. Já na fase recente, caracterizada pelo reordenamento constitucional e pela recuperação do papel essencial das agrupações partidárias no processo político nacional, emergiu um novo interesse nos — e uma crescente importância dos — temas de política externa na reflexão doutrinária e na estratégia parlamentar e propriamente social da maior parte dos partidos brasileiros. Este é, no entanto, um elemento novo na história constitucional e partidária brasileira, já que a tônica institucional dominante foi a da relativa marginalização dos partidos da formulação e da condução efetiva da política externa brasileira. I. A Retirada dos Partidos Políticos da Política Externa: 1930-1945 2. Pouca Política Externa e Muitos Partidos Políticos: o primeiro período Vargas, 19301937 Não se pode propriamente falar de “partidos políticos” no Brasil antes da Revolução de 1930: as agremiações estaduais — Partido Republicano Paulista, Partido Republicano Mineiro, etc. — eram todas expressões mais ou menos indiferenciadas de uma mesma ordem oligárquica,

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que deitava raízes nas formações descaracterizadas do Brasil monárquico.3 Quanto à politica externa, até 1930 pelo menos, ela podia resumir-se numa única palavra: café. A Revolução de 1930 permite o surgimento de novas alianças entre as forças políticas que não mais se submetem ao poder das velhas oligarquias, mas ela não consegue suscitar o aparecimento de verdadeiros partidos políticos, os quais continuarão a se organizar segundo os Estados ou correntes sociais setoriais: “Partido da Lavoura” em São Paulo, “Partido dos Economistas”, reunindo os empresários do Distrito Federal, etc. A era Vargas foi extremamente rica em experimentos políticos de todos os tipos, apresentando porém um impacto negativo sobre a estrutura partidária. O período foi também intenso em termos de relações internacionais, a começar pela crise deslanchada pela quebra da Bolsa de Nova York, a que se seguiram a renegociação da dívida externa, a ascensão das ideologias autoritárias, a tentativa de insurreição vinculada ao movimento comunista internacional e, já no período do Estado Novo (sem partidos políticos, portanto), o envolvimento brasileiro na II Guerra Mundial. De uma forma geral, essa fase é caracterizada pela “retirada”, geralmente involuntária, dos partidos políticos O cenário político dos anos 30, no Brasil como no resto do mundo, foi dominado por três grandes “internacionais”: a comunista, a fascista e a católica. A primeira tenta, no Brasil, provocar o acirramento das “contradições de classe” para impulsionar uma hipotética ofensiva “anti-imperialista”, segundo as melhores receitas do Komintern. Depois de uma curta experiência de “frente popular”, consubstanciada na Aliança Nacional Libertadora, o Partido Comunista dirigido por Luiz Carlos Prestes ensaia uma desastrada insurreição de tipo bolchevique — a famosa “Intentona” de novembro de 1935 — que marcará profundamente a história ulterior do comunismo no Brasil. O “partido fascista”, representado pelos integralistas de Plínio Salgado, passa a organizarse segundo o modelo militarista e totalitário de seus exemplos europeus: o fascismo italiano de Mussolini e o nazismo alemão de Hitler. O golpe getulista de 1937 precipita um putsch integralista no ano seguinte, igualmente fracassado e que apenas servirá para consolidar a ditadura do Estado Novo. A Liga Eleitoral Católica, por sua vez, consegue obter relativo sucesso político, elegendo significativa bancada na Constituinte de 1934, uma das mais heterogêneas e 3

Para uma caracterização geral dos partidos políticos brasileiros, nas diferentes fases da história política nacional, ver o livro de Afonso Arinos de Melo Franco, História e Teoria dos Partidos Políticos no Brasil, São Paulo, Alfa-Omega, 1980.

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prolíficas em matéria de partidos (contando inclusive com uma bancada de representantes classistas). Os constituintes de 1934, ainda que inspirando-se vagamente na Constituição de Weimar, que estabelecia uma câmara econômica e outra política, preferiram fazer coexistir os dois tipos de representação na Câmara dos Deputados (que manteve a representação classista ou profissional), diminuindo ao mesmo tempo o poder do Senado. A despeito da diversidade ideológica, as tendências estatizantes desse período levam a um maior intervencionismo no campo econômico, regulando-se a exploração das riquezas nacionais em função de “planos administrativos” sob a orientação de conselhos federais. O ambiente nacionalista de então suscitou intensos debates sobre o “perigo amarelo” que supostamente ameaçaria o Brasil4 e, em consequência, os direitos políticos dos estrangeiros receberam tratamento mais restritivo na nova Constituição. A Constituição promulgada em julho de 1934, ainda que inovadora em termos políticoinstitucionais, mantém a tradição inaugurada em 1891 no tocante aos temas de política internacional, confirmando as competências dos poderes na processualística dos atos internacionais. Mas, ela é enfaticamente pacifista (o Brasil “só declarará guerra se não couber ou malograr-se o recurso ao arbitramento e não se empenhará jamais em guerra de conquista”), rigorosamente xenófoba (a imigração “deverá ser regulada e orientada, podendo ser proibida totalmente ou em razão da procedência”, com a garantia de “integração étnica” limitada à absorção anual de um percentual mínimo sobre o total dos respectivos nacionais), razoavelmente intervencionista (“por motivo de interesse público, a União poderá monopolizar determinada indústria ou atividade econômica”) e essencialmente nacionalista, já que foram vedados aos estrangeiros a exploração e o exercício de diversas atividades consideradas de interesse nacional. O primeiro período da era Vargas é talvez mais conhecido pela ação radical de diversos movimentos políticos — ou melhor, correntes ideológicas — do que pela existência de legítimos partidos políticos. Três correntes se destacam nesse particular: os próprios tenentes, organizados no “Clube 3 de Outubro”, os comunistas, que seguindo as diretrizes do Komintern vão impulsionar a Aliança Nacional Libertadora, e os integralistas, cujo partido vinculava-se diretamente ao modelo corporativo em voga no exterior, mas que arvorava um nacionalismo verdadeiramente radical. Os católicos, por sua vez, atuavam mais no interior dos partidos 4

Para uma análise da política imigratória em discussão na Constituinte, ilustrado com o problema da imigração japonêsa, ver Valdemar Carneiro Leão, A Crise da Imigração Japonesa no Brasil (1930-1934): Contornos Diplomáticos, Brasília, IPRI, 1990.

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existentes do que através de partidos próprios, combinando a internalização da propaganda “internacional” do Vaticano em favor de suas teses morais e pedagógicas com a ação “nacional”, discreta mas eficaz, do Cardeal Primaz do Brasil. Os tenentistas reproduziam de forma confusa alguns slogans e princípios arvorados pelos nacional-socialistas e pelos fascistas, sobretudo no que se refere à recusa algo ingênua do capitalismo, a condenação da democracia liberal, identificada a políticos corruptos, e uma postura vagamente anti-imperialista. As conclusões de um Congresso Revolucionário do Clube, de abril de 1934, chegavam a descobrir traços comuns entre o nazismo e o outubrismo, quando por exemplo afirma a “consciência de uma nação que se forma e afirma o seu direito à vida e o seu lugar ao sol”, como “imperativo do momento mundial”. O Clube pretendia rasgar o “véu mistificador da democracia liberal, máscara da ditadura disfarçada dos trustes políticofinanceiros, cancro ruinoso a que hoje mal resistem mesmo as grandes nações fartamente alimentadas da exploração de impérios coloniais”.5 No que se refere à ação dos partidos políticos atuantes no período do Governo Provisório e durante a Constituinte, poucos deles tinham programas ou propósitos voltados mais de perto para temas de política internacional: os ex-“perrepistas” e ex-membros do Partido Democrático que se juntaram no Partido Constitucionalista estavam mais preocupados em operar o retorno ao poder das velhas oligarquias do que em explorar as contradições da postura exterior do Governo Vargas, então debatendo-se no problema da dívida externa. A Liga Eleitoral Católica, que não se apresentava como partido político, vinculava-se, evidentemente, aos ensinamentos da Igreja Católica Romana, mas seu programa defendia os valores morais da sociedade: indissolubilidade do casamento, ensino religioso nas escolas e garantia da ordem social contra a “propaganda subversiva”. Tendo à sua frente homens como Pandiá Calógeras e Alceu Amoroso Lima, ela obtém um enorme sucesso nos trabalhos da nova Constituição, pressionando a posição de muitos constituintes.6 Na verdade, os únicos partidos que atuavam com base em temas de direta vinculação com o cenário internacional eram os situados nos dois extremos do confuso leque político-partidário: a esquerda sempre ilegal representada pelo Partido Comunista do Brasil (“Seção Brasileira da 5

Observações e citações extraídas dos documentos compilados por Vamireh Chacon, História dos Partidos Brasileiros: discurso e praxis dos seus programas, Brasília, Editora da UnB, 1981, pp. 115-116 e 311-314. 6 Ver CHACON, op. cit., pp. 121-123.

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Internacional Comunista”) e a direita recém organizada na Ação Integralista Brasileira, aliás, as únicas correntes verdadeiramente “nacionais” nesses anos de representação política fracionada pelos interesses estaduais. Os integralistas, organizados desde 1932 sob a liderança de Plínio Salgado, passaram a lutar por um Estado corporativo, enquanto que o Partido Comunista lançavase, em 1935, à aventura da insurreição de tipo bolchevique. Em que pese a agitação desses anos e o divisionismo partidário, as correntes ideológicas dos anos 20 e 30 deixaram, com poucas exceções, fracas raízes no sistema político-partidário que se seguiu ao longo interregno estado-novista de 1937-1945. A ditadura varguista jogou com as divisões partidárias para garantir sua própria sobrevivência. Uma avaliação do papel dos partidos políticos nas “relações internacionais” do Brasil durante a era Vargas fica, assim, limitada aos debates na Constituinte de 1934 e no Congresso instalado logo após, onde são repercutidos os grandes eventos políticos desse período, a começar pela “debilidade” das democracias ocidentais e a ascensão dos nazi-fascismos. Até onde se pode acompanhar pelos trabalhos da Constituinte e os debates parlamentares subsequentes no novo regime da 2ª República, os partidos emitiram mensagens contraditórias em termos de política externa que, a exceção do já referido “nacionalismo racial”, pouca ou nenhuma influência tiveram nas relações exteriores do País. Os partidos políticos organizados demonstravam uma adesão exemplar aos princípios de um “monroismo” esclarecido, feito de cooperação com as repúblicas americanas, a começar pela maior delas, e um estilo diplomático coerente com as características da “política externa ornamental e aristocrática”, eivada de jurisdicismo formal, tão criticada pelas gerações do pós-guerra.7 3. Nenhum Partido Político e Muita Política Externa: os anos de guerra e a redemocratização, 1937-1945 A ditadura pretoriana que se instala com o golpe de 10 de novembro de 1937 invoca, já no preâmbulo da Constituição promulgada nesse dia, os “conhecidos fatores da desordem, resultantes da crescente agravação dos dissídios partidários” para estabelecer uma ordem política que ignorava soberanamente os partidos políticos, ainda que reconhecendo, hipocritamente, um poder legislativo (“Parlamento Nacional”), a ser exercido por uma Câmara de Deputados e um

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A caracterização crítica da diplomacia tradicional brasileira é de Hélio Jaguaribe, O Nacionalismo na Atualidade Brasileira, Rio de Janeiro, MEC/ISEB, 1958, IIIª Parte.

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Conselho Federal (este dispondo teoricamente de competência para apreciar e votar projetos de lei sobre tratados e convenções internacionais).8 Como nunca foram convocadas as eleições para o Parlamento Nacional, esse período tem muito pouca relevância para a discussão conduzida no presente trabalho, a não ser na fase final do Estado Novo, quando eventos de política internacional se combinam para impulsionar a redemocratização interna. Todo o período do Estado Novo é, no entanto, caracterizado pela intensa atuação de “partidos” informais, ou seja, grupos políticos nacionais guiados por personalidades civis ou militares e orientados para sustentar a posição de uma ou outra corrente ideológica no confronto geral entre pró-aliados (“ partido americano”) e pró-fascistas (“partido alemão”).9 De forte inspiração fascista, em suas origens, a ditadura varguista segue no início uma política “pendular”, mas faz, entretanto, sua opção pelo “partido americano”, quando o ataque a Pearl Harbor e a conferência interamericana de consulta que se seguiu — aliás no Rio de Janeiro — impõem uma escolha decisiva para um regime que buscava equilibrar-se entre pressões contraditórias e criar seu espaço de “autonomia” política dentro da “dependência” econômica que caracterizava o País.10 Desde 1943, diferentes correntes de opinião começam a se reunir num grande movimento pela redemocratização da vida política, marcado então pelo “Manifesto ao Povo Mineiro” e pelas passeatas estudantis em prol da entrada do Brasil na guerra ao lado dos aliados. O “partido americano” no Brasil era sobretudo representado pela “Sociedade dos Amigos da América”, cujo fechamento, no momento em que era reinvestido como Vice-Presidente da entidade o próprio Ministro das Relações Exteriores, e ex-Embaixador em Washington, Osvaldo Aranha, precipitará, em agosto de 1944, a saída deste último da Chancelaria.11

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Os partidos políticos são efetivamente banidos por decreto de 2 de dezembro de 1937; ver Edgard Carone, O Estado Novo (1937-1945), São Paulo, Difel, 1977, pp. 172-176. 9 Para uma análise das orientações de política externa do regime Vargas, inclusive no que se refere às bases políticas internas de sustentação da política do Estado Novo, ver a obra de Ricardo Antônio Silva Seitenfus, O Brasil de Getúlio Vargas e a Formação dos Blocos: 1930-1942 - O processo do envolvimento brasileiro na II Guerra Mundial, São Paulo, Nacional, 1985. 10 Ver o livro de Gerson Moura, Autonomia na Dependência: a política externa brasileira de 1935 a 1942, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980. 11 Cf. Hélio Silva: 1945: Porque Depuseram Vargas, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1976, pp. 1516 e 39-47.

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A participação do Brasil na guerra ao lado de nações democráticas, tornava impossível, em todo caso, a manutenção no País de um regime político que se inspirava nos princípios corporativos do nazi-fascismo europeu. Com a anistia de abril de 1945 e a convocação de uma Assembleia Constituinte, as forças políticas começam a se reorganizar rapidamente e diversos partidos se reconstituem. A oposição liberal se reúne na União Democrática Nacional, enquanto que os políticos situacionistas constituem o Partido Social Democrático. O próprio Vargas impulsiona a criação do Partido Trabalhista Brasileiro, que participa com os comunistas de Prestes no movimento “queremista”. O PCB, depois de 23 anos de clandestinidade, retoma suas atividades legalmente, tornando-se em poucos meses uma força política de expressão nacional: de 2 a 3 mil membros em princípios de 1945, o número de militantes atinge mais de 150 mil no final desse ano. II. Os Partidos Políticos sem Política Externa: 1945-1964 4. Os programas dos partidos no pós-guerra, 1945-1961 Embora a atividade partidária em matéria de política externa não possa ser reduzida às posições de princípio defendidas pelos partidos ou a meros atos declaratórios, consubstanciados em programas que serão deixados de lado na prática cotidiana, a análise dos discursos partidários nesse terreno revela contudo diferentes formas de percepção da problemática. De forma geral, os partidos que se constituíram a partir da redemocratização de 1945 concederam reduzido espaço às questões de política externa em seus respectivos programas e manifestos de ação. Os “capítulos” dedicados às relações exteriores nos programas constitutivos são, via de regra, indeterminados, consistindo de duas ou três rubricas concisas em torno de princípios gerais da política internacional. Uma análise formal e substantiva do “discurso internacional” dos partidos brasileiros revela que quanto menor e mais estruturado ideologicamente era o partido em causa, maior atenção era dada a questões de política externa. Inversamente, quanto maior e mais difuso politicamente era o partido, a formulação dos princípios de política externa tornava-se menos explícita. Grosso modo, a parte sobre Política Externa, sobre ser a última nos manifestos e programas partidários, ocupava menos do décimo do total do texto, quando não era simplesmente inexistente (casos do Partido Social Progressista e do Partido Republicano). Não parece assim exagerado afirmar-se que os partidos brasileiros do regime de 46 careciam, de fato, de uma

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“política externa”, ou, mais exatamente, de um conjunto de proposições ordenadas e sistemáticas suscetíveis de fundamentar a ação externa do Brasil. O cenário político brasileiro, entre 1945 e 1964, era dominado pela existência de três principais partidos: o Partido Social Democrático, a União Democrática Nacional e o Partido Trabalhista Brasileiro. Diversos outros partidos competiam na arena política — o numero dos que se apresentavam em eleições federais se situava em torno de dez, com uma ponta de treze no final do período — mas a importância real dos partidos menores e dos movimentos dissidentes tende a tornar-se inversamente proporcional ao crescimento dos registros partidários na Justiça Eleitoral. Os três principais partidos totalizavam cerca de 3/4 das bancadas federais, mas a distribuição das cadeiras alterou-se progressivamente em favor da corrente trabalhista. a) Partido Social Democrático O PSD era o principal representante das oligarquias regionais e daquela fração da classe empresarial associada ao Estado. Contando com uma implantação nacional e uma representação local garantida pelos chefes municipais, o PSD sempre conseguiu eleger a maioria dos governadores de Estados. No plano eleitoral, entretanto, sua influência tende a decrescer, de forma mais ou menos proporcional à diminuição da população rural em relação à população total.12 O capítulo sobre as “Relações Exteriores” no programa partidário de 1945 é bastante reduzido, num documento em geral bem estruturado: ele anuncia a adesão do PSD ao princípio do arbitramento, o respeito aos tratados e convenções (“segundo as regras do direito internacional”), o “repúdio às regras de conquista“, seu apoio à “política de solidariedade continental e de concretização e aplicação dos preceitos do direito consultivo pan-americano” e faz a defesa de uma “política econômica de igualdade de oportunidades entre as nações”.13 b) União Democrática Nacional

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Para um breve porém arguto estudo sobre o PSD, ver Lúcia Maria Lippi Oliveira: “O Partido Social Democrático” in David V. Fleischer (org): Os Partidos Políticos no Brasil, Brasília, Editora da UnB, 1981, volume I, pp. 108-114. 13 Vide Documentação e Atualidade Política, nº 9, outubro-dezembro 1978, Seção Especial: Programas dos Partidos Políticos, p. 48. Ver também Vamireh Chacon, História dos Partidos Brasileiros, op. cit., pp. 393-410.

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Fundada em 1945 por um grupo de oposicionistas liberais e de democratas radicais, cuja luta contra o “varguismo” e sua política de manipulação de massas eram talvez os únicos pontos de coesão, a UDN depurou-se rapidamente de sua ala esquerda para converter-se em partido reformista de centro. Segundo partido em importância por sua implantação nacional e tamanho da bancada federal, a UDN dispunha, como o PSD, de largo apoio nas classes tradicionais, mas sua política era mais orientada para os interesses da burguesia urbana. Sua base social estava na pequena burguesia urbana e na classe média alta, preocupadas com a perigosa “ascensão” das massas trabalhadoras e com o “espectro” do comunismo.14 Os “constitucionalistas liberais” da UDN praticavam um reformismo tímido, que exprimia bastante bem os limites de seu programa de “redemocratização do sistema”: da “luta contra a corrupção” e contra o “sistema getulista”, o partido passa à “luta contra o comunismo”, isto é, à oposição radical ao populismo de massas. Defensora de uma postura liberal em economia, a UDN foi acusada de ser o porta-voz dos interesses norte-americanos no Brasil.15 Para isso contribuiu talvez o fato do partido ter inscrito em seu programa a necessidade de apelar para o capital estrangeiro “para o aproveitamento de nossas reservas inexploradas, dando-lhe tratamento equitativo e liberdade para a saída dos juros”.16 Em seu programa original (agosto de 1945), a parte dedicada às “Relações Exteriores” resume-se a três itens, afirmando a necessidade da política externa do Brasil inspirar-se: “a) no interesse da colaboração entre os povos e no sentimento da fraternidade humana; b) nos postulados das Nações Unidas; c) na integração da comunidade das Nações americanas”.17 Em documento doutrinário divulgado em 1949, a parte relativa à “Política Exterior” permanece reduzida, mas cabe mencionar dois princípios inspirados na política de solidariedade continental: “2) defender, sem prejuízo das relações com todos os povos, o desenvolvimento dos ideais panamericanos; (...); 5) Contribuir para o constante aperfeiçoamento da política de boavizinhança”.18

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Maria Victoria Benevides, “A União Democrática Nacional“ in Fleischer (org): Os Partidos Políticos no Brasil, op. cit., pp. 90-108. 15 Cf. Octavio Ianni, Estado e Planejamento Econômico no Brasil: 1930-1970, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977, p. 81. 16 Cf. “União Democrática Nacional”, Documentação e Atualidade Política, p. 28. 10. 17 Idem, p. 30. 18 União Democrática Nacional, Programa, Rio de Janeiro, s.e., 1949, p. 23. O opúsculo traz em sua página de rosto o célebre motto udenista: “O preço da liberdade é a eterna vigilância”.

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c) Partido Trabalhista Brasileiro Do PTB pode-se dizer que ele é filho legítimo do “populismo varguista” e o herdeiro de sua política paternalista para com os trabalhadores urbanos. Concebido para preencher a função de um verdadeiro “partido de massas”, o PTB permaneceu na verdade o aparelho político privilegiado através do qual a burocracia do Ministério do Trabalho e o Estado controlavam a classe trabalhadora e o movimento operário.19 O nacionalismo era um dos trunfos políticos do PTB: o partido procurava dar a essa ideologia uma base social mais ampla e por isso cortejava a classe operária de uma maneira contemporizadora. Também o programa do PTB dedica reduzido espaço à “política externa”: apenas dois pontos num total de 33, agrupados em duas rubricas: “Combate aos Regimes de Violência” e “Política de Compreensão e Ajuda entre as Nações”. Na primeira é recomendada “ação permanente para que o totalitarismo (...) não possa reaparecer sobre a terra, considerando-se qualquer regime de força como um atentado à dignidade humana”. Nesse sentido, o PTB acreditava que as “relações amistosas com governos totalitários são um incentivo à existência dos regimes de violência do mundo”. A segunda enfeixa um conjunto de vagas afirmações sobre a solidariedade internacional, a condenação da agressão armada, a defesa da paz e do primado da arbitragem, além da disposição do Brasil, quando solicitado, em ajudar outras nações “para a solução de seus problemas econômicos”.20 d) Partido Democrata Cristão Praticamente inexistente fora de São Paulo e Pernambuco, dividido entre tendências progressistas e conservadoras, o PDC não conseguirá jamais constituir-se em “partido de massa”, apesar de adesões famosas como as do General Juarez Távora e, num certo momento, de Jânio Quadros. O partido apoiou Quadros na Presidência e permaneceu ulteriormente no Governo Goulart, tendo feito inclusive dois ministros de Estado (Paulo de Tarso na Educação e Franco Montoro no Trabalho). Sua ala conservadora participou entretanto do movimento de 1964.21 Um minúsculo capítulo, intitulado “Ordem Internacional”, orienta a “política externa” do PDC para a defesa da integração do Brasil na comunidade das nações e para a aplicação nas 19

Leôncio Martins Rodrigues, Conflito Industrial e Sindicalismo no Brasil, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1966, p. 164. 20 Documentação e Atualidade Política, op. cit., p. 20. 21 Ver Silas Cerqueira, “Brazil” in Jean-Pierre Bernard et alii, Guide to the Political Parties of South America, Harmondsworth Penguin, 1973, pp. 150-235, cf. pp. 200-201.

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relações entre as nações dos “mesmos ideais, jurídicos e morais que devem governar a vida interna das Nações”.22 Pode-se ainda ler no capítulo dedicado à “Ordem Econômica”, em seu item 5: “A política econômica internacional do Estado visa realizar uma cooperação mais efetiva entre as nações, na movimentação de produtos e capitais, e evitando todo exagerado protecionismo nacionalista”.23 e) Partido Socialista Brasileiro Constituído em 1947, a partir de elementos da Esquerda Democrática da UDN, sem penetração na classe operária, o PSB servia de cobertura a intelectuais progressistas e militantes de esquerda. Escrito evidentemente por intelectuais, o programa do PSB representa um esforço estruturado de propostas políticos e sociais, com grande ênfase nas “reivindicações imediatas”, inclusive a adoção de um sistema legislativo unicameral funcionando em regime de Assembleia permanente. Para o PSB, a “política externa será orientada pelo princípio de igualdade de direitos e deveres entre as nações, e visará o desenvolvimento pacífico das relações entre elas. Só o parlamento será competente para decidir da paz e da guerra”.24 f) Partido Comunista Apesar de não figurar entre os partidos mais importantes, o PCB sempre teve uma posição de primeiro plano na vida política nacional, quer pelo seu impacto ideológico próprio, quer pelos mitos entretidos indiferentemente por aliados e adversários.25 Tendo conhecido apenas curtos períodos de legalidade e dispondo de um número reduzido de profissionais permanentes, o PCB exerceu entretanto uma influência política que supera sua simples força numérica; sua atração sobre os intelectuais foi importante durante todo o período do regime de 46; por outro lado, sua implantação efetiva na classe operária nunca correspondeu à influência real que ele sempre exerceu na organização sindical e no movimento operário. 22

Documentação, op. cit., p. 35. Idem, p. 33. 24 Idem, p. 24. 25 A historiografia brasileira sobre o PCB nem sempre é isenta de viéses ideológicos. Dentre os textos estrangeiros, selecionamos: Ronald H. Chilcote, The Brazilian Communist Party: Conflict and Integration, 1922-1972, New York, Oxford University Press, 1974; Boris Goldenberg, Kommunismus in Latein Amerika, Stuttgart, Kohlhammer, 1971, “9. Die kommunistische Partei Brasiliens, 1922-1958”, pp. 196-233; John W. F. Dulles, Brazilian Communism, 1935-1945: Repression during World Upheaval, Austin, University of Texas Press, 1983. 23

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Nas eleições congressuais de 1945, o PCB conseguiu eleger 14 Deputados e 1 Senador, tornando-se, pelo número de votos, o quarto partido nacionalmente mais importante (entre nove partidos representados no Congresso).26 O candidato comunista à Presidência obteve quase 10% dos votos, chegando em terceiro lugar. As repercussões da guerra fria no Brasil e a conduta inábil de seus dirigentes deram lugar a que o Governo conservador de Dutra contestasse a legalidade e a legitimidade da representação do PCB. A decisão do TSE de cassar o registro eleitoral do PCB, tomada em maio de 1947, é acolhida pelo Congresso em princípios de 1948, sendo também cassados os mandatos de seus parlamentares. As “condições internacionais” sempre ocuparam parte substancial dos programas dos Partidos Comunistas em todo o mundo, registrando-se sucessivas utopias da “crise mundial do capitalismo e do imperialismo” e o “avanço inevitável do sistema socialista”: com o PCB não era diferente.27 O “Programa mínimo de União Nacional”, que os candidatos do PCB defenderam na campanha eleitoral de 1945, propugnava a “luta pela manutenção da paz mundial, pela ruptura de relações com os governos fascistas, especialmente da Espanha e Portugal; pela solidariedade das Nações Unidas, em apoio à Carta de São Francisco e da política de paz e colaboração sob a égide do Conselho de Segurança Mundial e das três grandes nações democráticas: Estados Unidos, Inglaterra e União Soviética”.28 g) Outros Partidos Diversos outros partidos foram constituídos para as eleições de 1945 e de 1947, mas estes permaneceram pequenos e com reduzida importância eleitoral.29 O Partido Libertador, por exemplo, detinha bases quase que exclusivamente no Rio Grande do Sul e baseava sua propaganda política no “parlamentarismo”. O PL possuía um programa consequente com seus princípios parlamentaristas, baseados em sólida argumentação jurídica. O capítulo dedicado à “Política Internacional” pregava a constituição de uma “sociedade das nações”, enfatizando a “evitabilidade da guerra”. Registre-se a recomendação de “não-reconhecimento dos Governos ditatoriais”, o “combate a todas as formas de imperialismo e de dominação dos povos e das 26

Cf Cerqueira, op. cit., p. 193. Vide os textos em Edgard Carone, O PCB (1943-1964), volume II, São Paulo, Difel, 1982, pp. 40-57. 28 Cf Carone, idem, p. 466; ver tambem Chacon, História dos Partidos Brasileiros, op. cit., pp. 331-34, que reproduz um pretenso programa de outubro 1945. 29 Na Constituinte de 1946 estiveram representados os seguintes partidos, pela ordem de importância: PSD, UDN, PTB, PCB, PR, PL, PDC, PRP, e PPS. 27

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nações”, bem como o “combate aos cartéis e organizações econômicas internacionais que visem dominar os mercados ou a economia das nações“. Propunha ainda medidas para a preservação da paz mundial, a saber a decretação da ”ilegalidade da guerra, reservada às Nações Unidas o direito do emprego da força entre os Estados, a fim de garantir a observância da lei e da justiça internacionais”, por meio de uma “progressiva restrição das forças militares nacionais aos limites compatíveis com a segurança interna, em benefício de uma poderosa força internacional estritamente obediente à ONU”.30 O Partido Social Progressista, instrumento pessoal de Adhemar de Barros, deveria tornarse o maior dos pequenos partidos. Organizado apressadamente para as eleições de 1945, consolidado nas de 1947, buscando suas bases de apoio entre os homens de negócio, a classe média inferior e o proletariado em formação, fortemente concentrado regionalmente, o PSP constitui-se no exemplo típico do partido populista e demagógico, escondendo uma política conservadora sob uma linguagem agressiva e cheia de promessas. Um outro partido de bases regionais seria o Partido Republicano que, apoiando-se na personalidade do ex-Presidente Arthur Bernardes e em setores oligárquicos de Minas Gerais e da Bahia, retomou um pouco da tradição e da força eleitoral dos antigos PRs da República Velha. Nos programas desses dois últimos partidos não consta, entretanto, nenhuma menção à política externa. Na direita, havia o Partido de Representação Popular, resíduo histórico da antiga Ação Integralista Brasileira. Baseado fundamentalmente no sul do País, o partido de Plínio Salgado proclamava-se autenticamente “nacionalista”. Sua proposta para uma “Política Exterior”, proporcionalmente a maior em todos os programas consultados, desce a tantos detalhes práticos que faz suspeitar da participação de algum membro da carreira diplomática em sua redação. A tônica do programa é dada pela busca de uma “política de confraternização americana, baseada (...) na identidade dos interesses de defesa recíproca e de defesa do hemisfério”, e de uma “política atlântica” cuja consequência seria a “continuação e fortalecimento de uma obra de efetivo intercâmbio com a Nação portuguesa e seu Império”. O alinhamento era expressamente recomendado: “...conciliação da política exterior brasileira com a dos Estados Unidos da América, hoje empenhados na consolidação da paz mundial e na defesa do nosso hemisfério, contra novas formas de imperialismo totalitário”.31

30 31

Documentação e Atualidade Política, op, cit., p. 46. Documentação e Atualidade Política, pp. 41-2.

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Diversos outros “partidos trabalhistas” constituíram-se durante o regime de 1946: Partido Social-Trabalhista, Partido Trabalhista Nacional, Partido Republicano Trabalhista e Movimento Trabalhista Renovador, todos dispondo de diminuta bancada federal e fortemente concentrados regionalmente. No programa político deste último, como reflexo do relativo sucesso alcançado então pelo movimento não-alinhado, constava recomendação para uma “aproximação e entendimento com todos os países afro-asiáticos, em defesa de uma posição independente, capaz de atuar como intermediária entre as grandes potências ou blocos político-militares, em defesa da paz, contra o colonialismo e o subdesenvolvimento econômico”.32 5. A “Política Externa” dos partidos políticos: o regime constitucional de 1946 Um bom indicador da “osmose” partidos políticos—política externa pode ser encontrado, antes de mais nada, na seleção de quadros partidários para o exercício da função de Ministro das Relações Exteriores (e, secundariamente, de próceres dos partidos para as principais embaixadas). No regime de 1946, efetivamente, das 16 personalidades que, durante 10 governos, chefiaram o Itamaraty, 14 eram homens de partido, sendo que desses, 6 eram do PSD, 5 da UDN, 2 do PSB e um do PTB, na seguinte ordem: Governo Dutra (1946-51): 1) João Neves da Fontoura, PSD/RS; 2) Raul Fernandes, UDN/RJ; Governo Getúlio Vargas (1951-54): 3) João Neves da Fontoura, PSD/RS; 4) Vicente Rao, UDN/SP; Governo Café Filho (1954-55): 5) Raul Fernandes, UDN/RJ; Governo Nereu Ramos (1955-56): 6) José Carlos de Macedo Soares, PSD/SP; Governo Juscelino Kubitschek (1956-61): 7) José Carlos de Macedo Soares, PSD/SP; 8) Francisco Negrão de Lima, PSD/MG; 9) Horácio Lafer, PSD/SP; Governo Jânio Quadros (1961): 10) Afonso Arinos de Melo Franco, UDN/GB; Governo João Goulart/Tancredo Neves (1961-62): 11) Francisco C. Santiago Dantas, PTB/MG; Governo João Goulart/Brochado da Rocha (1962): 12) Afonso Arinos de Melo Franco, UDN/GB; Governo João Goulart/Hermes Lima (1962-63): 13) Hermes Lima, PSB/BA; Governo João Goulart (1963-64): 14) Hermes Lima, PSB/BA; 15) Evandro Lins e Silva (jurista); 16) João Araújo Castro (diplomata).33

32

Programa do Movimento Trabalhista Renovador (s.l.: s.e., s.d.), p. 15. Ver Carlos Henrique Cardim, “Reflexões sobre os Partidos Políticos e a Política Externa no Período 1945/1964”, versão preliminar de trabalho apresentado no III Seminário Nacional do Projeto “60 Anos de Política Externa Brasileira”, Brasília, 20.07.1992, pp. 31-32. 33

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O padrão habitual no regime de 46 era, portanto, o de que mesmo cargos especializados como o de Chanceler fossem objeto de preenchimento partidário, ainda que, no Brasil como alhures, “o papel dos partidos na elaboração da política exterior é particularmente difícil de ser avaliado”.34 Com efeito, segundo um brazilianist, mesmo antes de 1964, a política externa era mais uma responsabilidade do Executivo do que uma preocupação partidária e as posições de política externa dos partidos políticos brasileiros não se caracterizavam exatamente pela coerência.35 Ainda assim, durante esse período, os partidos políticos atuaram de forma episódica, mas por vezes intensamente, em temas de política externa. A bem da verdade, deve ser ressaltado que essa atuação deu-se quase que exclusivamente por meio dos canais institucionais normais, isto é, através do Congresso e de suas respectivas comissões especializadas. Raramente os partidos políticos, mesmo os mais importantes, produziram seus próprios inputs em matéria de política externa, limitando-se, ao contrário, a reagir às mensagens executivas despachadas ao Congresso ou refletindo debates já em curso nos meios de comunicação social. Nessa fase, o Congresso aderiu perfeitamente às recomendações executivas no processo de apreciação dos atos internacionais que lhe foram submetidos. Levantamento realizado pelo Professor Cachapuz de Medeiros, para a época de vigência da Constituição de 1946 (isto é, até 1967), indica que dos 353 atos internacionais analisados pelo Congresso, apenas um foi emendado por iniciativa propriamente congressual no período anterior a 1964.36 Deve ser igualmente ressaltado o alto grau de consenso interpartidário na apreciação de atos internacionais. Estudo sobre o comportamento partidário no Governo Kubitschek revelou o mais alto grau de coalisão interpartidária (100% de entendimento entre os principais partidos: PSD, UDN, PTB e PSP) na votação de acordos internacionais.37 Aparentemente, pois, a oposição da UDN à coalisão PSD-PTB, marca do período juscelinista, não se reproduziu no terreno da política externa.

34

Cf. Marcel Merle, La Politique Etrangère, op. cit., p. 73. Cf. Ronald M. Schneider, Brazil: Foreign Policy of a Future World Power, Boulder, Co., Westview Press, 1976., p. 137. 36 Antonio Paulo Cachapuz de Medeiros, O Poder Legislativo e os Tratados Internacionais, Porto Alegre, LPM/IARS, 1983, p.121. 37 Ver Maria Izabel Valladao de Carvalho, “O Comportamento Partidário durante o Governo Juscelino Kubitschek (1956-1961)” in Fleischer (org): Os Partidos Políticos no Brasil, vol I, op. cit., pp. 241-259; cf. pp. 245-6. 35

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Na verdade, excetuando-se o entendimento congressual e partidário observado durante o Governo Kubitschek,38 essa fase foi altamente polêmica e fértil em debates parlamentares, inclusive os de política externa. As relações econômico-financeiras externas e, em especial, as relações bilaterais de caráter econômico e político com os Estados Unidos dominam a pauta dos debates. Eis alguns exemplos de debate parlamentar: A) Governo Dutra 1) Cessação de Relações Diplomáticas com a URSS, anunciada em 21 de Outubro de 1947.39 Assinale-se que, em 7 de Maio desse ano, o Tribunal Superior Eleitoral cassava o registro do PCB,40 e que a cessação intervém pouco depois da Conferência de Petrópolis, o que não deixou de ser denunciado na tribuna do Congresso Nacional pela bancada comunista (os mandatos dos parlamentares do PCB só foram cassados em princípios de 1948). B) Governo Vargas 2) Criação da Petrobrás: o Projeto de Lei, submetido por Vargas ao Congresso em dezembro de 1951, foi intensa e apaixonadamente discutido, tendo sido sancionado em versão bastante modificada (Lei nº 2004). A UDN votou a favor do monopólio estatal e apresentou projeto de nacionalização de refinarias particulares; o debate parlamentar polarizou-se entre “nacionalistas” e “entreguistas”, sem que se possa traçar nítidas fronteiras partidárias entre os dois grupos.41 3) Acordo de Assistência Militar entre o Brasil e os Estados Unidos: assinado no Rio de Janeiro em 15 de Março de 1952, foi talvez o tema mais debatido no Congresso dentre as iniciativas do Executivo em matéria de política externa. Aprovado em votação final em março de

38

Remetemos obrigatoriamente ao estudo de Maria Victoria de Mesquita Benevides: O Governo Kubitschek: Desenvolvimento Econômico e Estabilidade Política, 1956-1961, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976. 39 Hélio Silva, 1945: Porque Depuseram Vargas, op. cit., pp. 376-82; Antonio Augusto Cançado Trindade, Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público, 1941-1960, Brasília, Ministério das Relações Exteriores, 1984, pp. 358-9. 40 Cf Hélio Silva, op. cit., pp. 383-434. 41 Grande parte dos debates parlamentares está reproduzida em Mario Victor, A Batalha do Petróleo Brasileiro, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira: 1970, esp. “Quarta Parte — A Petrobras”, pp. 285-400. Ver tambem Peter Seaborn Smith, Petróleo e Política no Brasil Moderno, Rio de Janeiro, Artenova-UnB, 1978.

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1953, esse Acordo dividiu a maioria das bancadas partidárias.42 Posteriormente, a pedido do Deputado Seixas Dória, foi instalada a Comissão Parlamentar de Inquérito (87/1957) dedicada a “estudar, em geral, a política exterior do Brasil e investigar, em particular, os resultados do ‘Acordo de Assistência Militar’ entre o Brasil e os Estados Unidos”, mas essa CPI nunca chegou a concluir os seus trabalhos.43 4) Capital Estrangeiro: a Lei nº 1807 e a Instrução nº 70 da SUMOC, de janeiro de 1953, tentam estimular a mobilização de recursos externos em setores prioritários, com tratamento diferenciado conforme o grau de essencialidade; os mecanismos fundamentais foram a eliminação das restrições à remessa de juros e dividendos e as taxas múltiplas de câmbio, favoráveis ao investidor estrangeiro, medidas criticadas no Congresso.44 No Governo Café Filho, a CACEX emite a famosa Instrução 113, de 17.01.55, dando licenciamento de importações sem cobertura cambial a investimentos estrangeiros no País.45 C) Governo Kubitschek 5) Política Econômica e Capital Estrangeiro: os desdobramentos da Instrução 113 em decreto de 1957, incorporando as facilidades cambiais já concedidas aos investidores estrangeiros, foi importante componente da política governamental juscelinista, fortemente comprometida com a industrialização substitutiva. “O núcleo da política econômica de Kubitschek consistiu na congregação da iniciativa privada — acrescida substancialmente de capital e tecnologia estrangeiros — com a intervenção contínua do Estado, como orientador dos investimentos através do planejamento”.46 Mas, a entrada em massa do capital estrangeiro foi a principal fonte de oposição à política econômica, conduzida de forma virulenta no final do Governo, sobretudo pela Frente Parlamentar Nacionalista.47

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As intervenções dos congressistas estao reproduzidas em Monica Hirst (coord), Debate na Câmara dos Deputados, 1951-1954: coletânea de textos, s.l. [RJ], Convênio CPDOC/MRE, mimeo, 1984, pp. 6-63. 43 Vide Câmara dos Deputados: Comissões Parlamentares de Inquérito, 1946-1982, Brasília, Centro de Documentação e Informação, 1983, p. 52. 44 Cf. Helio de Alcantara Avellar, História Administrativa e Econômica do Brasil, Rio de Janeiro, MEC/FENAME, 1976, pp. 298-9; Edgard Carone, A Quarta República (1945-1964), Documentos, São Paulo, Difel, 1980, pp. 375-78. 45 Carone, idem, pp. 378-80. Ver também Pinto Ferreira, Capitais Estrangeiros e Dívida Externa do Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1965. 46 Cf Benevides, O Governo Kubitschek, op. cit., p. 202. 47 Idem, pp. 236-8.

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6) Crise de Suez e Contingente brasileiro: cooperando com a Força de Paz da ONU, o Governo brasileiro decidiu enviar tropas para o teatro de operações. Em ambas as Casas do Congresso, debateu-se intensamente a conveniência e a oportunidade de ser atendido o apelo da ONU.48 7) Relações com o FMI: o conflito entre o Programa de Metas de Kubitschek e o Plano de Estabilização Monetária e de saneamento financeiro, tal como propostos pelo FMI, resultou em inevitável impasse na área político-partidária. Designado bode expiatório, o FMI era acusado de fazer “exigências irrealistas” para uma economia em desenvolvimento como a do Brasil. Se o rompimento com o FMI, em junho de 1959, trouxe dividendos ao Governo, inclusive no Congresso, serviu ao mesmo tempo para acirrar a oposição udenista.49 D) Governos Quadros-Goulart 8) Política Externa Independente: esta materializou-se a partir do reatamento de relações diplomáticas com a URSS, a intensificação dos laços comerciais com os países socialistas, a recusa a política de isolamento de Cuba do sistema interamericano e a adoção de uma política anticolonialista e de afirmação do princípio da não-intervenção. A primeira medida, em especial, provocou aceso debate a nível parlamentar e partidário.50 9) Relações com o Capital Estrangeiro: dois temas principais mobilizam a atenção dos parlamentares e dos partidos: a Lei de Remessa de Lucros e o Acordo de Garantias de Investimento com os Estados Unidos, o primeiro resultando na Lei nº 4131, de 03.09.62, posteriormente modificada no Governo Castelo Branco.51 Quanto ao Acordo de Garantias,

48

Cf Trindade, Repertório, 1941-1960, op. cit., pp. 298-307. Thomas E. Skidmore, Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco 1930-1964, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975, pp. 223-5; Benevides, p. 222; Carone, pp. 139-141; a visão de esquerda está em Moniz Bandeira, Presença dos Estados Unidos no Brasil: dois séculos de história, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1973, pp. 397-8. No quadro das iniciativas diplomáticas do Governo Kubitschek, caberia ainda fazer menção aos chamados Acordos de Roboré, entre Brasil e Bolívia, consistindo de 20 Notas reversais firmadas em 29.03.58, que provocaram forte impacto no Congresso Nacional; ver Medeiros, O Poder Legislativo, op. cit., pp. 144-5. 50 Ver San Tiago Dantas, Política Externa Independente, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1962, “Discurso pronunciado na Camara dos Deputados, em 13 de Novembro de 1961”, pp. 45-101. Afonso Arinos de Mello Franco, Evolução da Crise Brasileira, São Paulo: Nacional, 1965, pp. 244-58. Carone, A Quarta República, op. cit., pp. 172-4. Trindade, Repertório, 1961-1981, pp. 349-53. 51 Avellar, op. cit., pp. 317-8. Osny Duarte Pereira, “A Lei de Remessa de Lucros no Brasil”, Revista Civilizacao Brasileira, nº 15, setembro de 1967, pp. 201-11. Pinto Ferreira, Capitais Estrangeiros, op. cit., pp. 227-230. 49

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apresentado uma primeira vez em 1957 (tendo então recebido parecer negativo do Itamaraty), reapresentado em 1962 pelas mãos do Embaixador Roberto Campos, foi finalmente assinado em fevereiro de 1965 e aprovado com “ressalva” do Congresso em julho desse ano.52 Em 1963, no quadro dos debates parlamentares, o então Deputado Leonel Brizola propôs e obteve a instalação de uma CPI, destinada a “apurar se a Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC) está cumprindo a Lei que disciplina da aplicação de Capital Estrangeiro e as Remessas de Valores para o exterior”, mas o clima político então reinante e o próprio golpe militar no ano seguinte impediram que ela concluísse seus trabalhos.53 6. Os Partidos Políticos na Política Externa: a experiência parlamentarista, 1961-1963 O período do regime parlamentarista, inovação casuística negociada entre o Congresso (que ocupava interinamente a Presidência) e a junta militar (que detinha efetivamente o poder) para acomodar a assunção ao poder do Vice-Presidente João Goulart, por ocasião da renúncia do Presidente Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961, estendeu-se de setembro desse ano até o plebiscito de janeiro de 1963. A despeito das frequentes crises políticas no Parlamento, do acirramento dos debates nos quartéis e da agitação social nas ruas e sindicatos, foi provavelmente um dos mais intensos de nossa história política em matéria de “osmose” Congresso-Itamaraty — consequência lógica das constantes trocas de gabinetes — e também um dos mais movimentados em termos de relações internacionais. Basta mencionar, por exemplo, os problemas do relacionamento de Cuba comunista com o sistema interamericano, a crise dos foguetes soviéticos naquela ilha, os intensos debates sobre descolonização na ONU e a incômoda posição brasileira de apoio a Portugal, entre outros, para avaliar o impacto da política externa na agenda parlamentar e partidária. A oposição direita-esquerda, que já tinha motivos internos suficientes para manifestar-se com alacridade no Congresso — reforma agrária, reforma bancária, regulamento do capital estrangeiro, nacionalização de companhias norte-americanas, etc. — encontra novos elementos de radicalização no plano das relações internacionais do Brasil (aprofundamento da Revolução Cubana, por exemplo, a que se acresce a expulsão de Cuba da OEA, em 1962). Refletindo um 52

Euzebio Rocha, Brasil, País Ameaçado e o Acordo de Garantias, São Paulo: Editora Fulgor, 1965, pp. 146-190. Medeiros, O Poder Legislativo e os Tratados Internacionais, op. cit., p. 121. 53 Cf. Câmara dos Deputados: Comissões Parlamentares de Inquérito, 1946-1982, op. cit., p. 86. Vide Resolução 19/63 (DCN-I, 31.05.63, p. 2812) e Relatório (DCN-I, 19.01.68, p. 128).

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pouco a agenda internacional então em discussão, partidos ou frentes existentes no Congresso brasileiro passam a considerar seriamente as virtudes do “neutralismo”, em face do alegado “americanismo” que caracterizaria tradicionalmente a diplomacia brasileira. O próprio Governo Quadros já tinha inovado bastante ao propor as bases de uma nova política externa, mais independente em relação aos alinhamentos automáticos da guerra fria e declaradamente ousada ao decidir o reatamento com os países comunistas, o que fez franzir as sobrancelhas de muitos “liberais” da UDN. Os gabinetes parlamentaristas de Goulart, a começar pelo de Tancredo Neves (que tinha no comando da Chancelaria San Tiago Dantas, um trabalhista cosmopolita), dão continuidade às grandes linhas da política externa de Quadros (que tinha tido como seu executor outro parlamentar cosmopolita, mas da UDN, Afonso Arinos), terminando por exemplo o processo de reatamento de relações com os países comunistas, a começar a própria União Soviética.54 A Ação Democrática Parlamentar, que fazia o pendant de direita da Frente Parlamentar Nacionalista, não deixa de protestar, nos mais ácidos termos, contra essa atitude “inoportuna e inconveniente”, enquanto que o Deputado Plínio Salgado, do PRP, ao julgar o assunto “o mais grave na história brasileira”, alertava para o “plano da Rússia Soviética para a América Latina” e terminava por lembrar à Câmara que “as relações diplomáticas do Brasil com a Rússia, em 1945, foram impostas humilhantemente ao nosso país pelo Departamento de Estado norte-americano, através de Stetinius”.55 A política externa passa também a ganhar maior consistência e importância na atividade propriamente partidária, o que pode ser indiretamente aferido pelo aumento do espaço concedido a essa rubrica nas revisões dos programas que alguns partidos efetuaram a partir do Governo Kubitschek. A UDN, por exemplo, em novo programa divulgado em 1957, introduz diversas modificações em relação ao texto de 1945: além de preconizar o sistema parlamentar de Governo e de defender a necessidade de uma reforma agrária e da livre associação sindical, o partido explicita e aprofunda a sua “política externa”. Assim, a UDN afirma-se pela “solidariedade [do sistema continental] fundada no exercício efetivo da Democracia Representativa” e sustenta uma “posição de independência e defesa da soberania nacional”. Os liberais da UDN vinculam 54

Cf. San Tiago Dantas, Política Externa Independente, op. cit., pp. 70-73, transcrito igualmente em Trindade, Repertório, 1961-1981, pp. 349-53. 55 Idem, Trindade, pp. 352 e 350-1.

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ademais o anti-colonialismo à luta contra o comunismo: “Certa de que o combate ao comunismo depende consideravelmente da integração democrática dos países subdesenvolvidos, a UDN defende a posição anticolonialista como fator do desenvolvimento necessário à luta anticomunista e à vitória da democracia e da paz.”56 O PDC, por sua vez, no programa revisado de 1961, atualiza suas posições em relação aos temas do momento: o nacionalismo, o colonialismo e o imperialismo. Adota o nacionalismo como “ponto fundamental de sua atuação política imediata” e preconiza, entre outros pontos: “...2) A libertação dos países subdesenvolvidos e a composição de bloco de países latinoamericanos voltados contra as opressões dos imperialismos; 3) a necessidade da união dos povos livres contra o colonialismo sufocador da liberdade; ... 6) o comércio e relações diplomáticas com todos os povos; ...8) combate às remessas indiscriminadas de fundos, juros e lucros para o exterior...”57 Com a adoção do sistema parlamentar de Governo em 1961, o PSD reformula seu programa doutrinário, propondo entre outras medidas reforma eleitoral, reforma agrária moderada e a manutenção de “clima propício à entrada de capitais externos”. Quanto aos “Rumos da Política Externa”, o PSD recomendava “perseverar numa estrita linha de independência, sem prejuízo, porém, dos nossos notórios compromissos de solidariedade com o mundo ocidental, democrático e cristão”, bem como “preservar a geral amizade e a fundamental solidariedade interamericana, dentro da Organização dos Estados Americanos”.58 A Frente Parlamentar Nacionalista supera sua relativa inorganicidade do período Kubitschek para firmar, em princípios de 1963, um “Termo de Compromisso” que faz as vias de documento programático. Além de afirmar a necessidade de um “desenvolvimento econômico independente”, que deveria basear-se, entre outras coisas, na “rigorosa aplicação da lei que limita as remessas de lucros para o exterior”, esse documento defendia explicitamente uma “política externa independente”: defesa da paz e da convivência pacífica, afastamento do Brasil de qualquer bloco militar, autodeterminação e não-intervenção e entendimento com os países da América Latina e da África.59

56

Cf Chacon, História dos Partidos Brasileiros, op. cit., p. 427. Idem, p. 473. 58 Idem, p. 415. 59 Idem, p. 477-8. 57

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É nesse período, também, que a esquerda brasileira começa a se dividir, inclusive em virtude de questões “externas”, derivadas essencialmente das cisões no movimento comunista internacional. Assim, o PCB, que vinha reorganizando-se (chegando a atuar quase que de forma legal) e adaptando seu programa e orientação prática às novas realidades da détente internacional e do “revisionismo” kruschevista, sofre, em 1962, uma importante cisão, conduzida pela fração “chinesa” de seus dirigentes, que abandonam o “Partidão” e decidem se organizar sob o antigo nome de Partido Comunista do Brasil. Em que pese o forte conteúdo “internacionalista” da atuação de ambos os partidos comunistas, eles tiveram reduzido impacto na determinação das grandes linhas de política externa governamental e nos debates que se processavam no Parlamento. No período militar, a esquerda se fracionaria ainda mais, com a formação de dissidências “castristas” ou “maoístas”, ocorrendo o lançamento de diversas tentativas de guerrilha urbana ou rural, de inspiração cubana ou chinesa. III. A Política Externa sem Partidos Políticos: 1964-1985 7. Poucos Partidos Políticos e Várias Políticas Externas: o longo período autoritário, 19641979 Dentre as inúmeras modificações introduzidas no sistema político do país pelo movimento militar de Abril de 1964, a primeira foi, sem dúvida, a alteração da correlação de forças a nível congressual, com a cassação dos mandatos de cerca de quarenta parlamentares, afetando o peso relativo das diversas bancadas federais. O PTB e as correntes nacionalistas foram os principais atingidos pelas primeiras medidas de exceção, o que levou um observador a caracterizar o novo regime como de “ditadura da UDN”. Ainda assim, a oposição parlamentar não deixou de levar à tribuna de debates os temas relevantes de política internacional que chamavam a atenção nesses primeiros meses do regime militar, então considerado como de duração limitada. O pequeno Partido Socialista, por exemplo, lavrou veemente protesto contra o apoio brasileiro à intervenção na República Dominicana, em maio de 1965, enquanto que o líder do Bloco Parlamentar Independente lamentava que o Brasil tivesse se tornado “cúmplice dessa mistificação”.60 O sistema partidário pluralista resistiu por dezoito meses ao progressivo endurecimento da “Revolução”, até ser extinto pelo Ato Institucional nº 2, de 27 de Outubro de 1965, no 60

Cf. Trindade, Repertório, 1961-1981, op. cit., pp. 64-67.

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seguimento de eleições parcialmente desfavoráveis ao regime.61 Foram fechados todos os partidos então existentes, num total de treze, inclusive o Partido da Boa Vontade de Alziro Zarur. “Dois partidos surgiram com a dissolução dos treze anteriores: a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). A primeira reunindo basicamente udenistas e pessedistas, com adesistas dos mais variados tipos, e o segundo unindo os discordantes do golpe-revolução de 1964, sobretudo petebistas, com alguns pessedistas, raros udenistas e demais.”62 O novo quadro partidário não alterou fundamentalmente a interação entre o sistema de partidos e o Executivo a nível do processo decisório: os partidos políticos, enquanto tais, sempre desempenharam um papel secundário na formulação e na execução das decisões políticas. O grau de personalização do jogo político reduziu-se, evidentemente, com o fechamento do leque partidário, mas a diversidade de interesses, a predominância das oligarquias regionais e a indefinição ideológica continuaram a marcar os dois novos partidos. A estrutura da representação alterou-se contudo, com o desaparecimento de partidos regionais e a impossibilidade de alianças interpartidárias. As negociações políticas tornaram-se mais difíceis. Com a intensificação da oposição civil ao novo regime, a crise política latente desemboca em crise militar e nova intervenção “saneadora”: em dezembro de 1968 o Congresso é declarado suspenso e 38 Deputados federais e 2 Senadores têm seus mandatos cassados.63 As diversas fases do processo político “autoritário” do período bi-partidista tornam difícil a singularização das principais tendências em matéria de intervenção partidária na política externa. A própria política externa revela inflexões significativas nos diferentes Governos da “Revolução”, em função do cenário político predominante em cada subperíodo: o movimento de 1964 trouxe, de certo modo, um retorno aos padrões tradicionais de ação política externa, mas cada um dos Governos ”revolucionários” tem suas próprias prioridades na formulação de linhas específicas para as relações exteriores do Brasil.64 61

Cerqueira, “Brazil”, op. cit., pp. 208-9; Chacon, História, pp. 188-9. Chacon, idem, p. 191. O Ato Complementar nº 4 estipulava na verdade a exigência de que cada “organização contasse com pelo menos 120 Deputados e 20 Senadores, o que quase impossibilitou a formação do MDB”; cf. Cerqueira, p. 228. 63 Cerqueira, pp. 225-6 e 231. 64 Para uma caracterização específica da política externa brasileira nos dez primeiros anos do regime de 64 — e os diferentes rótulos apegados em cada subperíodo: “diplomacia dependente”, “diplomacia da prosperidade conjunta”, do “interesse nacional“ e o “pragmatismo ecumênico e responsável“ — ver Carlos Estevam Martins, Capitalismo de Estado e Modelo Político no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, 1977, 62

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Como regra geral, pode-se dizer que a já diminuta influência dos partidos na elaboração ou no controle da política externa do Executivo é reduzida ao extremo: o regime não se julgava obrigado a prestar contas a ninguém, nem carecia de apoio parlamentar para “legitimar” sua política externa.65 Como diz Schneider, “em nenhum momento, a partir de sua inauguração simultânea em 1966, seja o partido governamental ARENA, seja o de oposição tolerada, MDB, atuaram como canal efetivo para a formulação ou execução da política externa”.66 A influência dos partidos na política externa torna-se, assim, inversamente proporcional ao importante espaço agora concedido ao tema nos programas respectivos da ARENA e do MDB. O “capítulo” sobre Política Externa já não ocupa o último lugar nos documentos programáticos e tampouco limita-se à enunciação formal de alguns poucos princípios doutrinários, desvinculados de objetivos práticos, como parecia ser o caso no período pluripartidarista. Tanto para a ARENA como para o MDB, passa-se ao estabelecimento de definições claras na área da política externa, com a consequente formulação de objetivos setoriais condizentes com as preocupações básicas de cada partido. O programa da ARENA é substantivamente mais bem elaborado que o do MDB, bastante avançado, aliás, em relação às posições efetivamente assumidas pelo partido governamental em sua prática corrente. Redigido provavelmente por diplomatas, os capítulos dedicados à política social, à política externa, à questão da energia, à ciência e tecnologia e à informática, revelam conhecimento preciso de certos temas e preocupações bastante louváveis num partido que já dispunha de bases institucionais de sustentação política, asseguradas de fato pelo regime em vigor. O capítulo III do programa da ARENA, versando sobre “Soberania Nacional”, dedica 3/4 de seu espaço total a questões de política externa, que o partido entende deva ser “pragmática, ecumênica e flexível, consciente dos deveres da Nação para com o progresso da humanidade e a paz mundial, orientada pelos princípios da solidariedade internacional e continental, atenta aos interesses do País, particularmente no que diz respeito às relações de comércio e a cooperação “A Evolução da Política Externa, 1964-1974”, pp. 361-425. A análise das diferentes estratégias de ação externa é feita em William Perry, Contemporary Brazilian Foreign Policy: the International Strategy of an Emerging Power, Beverly Hills/London, Sage Publications, 1976. 65 O discurso partidário em matéria de política exerna, durante a fase mais fechada do regime militar (1971-74), está consignado em Armando de Oliveira Marinho et alii, “O Congresso Nacional e a Política Externa Brasileira”, Revista de Ciência Política, nº 18, abril 1975, pp. 56-78 e em Lidice A. Pontes Maduro et alii, “Política Externa”, Revista de Ciência Política, nº 21, dezembro 1978, pp. 116-190. 66 Cf. Schneider, Brazil: Foreign Policy, op. cit., p. 137.

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econômica e tecnológica”.67 Os pontos 6 e 7 demonstram a participação de diplomatas em sua redação; o primeiro diz ser tarefa do partido propugnar para “propiciar a efetiva participação do Brasil no sistema democrático de estilo ocidental, notadamente com referência a uma política de entendimento [e] de cooperação permanente com os países em desenvolvimento da América Latina, da África e da Ásia”, devendo o Brasil atuar “sempre em função do interesse nacional e sem condicionar sua ação a alinhamentos automáticos com qualquer país ou grupo de países”; o segundo, vincula o programa da ARENA a formulações teóricas extraídas do pensamento de Araújo Castro: “prosseguir na ação diplomática eficiente e efetiva de modo a impedir o congelamento do poder mundial em reduzido e hermético grupo de nações”.68 O programa original do MDB, provavelmente redigido no final da década de 60, ainda que prioritariamente dedicado à política interna e à luta pela redemocratização da vida política brasileira, não deixa de reservar espaço a questões de política externa, numa postura ao mesmo tempo nacionalista e equilibrada. Após denunciar “o processo de lenta e insidiosa submissão das atitudes e atos do governo brasileiro aos interesses do balanço de poder que se pretende impor ao mundo”, o programa condena “a ‘continentalização’ do conceito de segurança, elaborado por minoria de tecnocratas e que visa, afinal, a integrar a segurança do Brasil no esquema de segurança do mais poderoso País americano”. O Partido preconiza então uma “política externa independente e de afirmação nacional”, a “rigorosa aplicação de medidas que visem a impedir a transferência de recursos nacionais para o estrangeiro” e a “defesa da soberania nacional... contra qualquer tipo de imperialismo, inclusive o imperialismo internacional do dinheiro”.69 O programa do MDB de 1972, bem mais elaborado, comporta uma análise detalhada da realidade brasileira, um diagnóstico de seus principais problemas, com ênfase na perversidade do modelo econômico, e um programa amplo de ação política e econômico-social. A parte dedicada à política externa repete, em grande parte, o programa anterior, notando-se, aqui e ali, pequenas correções, acréscimos ou supressões: assim, ao ponto onde se condenava a “criação, na América Latina, de organismos militares supranacionais”, agregou-se “e organizações ideológicas de fim

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Documentação e Atualidade Política, pp. 68-9; Chacon, História dos Partidos Brasileiros, op. cit., pp. 489-90. Não há menção de data, mas indícios de natureza substantiva permitem situar a elaboração do programa da ARENA nos primórdios da “era Geisel”. 68 Documentação, p. 68; Chacon, p. 490. 69 Chacon, op. cit., pp. 500 e 507; Chacon data esse programa de 1966, o que nos parece equivocado; cf Sumário, p. 7.

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subversivo”.70 Por outro lado, se foi preservado o princípio da “solidariedade aos povos subdesenvolvidos na luta contra o colonialismo”, eliminou-se do segundo programa a menção ao “resguardo da soberania nacional contra os efeitos da doutrina de fronteiras ideológicas”.71 De uma forma geral, esses programas revelam, tanto por parte da ARENA como do MDB, uma adequação doutrinária ao contexto político nacional e internacional do momento, bem como a adesão de cada partido a dois conjuntos diferentes de valores: a “ideologia do desenvolvimento com segurança”, por um lado, o “nacionalismo desenvolvimentista”, por outro. Se o programa da ARENA revela, grosso modo, o desejo de instrumentalizar a política externa para a maximização do objetivo prioritário, que é o desenvolvimento com segurança, o do MDB evidencia a preocupação básica dos nacionalistas com a defesa da soberania nacional e a preservação da integridade territorial (ameaçada num período por supostos projetos de “internacionalização da Amazônia”). Mas, o esforço programático é inversamente proporcional à capacidade de intervenção na esfera da prática. Os partidos políticos são mantidos à margem das principais questões da política internacional do Brasil, em que pese a intensidade dos debates parlamentares durante a primeira fase do regime de 64. Nessa primeira fase, e sobretudo durante o sistema multipartidário, o debate é concentrado no problema das relações com os Estados Unidos, culpados, aos olhos dos nacionalistas, de intervenção descarada nos assuntos internos do Brasil. Duas questões sobressaem-se nesse contexto: o já referido Acordo de Garantia de Investimentos, que precisou aguardar clima propício para sua conclusão, e a participação brasileira na Força de Intervenção da OEA na República Dominicana.72 O Decreto que criou o “Destacamento Brasileiro da Força Armada Interamericana” foi objeto de intenso debate nas duas casas do Congresso, tendo sido aprovado pela maioria governamental (PSD, UDN) apesar da oposição de um velho prócer da UDN como o Senador Afonso Arinos.73

70

Idem, pp. 507 e 525. Chacon pp. 508 e 525. 72 Cf. Skidmore, op. cit., pp. 397-8. Não se pode tampouco esquecer a alteração da Lei regulamentando a remessa de lucros (ou Estatuto do Capital Estrangeiro) pelo Governo Castelo Branco; cf. Avellar, op. cit., pp. 317-8. 73 Transcrição parcial dos debates parlamentares em Trindade, Repertório, 1961-1981, pp. 62-67 e 313322. 71

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Na época do bipartidarismo, o decreto de ampliação do mar territorial brasileiro, promulgado em clima de euforia nacionalista em 1970, recebeu inequívoca e entusiástica aprovação por parte de ambos os partidos.74 O MDB, apesar de naturalmente avesso à política interna e a alguns aspectos da política externa do Governo Médici, chegou a inscrever em seu programa de 1972 a frase peremptória seguinte: “O MDB não admite qualquer alteração restritiva no limite de 200 milhas, estabelecido para o mar territorial brasileiro”.75 No contexto das relações Brasil-Portugal-África Portuguesa, a linha divisória é representada pela Revolução dos Cravos em Portugal, bem acolhida na comunidade ligada às relações exteriores na medida em que libertava o Governo brasileiro do terrível ônus de sustentar a política colonialista portuguesa na África. O reconhecimento da Guiné-Bissau, do Governo instalado em Luanda e o ulterior estabelecimento de relações diplomáticas com Moçambique coroam o processo de normalização e unificação do discurso externo sobre o colonialismo. Ao mesmo tempo em que estabelecia relações com os novos países africanos de expressão portuguesa, o Governo Geisel, em gesto aplaudido pelos dois partidos (malgrado reações contrárias dos meios militares, repercutidas no Congresso), decidia-se pelo estabelecimento de relações diplomáticas com a República Popular da China. A assinatura do Acordo de Cooperação Nuclear com a Alemanha Federal despertou forte debate nas duas Casas do Congresso, mas a maioria governamental garantiu tranquila aprovação legislativa, mesmo em presença de cláusulas mantidas secretas em anexos ao Acordo.76 Finalmente, cabe mencionar, ainda no contexto do bipartidarismo, as repercussões, a nível congressual, da nova fase nas relações bilaterais como os Estados Unidos, marcadas por iniciativas do Governo Carter em matéria de direitos humanos e de proliferação nuclear, e a imediata resposta do Governo Geisel, em março de 1977, comunicando a denúncia do Acordo de Assistência Militar de 1952.77 O MDB solidarizou-se com a posição do Governo, tendo mesma uma parcela do partido prestado total e irrestrita solidariedade ao Governo Geisel.

74

Trindade, op. cit., pp. 201-3. Chacon, op. cit., p. 519. Ver tambem os citados números especiais da Revista de Ciência Política (Abril de 1975 e Dezembro de 1978) com as referências aos discursos partidários sobre política externa durante a Legislatura 1971-1974. 76 Não se deve contudo esquecer que, nas eleições de 1974, o MDB conseguiu eleger 16 senadores, reduzindo assim a maioria automática do Governo. 77 Trindade, op. cit., pp. 94 e 141-3. 75

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8. Vários Partidos Políticos e uma Política Externa: a abertura política do multipartismo limitado, 1979-1985 O esgotamento do bipartidarismo, paradoxalmente provocado pelo crescimento da legenda oposicionista, conduziu o sistema político brasileiro a uma fase de “transição administrada”, através da qual se procurou chegar à estruturação de um multipartismo limitado e controlado. Esse processo, que deveria provocar a implosão do MDB, resultou na verdade na criação de mais dois partidos perfeitamente assimiláveis e outros dois algo “incômodos“ para o assim chamado “sistema”. Dessa forma, entre o final de 1979 e meados de 1980, o cenário político brasileiro registrou o nascimento dos seguintes partidos: Partido Democrático Social, conservando o essencial da velha ARENA; Partido do Movimento Democrático Brasileiro, que conseguiu reter boa parte de seus quadros, com exceção do setor moderado da bancada; Partido Popular, reunindo os moderados do MDB e os insatisfeitos da ARENA; Partido Trabalhista Brasileiro, organizado por Ivete Vargas contra as pretensões de Brizola de reaver a velha sigla varguista; Partido Democrático Trabalhista, reunindo velhos petebistas e novos socialistas sob a liderança de Leonel Brizola; Partido dos Trabalhadores, finalmente, organizado pela ala avançada do sindicalismo brasileiro em cooperação com intelectuais de esquerda. Quanto aos partidos da “esquerda oficial”, essencialmente PCB e PCdoB, eles não seriam, dizia-se, assimiláveis pelo “sistema militar”, razão pela qual foram mantidos à margem do processo de abertura política. Uma rápida consulta aos pontos de “política externa” consignados nos programas dos novos partidos, permitiria a identificação das características básicas seguintes: a) Partido Democrático Social O programa do PDS é o mais bem articulado de todos os documentos programáticos em exame, apresentando formulações claras e abrangentes sobre praticamente todos os aspectos da vida nacional. O partido se propõe defender uma política externa que, entre outros pontos, “evite alinhamentos automáticos”, “promova a integração da América Latina”, “dê especial atenção à comunidade dos povos de língua portuguesa“ e promova o diálogo Norte/Sul, buscando “maior participação dos países em desenvolvimento nos benefícios da riqueza” e “um equilíbrio mais justo do poder político e econômico mundial”.78 78

Partido Democrático Social, Pela Democracia Social, Brasília: PDS, 1982, p. 20.

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b) Partido do Movimento Democrático Brasileiro O “programa básico” do PMDB é essencialmente político em seus compromissos fundamentais com a democracia e a justiça social. A “política externa” do partido está concentrada na última parte do programa, dedicada à “Questão Nacional”: numa crítica aos que adjetivam o nacionalismo, o PMDB “defende o nacionalismo sem adjetivos. As expressões ‘nacionalismo pragmático’ e ‘nacionalismo sadio’ escamoteiam o principal e buscam disfarçar a transferência dos centros de decisão para o exterior”.79 Depois de criticar a “dependência estrutural da economia brasileira”, o PMDB propõe uma “política internacional de ampla solidariedade com os povos que lutam por seus interesses legítimos”. Declarando-se “favorável a uma política externa independente e ao relacionamento do Brasil com todos os povos do mundo”, ele “propõe que o Brasil procure articular-se com os povos que lutam por ideais da democracia, igualdade e independência cultural e que suas decisões de política internacional sejam autônomas, obedecendo única e exclusivamente aos interesses do povo brasileiro”.80 c) Partido Popular Organizado para defender os princípios do liberalismo, romper os maniqueísmos políticos e assegurar representação política ao amplo eleitorado centrista existente no País, o PP teve no entanto vida efêmera, mercê da legislação eleitoral e partidária restritiva. Sem condições de ganhar espaço próprio nas eleições de 1982, os quadros do PP voltaram, em sua maior parte, aos partidos de origem, isto é PDS e PMDB. O programa partidário, bastante sucinto, dedica apenas um único ponto à política externa, aliás o último, nos “objetivos básicos no plano político”: “política externa soberana, com respeito aos tratados e compromissos com o mundo democrático e maior aproximação com os países da América Latina, da África e da Ásia. A autodeterminação é um direito inalienável de todas as nações. A Paz é o objetivo supremo de todos os povos.”81 d) Partido Trabalhista Brasileiro

79

Partido do Movimento Democrático Brasileiro: Programa, Etatuto, Código de Ética, Brasília: s.e., 1983, p. 59. 80 Partido do Movimento Democrático Brasileiro, op. cit., pp. 59-61. 81 Diário Oficial da União, Seção I, 23.05.80, pp. 10320-22.

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O programa do PTB é extremamente conciso, quase panfletário, na verdade um mero complemento de seu manifesto de fundação, consistindo, em tudo e por tudo, de 20 pontos gerais, dos quais cinco objetivos no plano político e quinze outros no campo econômico-social. Nesta parte, não consta nenhuma menção à “política externa” do partido, mas tão somente sua intenção de “lutar contra as tentativas de internacionalização e exploração irracional e impatriótica da Amazônia” e de lutar “pela defesa de nossa economia, de nossas riquezas naturais e do trabalho do brasileiro contra os processos de espoliação que enfrentamos”.82 e) Partido Democrático Trabalhista O partido de Leonel Brizola assume, de partida, uma série de compromissos, entre eles o da “recuperação para o povo brasileiro de todas as concessões feitas a grupos e interesses estrangeiros, lesivas ao nosso patrimônio, à economia nacional e atentatórias à nossa própria soberania”.83 Coerente com esse postulado, o PDT se propõe, no “plano político”, o “exame pelo Congresso Nacional, de todo e qualquer acordo e tratado do Poder Executivo com grupos, entidades e Nações estrangeiras”, exigindo, ademais, “a divulgação à Nação do Acordo Nuclear entre o Brasil e a Alemanha, assim como outros do mesma gênero”. Saliente-se ainda o propósito de “só recorrer à tecnologia externa em caráter supletivo”, o de disciplinar a “presença e ação do capital estrangeiro” (tolerável apenas em regime de “admissão restrita” e em “caráter minoritário”) e a “proibição dos reinvestimentos como fonte de recursos de lucros”. 0 PDT promete ainda que “serão nacionalizados os setores estratégicos da economia brasileira que foram entregues ao capital multinacional”. No plano internacional, o PDT se propõe manter “relações com todos os países com base nos princípios da autodeterminação, não-intervenção, coexistência pacífica, cooperação econômica e não-alinhamento”, bem como fazer oposição ativa ao “colonialismo e ao neocolonialismo, às políticos de discriminação racial e ao (...) imperialismo”, apoiando ainda a luta pela independência de todos os países ainda submetidos à condição colonial”. Na esfera latino-americana, o PDT propugna a “efetivação do Mercado Comum” sul-

82 83

Diário Oficial da União, Seção I, 24.12.79, p. 19781. Diário Oficial da União, Seção I, 06.06.80, p. 11224.

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americano e pretende lutar pela democracia “através da solidariedade com as lutas [dos] movimentos populares” do continente.84 f) Partido dos Trabalhadores Nascido, como afirma, das lutas sociais, o PT pretende representar a força política autônoma dos trabalhadores organizados. Com fortes componentes utópicos e anticapitalistas em sua ideologia, o PT afirma seu inequívoco compromisso com uma “democracia plena e exercida diretamente pelas massas”, condicionando sua própria participação em eleições e no parlamento ao “objetivo de organizar as massas exploradas e suas lutas”. A independência nacional só sera possível “quando o Estado for dirigido pelas massas trabalhadoras”. O manifesto do PT, resultante de seu 1º Encontro Nacional, em 1981, ressalta ainda sua “solidariedade à luta de todas as massas oprimidas do mundo”.85 Em seu “Programa”, o PT “defende uma política internacional de solidariedade entre os povos oprimidos e de respeito mútuo entre as nações que aprofunde a cooperação e sirva à paz mundial. O PT apresenta com clareza sua solidariedade aos movimentos de libertação nacional...” Não consta do programa menção explícita à política externa, mas, o plano de ação contempla o item “Independência Nacional: contra a dominação imperialista; política externa independente; combate a espoliação pelo capital internacional; respeito à autodeterminação dos povos e solidariedade aos povos oprimidos”.86 Nesta fase do multipartidarismo limitado do governo Figueiredo, a capacidade de intervenção dos partidos na esfera da política externa continuou a ser limitada, preservando-se grosso modo as estruturas decisórias elaboradas pelo regime de 1964. A participação dos partidos em temas de política externa foi assegurada, como nos períodos anteriores, por vias essencialmente congressuais, isto é, o debate e a apreciação dos atos internacionais que o Executivo enviava ao Legislativo. Assim, não se pode dizer que, nessa fase, tenha aumentado o poder da classe política sobre as relações exteriores do País: o controle só podia ser feito, na

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Idem, pp. 11225-7. Partido dos Trabalhadores, Programa, Manifesto, Estatuto, Brasília, Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados, 1984, Manifesto, pp. 5-7. 86 Idem, Programa, pp. 9-13 e Plano de Ação, pp. 14-15. 85

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melhor das hipóteses, a posteriori, mediante a convocação do Chanceler às comissões especializadas da Câmara e do Senado. Ainda assim, ampliou-se o leque de questões internacionais e de temas das relações exteriores do Brasil que repercutiam no Congresso, em parte por força da crise da dívida externa. Uma simples relação de temas confirma a nova dimensão alcançada pela política externa nas preocupações da classe política. As relações com o capital estrangeiro e, em especial, com o FMI no contexto da renegociação da dívida externa, monopolizaram a atenção dos políticos e parecem nos remeter diretamente aos debates do período pré-64: em 1983, sob iniciativa do Deputado Alencar Furtado (PMDB-PR), instalou-se a “CPI da Dívida Brasileira e do Acordo FMI-Brasil”.87 A questão do Apartheid na África do Sul, a independência protelada da Namíbia e a postura global do Brasil em relação aos problemas da África austral constituem outra gama de problemas a mobilizar, de forma permanente, a atenção dos parlamentares. Os partidos políticos mais engajados na defesa de uma política “africanista” comprometida com a luta contra o racismo e o colonialismo, basicamente o PT e o PDT, não deixaram de cobrar das autoridades políticas posições mais avançadas nesse setor. O Deputado negro Abdias Nascimento (PDT-RJ) teve papel destacado na discussão dessas questões, levantando críticas ou formulando sugestões à postura oficial.88 A questão do Direito do Mar — plataforma continental, mar territorial brasileiro, zona econômica exclusiva, exploração dos recursos do mar, etc. — foi abordada em diversas ocasiões, tanto na Câmara quanto no Senado, em que pese sua relativa complexidade. Parlamentares do PDT e do PMDB não deixaram de colocar a pertinente questão do que chamaram de “recuo de soberania”, isto é, a reconsideração da atitude assumida em 1970, relativa aos limites do mar territorial brasileiro.89 As iniciativas oficiais tratando da questão da Antártida foram igualmente levantadas, dada a adesão do Brasil ao Tratado da Antártida e o envio de equipes de pesquisa científica a esse continente.90 O conflito anglo-argentino em torno da soberania das Ilhas Malvinas e o caso dos aviões líbios transportando armas para a Nicarágua, em 1982 e 1983, foram dois episódios de política 87

Grande parte dos trabalhos foi dedicado às relações comerciais e financeiras com a Polônia, desde 1982 devedora do Brasil. 88 Senado Federal, O Itamaraty e o Congresso Nacional, Brasília, Senado Federal, 1985, pp. 105-109. 89 Trindade, Repertório, 1961-1981, pp. 205-217. 90 Senado Federal, op. cit., pp. 161-8.

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internacional que atraíram, momentânea mas intensamente, as atenções dos parlamentares em ambas as Casas do Congresso. Os debates em plenário ou nas comissões especializadas, inclusive com a participação do Ministro das Relações Exteriores, focalizaram os pontos cruciais de ambas as questões: as relações bilaterais do Brasil com os protagonistas envolvidos — Argentina e Inglaterra num caso, Líbia e Nicarágua em outro, e a presença interessada dos Estados Unidos em ambos — e aspectos específicos da balança estratégica e militar afetando a paz do continente americano.91 Sem olvidar a sempre presente questão do Oriente Médio, mencione-se finalmente o debate em torno da política nuclear brasileira, em geral, e a implementação dos contratos de transferência de tecnologia embutidos no Acordo Nuclear Brasil-RFA, em particular: o então Senador Itamar Franco (PMDB-MG) foi peça chave nesses debates envolvendo tanto a política externa como as alternativas energéticas para o Brasil. IV. O Retorno dos Partidos Políticos à Política Externa: 1985-1990 9. Muitos Partidos Políticos e a busca de uma Política Externa: a redemocratização de 1985 O encerramento do “ciclo militar”, que coincide com a crise da sucessão presidencial e a implosão do partido governamental, representou, ao mesmo tempo, a volta, ao cenário político brasileiro, do velho estilo de negociações entre partidos típico do regime anterior. O acordo da Aliança Democrática, de agosto de 1984, entre o PMDB e o novo Partido da Frente Liberal — antes mesmo que este último estivesse formalmente organizado — significou uma mudança no eixo das articulações políticas em direção das máquinas partidárias e suas lideranças, retomando assim um padrão usual no regime de 1946. Com efeito, a chamada “Nova República” funcionou à base de conchavos partidários, sistema agravado pelo absoluto fracionamento político a que conduziu uma legislação eleitoral e partidária extremamente permissiva. O sistema político brasileiro ganhou características novas, típicas dos regimes pluripartidários, inclusive com a incorporação dos partidos da “esquerda clandestina” e a constituição de uma agremiação legitimamente “socialdemocrata”, o PSDB. Tendo passado de um bipartidarismo imperfeito — isto é, deformado pela imposição de um partido artificialmente predominante — no auge do regime militar, a um pluralismo moderado em sua fase final, o 91

Idem, pp. 51-97.

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Brasil parecia encaminhar-se lentamente para a formação de um sistema partidário legítimo. A liberalidade partidária trouxe consigo a ameaça de um multipartismo anárquico e desenfreado, plenamente estabelecido no final do Governo Sarney, mas ela confirmou também essa característica básica do novo cenário político brasileiro: a organização política da sociedade passa necessariamente pelos partidos. Uma rápida consulta aos programas dos novos partidos presentes no Congresso, ou sobrevivendo à sua margem e à sombra de uma legislação eleitoral casuística, permite confirmar igualmente a habitual marginalidade dos temas de política internacional nos documentos partidários. Vejamos apenas os programas dos principais partidos: a) Partido da Frente Liberal O Manifesto de lançamento, de janeiro de 1985, menciona a importância de se “preservar nossa identidade e nossa cultura, manter sob controle nacional o processo de desenvolvimento e buscar a redução progressiva de nossa dependência do exterior, inclusive especialmente no campo tecnológico”. Mas, esclarece que se deve manter, todavia, “nossas janelas abertas para o mundo, onde a interdependência tende a aumentar e o isolacionismo tende a desaparecer”. O programa do Partido, elaborado ulteriormente, não comporta diretrizes específicas para a política externa, mas consigna, por exemplo, entre seus princípios, “propor uma política externa, fundada no princípio da igualdade soberana dos Estados e no respeito à autodeterminação dos povos e a não-ingerência nos assuntos internos de outros países, orientada em favor da paz mundial, do desarmamento, de uma divisão mais justa do poder político e econômico mundial e de um maior acesso dos países em desenvolvimento aos frutos do progresso material, e voltada para o estabelecimento de relações com todas as nações que desejem cooperar com o Brasil, à base do respeito mútuo”.92 b) Partido da Social Democracia Brasileira Fundado durante os trabalhos da Constituinte, em meados de 1988, com quadros oriundos em sua maior parte do PMDB, o PSDB nasceu sob o signo da “ética política” e claramente comprometido com um regime de tipo parlamentarista, retomando assim o lábaro do Partido Libertador. 92

Cf. Frente Liberal, Manifesto, Programa, Estatuto (s.l. [Brasília], s.e., s.d. [1985].

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Entre os princípios e objetivos alinhados no Manifesto (1989) estão “promover o desenvolvimento do mercado interno e a integração soberana do Brasil no sistema econômico internacional” e “enfrentar o problema da dívida externa: a) através da investigação de suas origens e consequências mediante auditoria; b) através de uma estratégia compatível com a manutenção da soberania nacional”. Finalmente, como último item do Manifesto, o PSDB afirma pretender “assegurar a presença ativa do Brasil no plano internacional, em especial na defesa dos princípios da autodeterminação dos povos, da integração latino-americana e da preservação da paz mundial”.93 No Programa partidário (junho de 1988), a política externa é considerada como de “importância estratégica para o desenvolvimento do país”. A ênfase é dada à presença ativa do Brasil no cenário internacional: os objetivos tradicionais de longo prazo da política externa brasileira devem ser afirmados “no desempenho de um papel mais ativo de nossa diplomacia em questões como a integração latino-americana e a dívida externa, assim como nas gestões em favor da paz mundial”.94 Aproveitando as brechas involuntárias ou deliberadas de uma legislação eleitoral bastante condescendente em relação aos requisitos mínimos da representação partidária, muitos outros partidos se constituíram, a partir do fracionamento dos existentes ou como “geração espontânea” de lideranças locais, ao sabor de ideologias esdrúxulas ou de dissidências ocasionais. A maior parte conta com representação mínima no Congresso, presença ainda mais rarefeita nos estados e uma importância política só realçada pelos privilégios concedidos nos regimentos das duas Casas. Eles geralmente não têm projeto em política externa ou, se é o caso, seus programas não vão além das generalidades. Em todo caso, vale conferir os mais atuantes nesse período da “Nova República”: c) Partido Socialista Brasileiro O PSB se reorganiza exatamente quarenta anos após o seu surgimento no Governo Dutra e continua a ser um partido de intelectuais e de políticos principistas. Expressamente, o programa 93

Partido da Social Democracia Brasileira, Manifesto, Programa, Estatuto, 4ª ed., Brasília, Comissão Executiva Nacional - Diretório Nacional, 1992, Coleção Tucano, Série Documentos Partidários, Volume I, pp. 10-11. 94 Idem, p. 25.

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então adotado repete o de 1947: “é o mesmo dos fundadores do Partido. É de dramática atualidade”. Esse programa retoma portanto a proposta de “estabelecimento de um regime socialista” que “acarretará a abolição do antagonismo de classe”, defende a “socialização dos meios de produção... decretada pelo voto do Parlamento” e preconiza também a estatização do comércio exterior”. O parágrafo de política externa é, obviamente, o mesmo de 1947, conciso e sem grandes definições positivas.95 Conscientes, todavia, de que o programa de 1947 deixava muito a desejar em face das novas realidades mundiais, os líderes do PSB promovem, durante a Constituinte, uma renovação dos documentos partidários. O novo manifesto, refletindo ainda a situação internacional préqueda do Muro de Berlim, ainda prega o “estreitamento de laços fraternos com todos os partidos e países socialistas” e saúda a “construção do socialismo em Cuba”. O novo programa, mais elaborado, também comporta uma adesão de princípio ao “socialismo científico”, mas apresenta um programa de ação mais amplo para a “questão internacional”. Os conceitos, no entanto, são os de sempre (apoio irrestrito às lutas de libertação dos povos do Terceiro Mundo, pelo estabelecimento de relações culturais e diplomáticas com “todos os países socialistas”, etc.), mas também alguns novos (como a integração latino-americana) e outros declaradamente conjunturais (como ao apoio à realização da Conferência de Paz para o Oriente Médio ou o reconhecimento de status diplomático para a representação da OLP no Brasil).96 Na proposta que o PSB apresentou de um “programa mínimo” das esquerdas para as eleições presidenciais de 1989 ele defende a “imediata suspensão de qualquer pagamento relacionado com a dívida externa”, um “entendimento entre os diversos países devedores com vistas a fortalecer o não-pagamento” e o estabelecimento de “relações fraternas (...) com todos os partidos que tenham como objetivo a construção da democracia e do socialismo com o objetivo de unir esforços na preparação de uma alternativa à crise do modo de produção capitalista”.97 d) Partido Democrata Cristão O PDC, que reivindica uma ligação com a comunidade ideologicamente afiliada em outros países (RFA, Bélgica, Itália, Holanda, etc.), afirma em seu Manifesto de lançamento 95

Cf. PSB, Manifesto, Programa e Estatuto, s.l. [Brasília], s.e. [Senado Federal, Centro Gráfico], s.d. [1990], pp. 2-5. 96 Deputado Federal Jamil Haddad, A Política do PSB: Manifesto, Programa e Estatuto do Partido Socialista Brasileiro, Brasília, Centro Gráfico do Senado Federal, 1992, pp. 5-6, 10 e 15. 97 Idem, pp. 50 e 56.

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(1986) repudiar “a guerra, as competições armamentistas, o emprego das armas de extermínio e das experiências atômicas e termonucleares para fins bélicos”, mas quer reservar para o País o “direito de uso e emprego da tecnologia nuclear para fins compatíveis” [com a integridade do território nacional, a defesa da independência nacional, sua soberania].98 O programa divulgado em 1989 tem pequenas diferenças redacionais em relação ao de 1986, mas preserva praticamente idênticos os objetivos no plano externo: estes não apresentam maiores novidades, a não ser o desejo de participar “em condições de igualdade nos organismos internacionais” e o de ter “acesso a todas as conquistas científicas e tecnológicas da humanidade”.99 e) Partido Liberal O PL, sem maior importância política, a não ser por uma participação ativa nos trabalhos da Constituinte e na primeira fase da campanha presidencial de 1989, é um partido pequeno, mas intelectualizado. O diagnóstico da realidade brasileira, apresentado em seu manifesto de lançamento (junho de 1985), afirma a necessidade de reformas estruturais, mas tem várias atribuições exclusivas do Estado. O programa pretende simultaneamente proteger a empresa nacional, acolher o capital estrangeiro (“em áreas e setores que não afetem a segurança do país”) e impedir as multinacionais de efetuar “qualquer ingerência na vida política do país”.100 Contraditoriamente para um partido “liberal”, o PL “defende a proteção à indústria nacional de informática”. No campo das relações internacionais, defende “a maior integração da América Latina” e a “intensificação do diálogo Norte-Sul, em busca da melhor distribuição do poder e da riqueza mundial”.101 Ademais desses partidos menores, caberia ainda uma menção à esquerda “tradicional”, composta basicamente pelos dois frères ennemis Partido Comunista Brasileiro e Partido Comunista do Brasil. O “Partidão” era, ao recuperar sua plena legalidade e representação política direta durante a “Nova República”, o mais antigo partido do País, com uma história de lutas e de abnegação exemplares em termos de militância e de fidelidade à causa do socialismo (no caso, o da União Soviética). Sua trajetória para a decadência, nesse período, foi, por isso mesmo, 98

Cf. Partido Democrata Cristão, Manifesto, Programa, Estatuto, Brasília, Centro Gráfico do Senado Federal, 1986, pp. 5 e 8. 99 Cf. PDC, Mensagem, Programa, Estatuto, Brasília, s.e., 1989, p. 24. 100 Partido Liberal, Manifesto, Programa, Estatutos, Brasília, Comissão Executiva Nacional, 1991, p. 16. 101 Idem, pp. 18 e 22.

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surpreendente, já que antecedeu a própria derrocada final do socialismo em escala mundial, só explicando-se provavelmente em virtude de “contradições insanáveis” entre, de um lado, velhos líderes “stalinistas” (o próprio Prestes) e, de outro, novos “reformistas”. O PCB participa ainda, enquanto tal, das eleições presidenciais de 1989, mas esgota-se nesse mesmo movimento, sendo pouco depois substituído pelo PPS, o Partido Popular Socialista.102 O PCdoB, por sua vez, oriundo da cisão do “Partidão” em 1962, quando se fortaleciam tanto o “revisionismo” kruscheviano como sua alternativa maoísta mais radical, não desempenhou maior influência na vida política do País, em termos de propostas inovadoras ou liderança efetiva do movimento de massas, com exceção de uma presença bastante ativa no movimento universitário — onde, graças à sua estridência verbal, conquistou muitos adeptos e, em diversas ocasiões, a própria direção da UNE — e de uma experiência bastante traumática na vida nacional, qual seja o lançamento de uma frente de guerrilha rural relativamente bem implantada na região do Araguaia, extirpada a enormes custos humanos e psicológicos para ambos os lados da contenda. O PCdoB, já desligado dos referenciais chinês ou albanês que alimentaram seu ideário e mitologia durante algum tempo, permaneceu no período recente aquilo que sempre foi: um partido sem maior impacto político efetivo na vida nacional, mas extremamente ativo e bastante “visual” nas ruas e praças do País. Sem qualquer “modelo internacional” atualmente disponível, o PCdoB continua atado aos velhos slogans do passado remoto, preservando inclusive o vocabulário típico do período “áureo” do stalinismo.103 No campo mais amplo das relações internacionais do Brasil, depois de um longo período de “rótulos” atribuídos às diferentes fases da política externa governamental — desde a “política externa independente” de 1961-64 até ao “pragmatismo responsável” e o “realismo operacional” dos últimos governos militares — o País se descobriu sem uma definição precisa para enquadrar suas opções externas. Salvo um pequeno ensaio de “diplomacia de resultados” sob a liderança do banqueiro Olavo Setúbal em 1985, a diplomacia brasileira passou o resto dos anos 80 sem um

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Ver PPS, Uma Opção Socialista: Manifesto, Programa, Estatuto, s.l. [Brasília], Sindical Gráfica e Editora, s.d. [1992]. 103 Segundo seus Estatutos, por exemplo, o PCdoB “educa seus membros no espírito do internacionalismo proletário e da solidariedade internacional dos trabalhadores de todos os países”; cf. PCdoB, Estatutos do Partido Comunista do Brasil, São Paulo, PCdoB, 1992, p. 1.

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“slogan” que sintetizasse sua moldura conceitual ou a orientação principal de sua ação prática, a não ser uma óbvia referência a seu “universalismo”.104 A ausência de um “rótulo” talvez seja indicador do próprio désarroi com que o Brasil passou a enfrentar a gigantesca tarefa de sua reinserção num mundo internacional sensivelmente diferente daquele sob o qual foram elaboradas as “racionalizações” anteriores relativas à política externa, quando algumas escolhas essenciais pareciam impor-se naturalmente, com uma grande dose de consenso interno: “política externa independente” (Quadros-Goulart), interdependência efetiva (Castello Branco), “diplomacia da prosperidade” (Costa e Silva), projeto da potência emergente (Médici), “pragmatismo responsável” (Geisel), diplomacia “ecumênica” (Figueiredo), etc., todas elas mais ou menos compreendidas na bandeira geral da “diplomacia do desenvolvimento”. A volta à democracia e o novo “contrato social” representado pela Carta de 1988 parecem ter deixado o País sem uma agenda muito precisa na frente externa, a não ser a condução dos negócios correntes e a administração de contenciosos econômicos e tecnológicos com a principal potência do mundo ocidental. Em todo caso, com a possível exceção do PT — que nessa fase atuou como um partido “antissistema” — nenhum partido político foi capaz de oferecer, no período recente, uma nova rationale para o relacionamento externo global do País que viesse a completar ou substituir aqueles programas (ou “slogans”) anteriores. Um capítulo da agenda externa foi no entanto decisivo para a conformação futura das relações internacionais do País no futuro previsível, muito embora ele ainda não tenha provocado as transformações que seria de se esperar na postura externa do Brasil: o processo de integração regional, primeiro na fase bilateral com a Argentina, depois em escala sub-regional com os outros dois parceiros do Cone Sul. Nesse particular, a receptividade do projeto entre os partidos políticos foi exemplarmente coincidente, todos eles acentuando — mais por opção política apriorística do que por um cálculo econômico muito elaborado — as virtudes intrínsecas da integração regional, ou melhor, da integração latino-americana, segundo a velha retórica idealista ainda cultivada pela maior parte dos líderes políticos.105 104

Para uma excelente análise das diferentes fases da política externa brasileira, até 1985, inclusive com uma correlação entre temáticas dominantes nas frentes externa, interna e no desenvolvimento econômico nacional, ver o trabalho de Raphael Valentino Sobrinho, “A Política Exterior do Brasil”, Digesto Econômico, janeiro-fevereiro 1985, pp. 44-66. 105 Cabe mencionar que os processos subregionais de integração em que se engajou o Brasil, tanto na fase bilateral Brasil-Argentina como na quadrilateral do Mercosul, previram, em seus respectivos tratados

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10. A Constituição de 1988 e as relações internacionais do Brasil Durante o Governo Sarney, dois elementos do cenário político nacional tiveram influência determinante na postura internacional do País: eles foram, obviamente, o processo de reordenamento constitucional — sob a forma de discussão e adoção, por um Congresso Constituinte, de uma nova Carta para o País — e a campanha eleitoral de 1989, que levou à primeira eleição direta de um Presidente em quase trinta anos. No que se refere ao tema das relações internacionais na nova Constituição, deve-se mencionar, antes de mais nada, a contribuição original da Assembleia Constituinte no sentido de codificar algumas orientações gerais em matéria de política internacional, iniciativa sem paralelo nas experiências anteriores de constitucionalização. A inovação temática se dá pela postulação inicial, dentre os princípios basilares do ordenamento jurídico e constitucional brasileiro, de algumas linhas de ação dedicadas especificamente a guiar os dirigentes eleitos e os agentes diplomáticos no que se refere à postura externa do País. Segundo o Artigo 4º, o Brasil rege-se, nas suas relações internacionais, pelos princípios da independência nacional, da prevalência dos direitos humanos, da autodeterminação dos povos, da não-intervenção, da igualdade entre os Estados, da defesa da paz, da solução pacífica dos conflitos, do repúdio ao terrorismo e ao racismo, da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e o da concessão de asilo político. A vocação universalista, pacifista e democrática da nova Carta é reforçada pela promoção ativa de uma política externa integracionista, como salientado em parágrafo único ao mesmo Artigo 4º, que afirma a intenção do Brasil de buscar “a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latinoamericana de nações”. Os dispositivos tratando da Ordem Econômica e Financeira ou da Ciência e Tecnologia encerram diversos princípios conduzindo à afirmação da iniciativa e da competência nacionais na administração de recursos naturais ou no desempenho de atividades econômicas, bem como restrições à atuação do capital estrangeiro em setores considerados estratégicos do ponto de vista do desenvolvimento nacional. Dentre os princípios da ordem econômica, figuram a “soberania nacional” e o “tratamento favorecido para as empresas de capital nacional de pequeno porte”

constitutivos (1988 e 1991), o estabelecimento de comissões parlamentares, com representação designada pelos parlamentos nacionais e dispondo de funções meramente consultivas nesta fase do processo.

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(Artigo 170). O artigo seguinte apresenta definição de "empresa brasileira de capital nacional", em favor da qual a lei poderá “conceder proteção e benefícios especiais temporários para desenvolver atividades consideradas estratégicas para a defesa nacional ou imprescindíveis ao desenvolvimento do País”, estabelecer condições relativas ao controle nacional efetivo sobre as atividades tecnológicas da empresa, além de dar preferência à empresa nacional na aquisição de bens e serviços pelo Poder Público. Até o período recente, o tipo de orientação burocrático-modernizadora imprimido à direção dos negócios do Estado no regime centralizador de 1964, privilegiando aspectos técnicos em detrimento de escolhas políticas, resultou em estruturas relativamente impermeáveis de administração pública, notadamente na esfera da política externa. No presente ordenamento constitucional, a interação com as forças políticas tende a aumentar, obrigando o titular das Relações Exteriores a trabalhar com o Congresso Nacional e os partidos políticos em dimensão provavelmente não experimentada desde o final do regime monárquico. 11. Excesso de partidos e nenhuma política externa: a campanha presidencial de 1989 No período coberto por este estudo, o último grande elemento a ser considerado na avaliação da interação partidos políticos—política externa é a própria campanha presidencial de 1989, quando mais de duas dezenas de candidatos, representando outros tantos partidos ou coalizões partidárias se enfrentaram nas urnas do primeiro turno das eleições. Cabe ressaltar, antes de mais nada, que a temática das relações internacionais do Brasil esteve significativamente ausente das plataformas ou dos debates pré-eleitorais, a não ser por algumas simplificações úteis à propaganda eleitoral — como responsabilizar a dívida externa pela “fome e miséria” do povo brasileiro — ou sob a forma de invectivas desprovidas de mínima consistência — contra o capital estrangeiro espoliador, contra o modelo socialista estatizante, etc. De dez candidatos principais, apenas cinco — Affonso Camargo (PTB), Guilherme Afif (PL), Lula (PT/PSB/PCdoB), Covas (PSDB) e Ulysses Guimarães (PMDB) — tinham efetivamente programas de governo, incluindo uma plataforma de política externa. Outros três — Collor (PRN/PTR/PST/PSC), Roberto Freire (PCB) e Ronaldo Caiado (PSD/PDN) —, apesar de contarem com programas, não tinham nenhum posicionamento escrito em matéria de política

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externa e os outros dois — Brizola (PDT) e Maluf (PDS) — sequer chegaram a apresentar programas de governo até a data das eleições (15 de novembro).106 Em que pese a fraqueza das plataformas eleitorais em matéria de política externa, algumas constatações podem ser feitas. Os candidatos, de modo geral, não implementariam, se eleitos, qualquer mudança substancial na política externa em vigor. Apenas Afif Domingos chegou a mencionar o conceito de “potência emergente”, mas no geral esses candidatos tenderam a reafirmar as linhas básicas da diplomacia brasileira. Cabe mencionar a consistente e bem articulada plataforma “externa” do candidato Mário Covas, tendo apontado, “com diagnósticos acertados, as principais questões a serem enfrentadas pelo Brasil no cenário internacional, e um caminho a seguir para a busca do desenvolvimento internacional. Concorreu com um dos programas mais consistentes, em acordo com os princípios de ação externa do PSDB (...). Propôs ainda a revisão do sistema das Nações Unidas, a reformulação das instituições de Bretton Woods e do Sistema Financeiro Internacional, inclusive pelo estabelecimento de uma Nova Ordem Econômica Internacional, mais justa e equitativa, reflexo da proposta “desenvolvimentista” (desenvolvimento com justiça social) do seu partido”. Mas, em vista das grandes coincidências de suas propostas com a política já adotada pelo Itamaraty, é provável que não procedesse a nenhuma alteração substantiva na política externa. Roberto Freire, do Partido Comunista, voltou a falar em “política externa independente”, dando bastante ênfase às questões do meio ambiente e da política tecnológica. “Caso chegasse a exercer a Presidência da República, poder-se-ia esperar que um governo Roberto Freire reforçasse as linhas latinistas e terceiro-mundistas da política externa tradicional”. Leonel Brizola, por sua vez, foi extraordinariamente vago em sua campanha, insistindo por diversas vezes no conceito de “perdas internacionais”, que para ele seriam os “grandes responsáveis pelos males do Brasil”. Essas perdas teriam como origem “a sangria perversa decorrente do pagamento dos juros extorsivos da dívida (...) e a enorme evasão de divisas (...) através de artifícios criminosos”. Seu discurso “poderia ser classificado como ‘xenófobo’, com uma clara conotação nacionalista, característica da sua formação política, com raízes no populismo getulista”. Que tipo de governo ele faria ? Provavelmente, uma “maior presença do 106

Todas as citações desta seção foram extraídas do trabalho de pesquisa conduzido pelo Grupo de Pesquisas em Relações Internacionais, composto por alunos do Departamento de Ciência Política da UnB; vide GPRI, A Política Externa nas Plataformas dos Candidatos a Presidente do Brasil em 1989, Brasília, Universidade de Brasília, texto processado, dezembro de 1989 (Posfácio de janeiro de 1990), cf. pp. 5156.

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Presidente da República na formulação da política externa, imprimindo-lhe talvez um toque visivelmente pessoal e subjetivo”. Já o candidato do PT, apresentou um amplo programa de governo e, segundo se depreende das resoluções políticas adotadas pelo Partido em seu IV Encontro Nacional (junho de 1989), poderia propor uma “política externa independente e soberana, sem alinhamentos automáticos, pautada pelos princípios de autodeterminação dos povos, não-ingerência nos assuntos internos de outros países e pelo estabelecimento de relações com governos e nações em busca da cooperação à base de plena igualdade de direitos e benefícios mútuos”. Mesmo se esses princípios não diferem muito da política externa efetivamente seguida pelo Brasil, ainda assim uma vitória do candidato-trabalhador, representaria uma reavaliação radical das posturas brasileiras na área”, já que a “Frente Brasil Popular” prometia adotar uma “política anti-imperialista, prestando solidariedade irrestrita às lutas em defesa da autodeterminação e da soberania nacional, e a todos os movimentos em favor da luta dos trabalhadores pela democracia, pelo progresso social e pelo socialismo”. Um hipotético Governo da Frente defenderia a “luta dos povos oprimidos da América Latina” e Lula chegou mesmo a propor a “decretação de uma moratória unilateral para ‘solucionar’ a questão da dívida externa”. Quanto a Ronaldo Caiado e Fernando Collor, não seria tampouco de se prever grandes mudanças nas linhas principais da política externa brasileira. O candidato “ruralista”, ao defender enfaticamente a valorização do “interior”, poderia eventualmente conduzir a uma política “autárquica”, típica de um país “potencialmente grande, em muito diferente do Terceiro Mundo”, o que o aproximaria das nações já desenvolvidas. Já o candidato do PRN, ele teria praticado, na maior parte do tempo, “um discurso vazio e inconsistente na abordagem de ‘temas sérios’”, empenhando-se apenas na “necessidade de se recuperar dois princípios básicos: o da legitimidade política e o da credibilidade”. O PRN, aliás, no lançamento da candidatura Collor, era “um partido com uma representação quase nula no Congresso Nacional, criado para dar sustentação a uma candidatura nascida na luta contra os ‘marajás’ do serviço público de Alagoas e ‘lançada’ em cadeia nacional de televisão a partir de três programas eleitorais sucessivos de micropartidos em coligação”.107 De fato, uma simples consulta ao “programa mínimo” do PRN, lançado com o manifesto do Partido em fevereiro de 1989, confirma que ele é realmente “mínimo”: descartando-se os 107

Idem, “Posfácio”, p. 194.

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propósitos grandiloquentes sobre o “saneamento moral” do País, o Partido faz uma série de compromissos com a reconstrução política, econômica, moral e da convivência social. Permeiam o programa propostas de tipo municipalista, desenvolvimentista, Estado mínimo, defesa das empresas públicas, privatização das empresas deficitárias pelo justo valor, independência em relação ao FMI e outras. Mas, o programa do Partido não contém um único parágrafo, uma linha sequer, um simples conceito sobre política internacional. Esta simplesmente não existe, como se, para o PRN, o Brasil fosse um país singularmente só no mundo.108 “Com a ascensão de Collor de Mello ao primeiro lugar das pesquisas e alçado à condição de favorito (...), a possibilidade de vitória e a pressão da opinião pública colocaram para sua equipe de assessores a necessidade de divulgar um programa de governo mínimo, a fim de sustar críticas de que se tratava de um candidato ‘vazio’ de ideias. O documento intitulado ‘Diretrizes de Ação do Governo Fernando Collor’ veio a público em outubro, mas não continha nenhum ítem especifico sobre política externa”.109 Pelos pronunciamentos então feitos, enfatizou-se a intenção de “aproximar o Brasil dos países do Pacífico, e mais especificamente os chamados Tigres Asiáticos”, assim como se falou da “meta global de fazer com que o Brasil assuma ‘seu lugar’ entre os países que comandam a economia mundial, os chamados ‘Sete Grandes’”.110 De uma forma geral, portanto, a análise das plataformas dos candidatos evidenciou “uma grande unanimidade entre as lideranças do sistema e antissistema” em relação aos “preceitos básicos adotados para a prática política da Nação durante anos seguidos pelo Itamaraty”, sendo que apenas Lula e Roberto Freire “defenderam revisões mais profundas nas linhas mestras da diplomacia brasileira”. Mas, igualmente, a “inexistência ou a inconsistência dos temas de política externa na campanha e nas plataformas do governo demonstrou ‘ainda existir um certo descaso característico de uma visão política provinciana, segundo a qual o Itamaraty cuida desses assuntos’. De fato, existiu certo consenso entre os candidatos quanto ao prestígio da diplomacia nacional e quanto à coerência na aplicação dos princípios básicos pelo ‘establishment’ diplomático brasileiro”.111 Tampouco no segundo turno das eleições, já reduzido aos candidatos do PRN, Fernando Collor de Mello, sustentado por uma ampla coalização de interesses conservadores e do 108

Ver PRN, Manifesto, Programa Mínimo, Estatuto, s.l. [Rio de Janeiro], Partido da Reconstrução Nacional, 1989. 109 Cf. GPRI, A Política Externa nas Plataformas…, “Posfácio”, p. 194. 110 Idem, pp. 56-57. 111 Idem, pp. 57-58.

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“establishment”, e do PT, Luis Inácio Lula da Silva, apoiado na sua própria Frente partidária e em alguns outros setores de centro-esquerda, assistiu-se a algum debate significativo em temas de política internacional. Aliás, não houve propriamente um debate, mas acalorados enfrentamentos verbais, com acusações mútuas e invectivas propagandistas, geralmente em torno de questões domésticas, palco habitual das promessas de palanque de fácil entendimento popular. A política externa, ademais da verdade, foi portanto uma das grandes vítimas da primeira campanha presidencial em 30 anos de vida política brasileira. Conclusões Essas considerações finais, relativamente pessimistas, sobre a postura global dos candidatos nas eleições presidenciais de 1989 em temas de relações internacionais também servem para concluir nosso longo périplo analítico em torno da interação dos partidos políticos com a política externa nos últimos 60 anos da vida republicana do Brasil. Reafirmaram-se plenamente nesse caso as premissas e observações já elaboradas por conhecidos sociólogos das relações internacionais (Marcel Merle, por exemplo) acerca da importância secundária que os partidos políticos atribuem à política externa. A formação de um sistema partidário legítimo no Brasil parece comprometida pela alta taxa de personalização do jogo político e pela ameaça, ainda latente, de um multipartismo anárquico e desenfreado. Uma longa transição partidária promete arrastar-se bem além do processo de revisão constitucional do País, previsto nas disposições transitórias da Carta de 1988, enterrando e fazendo desabrochar partidos durante vários escrutínios gerais ainda. Qualquer que seja o cenário que emergirá dos atuais alinhamentos regionais e ideológicos em torno das formações existentes ou potenciais, o sistema político brasileiro tornou-se basicamente competitivo e essa competição se dá essencialmente no terreno partidário e eleitoral. Os partidos, e não mais os militares, dão as cartas do jogo político. Em grande medida motivados pelos grandes temas da agenda internacional do Brasil na última década, principalmente a dívida externa, mas também os diversos contenciosos com os Estados Unidos e o processo de integração regional, os partidos passaram a interessar-se pelas relações exteriores do País. Ainda assim, dado o ainda baixo grau de institucionalização do sistema partidário e a limitada abertura internacional dos atores não-governamentais, a política externa permanece como uma área relativamente esotérica para a maior parte dos agentes

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envolvidos na disputa pelo Poder. Os partidos políticos dão, evidentemente, prioridade aos temas de política interna, sem falar do enorme esforço organizacional que representa, no contexto brasileiro, a reconstrução das bases de sustentação a cada novo escrutínio eleitoral. Não se deve esquecer também que as características estruturais e institucionais da política externa — com uma corporação profissional altamente especializada — a tornam relativamente autônoma e pouco permeável às injunções do sistema partidário. Deve-se no entanto atentar para o fato de que, o simples aumento nas taxas de participação política — e portanto, a intensificação da “osmose” partidos políticos-sociedade civil — traz um contingente cada vez maior de atores potencialmente interessados em temas de política externa para dentro dos partidos políticos: universitários, homens de negócios, etc. Os partidos ganham consistência programática e capacidade de intervenção em temas altamente complexos e relativamente específicos, como são os de política externa. Por outro lado, a diminuição substantiva das simples tarefas de representação diplomática e a crescente importância das negociações econômicas e comerciais, quando não o aumento da cooperação técnica com o exterior, resultam inevitavelmente no envolvimento de maior número de atores na formulação e execução da política externa. No terreno propriamente institucional, a recuperação das prerrogativas congressuais em setores até aqui monopolizados pelo Executivo não deixa igualmente de incidir, ainda que indiretamente, sobre a repartição de competências na área da política externa. Aumentou, assim, a responsabilidade congressual nas relações exteriores do Brasil, primordialmente sob a forma de um controle legislativo mais estrito dos atos internacionais firmados pelo Executivo: o Art. 49 da Constituição de 1988 ampliou significativamente a competência exclusiva do Congresso, podendo este não apenas “resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais”, como no antigo texto constitucional, mas agora inclusive sobre os que “acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”. Com base nesse dispositivo, o Senado Federal pode bloquear, por exemplo, qualquer acordo sobre a dívida externa que não atenda aos requisitos mínimos que o corpo legislativo considere necessários nesse tipo de negociação (capacidade real de pagamento, jurisdição em caso de conflito, etc.). De uma forma geral, a estrutura do processo decisório foi alterada, em favor de uma maior participação parlamentar na elaboração e execução da política externa governamental. Essas tendências de desenvolvimento não deixaram igualmente de afetar a interação dos partidos

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políticos com a política externa, reforçando-se, como seria de se esperar, o polo partidário. Em resumo, o Congresso primeiro, os partidos políticos em seguida, passam a ser senão full actors, pelo menos agentes participantes da política externa brasileira. Esta deixa de ser o monopólio exclusivo do Executivo para ser influenciada igualmente por considerações que emergem no âmbito do próprio Legislativo. Depois de uma longa ausência, propiciada pela centralização política operada em favor do Estado pela Revolução de 1930, os partidos retornam portanto à política externa. A parábola “política externa” dos partidos políticos no sistema político brasileiro vinha sendo levada a seu termo desde meados da década passada, com a escolha de um empresário-político (Olavo Setúbal) e de um político-empresário (Abreu Sodré) para chefiarem, sucessivamente, a Casa de Rio Branco. Ela continuou seu trajeto final com o convite feito a professor-juiz (Francisco Rezek) e a um empresário-professor (Celso Lafer) para o mesmo ilustre cargo. Essa nova realidade foi finalmente coroada com a escolha, depois de quase duas décadas de intervalo, de um líder partidário para o cargo de Chanceler, na figura do Senador (e professor) Fernando Henrique Cardoso. É a volta definitiva dos partidos políticos à política externa.

[Brasília, 29 de março de 1993] [Relação de Trabalhos nº 332] 332. “Os Partidos Políticos nas Relações Internacionais do Brasil, 1930-1990”, Brasília: 29 março 1993, 57 pp. Versão resumida do trabalho nº 257, apresentado em 02.04.93 no IV Seminário Nacional do Projeto “Sessenta Anos de Política Externa Brasileira: 1930-1990”. Publicado na revista Contexto Internacional (Rio de Janeiro: vol. 14, nº 2, julho/dezembro de 1992, pp. 161-208). Trabalhos Publicados nº 116.

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