Os pentecostalismos nas quebradas poéticas..docx

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Doutorando em História pela PUC-SP. Mestre em Ciências da Religião pela mesma Universidade. Professor convidado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) no curso de extensão O Pentecostalismo no século XXI: Mudanças e novas perspectivas e do Centro Cristão de Estudos Judaicos (CCSJ) na Pós-Graduação Latu-Sensu em Ensino Religioso, práticas pedagógicas em ensino das religiões. Pesquisador do fenômeno do protestantismo e do pentecostalismo brasileiro no Grupo de Estudos protestantismo e pentecostalismo (GEPP) da PUC-SP. Membro da Rede Latino-Americana de Estudos Pentecostais (RELEP) e do Grupo de Pesquisa Questões Urbanas: Design, Arquitetura e Paisagem (Mackenzie).
Consideramos evangélicos, todos os grupos não católicos oriundos da Reforma Protestante.
Fonte: http://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo?id=1&idnoticia=2170&view=noticia, acessado dia 08/04/2014 as 21h32.
A ideia de quebrada vem sendo discutida e problematizada por estudiosos da sociologia, há diversas modalidades de análise para o uso da categoria. Podemos pensar a quebrada a partir de um referencial simbólico, enquanto uma categoria nativa, categoria analítica ou descritiva, sendo esta uma terceira via de compreensão adotada neste texto. FELTRAN (2011) utiliza o termo fronteira, alguns utilizam trama, mas neste caso, utilizamos a categoria nativa para identificar quebrada enquanto o espaço da vida social na periferia. MALVASI (2012) discute a quebrada partir de uma perspectiva nativa que remete a diferentes modos de compreensão, conceitos, técnicas de regulação, códigos e linguagens que se cruzam na vida cotidiana de jovens moradores de bairros da periferia de São Paulo.
Falar em línguas estranhas.
Congregação Cristão no Brasil, a partir deste momento será identificada por suas siglas.
Assembleias de Deus, a partir deste momento será identificada por suas siglas.
Estudos diversos apontam para uma certa conivência de igrejas evangélicas, (principalmente entre os pentecostais) com relação a repressão exercida durante o Regime Militar. Essa abordagem foi realizada primeiramente por ALVES (1979) e Lalive d'Épinay (1970) que pensava o pentecostalismo enquanto um reprodutor das relações autoritárias que ocorriam no campo, entretanto, em pesquisa de campo identifiquei a participação de pentecostais entre conflitos sindicais nos em meados de 1970 e na construção e solidificação do Partido dos Trabalhadores (PT), inicialmente associado a posturas de esquerda.
Não ignoramos a presença de igrejas como a Deus é Amor, Congregação Cristã no Brasil e outras com censura nos comportamentos de seus membros; acreditamos que existe um volume de "crentes" significativamente elevado que escapa a estes marcadores fixos. Quem diria que até a atriz, bailarina e cantora Gretchen se rendeu ao Senhor, mesmo com as minissaias?
Fonte: http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/tabela/protabl.asp?c=1489&z=cd&o=13&i=P, acessado dia 02/03/2014 as 22h13.
Defendemos a hipótese de que boa parte das Igrejas Evangélicas não declaradas definidas no Censo são de origem pentecostal.
Por razões de sigilo e segurança, alteramos os nomes dos atores e do campo de pesquisa.
Utilizamos a categoria "irmão" a partir da compreensão nativa, onde identifica o pertencimento do indivíduo ao grupo. Tanto pentecostais como integrantes do PCC identificam seus membros a partir do uso da categoria "irmão".
Indivíduos que transitam tanto em denominações pentecostais e no PCC.
Para analisar as relações de poder do PCC, sua entrada nas periferias, o monopólio na venda de drogas, suas aproximações com o discurso do pentecostalismo, ver: BIONDI (2010), DIAS (2008 e 2013), FELTRAN (2011), MARQUES (2013).
Os pentecostalismos nas quebradas poéticas: as transformações do universo religioso das periferias de São Paulo identificadas pelo rap.
Vagner Aparecido Marques
Resumo
Neste texto buscamos apresentar o processo de transformação ocorrido no interior do pentecostalismo nas últimas décadas e a necessidade de construção de novos referenciais teórico-metodológicos para análise deste campo religioso. Também iremos realizar uma breve leitura da produção historiográfica do pentecostalismo e as razões que justificaram a negligência da academia sobre este grupo. Na contramão da invisibilidade da academia, o pentecostalismo apresentou significativas taxas de crescimento nas a ponto de alcançar 22% da população nacional em 2010. Em um segundo momento, nossa preocupação assenta-se sobre o atual processo de transformações que ocorre no interior deste campo religioso a ponto de indicarmos a utilização de pentecostalismos; estes plurais, difusos e dinâmicos. Busca-se explorar os pentecostalismos das periferias paulistanas e sua importância na configuração da paisagem social das quebradas, sua interface com a violência e com diversas redes de engajamento. Também identificamos as periferias enquanto um dos espaços onde se manifestam intensas mudanças no mundo pentecostal. Diferentemente da academia que inclinou suas atenções para os pentecostalismos das periferias tardiamente, o rap, apresenta-se como narrativas do cotidiano das quebradas, responsável por revelar as tensões, conflitos, rupturas e continuidades e, acima de tudo, as mudanças no universo religioso. É a partir da trilha sonora do rap que buscaremos identificar os eixos de mudanças nas periferias paulistanas.

Palavras-chave: PCC, Pentecostalismo, Periferia, Rap, Violência
Apresentação

Fé em Deus que ele é justo ei irmão/ nunca se esqueça/, na guarda, guerreiro levanta a cabeça/ truta/, onde estiver seja lá como for tenha fé porque até no lixão nasce flor. Ore por nós pastor lembra da gente no culto dessa noite, firmão segue quente. Admiro os crente, da licença aqui/ mó função, mó tabela, pow, desculpa ai. (Vida Loka (Parte I). Nada como um dia após o outro, Racionais Mc's, 2002).

No início do novo milênio a religiosidade apresenta sinais de forças contrariando os fiéis das teorias da secularização. Os resultados do Censo realizado em 2010 revelaram, entre outras coisas, um significativo processo de crescimento entre os evangélicos, principalmente entre os pentecostais e coloca pesquisadores diversos a frente do desafio de compreender as razões que impulsionaram o boom entre os pentecostais e a consequente redefinição do campo religioso brasileiro.
"Vivemos uma época que parece comprovar a predição de André Malraux de que o século XXI seria um século religioso. Os ideais laicos, sejam quais forem experimentaram uma regressão; as ideologias políticas, que por tanto tempo foram objeto de fé e esperança, qualquer que fosse o grau de expectativa depositada nelas, revelaram-se ineptas; e as religiões fizeram o mundo lembrar de que era possível esperar delas não apenas o além, mas igualmente, no aqui e agora da vida cotidiana, um sustentáculo valioso, notadamente no plano identitário. Levar a sério necessidade de crer é, portanto, uma urgência, pois, suas consequências são diversas e, em alguns casos, perigosas." (Mijolla-Mellor,2004, p.7).

Segundo os dados coletados pelo IBGE e divulgados em meados de 2012, os evangélicos alcançaram o patamar de representação em 22,2% da população brasileira e estes números precisam ser compreendidos segundo algumas questões norteadoras. Quem são estes indivíduos? Será possível estabelecer marcos definidores de quase 40 milhões de brasileiros/as?
De antemão, se faz necessário realizar uma breve retrospectiva da produção bibliográfica sobre o pentecostalismo brasileiro a fim de compreender suas mutações na atual conjuntura e a insuficiência analítica de modelos definitivos e totalizantes, ao também, se faz necessário compreender as periferias paulistanas a partir de suas produções culturais. Deste modo, o rap será compreendido enquanto trilha sonora das quebradas, responsável por anunciar e descrever no cotidiano os conflitos, as tensões e acima de tudo, as mudanças nas periferias. Nosso destaque concentra-se no cenário religioso. Não ignoramos a presença latente de outros segmentos musicais, tais como o funk, o tecnobrega, sertanejo, forró e outros, com maior ou menor destaque nas periferias paulistanas, mas por escolha metodológica optamos por observações analíticas sobre o rap.

Revisão da produção historiográfica

A literatura sobre o pentecostalismo brasileiro tem variado bastante nos últimos anos, entretanto a origem de tal literatura é recente se considerarmos os mais cem anos de presença nas terras tupiniquins; de entrada tímida e quase imperceptível, hoje o pentecostalismo se faz presente nos mais diversos grupos sociais. Por mais que esteja enrijecido nas camadas mais pauperizadas, constatamos sua presença entre membros das elites, parlamentares, artistas diversos e celebridades do universo esportivo e televisivo. Deste modo, podemos pensar o pentecostalismo como parte da cultura brasileira?
Gedeon Alencar (2012) fez uma leitura do pentecostalismo brasileiro a partir da história das Assembleias de Deus e compreendeu que esta denominação é extremamente polissêmica e plural, assim como o próprio pentecostalismo.
A Assembleia de Deus no Brasil é brasileira? Brasileiríssima. Ela pode não ser "a cara" do Brasil, mas é um retrato fiel. E um dos principais. É uma das sínteses mais próximas da realidade brasileira. Como o Brasil, é moderna, mas conservadora; presente, mas invisível; imensa, mas insignificante; única, mas diversifica; plural, mas sectária; rica, mas injusta; passiva, mas festiva; feminina, mas machista; urbana, mas periférica; mística, mas secular; carismática, mas racionalizada; fenomenológica, mas burocrática; comunitária, mas hierarquizada; barulhenta, mas calada; omissa, mas vibrante; sofredora, mas feliz. É brasileira. (ALENCAR, 2012, p.15).

Se o pentecostalismo é plural como sugere ALENCAR (2012), se faz necessário ultrapassar as definições totalizantes e a concepção hegemônica que remonta a ideia de que o italiano Luís Francescon em 1910 e os suecos Daniel Berg e Gunnar Vingren em 1911 foram os únicos responsáveis por seu estabelecimento no Brasil. O primeiro, responsável pela fundação da Congregação Cristã no Brasil e os suecos por sua vez, associados pela formação das Assembleias de Deus na região do Pará. Pesquisas recentes apontam que o pentecostalismo brasileiro deve ser associado também a um processo de imigração que ocorre no mesmo contexto histórico que a chegada de Berg e Vingren (Assembleia de Deus) Francescon (Congregação Cristã no Brasil), embora ignorado por um século.
Um trabalho que merece atenção foi o de Samuel Valério (2013) que propõe uma terceira entrada do pentecostalismo no Brasil, ao mesmo passo que sugere a existência de um proto-pentecostalismo sueco, resultado de um processo de efervescência religiosa que ocorreu durante o século XIX no leste europeu através de buscas por novas experiências do sagrado, tais como avivamentos e glossolalia. Diferente do que é costumeiramente apontado como um processo exclusivamente missionário, VALÉRIO (2013), realiza uma análise histórica e econômica do Leste-Europeu, com destaque para a Suécia, responsável por um processo de migração de milhares de sujeitos para regiões distintas, principalmente para o Brasil. Neste cenário, em 1912 na região de Guarani no Rio Grande do Sul foi formada a Igreja Batista Sueca e por cem anos passou despercebida. A associação do surgimento do pentecostalismo brasileiro às denominações CCB e as ADs se mantêm hegemônica, por mais que o campo de pesquisa apresente novos dados, mostrando que há muito para ser explorado.
Os primeiros estudos sobre pentecostais remontam do final da década de 1960, ou seja, meia década após o seu estabelecimento em terras tupiniquins. Nestes primeiros cinquenta anos, este grupo esteve distante dos interesses da academia, ao passo que seu crescimento ocorria às margens dos estudos científicos. As análises produzidas sobre o protestantismo e pentecostalismo anteriores aos fins dos anos 60, apresentavam uma perspectiva confessional, uma vez, que os objetivos assentavam-se na produção analítica para a formação de membros das próprias igrejas (WANTANABE, 2011).
No interior da academia, o primeiro estudo sobre o pentecostalismo foi realizado por Beatriz Muniz de Souza, (SOUZA, 1969), sua preocupação assentou-se em compreender este campo religioso a partir do eixo da crescente industrialização que ocorria no Brasil e a "capacidade de integração que o pentecostalismo oferecia aos recém-chegados à vida na metrópole" (ABUMANSSUR, 2011, p.05).
A entrada do pentecostalismo no cenário analítico ocorreu tardiamente, somente depois de décadas de sua instalação no Brasil, esse atraso refletiu as dificuldades de compreensão deste campo religioso. Mesmo após anos na obscuridade, as observações sobre os pentecostais brasileiros foram reduzidas, assim que a conjuntura política do Regime Militar (1964-1985) colocou pesquisadores diversos na leitura dos grupos de resistência ao regime, principalmente depois da ascensão da Teologia da Libertação.
Concomitantemente aos estudos que privilegiaram a análise dos grupos protestantes mais antigos, depois dos anos 1960, observa-se o crescente interesse da academia pelos pentecostais. O primeiro e mais significativo estudo construído pelo sociólogo suíço Christian Lalive D´Épinay, que, a serviço do Conselho Mundial de Igrejas, analisou o crescimento do pentecostalismo chileno, foi publicado em português sob o título de O refúgio das massas: estudo sociológico do protestantismo chileno (1970). Em 1969, Beatriz Muniz de Souza, em A experiência da salvação, estuda os pentecostais da Assembleia de Deus em São Paulo, sob a orientação de Cândido Procópio Ferreira; e, em 1974, o padre Francisco Cartaxo Rolim defende a tese Pentecostalismo: gênese, estrutura e funções, orientado por Maria Isaura Pereira de Queiroz, na Universidade de São Paulo. Candido Procópio Ferreira de Camargo, responsável do CEBRAP para os estudos de religião, publicou, em 1973, em conjunto com Beatriz Muniz de Souza, Antonio Pierucci e outros estudiosos, Católicos, Protestantes e Espíritas, texto pioneiro das ciências sociais brasileiras no interesse pelos agentes religiosos, em especial, no gradiente umbandista- pentecostal. (WANTANABE, p.05, 2011).

O cenário político nacional envolvido pelo regime militar e a conjuntura política da Guerra Fria no contexto externo impediram que observassem o pentecostalismo com maior precisão analítica. Pentecostais passaram a ser vistos a partir de marcadores, tais como: a rigidez nos usos e costumes de santidade, comportamento ascético, apoliticismo e profunda negação do mundo. Esses elementos foram determinantes para colocar o pentecostalismo em segundo plano. Por outro lado, assiste-se o florescimento da Teologia da Libertação encabeçada principalmente por referências católicas e protestantes históricos. De Leonardo Boff a Richard Shaull (1919, 2002), a Teologia da Libertação apresentou-se como um elemento de resistência aos regimes militares instalados na América Latina, ao ponto de ocupar boa parte das análises; pesquisadores buscavam compreender as raízes desse movimento, suas preocupações sociais e uma possível inclinação ao marxismo. Na contramão, negligenciavam o pentecostalismo ou o associava a submissão ou conivência ao militarismo.
Na contramão desse cenário, o pentecostalismo foi alcançando novos adeptos e passando despercebido pelas ciências humanas. Entre seu surgimento no Brasil nas primeiras décadas do século XX e a intensificação analítica no final da década de 80, o cenário de mudança já estava posto e a persistência de definição sobre pentecostais e pentecostalismo do mesmo modo que analisado por SOUZA (1969) já não era suficiente. Entretanto, nestas sete décadas, as mutações que ocorreram em seu interior o colocou no centro do interesse da academia.
Somente com o processo de redemocratização política em meados dos anos 80, o pentecostalismo volta a ser tema de análise nas pesquisas acadêmicas. Francisco Cartaxo Rolim (1985) foi um dos primeiros estudiosos a recoloca-lo em evidência, mas suas influências marxistas reduziram este segmento a uma extensão da luta de classes prevista por Karl Marx.
"A ideologia pentecostal não é imune à força das relações de classe. [...] Sobre ela pesa a influência de uma ideologia, leiga e profana, a ideologia do dominante, o que coloca o problema da dominação de classe no plano ideológico" (ROLIM, 1985, p. 10).

Processos de mutação

Para vencer tem que ser forte. Sinopse da Leste, Itaim Paulista. O dia a dia é mil fita, quem é tá ligado esse aqui é o seu lugar, esse aqui é o lugar onde você vive. Mas quem disse que esse tem que ser o seu mundo, quem disse que essa tem que ser a sua vida? O mundo inteiro jaz do inimigo, mas muito maior é aquele que está em nós do que aquele que está no mundo. Jesus Cristo já venceu o mundo. A glória é certa! O mundo não. Isso aqui não nos pertence. Hoje estamos aqui e amanhã já foi, tipo o vento carregando a areia, tá ligado? E quando chegar a hora, vai queimar ou vai para a glória? Está tudo no seu nome, é com você mesmo irmão. É louco o bagulho, arrepia na hora, Jesus Cristo se deu por misericórdia. Eu digo glória, glória, seu que Deus está aqui e só quem é vai sentir. Glória a Deus, paz a todos. (Aos manos. Sinopse da Leste).

O pentecostalismo paulatinamente vem mostrando distintos sinais de mudanças, se um dia foi possível identificar o "crente" a partir de marcadores fixos, hoje, está cada dia mais difícil defini-lo nos diversos segmentos da sociedade, entretanto, ao circular nas periferias, nas mais distintas quebradas, é possível compreender que existe um amálgama que une os indivíduos e oferece um sentido de ser e viver. As roupas já não são capazes de separar quem é ou não "crente", tampouco a bíblia sobre os braços e a entrada do pentecostalismo nas periferias é uma marca determinante da cidade, de modo que a musicalidade, a estética, a gramática, são mecanismos capazes de transmitir um modo de ser e viver nas periferias de São Paulo e certamente, este modo, este aroma é pentecostal. Mas de qual pentecostalismo estamos falando?
Se nas primeiras décadas, o apoliticismo, o comportamento ascético, a rigidez nos usos e costumes de santidade, a ideia de conversão totalizante foram marcas definidoras, estas foram substituídas a partir do final da década de 1980 por um profundo processo de transformação, onde assistimos a mistura entre religião e política (formação da Bancada Evangélica), ruptura com o asceticismo, flexibilidade de usos e costumes (MARIANO, 1999), novas perspectivas de conversão sem a renúncia absoluta da vida pregressa do indivíduo, criação de igrejas inclusivas para diversas orientações sexuais (MARANHÃO FILHO, 2011 a e b) a aproximação de pentecostais com o crime (MARQUES, 2014), (CUNHA, 2009), crescimento numérico, interação com diversos setores da mídia, etc. Estes fatores somados contribuíram significativamente para o aumento numérico dos pentecostais e um acelerado processo de mudança. Logo, torna-se necessário, ampliar os procedimentos metodológicos a fim de buscar se aproximar o máximo possível da realidade cotidiana.
No tocante ao crescimento numérico, os censos dão provas diversas da presença do pentecostalismo entre os mais diversos setores da sociedade e estamentos sociais. Entre os censos de 1991 a 2010 os evangélicos saltaram de 9% do total da população para 22% e esse crescimento de quase 150% em apenas duas décadas forçou os estudiosos na busca da compreensão deste campo religioso.
Os impactos de tal crescimento podem ser sentidos em diversos segmentos, mas nos preocupamos em compreender este cenário de mudança principalmente no interior das periferias paulistanas, o que consequentemente nos coloca na frente de compreender além do aspecto religioso (pentecostalismo) compreender também a dinâmica da vida nas periferias.

Os sinais de mudança

As tentativas de manter categorias absolutas nas análises sobre o pentecostalismo evidenciam as lacunas verificadas em campo de pesquisa. O asceticismo, a ideia de um Deus intramundano e fiéis apolíticos, distantes das mídias, repressores da sexualidade, de longe se faz presente nas periferias paulistanas e esse sinal de mudança já foi observado por Caio Fábio na última década do século XX.
"O visual dos evangélicos avançou rapidamente nos últimos dez anos. Por isso, o estereótipo do crente, de Bíblia sob o braço, terno e gravata, não tem mais nada a ver com a realidade" (Caio Fábio, O Globo, 14/11/93).

A realidade constatada por Caio Fábio é muito mais complexa e dinâmica, quando observada em campo de pesquisa, portanto devemos nos preocupar com a porosidade do pentecostalismo das quebradas de São Paulo, onde a interpenetração entre as redes de engajamento existentes é uma realidade do cotidiano. Nos esforçamos em fugir das tentativas de homogeneização de igrejas, linguagens, comportamentos e outros elementos definidores dos pentecostais; isso não significa uma pura relativização, mas sim identificar a complexidade que acompanha este segmento religioso.
Compreendemos por redes de engajamento as diversas redes ativas nas periferias de São Paulo, responsáveis por engajar os sujeitos e oferecer-lhes sentido simbólico (BERGER, 85) de ser e viver no cotidiano das periferias (MARQUES, 2013). Neste caso, pentecostais, PCC, ciganos, associativismo civil, entre outras, são redes que legitimam e são legitimadas pelos diversos atores das periferias paulistanas.

O pentecostalismo brasileiro nunca foi homogêneo. Desde o início, conteve diferenças internas. A Congregação Cristã e Assembleia de Deus, as duas primeiras igrejas pentecostais fundadas no Brasil, a primeira em 1910 e a segunda em 1911, sempre apresentaram claras distinções eclesiásticas e doutrinárias que, com o passar do tempo, geraram formas e estratégias evangelísticas e de inserção social bem distintas. Na década de 1950, com a chegada dos missionários da Cruzada Nacional de Evangelização, vinculados à Igreja do Evangelho Quadrangular, teve início a fragmentação denominacional do pentecostalismo, diversificação institucional que repercutiu igualmente em suas ênfases doutrinárias e inovações proselitistas (...). Mas com surpreendentes transformações ocorridas nesta religião nas últimas décadas, que ampliaram sua diversidade teológica, eclesiológica, institucional, social, estética, política, o trabalho de classificação tornou-se mais difícil, mais intricado e mais sujeito a controvérsias. (MARIANO, 1999, p.23).

Estudos diversos corroboram para a compreensão sobre as transformações no interior do pentecostalismo, MARIANO (1999) identificou as fissuras no ascetismo e apoliticismo. ALENCAR (2012) propõe a análise das Assembleias de Deus a partir de uma perspectiva polissêmica e CORREA (2012) sugere que a hegemonia das Assembleias de Deus no Brasil é o resultado de uma organização ministerial voltada ao sistema de franquia, onde as grandes igrejas conseguem administrar e manter o controle das pequenas igrejas periféricas a partir de uma série de aparatos de padronização. CAMPOS (2005) busca aprofundar as análises norte-americanas do pentecostalismo brasileiro de modo a compreender o contexto histórico dos Estados Unidos que contribuiu para a ascensão de movimentos pentecostalizantes. FAJARDO (2011) analisa o pentecostalismo no bairro de Perus e a proliferação de igrejas a partir de um detalhado mapeamento do bairro, o que permite ampliar que para além de denominações clássicas como as Assembleias de Deus, Congregação Cristã no Brasil, Deus é Amor, O Brasil para Cristo, Quadrangular, Universal do Reino de Deus, Internacional da Graça, Mundial do Poder de Deus, existe uma infinidade de igrejas não identificadas nos últimos censos demográficos e classificadas de modos distintos. A alusão a CAMPOS (2005) se faz necessária para analisar os contextos dos pentecostalismos brasileiros e seus processos de mutação na atual conjuntura.
Segundo o Censo Demográfico de 2010 o universo religioso é dividido por diversos grupos, no tocante aos evangélicos, há um total de 22,16%, destes 13,30% são pentecostais. Este universo não está imune a pluralidade. O censo procurou dividir os pentecostais entre as mais distintas igrejas, ou entre as "maiores" denominações, entretanto, um crescente e significativo número de indivíduos e igrejas não identificadas vem ganhando espaços e disputando os fies com as denominações clássicas. As chamadas Evangélicas de origem pentecostal (outras) e as Evangélicas não declaradas são responsáveis por aglutinar um montante de 7,59% do total dos pentecostais, quase a soma do total de indivíduos nas Assembleias de Deus (6,46%) e da Congregação Cristã no Brasil (1,20%), as duas maiores denominações. Estes dados revelam que existe um montante de igrejas e indivíduos que estão à margem das análises. São estes os sujeitos responsáveis por redefinir o campo religioso pentecostal, residentes em igrejas sem placa, sem nome, sem institucionalização e quase invisíveis; indivíduos que colocam à prova as categorias de análise sustentadas por décadas na Sociologia da Religião e na Ciência da Religião. Este grupo ainda não foi analisado com profundidade e nomes distintos já foram sugeridos, garagens divinas (MARQUES, 2013), garagens da fé, igrejas menores entre outros. O que é fato, é que o pentecostalismo das periferias de São Paulo passa por um profundo processo de pulverização, reconfigurando o campo religioso brasileiro

O Pentecostalismo nas periferias: O ethos pentecostal nas quebradas poéticas
Zona Sul, Zona Leste, Zona Norte, Zona Oeste. Qualquer quebrada é quebrada em qualquer lugar, o lance aqui é respeitar para ganhar respeito, esse é o lema em qualquer lugar que vá. (É o respeito que prevalece. Código Fatal).

Em pesquisa de campo realizada entre os anos de 2007 e 2013, (MARQUES, 2013) acompanhamos a trajetória de Kadu, sujeito que tem uma dupla irmandade, pois é "irmão" do PCC e também "irmão" de uma igreja pentecostal onde exerce atividades ministeriais. Kadu possibilitou a abertura para um novo tipo de pentecostalismo, onde pentecostais e PCC interpenetram-se sem necessariamente ocorrer conflitos. A dupla irmandade deste sujeito revelou a porosidade do pentecostalismo e suas interfaces com a violência e com diversas redes.
Kadu não deve ser apresentado como um exemplo, mas sim como sintoma, resultado de um hibridismo crescente nas diversas esferas sociais, entre elas a religião.
A partir da constatação de dupla irmandade e múltiplos pertencimentos entre pentecostais, torna-se necessário compreender a paisagem social das periferias de São Paulo, ambientes onde pentecostalismo, PCC e outros atores interpenetram-se. O cotidiano das quebradas é resultado de uma série de relações entre as mais diversas redes de engajamento disponíveis. Logo, devemos nos preocupar justamente com o dia a dia das diversas periferias de São Paulo, onde há um significativo aroma de religiosidade pentecostal e presença marcante do Primeiro Comando da Capital (PCC). Essas duas redes, somadas às outras existentes, são responsáveis pela formação de um modo próprio de ser entre diversos irmãos que também são irmãos, o que resulta na construção de um ethos produzido por essas redes.
Devemos considerar que a realidade apresentada é própria de um perímetro identificado em campo de pesquisa. Não buscamos generalizar a ideia de ethos de periferia ou cultura de pobreza, pois existe a dimensão da especificidade local e suas condições políticas e econômicas que ocorreram na cidade nas últimas décadas; por outro lado, identificamos vantagens na ideia de um modo próprio de viver nas periferias, pois os códigos morais existentes (moral religiosa, moral do crime, moral familiar, etc.) coexistem ao ponto de permitir os múltiplos pertencimentos.
Se PCC e pentecostais são produtores de sentido (BERGER, 1985), é necessário partimos da perspectiva de que o sentido produzido é legitimado e legitimante e essa dualidade de legitimação permite a existência dessas redes aparentemente antagônicas.
Tal sentido é resultante deste modo próprio de ser e viver nas quebradas. Por ethos, compreendemos:
Conjunto dos costumes e hábitos fundamentais, no âmbito do comportamento (instituições, afazeres etc.) e da cultura (valores, ideias ou crenças), característicos de uma determinada coletividade, época ou região. (Dicionário Houaiss da língua portuguesa)

A coletividade em questão são as periferias de São Paulo, responsáveis por forjar comportamentos, hábitos, valores, crenças e ideias próprias, com uma originalidade e ressonância em diversos pontos da cidade. É a partir desta constatação que devemos diagnosticar que nas diferentes quebradas a cultura é a mesma, pois identificamos a existência elementos que ligam e moldam os diversos atores nas relações travadas no cotidiano.
O sentido que se constituí com a interação das diversas redes são responsáveis por formar um aroma próprio, este compreendido enquanto a criação de uma ordem de existência simbólica que dá a periferia a capacidade de dar às coisas um conjunto de significações e valores que estruturam um sistema (cultural) de sentidos para o bem e o mal, justiça, verdade, beleza etc. É essa produção cultural, transcendente de uma mera justificação socioeconômica, que dá a unidade existencial a comunidade periférica como produtora de seus sentidos éticos, morais, estéticos etc.
Assim, devemos considerar outro ponto de extrema relevância nas periferias paulistanas, a importância das diversas produções culturais. Deste montante, identificamos a música como porta-voz e o rap como trilha sonora, como narrativas do cotidiano, responsáveis por revelar os conflitos, as tensões, os sujeitos, os amores e desamores, as angústias, as tristezas, emoções descritas em rimas, poesia cantada por poetas do gueto.


As quebradas poéticas

É necessário sempre acreditar que o sonho é possível/ que o céu é o limite e você, truta, é imbatível. Que o tempo ruim vai passar, é só uma fase/ e o sofrimento alimenta mais a sua coragem. Que a sua família precisa de você,/ lado a lado se ganhar pra te apoiar se perder. Falo do amor entre homem, filho e mulher/ ,a única verdade universal que mantém a fé. (A vida é desafio. Nada como um dia após o outro, Racionais Mc's, 2002).

Na esteira da perspectiva de mudança, verificamos a necessidade de compreender as periferias a partir de sua totalidade, de seus sujeitos, de suas emoções e produções. Por razões metodológicas, escolhemos o rap como pano de fundo capaz de revelar as transformações que ocorrem nos extremos da cidade e a presença do pentecostalismo como marca fundamental de significar o dia a dia das quebrada, ambos são capazes de revelas as múltiplas identidades dos sujeitos das periferias.
A identificação da quebrada é extremante importante, pois é no lugar, que a vida se estrutura, assim, o rap, tem a capacidade de compreender a realidade que ocorre em diversos lugares, revelando as singularidades, as continuidades, as permanências e as rupturas. Ao mesmo passo que anuncia as transformações que ocorrem na cidade o rap se posiciona politicamente em denúncias dos problemas diversos que cercam o cotidiano.

A casa, a escola, o trabalho e as vias de acesso que ligam tais referencias simbólicos e sócio espaciais são relevantes para a população local, indicando a importância do lugar na estruturação na vida cotidiana dessa população. (AMORIN, 2004, p,17).

O rap é um dos elementos que constitui o hip-hop, este formado por quatro fundamentos básicos, rap (ritmo e poesia), break (dança), grafite e o Dj. Este movimento tem suas origens nos bairros pobres dos Estados Unidos em meados dos anos 70 do século passado com influências nas batidas de James Brown. No Brasil, sua entrada ocorre a partir da década de 1980 em bairros de São Paulo e teve como grandes exponentes Nelson Triunfo no aspecto da dança e Thaíde e Dj Hum, Racionais Mc's e outros no segmento rap, ambos, encontravam-se nas chamadas batalhas do centro, principalmente no metrô São Bento e nas galerias da 24 de março, onde diversos adeptos do movimento hip-hop se encontravam para dançar e cantar.
A composição poética do rap, revela um cenário das periferias de São Paulo, evidenciando a violência policial, desigualdades sociais e raciais conflitos interpessoais, e outras mazelas; um segmento musical capaz de oferecer condições de compreender o cotidiano através das rimas capazes de apresentar as intersecções entre diversos elementos. As letras anunciam os processos de transformação identificados na cidade nas últimas décadas, destacaremos o aspecto religioso em algumas produções.
Diversos estudiosos buscaram realizar análises sobre o movimento hip-hop ou os seus elementos isoladamente, sobretudo o rap. ZENI (2004) buscou apresentar um panorama do universo do rap a partir dos Racionais Mc's, entretanto, embora enunciado no texto, o universo religioso fica em segundo plano. TAKAHASHI (2013 e 2014) vem abrindo espaços para analisar os Racionais MC's a partir de uma perspectiva de ressignificações políticas, religiosas. O mesmo autor, considera que não há possibilidade de compreender elementos isolados nas produções dos Racionais MC's, mas ao contrário disso, religião, economia, política, relações de gênero, relações de poder local, entre outros elementos se transformam do mesmo modo que as relações travadas no cotidiano das periferias.

Assim, como caracterizado pelo título (Capítulo 4, Versículo 3), as questões do "crime", da "raça" e do "crente" (grifo nosso) constituem-se numa perspectiva teológica dos Racionais MC's. Porque o objetivo da música seria uma compreensão político-moral em torno das questões sobre as opressões e injustiças sociais engendradas pelo "sistema". Produzindo dessa forma uma moralidade específica (ou "marginal" como será analisada no texto) de forma a sobreviver no inferno, devido aos conflitos cotidianos; e não se permitir se "corromper" pelo "sistema" (TAKAHASHI, 2013, p,06).

Em um primeiro momento, o rap anuncia uma matriz religiosa afro-católica, onde músicas distintas evidenciaram o universo religioso brasileiro a partir de uma hegemonia do catolicismo, fortalecendo os dados dos censos demográficos já discutidos anteriormente.
Corpo Fechado (1988) de Thaíde & Dj Hum, foi uma das primeiras músicas a revelar este cenário religioso, os músicos acenam para importância de ter o corpo fechado nas quebradas, revelando um cotidiano de conflito, tensões, "guerras", onde fechar o corpo é o mecanismo de proteção mediante a tensão do cotidiano.
E não tenho r.g. Não tenho c.i.c. Perdi a profissional, nasci numa favela de parto natural/, numa sexta-feira Santa que chovia pra valer. Os demônios me protegem e os deuses também, / Ogum, iemanjá e outros santos ao além (grifo nosso). Eu já te disse o meu nome. Meu nome é Thaíde/meu corpo é fechado e não aceita revide. (Corpo fechado, THAÍDE & DJ HUM,1988/1989).

Essa mesma referência religiosa é explorada pelos Racionais Mc's, na música Formula Mágica da Paz (1998). Mano Brown e seus parceiros musicais apresentam um ambiente de conflitos e tensões onde somente uma formula mágica pode ser capaz de dar conforto ao cotidiano de guerra. Novamente Deus e os orixás são requisitados para interceder nas disputas de poder e conflitos travados nas periferias
Agradeço a DEUS e aos ORIXÁS (grifo nosso), /parei no meio do caminho e olhei pra trás. / Meus outros manos todos foram longe de mais: - Cemitério São Luis, aqui jaz./ Mas que merda, meu oitão tá até a boca, que vida louca!/ Por que é que tem que ser assim? Ontem eu sonhei que um fulano aproximou de mim,/ "Agora eu quero ver ladrão, pá! pá! pá! pá!", Fim. (Formula Mágica da Paz. Sobrevivendo no inferno, 1998).

Em outra música do início da década de 1990 é possível verificar mais sinais de uma matriz religiosa afro-católica:

Um homem na estrada recomeça sua vida. / Sua finalidade: a sua liberdade. / Que foi perdida, subtraída;/ e quer provar a si mesmo que realmente mudou, / que se recuperou e quer viver em paz, não olhar para trás, dizer ao crime: nunca mais! / Pois sua infância não foi um mar de rosas, não. / Na Febem, lembranças dolorosas, então. / Sim, ganhar dinheiro, ficar rico, enfim. / Muitos morreram sim, / sonhando alto assim, / me digam quem é feliz, quem não se desespera, vendo nascer seu filho no berço da miséria. / Um lugar onde só tinham como atração, o bar e o candomblé pra se tomar a benção (grifo nosso). / Esse é o palco da história que por mim será contada. ...um homem na estrada. (Homem na estrada. Raio X do Brasil, 1993).

Essa presença religiosa paulatinamente vai sendo superada. Na descrição dos Racionais MC's, o bar permanece, o candomblé quase que desaparece e o pentecostalismo se fortalece. É possível perceber que as referências religiosas identificadas no rap apresentam um pentecostalismo já enrijecido nas periferias paulistanas e quanto maior a presença deste seguimento religioso, maior também é a sua entrada em diversos segmentos, inclusive na música.
A partir dos anos noventa do século passado, o pentecostalismo cresceu significativamente entre diversos setores da sociedade, mas o maior impacto deste crescimento pode ser sentido periferias das cidades.
Deste modo, o rap, enquanto elemento de uma identidade das periferias revela o processo de transformação que ocorre numa identidade outrora fortalecida. No cenário religioso, tais transformações podem ser sentidas a medida que se percebe uma presença marcante do pentecostalismo.
No álbum Sobrevivendo no inferno (1998) verificamos essa mudança de eixo, com a música Em qual mentira vou acreditar. A evidente referência ao pentecostalismo deixa claro que este campo religioso já faz parte da composição social das quebradas, do mesmo modo que anuncia um pentecostalismo diferente do que é conhecido (Bem diferente do estilo dos crentes), principalmente pela aproximação com o mundo do crime, ou seja, a capacidade dos Racionais Mc's e do rap, encontra-se justamente em colocar em cena as interpenetrações entre pentecostais e as redes de engajamento das periferias de São Saulo.
Ih caralho, olha só quem tá ali? O que que esse mano tá fazendo aqui? E aí esse maluco veio agora comigo, ligou que era até seu amigo. Morava lá na sul, irmão da Cristiane, dei um cavalo pra ele no Lausane. Ia levar um recado pra uns parente local, da Igreja Evangélica Pentecostal (grifo nosso),. Desceu do carro acenando a mão, (na paz do senhor!) Ninguém dava atenção. Bem diferente do estilo dos crentes (grifo nosso), Um bombojaco e touca mas a noite tá quente. Que barato estranho, só aqui tá escuro, justo nesse poste não tem luz de mercúrio. Passaram vinte fiéis até agora, dá cinco reais, cumprimenta e sai fora. Um irmão muito sério em frente à garagem, outro com a mão na cintura em cima da laje. De vez em quando a porta abre e um diz: "Tem do preto e do branco!" Encosta o nariz. Isso sim isso é que é união, o irmão saiu feliz sem discriminação. De lá pra cá veio gritando rezando, "Aleluia, as coisas tão melhorando!" (Qual mentira vou acreditar. Sobrevivendo no inferno, Racionais Mc's, 1998, grifos nossos).

Na virada da década de 1990 para 2000, o crescimento evangélico ficou evidenciado nos censos demográficos. Nas periferias, essa presença marcante foi captada em diversas músicas. O cotidiano de conflitos e guerras se intensificou assim como as disputas de poder local; mas em meados dos anos 2000, identificamos a presença marcante não só de pentecostais, mas também a entrada do PCC como elemento de regulação de conflitos. As quebradas passam a ser ambientes onde os conflitos, as brigas, as tensões, os desamores e as tramas de poder são monopolizados pelo domínio do Primeiro Comando da Capital. O ambiente de guerra contra o "sistema" e a configuração das novas transformações no cotidiano também foram captadas pelo rap, mas a presença marcante do pentecostalismo encontra âncora na concepção simbólica do PCC.
Fé em Deus que ele é justo ei irmão/ nunca se esqueça/, na guarda, guerreiro levanta a cabeça/ truta/, onde estiver seja lá como for tenha fé porque até no lixão nasce flor. Ore por nós pastor lembra da gente no culto dessa noite, firmão segue quente. Admiro os crente, da licença aqui (grifo nosso), / mó função, mó tabela, pow, desculpa ai. (Vida Loka (Parte I). Nada como um dia após o outro, Racionais Mc's, 2002).

A entrada do PCC nas diversas periferias de São Paulo forçou as redes de engajamento existentes a adaptação e convivência, algumas foram superadas com a intensificação de seu domínio, outras, formaram mecanismos para conviver com a nova ordem de domínio. Entretanto, os pentecostais construíram elementos simbólicos que permitiram a "disputa das almas" com o PCC sem necessariamente ocorrer conflitos diretos. A intensa referência a um mundo de guerra contra o inimigo e referências ao mundo do Velho Testamento, contribuiu para a conversão de membros do PCC, pois estes também lutam contra um inimigo e muitos casos, o inimigo é em comum: o diabo. Deste modo, pentecostais, formam uma cosmogonia compatível com a perspectiva de mundo pensada pelo PCC: a luta contra o mal.
A forte referência ao universo do Velho Testamento, onde guerras, conflitos, tensões, são associadas a presença de um deus supramundano, poderoso e extremo. A guerra velho-testamentária é análoga a guerra do dia-a-dia das periferias, dos irmãos da igreja e dos irmãos do PCC. Assim o pentecostalismo constrói uma ordem simbólica no cotidiano que contribuí para a aproximação e conversão de "irmãos" do PCC, e é neste cenário que o "irmão" torna-se "irmão". (MARQUES, 2013).
Pentecostais e PCC passam a compor o cenário das periferias e convivem no cotidiano sem que existam curtos-circuitos, ao contrário, podemos constatar a existência da dupla ou múltiplas irmandades. O rap por sua vez, mantém a sua originalidade de se constituir enquanto elemento capaz de anunciar tais transformações e convida-nos a conhecer este universo dinâmico, onde as mudanças são ligeiras, mas possíveis de serem compreendidas.

Considerações finais

Deus fez o mar, as árvore, as criança, o amor. O homem me deu a favela, o crack, a trairagem, as arma, as bebida, as puta. Eu? Eu tenho uma bíblia veia, uma pistola automática e um sentimento de revolta. Eu tô tentando sobreviver no inferno. (Gênesis, 1997).


O pentecostalismo enquanto fenômeno religioso passou desapercebido por décadas, sua entrada na academia ocorreu somente no final da década de 1960, quando já estava há cinco décadas instado no Brasil. As primeiras análises, buscaram defini-lo a partir de uma rejeição ao mundo, apoliticismo, ascetismo, fortes proibições nos usos e costumes de santidade. Mesmo aparecendo nos interesses da academia tardiamente, suas análises foram pontuais e limitadas em categorias analíticas fixas. Por décadas, acreditou-se que sua configuração em solo brasileiro é exclusividade da fundação da CCB e das ADs, vimos que pesquisas recentes contribuíram para questionar a hegemonia destas duas denominações. A igreja Batista Sueca, fundada em 1912 em Guarani no Rio Grande do Sul vem sendo explorada por (VALÉRIO, 2013) e coloca novas evidencias para o pentecostalismo brasileiro, reforçando a sua pluralidade.
Deste modo devemos pensar em pentecostalismos permite maior aproximação com as mudanças no campo religioso brasileiro e no cotidiano das periferias. Tal perspectiva vem sendo observada por pesquisadores diversos. MARANHÃO FILHO (2011) coloca em xeque a ideia de conservadorismo na sexualidade pentecostal, uma vez que é possível Jesus te amar até no dark roon. ALENCAR (2012) elucida a polissemia a partir das Assembleias de Deus, fazendo uso proposital do plural, ratificando as multiplicidades do mundo assembleiano. CORREA (2012) compreende o universo das Assembleias de Deus a partir de uma lógica de mercado, onde a sobrevida de igrejas pequenas ocorre por técnicas de franquia de mercado. MARQUES (2013) observou a coabitação de pentecostais com membros do PCC nas periferias de São Paulo, o que revelou entre outras coisas, as conexões entre diversas redes e atores.
A pluralidade dos pentecostalismos é incontestável, entretanto, nas periferias, a religiosidade praticada permanece às escuras, pois as igrejas menores, sem placas, sem nomes, sem registro civil, sem institucionalização, sem livros de comportamento, são quantitativamente maiores e absorvem um número cada vez mais crescente de indivíduos. São nestas igrejas que os pentecostalismos se transformam, ganham novas roupagens e configuram as mutações no campo religioso brasileiro. São nestas igrejas também que os Kadus aparecem, onde os irmãos, que também são irmãos dão mostras de um pentecostalismo de duplos ou múltiplos pertencimentos, de um pentecostalismo capaz de se adaptar no ambiente e compor o cenário social, de um pentecostalismo que é parte do cenário social das periferias. Entretanto, estes espaços carecem de profundidade analítica e instrumentais metodológicos capazes de levar em conta as interpenetrações, os hibridismos, as mesclas entre redes e atores diversos.
Pensar nas periferias de São Paulo, também é pensar nas redes de engajamento e em sua capacidade de construir sentidos simbólicos, neste ponto, PCC, pentecostais, ciganos, associativismo civil e redes de engajamento distintas, são capazes formar um amálgama e produzir um aroma, um modo de ser e viver nas periferias, por isso insistimos na ideia de que quebrada é quebrada em qualquer lugar, longe de afirmar em uma cultura de pobreza, mas sim em uma ressonância de periferia.
É nas quebradas que o rap é capaz de produzir esta ressonância, de revelar personagens, tensões, religiosidade, mudanças e permanências. Nas quebradas poéticas de São Paulo, o rap é a voz, (não exclusiva), a trilha sonora e anuncio da mudança no eixo religioso, econômico, político, de poder local e de coabitação de elementos outrora ignorados (pentecostais e PCC como exemplo).
O pentecostalismo nunca foi pensado como realmente em sua totalidade, assim como as periferias também não, mas a mudança de um e de outro são captadas, cantadas e gravadas pelo rap, o aroma poético das quebradas.



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