Os Poderes do Juiz - Discricionariedade em Processo Civil?
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OS PODERES DO JUIZ Discricionariedade em Processo Civil?
“Optima lex quae minimum relinquint arbitrio judicis;
optimus judex qui minimum sibi.”1
I - Introdução Com o novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 42/2013, de 26 de Junho, doravante CPC, foram ampliados os poderes do juiz, quer os instrutórios, quer os vinculativos. Foi clara a intenção do legislador2 de ampliar os poderes do juiz: “atribuindo-se ao juiz um papel dirigente e activo (...) mantém-se e reforça-se o poder de direcção do processo pelo juiz e o princípio do inquisitório (...). Mantém-se e amplia-se o princípio da adequação formal, 1 “Óptima é a lei que nada deixa ao arbítrio do juiz; óptimo é o juiz que nada deixa para si” – in
SILVA, Helena Resende da, Provérbios Jurídicos em Latim, Colecção Citações Jurídicas, 2004 2 Como consta da exposição de motivos da reforma do CPC
Discricionariedade em Processo Civil? 2 OS PODERES DO JUIZ
por forma a permitir a prática dos atos que melhor se ajustem aos fins do processo (...). Importa-se para o processo comum o princípio da gestão processual, consagrado e testado no âmbito do regime processual experimental, conferindo ao juiz um poder autónomo de direcção activa do processo, podendo determinar a adoção de mecanismos
de
simplificação
e
de
agilização
processual
que,
respeitando os princípios fundamentais da igualdade das partes e do contraditório, garantam a composição do litígio em prazo razoável. No entanto, não descurando uma visão participada do processo, impõe-se que tais decisões sejam antecedidas da audição das partes. Ainda em consonância com o princípio da prevalência do mérito sobre meras questões de forma, em conjugação com o assinalado reforço dos poderes de direcção, agilização, adequação e gestão processual do juiz, toda a atividade processual deve ser orientada para propiciar a obtenção de decisões que privilegiem o mérito ou a substância sobre a forma (...)” Esta reestruturação do CPC, determinou que muitos dos poderes discricionários do juiz renascessem como poderes-deveres, como teremos oportunidade de analisar. Mas quererá isto dizer que não haverá lugar a decisões discricionárias? Será que ainda podemos falar em discricionariedade no novo código de processo civil? Devido à sua iminente arbitrariedade tentaremos descortinar se subsistem poderes discricionários do juiz no novo código de processo civil e se sim, se são ilimitados e, caso contrário, quais serão os seus limites. Para tanto analisaremos alguns preceitos e tentaremos chegar a conclusões. Deste modo, e porque se afigura uma tarefa complexa começaremos por tentar definir discricionariedade.
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Discricionariedade em Processo Civil? 3 OS PODERES DO JUIZ
II- Sobre o Conceito de Discricionariedade O termo discricionariedade é talvez um dos mais amplos no direito. A primeira definição que encontrámos data de 1839 e encontrase no dicionário jurídico Bouvier3 e define discricionariedade
como
sendo a lei dos tiranos; sempre desconhecida; diferente em homens diferentes; ocasional e dependente de constituição, temperamento e paixão. Na melhor das hipóteses, muitas vezes arbitrariedade; na pior vício, loucura e paixão a que é passível a natureza humana.4 Embora
seja
consideravelmente
importante
definir
discricionariedade, tal definição é, contudo, difícil. Talvez seja mais fácil definir aquilo que ela não é: • •
Discricionariedade não é arbitrariedade; Discricionariedade não permite uma qualquer
decisão,
nem é uma decisão em branco; •
Discricionariedade não está sujeita à vontade ou ao humor do julgador;
•
Discricionariedade não deve ser indeterminada, nem por determinar;
•
Discricionariedade
não
deve
ser
incerta,
nem
inconstante; A nosso ver existem dois tipos de discricionariedade: a judicial, relativa à analogia, à equidade e à interpretação e a processual, transversal a todos os direitos processuais e que engloba a gestão processual, a adequação formal e a livre apreciação da prova, por
BOUVIER, John, “Bouvier´s Law dictionary”, 1839, disponível em https://archive.org/stream/bouvierslawdicti01bouv/bouvierslawdicti01bouv_djvu.txt, acesso em 10 de Dezembro de 2014. 4 Tradução livre 3
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Discricionariedade em Processo Civil? 4 OS PODERES DO JUIZ
exemplo. Para já, iremos debruçar-nos apenas nesta última: na discricionariedade processual, no âmbito do código de processo civil.
III- A Imparcialidade da Discricionariedade O
termo
imparcialidade
remete-nos
de
imediato
para
a
sentença, para a decisão final do juiz, naquela que será a decisão mais importante de todo o processo. Onde o juiz julga de forma justa e em consciência. No entanto, a imparcialidade deve estar presente em todas as decisões e despachos interlocutórios do juiz: na decisão de dispensa de audiência prévia, no indeferimento de um requerimento, num convite ao aperfeiçoamento ou mesmo na programação da audiência final. Como refere ANDREA PROTO PISANI 5, “de realmente eterno no processo eu diria que existe apenas a exigência de imparcialidade do juiz (...)” A
discricionariedade
imparcialidade,
na
está
seguinte
(deve
relação:
estar) a
conexionada
com
discricionariedade
está
presente, inevitavelmente, no direito, enquanto a imparcialidade deve estar, obrigatoriamente, presente. Em nosso entender, enquanto a discricionariedade deve ser mínima
(no
sentido
das
normas
serem
menos
genéricas)
a
imparcialidade deve ser total. Assim como os poderes discricionários do juiz devem respeitar o princípio da imparcialidade, caso contrário estaremos a falar de arbitrariedade.
5 PISANI, Andrea Proto Pisani, Público e Privado no Processo Civil na Itália, Revista da EMERJ, v.4,
n.16, 2001, palestra proferida na EMERJ em 20/08/2001, em Aula Magna, Tradução de Myriam Filippis
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Teremos, assim, que distinguir independência de imparcialidade e analisar a imparcialidade segundo duas vertentes distintas: a imparcialidade subjectiva e a imparcialidade objetiva. Socorremo-nos do ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, de 31-01-2012, 6 : “Julgar com independência é fazê-lo sem sujeição a pressões, venham elas de onde vierem, deixando fluir o curso do pensamento com sujeição apenas à lei, à consciência e às decisões dos tribunais superiores; ser imparcial é posicionar-se numa posição acima e além das partes7 8, dizendo o direito aplicável na justa composição de interesses cuja resolução lhe é pedida.” Relativamente à imparcialidade subjectiva, refere o ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, de 16-12-20109, que: “VI- A imparcialidade respeita à liberdade de decidir, mas agora numa dimensão estritamente subjectiva, de tal modo que o que se pretende, é que o magistrado aplique a lei e o direito sem ceder a preconceitos, gostos pessoais ou ligações afectivas, para já não falar de caprichos ou variações de humor, tanto quanto puder ser razoavelmente exigível.”
6 Relator Conselheiro ARMINDO MONTEIRO, Acórdão disponível em www.dgsi.pt. 7 No mesmo sentido o Conselheiro ORLANDO AFONSO, Poder Judicial – Independência In Dependência, Almedina, Coimbra, 2004, pág. 66 e ss. : “Ser imparcial significa não estar comprometido com as partes. A imparcialidade significa que o juiz, apenas sujeito à lei, premissa substancial da dedução judicial e a sua fonte de legitimação política, deve ser estranho quer aos sujeitos de qualquer causa quer ao sistema político. Quer aos interesses particulares de uns quer aos gerais do outro. A imparcialidade pressupõe a configuração do processo na qual o juiz se encontra super partes, não a elas sujeito.” 8 Relativamente aos poderes instrutórios, refere ZUCKERMAN que o juiz se envolve activamente no processo é sujeito a ser visto como estando a favorecer um parte em deterimento da outra. Acrescenta que não é uma questão de aparência, mas sim de realidade, porque quem “conduz” uma investigação forma uma convicção (hipóteses). Depois dessa convicção formada, o investigador tenderá a focar a atenção na hipótese que entretanto criou, dando menos atenção a outras possibilidades. – Segundo Zuckerman este é um dos motivos porque a Common Law não deixa o juiz “investigar”. 9 Relator Conselheiro SOUTO DE MOURA. Acordão disponível em www.dgsi.pt
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Acrescenta outro Acórdão igualmente do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, de 21-03-201310, “II- A imparcialidade subjectiva – que constitui o primeiro dever do juiz como garantia de um direito fundamental dos cidadãos– há-de, por isso, presumir-se até prova em contrário, exigindo-se para a recusa que sejam alegados e se demonstrem factos ou circunstâncias que permitam expressar e revelar exteriormente, em sinais objectivos, matéria do foro íntimo do juiz.” Quanto à imparcialidade objectiva e a sua conexão com a subjectiva o referido Acórdão destaca que, “dominam aqui as aparências, que podem afectar, não rigorosamente a boa justiça, mas a compreensão externa sobre a garantia de boa justiça que seja mas também pareça ser. Os motivos que podem afectar a garantia da imparcialidade objectiva, que, mais do que do juiz e do “ser”, relevam do “parecer”, têm de se apresentar, nos termos da lei, “sério” e “grave”. (...) O destinatário da decisão relativamente ao risco de existência de algum prejuízo ou preconceito que possa ser tomado contra si, mas, antes, que o motivo invocado tem de ser de tal modo relevante que, objectivamente, pelo lado não apenas do destinatário da decisão, mas também de um homem médio, possa ser entendido como susceptível de afectar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder ser visto externamente e ser adequado a afectar (gerar desconfiança) sobre a imparcialidade.” A imparcialidade subjectiva é então uma presunção juris tantum, ela é presumida até prova em contrário. Esta tem a ver com o foro íntimo do juiz. Este terá sempre as suas convicções, gostos pessoais e emoções.
10 Relator Conselheiro Henriques Gaspar, disponível em www.dgsi.pt
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Discricionariedade em Processo Civil? 7 OS PODERES DO JUIZ
Por sua vez, terá que ser verificada perante o caso concreto, pois ainda que o juiz seja de facto imparcial, ele também terá que parecer imparcial, para que possa haver confiança nas decisões e nas instituições. Nas decisões que tomam, os juízes têm como principal objectivo que essa decisão seja correcta e justa. No entanto, e no seguimento do que refere ZUCKERMAN
11
, não podemos
fugir das nossas
experiências e preconceitos12. Para evitar efeitos dos preconceitos e da subjectividade ele sugere duas estratégias: validação e contenda. Validação mais não é do que um método usado na ciência, através da confirmação de uma teoria pelo método científico. Parecenos que Zuckerman se refere à prova (aos diferentes tipo de prova), esta terá de ser de molde a sustentar uma hipótese em particular eliminando, por conseguinte, as outras hipóteses possíveis. Em relação à contenda é notório que Zuckerman entende que os factos e as provas são da responsabilidade das partes13 e não do juiz que, deste modo, fica protegido da responsabilidade de uma decisão errada.
IV - Os Poderes do Juiz: Poderes Vinculativos ou Poderes Discricionários? Ao longo dos tempos sempre foi um tema muito debatido e ponderado este dos poderes do juiz. Como bem refere CARLOS 11 ZUCKERMAN,
Adrian, No Justice without Lawyers – The Myth of an Inquisitorial Solution, University of Oxford, 2014 12 E acrescentamos nós, as nossas experiências pré-‐conceitos e emoções fazem parte de nós enquanto seres humanos, e é isso que nos torna diferentes. 13 Também OLIVA SANTOS, partilha, em certa medida, desta opinião, refere que apenas se o processo civil tenha por objeto um interesse geral público, é prudente e razoável que sejam os sujeitos jurídicos interessados os protagonistas do esforço de alegações e de prova pois são os seus bens jurídicos que estão em causa. – Prudencia Versus Ideologia: De Nuevo Sobre El Papel Del Juez En El Proceso Civil, Revista lus et Praxis, Ano 18, nº2, 2012, pág. 289.
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Discricionariedade em Processo Civil? 8 OS PODERES DO JUIZ
ALBERTO ÁLVARO DE OLIVEIRA 14 , “o tema dos poderes do juiz constitui um dos mais fascinantes da dogmática processual civil, porque se vincula estreitamente à natureza e à função do processo, à maior ou menor eficiência desse instrumento na realização de seus objetivos e, ainda, ao papel que é atribuído ao magistrado, na condução e solução do processo.” E continua, “impõe-se, na verdade estabelecer uma solução de compromisso, que permita ao processo atingir suas finalidades essenciais, em razoável espaço de tempo e, principalmente, com justiça.” O maior ou menor poder dos juízes costuma aparecer ligado a dois
modelos
dispositivo
15
,
de
processo:
o
respectivamente.
modelo
inquisitivo
Contudo,
como
e
o
refere
modelo FREDIE
DIDDIER JR.16 “não há sistema totalmente dispositivo ou inquisitivo”. Para o referido autor existe um terceiro modelo, o modelo cooperativo, que tem por finalidade um processo em que partes e juiz cooperem para obterem um resultado final: a sentença. No entanto não é este o nosso entendimento, ainda que concebamos que deve haver cooperação entre as partes não nos podemos esquecer que estas estão numa disputa e que portanto são adversários com interesses, em princípio, opostos. É assim nosso entendimento que, ainda que com variações de amplitude nos poderes do juiz, o nosso modelo é inquisitivo-dispositivo. Ainda que assistamos nos últimos anos, nomeadamente com a Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, a um incremento dos poderes do juiz e ainda que seja a este que compete a decisão judicial, quanto a nós terão as partes o maior poder de todos: o poder de iniciar a contenda/disputa, mas também o poder de a terminar. O impulso processual é de iniciativa particular, por isso,
14 In Poderes do Juiz e Visão Cooperativa do Processo, Mundo Jurídico, pág. 2 15 O modelo inquisitivo costuma ser associado aos regimes autoritários e o modelo dispositivo ao
regimes mais liberalistas em que os poderes judiciais aparecem necessariamente mais restringidos. Todavia, e na senda do mesmo autor, não podemos concluir que um processo dispositivo é democrático e um processo inquisitivo é autoritário. 16 JR. Fredie Didier, Os Três Modelos de Direito Processual: Inquisitivo, Dispositivo e Cooperativo, disponível em www.fredierdier.com.br
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Discricionariedade em Processo Civil? 9 OS PODERES DO JUIZ
está no poder das partes a instauração da demanda, a suspensão e a desistência da instância e a transacção, assim como o objeto da lide. Claro que, caso as partes não desistam da instância (quer o autor, quer o réu reconvinte), ou não transijam sobre o objeto da causa pondo termo ao processo, caberá ao juiz o poder culminante da decisão. Assim como as Civil Procedure Rules, das quais falaremos mais à frente, quanto a nós terão um pendor mais inquisitivo do que o nosso CPC. Parece-nos que o juiz inglês deixou de ser passivo e o sistema passou de adversarial a, claramente, inquisitivo. O CPC brasileiro, prestes a entrar em vigor, ao invés, deslocará grande parte dos deveres de gestão processual para as partes17. Relativamente aos poderes discricionários, parece-nos que o modelo inquisitivo será aquele onde estes poderes mais se manifestam por oposição ao modelo dispositivo, apresentando-se, em princípio como o modelo com atribuição de maiores poderes à parte, logo menos poderes ao juiz, nomeadamente os discricionários18. A atribuição de poderes discricionários presentes no nosso modelo participativo (quanto a nós inquisitivo-dispositivo), a nosso ver, tem vindo a ser atenuada, como aconteceu com a última reforma. Contudo, consideramos que para bem da segurança jurídica de todos os intervenientes, inclusive e principalmente dos juízes, os poderes discricionários devem ser reduzidos e as normas devem ser determinadas e não determináveis.
IV. 1 - Poderes Vinculativos? 17 Art.º 191.º, ao qual iremos voltar 18 Já relativamente aos ordenamentos jurídicos mais próximos de nós diremos que o sistema
americano (adversarial) será dos sistemas em que o juiz terá menos poderes discricionários, pois o juiz está mais distanciado do processo, assim como acontecia no sistema inglês anteriormente às Civil Procedure Rules.
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Discricionariedade em Processo Civil? 10 OS PODERES DO JUIZ
Se atentarmos no art.º 411.º 19 (ex- art.º 265, nº 3) onde se encontra mais destacado o princípio do inquisitório20 : “Incumbe ao Juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.” O legislador tem, então, dois principais propósitos intricados neste preceito: o apuramento da verdade e a justa composição do litígio. Há uma preocupação com a descoberta da verdade, mas também com uma justa composição do litígio e para isso o juiz deve ordenar todas as diligências necessárias. Assim, parece-nos que o legislador teve a preocupação de proteger a parte mais fraca no processo, a parte com o advogado menos diligente ou experiente, a parte que não tenha pedido uma prova que devesse, ou ordenando a correcção de irregularidades nos seus articulados. Terá sido esta a intenção do legislador, um juiz de tal modo participativo, que tenha o dever de se substituir às partes? Um juiz que indirectamente possa beneficiar uma das partes? Neste seguimento está também o art.º 590.º, nº4 que preceitua: “Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.” enquanto a redação do artigo corresponde no regime pretérito (art.º 508.º, nº3) era: “pode ainda o juiz convidar qualquer das partes (...)”. Neste caso, o legislador transformou um poder anteriormente discricionário num poder vinculativo do juiz, porque se antes o juiz “podia”, agora “deve”, ou seja, não parece haver escolha. Se o juiz se depara com uma insuficiência ou imprecisão na exposição ou 19 Todos os artigos sem indicação de fonte têm por referência o Código de Processo Civil 20 Na medida em que no regime vigente aparece destacado, como um artigo único, ao contrário do que acontecia no regime anterior.
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concretização da matéria de facto alegada este tem que convidar as partes a supri-la. Há uma proteção da parte mais fraca ou como o legislador lhe chama: privilegiar “o mérito ou a substância sobre a forma”. Podemos concluir que mesmo no âmbito de um poder vinculativo existe margem para discricionariedade, principalmente no caso do art.º 411.º, onde a norma nos parece mais genérica. No caso do princípio do inquisitório deve o juiz ordenar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade, não concretizando quais as diligências que pode ordenar ou realizar nem estabelecendo quaisquer limitações. Relativamente ao art.º 590.º, que anteriormente previa um poder totalmente discricionário, pois o juiz podia escolher um de dois caminhos (ou convidada ou não convidada) dependia do seu consciente arbítrio. Contudo, e apesar do legislador ter vinculado o juiz a agir, não deixa de ser esse mesmo juiz a avaliar essas insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada. Ainda relacionado com o art.º 590.º, nº4 (parcialmente ex- art.º 580.º, nº 3), vejamos a título de exemplo um caso de investigação judicial da paternidade, que deu origem ao ACÓRDÃO DE RELAÇÃO DE
GUIMARÃES
de
5-12-2013
e
relatado
em
www.blogippc.blogspot.pt. O Tribunal de 1ª instância considerou que a matéria de facto alegada pela investigante era suficiente para que a acção procedesse e, por isso, não houve qualquer convite ao aperfeiçoamento da petição inicial (no âmbito de uma norma ainda totalmente discricionária – ex-artigo 508.º- pois que o julgamento se realizou em 2012), no entanto o Tribunal ad quem considerou que “a recusa do pretenso pai em sujeitar-se a exame hematológico, com vista a apurar a filiação, é legítima quando não estão alegados os factos concretos a provar em tal diligência.” Ou seja, a Relação anulou a
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Discricionariedade em Processo Civil? 12 OS PODERES DO JUIZ
decisão proferida pela 1ª instância tendo por base uma insuficiência da matéria de facto que aquele tribunal achou que não existia. Todavia, não nos podemos esquecer que o Tribunal ad quo considerou a matéria de facto alegada pela investigante suficiente para justificar a realização do exame hematológico, mas ainda que não considerasse - e visto que o julgamento decorreu na vigência do regime pretérito (2012), em que vigorava uma norma (totalmente21) discricionária e não vinculativa como é a vigente - não teria o juiz que fazer um convite ao aperfeiçoamento.22 Neste sentido, veja-se o entendimento do ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA23 relativamente ao art.º 508.º: “O argumento de que deveria ter sido observado o disposto no artº 508º, nº 3, do CPC, convidando-se a recorrente a aperfeiçoar o seu articulado, é de todo improcedente. Em primeiro lugar, e desde logo, porque o poder conferido ao juiz através desta norma adjectiva não deve ser exercido quando a omissão da parte se traduza na falta de alegação do cerne da causa de pedir, mas somente quando ocorram meras imprecisões ou insuficiências na alegação da matéria de facto, sob pena de completa subversão do princípio dispositivo (artºs 264º e 664º); tanto assim que, como expressamente se consigna no nº 5 do mesmo preceito, as alterações à matéria de facto alegada previstas nos números anteriores estão condicionadas e limitadas pelo disposto no artº 273º (2). Em segundo lugar porque a norma em apreço confere ao juiz um poder não vinculado, um poder discricionário, que ele exerce ou não segundo o seu prudente arbítrio, e sem que haja lugar a recurso neste último caso. 21 Na medida em que não era vinculativa 22 A questão nem sequer se coloca pois o Tribunal de 1ª instância considerou a matéria alegada
suficiente para fundamentar a procedência da causa. A questão coloca-‐se se o Tribunal de 1ª instância considerasse a matéria insuficiente para ordenar o exame hematológico, pois que no regime pretérito o juiz tinha duas escolhas, dois caminhos – era, pois, um poder discricionário – e podia ter ordenado o aperfeiçoamento da petição inicial, ou não; por outro lado, e partindo da mesma permissa, segundo o regime vigente, o juiz teria (obrigatoriamente) de convidar a parte a aperfeiçoar a petição inicial – é, pois, um poder-‐dever. 23 Em 03-‐02-‐2009, Relator Conselheiro Nuno Cameira, disponível em www. dgsi.pt
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Discricionariedade em Processo Civil? 13 OS PODERES DO JUIZ
Tal o entendimento que tem sido constantemente seguido por este Supremo Tribunal e que nenhuma razão vemos para abandonar.” Já não se poderá dizer o mesmo relativamente ao Tribunal da Relação.24 Senão vejamos. Com o novo CPC, e confrontando o ex-artigo 712.º com o art.º 662.º vigente resulta que o Tribunal da Relação surge com verdadeiros poderes de instância. Hodiernamente, “o legislador coloca ao seu dispor um conjunto de instrumentos de aquisição de material probatório idóneos a permitir a formação de uma convicção própria sobre a matéria de facto. Não seria incorreto qualificar estes meios instrutórios de poderes
da Relação
(funcionais,
obviamente),
como
ferramentas
processuais destinadas a garantir a efetividade das suas atribuições de tribunal de instância.”25 Se anteriormente o ex-artigo 712.º do CPC, conferia poderes discricionários àquele Tribunal, o regime vigente confere agora verdadeiros poderes-deveres. Segundo PAULO RAMOS DE FARIA e ANA LUÍSA LOUREIRO
26
“ordenar a realização de diligências
instrutórias que, eventualmente, já deveriam ter sido oficiosamente determinadas pelo tribunal a quo, por força do disposto no art.º 411.º.” Destarte, salvo melhor e avisado saber, e à semelhança do juízo realizado supra no âmbito destes deveres, a Relação devia ter actuado em vez do Tribunal de 1ª instância. Ainda mais se entenderam ser a matéria alegada insuficiente para a procedência da ação e sabendo 24 A ter-‐se como certo o recurso ter sido interposto depois do dia 1 de Setembro de 2013, ou seja,
depois da entrada em vigor do CPC aprovado pela Lei 41/2013, de 26 de junho, pois que neste caso seria esta a lei aplicável nos termos do art.º 5, nº1. 25 in FARIA, Paulo Ramos de, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, volume II, Coimbra, Almedina, 2014.
26 Ibidem
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Discricionariedade em Processo Civil? 14 OS PODERES DO JUIZ
que no regime entretanto vigente deveria o tribunal de 1ª instância ter convidado a investigante a aperfeiçoar. A nosso ver, no âmbito do art.º 662.º, nº 2, al. c) e eventualmente b) do CPC, o Tribunal ad quem devia, oficiosamente, ordenar a produção de novos meios de prova27, ou até ordenar nova decisão pelo tribunal a quo nos termos da al. c), mas com a irregularidade sanada, pois que segundo a Relação ocorreu a omissão – por parte do Tribunal de 1ª instância – da prática de um acto processual pertinente. Assim, uma vez que não foi ordenado o referido convite pelo tribunal de 1ª instância o que resultou numa insuficiência da factualidade adquirida, “se o vício apenas for exposto pela decisão do tribunal ad quem (como no caso em apreço) – ao afirmar, pela primeira vez, a inconcludência dos factos alegados, numa decisão-surpresa -, não se vê que o direito a um processo equitativo consinta que a parte possa ficar privada de qualquer meio de reação. Também aqui, na falta de melhor solução, este direito deve ser assegurado através da adequação formal do processado (art.º 547.º), procurando orientação noutros institutos próximos (v.g., arts. 636.p, nº1, e 665.º, nºs 2 e 3). Nos casos verdadeiramente excecionais nos quais o tribunal ad quem
entende
que
a
justa
composição
do
litígio
exige
um
aperfeiçoamento da articulação, o relator (art.º 652.º, nº1, al. d)), por iniciativa própria ou concertado com os juízes adjuntos (art.º 658.º), deve convidar a parte a aperfeiçoar a sua alegação de recurso, nela fazendo incluir, querendo, a arguição de nulidade por omissão do despacho de convite ao aperfeiçoamento – nulidade só agora cognoscível pela parte, já que o tribunal a quo havia considerado a factualidade alegada suficiente- , fazendo-o subsidiariamente - nos termos previstos no art.º 636.º, nº1, quando a ação tenha sido julgada procedente-, 27 Segundo
Paulo Ramos de Faria, em obra cit. se “a Relação entender que não dispõe do material probatório necessário ao seu esclarecimento, deverá lançar mão da ferramenta prevista na al. b) do nº2.”
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Discricionariedade em Processo Civil? 15 OS PODERES DO JUIZ
acautelando o acolhimento desta solução plausível de direito pelo tribunal ad quem.(...) Assim se transpõe para a instância de recurso o regime previsto para a 1ª instância, sendo o convite ao aperfeiçoamento da alegação de recurso – já não do articulado -, de direito e de facto, orientado por uma solução plausível de direito.”28 Esta é a solução que parece subsumir-se aos desígnios do legislador de privilegiar o mérito. Com a decisão da Relação de Guimarães privilegiou-se a forma em detrimento do mérito e da substância. Ainda em relação ao art.º 662.º, que como vimos tem a particularidade de, à semelhança do que aconteceu com o art.º 590.º, ser presentemente um poder vinculante, referindo, por exemplo, que a Relação “deve ainda, mesmo oficiosamente, ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento”.29 Embora não haja dúvidas que estamos perante poderes vinculantes (“deve” e “oficiosamente” são elucidativos disso mesmo), também sobressai a discricionariedade deste dever visto que o artigo refere “quando houver dúvidas”, ora essa apreciação e consequente avaliação será feita pela Relação, num âmbito quanto a nós discricionário.30 Não há discricionariedade na decisão, pois se a Relação entender que há sérias dúvidas, “deve oficiosamente ordenar a renovação de prova.” A discricionariedade está sim na apreciação e avaliação da situação em concreto. Como refere o ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DE LISBOA, de 14-122004, relator Desembargador Pimentel Marcos: “São no uso legal de 28 In FARIA, Paulo Ramos de, Primeiras Notas ao Código de Processo Civil, obra cit. págs. 126 e
127 29 Art.º 662.º, nº2, al. a) 30 In FARIA, Paulo Ramos de, Primeiras Notas ao Código de Processo Civil, obra cit. págs. 96
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Discricionariedade em Processo Civil? 16 OS PODERES DO JUIZ
um poder discricionário os despachos proferidos ao abrigo de uma disposição que, perante determinado circunstancialismo, lhe confere uma ou mais alternativas de opção, entre as quais deve escolher em seu prudente arbítrio e em atenção aos fins do processo civil.” Efectivamente, salvo melhor opinião, podemos afirmar, desde já, que ainda que o legislador tenha ampliado os poderes instrutórios e vinculativos ao juiz, os poderes discricionários continuam a marcar presença nas normas processuais ainda que, em alguns preceitos, de forma mais atenuada. Um preceito que nos parece impor um dever de actuação ao juiz, parece ter subjacente a ele um poder discricionário, pelo menos, de apreciação e avaliação do caso concreto.
IV.2 - Gestão Processual pelo Juiz O dever de gestão processual31 consagrado no art.º 6.º impõe quatro deveres genéricos ao juiz: dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere; promover oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção; recusar o que for impertinente ou meramente dilatório; adoptar mecanismos de simplificação
e
agilização
processual
que
garantam
a
justa
composição do litígio em prazo razoável. Dentro deste último dever 31 ALEXANDRE, Isabel, O dever de gestão processual do juiz na proposta de lei relativa ao novo CPC, O novo processo civil, Contributos da Doutrina para a compreensão do Novo Código de Processo Civil, Caderno I, 2ª edição, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 2013-‐ citando o estudo Justiça económica em Portugal – O sistema judiciário: sistema processual, organização judiciária e profissões forenses, 2012, faz uma súmula das definições de gestão processual dadas pela doutrina portuguesa mais recente: “direcção activa e dinâmica do processo, tendo em vista, quer q rápida e justa resolução do litígio, quer a melhor organização do trabalho do tribunal (P. Ramos de Faria), ou como um dever e um poder que reúne num normativo o poder de direcção e o princípio da adequação formal (M. França Gouveia), ou como um mero alargamento do princípio da adequação (P. Duarte Teixeira). Pode ainda ser definida como o conjunto das faculdades do juiz no sentido de decidir o modo de tramitar o processo, o que pedir às partes e quando, o que aceitar do que estas pedem, o que indeferir dos seus requerimentos, que actos praticar em concreto, por que ordem e com que função.” Do seu ponto de vista a gestão processual corresponderá a “um poder do juiz de praticar e mandar praticar todos os actos necessários à justa, rápida e económica resolução do litígio.”
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Discricionariedade em Processo Civil? 17 OS PODERES DO JUIZ
genérico de gestão processual, poderemos enquadrar o dever da adequação formal previsto no art.º 547.º.32 A adequação formal é talvez um dos mecanismos onde os poderes discricionários do juiz mais se manifestam (ou podem manifestar). Prevê o art.º 547.º que: “o juiz deve adoptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visa, atingir, assegurando um processo equitativo.” Este preceito corresponde parcialmente ao art.º 265.º -A do regime pretérito. Ora, foi com o Decreto- Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro que se consagrou o princípio da adequação, “facultando ao juiz, obtido o acordo das partes, e sempre que a tramitação processual prevista na lei não se adeqúe perfeitamente às exigências da acção proposta, a possibilidade de adaptar o processado à especificidade da causa, através da prática dos actos que melhor se adeqúem ao apuramento da verdade e acerto da decisão, prescindindo dos que se revelem inidóneos para o fim do processo”.33
34
Como bem refere MARIA JOSÉ CAPELO35, “Numa promoção de activismo judicial entendeu-se que estava chegado o momento em que a fixação da sequência de actos devia
32 Neste sentido veja-‐se FARIA, Paulo Ramos de, Ana Luísa Loureiro, O Instituto da gestão processual: breve comentário ao artigo 6º do Código de Processo Civil português (excertos), O Novo Processo Civil, Contributos da Doutrina para a compreensão do Novo Código de Processo Civil, Caderno I, 2ª edição, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 2013, disponível em www.cej.mj.pt; No mesmo estudo do CEJ a posição de Isabel Alexandre, O dever de gestão processual do juiz na proposta de lei relativa ao novo CPC, não parece enquadrar a adequação formal no dever de gestão processual. 33 Cfr. Preâmbulo do Decreto-‐Lei nº 329-‐A/ 95, de 12 de Dezembro 34 Concretizando o legislador no próprio preâmbulo exemplo (a nosso ver não taxativo) dessa adequação formal: cumulação de causas, com formas de processo diferentes, mas não incompatíveis. 35 Cfr. CAPELO, Maria José, A Tipicidade Legal Das Formas De Processo : Fim À Vista?, I Jornadas de Processo Civil ocorridas em Valpaços nos dias 5 e 6 de Novembro de 2011
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Discricionariedade em Processo Civil? 18 OS PODERES DO JUIZ
passar também a ser apanágio do juiz. Encarou-se como insuficiente a “flexibilidade” que, por vezes, a própria lei acolhe, fixando a possibilidade de não realização de determinados actos ou a dispensa de certas fases fundadas em razões objectivas.” Referindo ainda FERNANDO PEREIRA RODRIGUES 36 que “a filosofia que preside à introdução deste princípio processual é a de que o processo é um meio que deve ser o mais adequado possível para se obter uma justa composição do litígio” e diremos nós, filosofia essa que se estendeu ao regime vigente. Acrescentando o ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA, de 20-12-201137, que: “1- O princípio da adequação formal destinou-se a introduzir alguma flexibilidade na tramitação ou marcha do processo, permitindo adequá-la integramente a possíveis especificidades ou peculiaridades da relação controvertida, encontrando-se no entanto, a sua utilização condicionada
ao
respeito
integral
pelos
princípios
essenciais
estruturantes do processo civil, nomeadamente o da igualdade das partes e o do contraditório.” Com
a
Lei
nº
41/2013,
de
26
de
Junho
apenas
se
complementou e concretizou38 o desígnio já iniciado pelo legislador de atribuir ao juiz “um papel dirigente e ativo”39. A adequação formal será então uma adequação da tramitação processual adoptada pelo juiz do processo, não expressamente 36 In
RODRIGUES, Fernando Pereira, O Novo Processo Civil, Os Princípios Estruturantes, Almedina, Coimbra, 2013 37 Relator – Desembargador Carlos Querido, disponível em www.dgsi.pt 38 Refere a Exposição de motivos da reforma que: “mantém-‐se e amplia-‐se o princípio da adequação formal, por forma a permitir a prática dos actos que melhor se ajustem aos fins do processo, bem como as necessárias adaptações, quando a tramitação processual prevista na lei não se adeque às especificidades da causa ou não seja a mais eficiente.” 39 Cfr. Exposição dos motivos da reforma levada a cabo pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho
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Discricionariedade em Processo Civil? 19 OS PODERES DO JUIZ
prevista na lei, pois se assim não for, cairá no âmbito da simples gestão processual. Não podemos dizer que o preceito coloca ao dispor do juiz esta faculdade, antes lha impõe, “ o juiz deve adoptar” e não “o juiz pode adoptar”. Estamos, pois, perante mais um poder vinculante que impõe ao juiz uma certa conduta. Ainda assim, a “tramitação processual adequada” será aquela que o juiz decidir e quando decidir – mais uma vez aquilo que à primeira vista aparece “desenhado” pelo legislador como um poder-dever, mais não é do que um poder que advirá do critério e discernimento do juiz, um verdadeiro poder discricionário. Mas haverá limites a essa adequação? Poderá o juiz decidir a seu belo prazer? Poderá por exemplo o juiz permitir mais articulados? Poderá permitir o aumento do número de testemunhas? Poderá impor limites ao tempo de audição das testemunhas? Poderão as próprias partes requerer uma adequação formal? Em primeira linha a adequação terá que respeitar desde logo as imposições do normativo:
as especificidades da causa em apreço e
adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo. No entanto, o normativo deve ainda respeitar os princípios estruturantes
do
contraditório40
41
processo,
nomeadamente
o
princípio
do
e o princípio da igualdade das partes, assim como a
própria sistematização do código de processo civil e até do direito.
40 Nos termos do art.º 3.º, nº 3, prevenindo-‐se, como refere MARIA JOSÉ CAPELO, in ob. cit., “tanto um “despacho surpresa” como se assegura o direito a um processo previsível”. 41 Ressalvados os casos previstos no nº 1, do art.º 3, refere Paulo Ramos de Faria, ob. cit., que “no âmbito da gestão processual, em determinadas circunstâncias, a audição prévia das partes pode (e deve) ser dispensada, quando não estiver em causa dirimir um conflito de interesses ou reconhecer um direito processual.” Será caso de dispensar a audiência prévia o caso de um mero convite a uma das partes para suprir uma irregularidade. Conclui o autor não se tratar “de preterir o princípio do contraditório, mas sim compreender o seu sentido (cfr. art.º 547.º).” Por outro lado refere mais à frente que “a gestão processual mais imaginativa e arrojada tem de ser participada, sob pena de fracassar.”
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Discricionariedade em Processo Civil? 20 OS PODERES DO JUIZ
A propósito deste princípio vem o recente ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA42, dizer o seguinte: “1- O princípio da adequação formal, consagrado no art.º 547.º CPC, não transforma o juiz em legislador, ou seja, o ritualismo processual não é apenas aplicável quando aquele não decida, a seu belo prazer, adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais, sob a invocação de, desse modo, assegurar um processo equitativo. 2- Os juízes continuam obrigados a julgar segundo a lei vigente e a respeitar os juízos de valor legais, mesmo quando se trate de resolver hipóteses não especialmente previstas (art.º4.º-2 da Lei nº 21/85, de 30-7), e, daí, que o poder dever que lhes confere o preceito em causa deva ser usado tão somente quando o modelo legal se mostre de todo inadequado às especificidades da causa, e, em decorrência, colida frontalmente com o atingir de um processo equitativo. Trata-se de uma válvula de escape, e não de um instrumento de utilização corrente, sob pena de subverter os princípios essenciais da certeza e da segurança jurídica.” – itálico, negrito e sublinhado nosso. Resulta,
pois,
deste
Acórdão
que
este
mecanismo
tem
subjacentes vários limites que diminuiem a sua ampla aplicação. Além do mais, como bem refere o citado Acórdão, ao qual voltaremos mais à frente, este instrumento é um regime de excepção, “não vale como regra, mas apenas para situações especiais (...). Vale apenas para quando o juiz verificar qua a causa tem especificidades que fazem com que o processo que normalmente lhe corresponderia – comum ou especial – não é o melhor para a instrução ou o julgamento da causa.”43
42
Acórdão de 14-‐10-‐2014, Relator Desembargador CARVALHO MARTINS, disponível em www.dgsi.pt 43 Cfr. Fernando Pereira Rodrigues, ob. citada, pág. 96
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Discricionariedade em Processo Civil? 21 OS PODERES DO JUIZ
A amplitude deste e de outros preceitos presentes no código de processo civil torna-os permeáveis ao entendimento pessoal do juiz neste sentido veja-se MARIA JOSÉ CAPELO 44 , “a premência de se delinear bem os conteúdos possíveis do princípio da adequação formal, identificando, de forma incontroversa, o seu papel no sistema processual. Os “atalhos” que o juiz pode traçar, como fuga ao caminho principal, ainda estão a ser feitos sem mapa. A utilização de “fórmulas” gerais e abstractas, na regulamentação da actividade processual, é geradora de insegurança, não sendo certamente o expediente ideal à obtenção de uma célere decisão de mérito. A “pacificação” do processo deve prevalecer perante um casuísmo “procedimental”, eivado de livre arbítrio, que só irá catalisar o “mal-estar” da Justiça.”45 Com
posição
semelhante
ANDREA
PROTO
PISANI
46
,
relativamente aos poderes que possam incidir sobre o conteúdo da decisão : “o legislador deve predeterminar de maneira clara tanto os pressupostos, o parâmetro de exercício de tais poderes, quanto ao seu conteúdo e o momento do processo em que podem ser exercidos. (...) Não deve nem pode ser deixada ao juiz nenhuma discricionariedade, e o valor do processo justo exige sua rígida prederminação legal”. Uma coisa é certa este tipo de chamadas cláusulas gerais)
previsões legislativas (as
são necessárias pois o legislador não
pode prever tudo47.
44 CAPELO, Maria José, ob. citada. 45 Em sentido oposto veja-‐se Paulo Ramos de Faria, ob. cit., “a letra e o espírito da lei não oferecem santuário a práticas gestionárias potenciadoras de uma relevante incerteza processual, a atitudes prepotentes ou, muito menos, a excessivas intervenções que coloquem em causa a garantia da imparcialidade do tribunal ou os princípios do contraditório e do dispositivo. Todavia, o uso indevido das ferramentas processuais destinadas a satisfazer o dever de gestão processual a isso pode conduzir.” 46 PISANI, Andrea Proto, ob. citada, pág 40.
Aliás FREDIE DIDIER JR., Cláusulas Gerais Processuais , disponível em www.frediediddier.com.br, refere que não há legislação processual, referindo-‐se à portuguesa (ao cpc anterior), “de onde se possam extrair tantas cláusulas gerais expressamente consagradas”, mas repare-‐se que esta afirmação não é para ele uma crítica mas quase um motivo de orgulho. 47
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Discricionariedade em Processo Civil? 22 OS PODERES DO JUIZ
No entanto, “é inegável, porém, que com uma mão a lei pode viabilizar a flexibilidade, mas com a outra deve impor seus limites, para que a gestão de processos de forma discricionária não viole garantias irrenunciáveis, nem conduza o processo civil para um autoritarismo judicial. O segredo está em encontrar o equilíbrio48.” Diferentemente
da
gestão
processual
portuguesa
o
Case
Manegement presente no direito inglês nas Civil Procedure Rules49
50
(1.4 O dever de gestão Processual do Tribunal – para assim garantir o seu objectivo primordial: o tribunal gerir os casos de forma justa e com custos razoáveis e 3.1 poderes gerais de gestão) concretiza, esclarece e direciona alguns dos poderes de gestão do juiz: •
encorajar as partes a cooperarem uma com a outra;
•
identificar as questões da contenda no seu estado inicial;
•
decidir imediatamente de quais as questões que precisam de ser investigadas e julgadas e decidir sumariamente as outras;
• •
decidir a ordem pela qual as questões serão resolvidas; encorajar as partes a utilizarem os meios alternativos de conflito, quando o trabalho considerar apropriado o uso desse procedimento;
•
fixar prazos (alterando-os);
48 ALMEIDA, Diogo Assumpção Rezende de, Case Management Inglês: Um Sistema Maduro?, Revista Eletrônica de Direito Processual, Ano 5, Volume VII, 2011, pág. 300. 49 As Civil Procedure Rules foram aprovadas em 1998, num país habituado à regra do precedente e a um processo adversial, o poder de gestão dos processos foi transferido das partes para o juiz. 50 Diferentemente de nós pensa Diogo Assumpção Rezende de Almeida, ob. citada, págs. 297 e ss, refere que a diferença entre entre os juízes ingleses (e galeses) e os brasileiros e portugueses está precisamente na discricionariedade. Quanto a ele aqueles não têm somente poderes de gestão, mas poderes adjectivados de flexibilidade, capazes de adequar o desenrolar do procedimento às particularidades do caso concreto, sem que se exija disposiçãoo expressa nesse sentido (apenas uma lista de poderes elencados que é exemplificativa). Acrescenta ainda que o juiz brasileiro e português possuem poderes discricionários, mas não na mesma dimensão abrangida na atividade do juiz inglês. Em nosso entendimento as normas de gestão portuguesa acabam por assentar numa maior discricionariedade, uma vez que não há uma norma concretizadora e exemplificativa como no caso inglês, o legislador deixou o juiz português com um preceito muito amplo e pouco previsível.
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Discricionariedade em Processo Civil? 23 OS PODERES DO JUIZ
•
gerir o processo de forma a que ele tenha um desfecho rápido e eficiente;
•
adiar ou antecipar audiências;
•
cumular processos.
Ainda que não fosse taxativo era necessário um preceito equiparado no nosso CPC, evitar-se-iam dúvidas dos masgistrados (que muitas vezes não adequam a tramitação processual por receio de se afastarem daquilo que o legislador previu para o art.º 547.º), porque, pelo menos, indiciar-se-iam quais os mecanismos ao dispor do juiz. O que impedia a desconfiança das partes e, muitas vezes, poupava os tribunais superiores a recursos que se mostrariam inúteis se o preceito concretizasse (ainda que genérica e exemplificadamente) o âmbito deste dever de adequação formal. Mas não queremos com isto dizer que o nosso CPC contenha preceitos processuais mais discricionários do que as Civil Procedure Rules. Do que tivemos oportunidade de analisar, concluímos que o código processual inglês possui normas mais discricionárias do que as portuguesas, o que nos parece ser evidenciador de grande confiança no prudente arbítrio dos julgadores51. Quanto ao Novo Código de Processo Civil Brasileiro52, prestes a entrar em vigor também acolhe o aumento dos poderes do juiz (nomeadamente dos vinculativos). A gestão processual pelo juiz encontra-se dispersa em vários normativos, como por exemplo o art.º 139.º, ou o art.º 377.º. Aqueloutro artigo parece fazer uma compilação, a nosso ver, exemplificativa, de alguns poderes de gestão processual pelo juiz, destacando-se que o juiz pode “dilatar os prazos 51 Daquilo que tivemos oportunidade de analisar nas Civil Procedure Rules também ficámos com
a noção de que o juiz (assim como todos os intervenientes jurídicos no processo) devem possuir uma boa percepção sistemática do código. 52 Cujo texto base foi aprovado em finais de Dezembro e que deverá ser sancionado pela Presidência da República no final do mês corrente.
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Discricionariedade em Processo Civil? 24 OS PODERES DO JUIZ
processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior efectividade à tutela do direito”. O que de facto nos preocupa é o estreante art.º 191.º que confere grandes poderes às partes. Estas podem gerir o processo relativamente ao ónus probatório, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo, ou seja, a gestão dos processos foi transferida, em grande medida, para as partes53. Regressando
ao
nosso
ordenamento
jurídico,
é
nosso
entendimento que duas atitudes extremas poderão acontecer, a maioria dos juízes não procede a qualquer adequação formal e segue o processo dito normal (acabando o preceito por não ter uma utilização prática54), ou se o fazem têm consciência que a parte poderá recorrer e a sua inicial pretensão de acelerar e agilizar o processo irá acabar por ter o resultado oposto. Embora, nos pareça que serão mais facilmente perceptíveis quais as adequações que o juiz não pode fazer (não pode adiar a audiência de julgamento, por exemplo, uma vez que ela é inadiável, poder conferido ao juiz inglês), pois estão previstos na lei e nos princípios estruturantes do CPC, já não nos parece que o contrário aconteça. Não
nos parece tão fácil, na prática,
um juiz
saber qual o despacho de adequação formal adequado para o processo que tem em mãos. Uma das muitas conclusões a que podemos chegar é que a amplitude do art.º 547.º parece, necessariamente, ser permeável ao uso de poderes discricionários pelo juiz.
53 O que nos parece que poderá potenciar alguns perigos, basta pensarmos numa inversão do
ónus de prova que seja claramente prejudicial à parte, mas que um advogado menos experiente não tenha essa noção. 54 Como acontece, segundo diz ADRIAN ZUCKERMAN (No Justice Without Lawyers – The Myth of an Inquisitorial Solution, University of Oxford, 2014), a propósito dos poderes instrutórios consagrados nas Civil Procedure Rules, aos juízes inglês que estão relutantes em intervir pelas partes mesmo quando a lei o diz expressamente.
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Discricionariedade em Processo Civil? 25 OS PODERES DO JUIZ
Deste modo, permitir mais articulados ou mais testemunhas no processo ou limitar o tempo de inquirição de testemunhas serão, exemplos de adequação formal 55 que se enquadrarão dentro dos limites dos poderes dos juízes. Em nosso entender, a intenção do legislador ao manter e avivar o princípio da adequação formal (e uma vez que o regime vigente optou por dar forma única ao processo declarativo comum- sendo eliminado o processo sumário e sumaríssimo) foi a de impor ao juiz o dever de este adequar a tramitação processual às especificidades, por exemplo fixando um prazo inferior para contestação ou diminuindo o número de testemunhas permitidas. Assim, como o contrário também poderá acontecer, dada a complexidade o juiz poderá permitir um maior número de testemunhas, maior prazo para contestação ou até permitir uma “réplica” (fora dos casos previstos).56 Seja como for o princípio da adequação formal não pode servir para se adequar a tramitação de forma indeterminada e imprevisível. O referido preceito deve ser usado quando o modelo legal não sirva adequadamente as especificidades da causa, como uma verdadeira excepção à regra e respeitando a lei.
V - Sindicância dos Poderes do Juiz 55 Salvo melhor opinião, apenas consideramos como adequação formal todo o procedimento que, dentro da lei, não se encontre expressamente previsto, isto é, quanto a nós a dispensa de audiência prévia (art.º 593.º) não se enquadrará no âmbito da adequação formal, mas da apenas da gestão processual. No entanto, tratar-‐se-‐á de uma adequação formal uma dispensa de audiência prévia fora dos casos previstos na lei. Além disso, parece-‐nos que da gestão processual deve resultar a sua simplificação e agilização processual e o mesmo pode acontecer com a adequação formal, mas pode igualmente ocorrer uma complexificação do processo, pois as necessidades especificas do processo assim o podem determinar. 56 Se no regime pretérito, o juiz poderia decidir que certa causa que seguia a forma sumária seguisse a forma ordinária (dada a sua complexidade – valor da causa era o critério escolhido pelo legislador), no regime vigente terá o dever de, até usando como modelo as anteriores formas, adequar a tramitação às especificidades da causa – colocando até de parte o critério do valor da acção (inapropriado muitas vezes) e favorecendo outros critérios como o da complexidade da causa (por exemplo uma acção de constituição de servidão pode-‐se mostrar mais complexa do que uma acção cujo valor seja de 10.000,00€).
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Discricionariedade em Processo Civil? 26 OS PODERES DO JUIZ
Consideram-se
proferidos
no
uso
legal
de
um
poder
discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador.57 Diz o PROFESSOR ALBERTO DOS REIS58 que serão despachos proferidos no uso de um poder discricionário “os que se destinam a ordenar actos que dependem da livre apreciação do juiz”. No regime pretérito os despachos de mero expediente e os despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário do juiz não admitiam recurso
59
, conforme art.º 679.º do CPC, hoje
correspondente ao art.º 630.º, nº1. Como vimos o novo CPC transformou muitos desses poderes discricionários em poderes vinculativos, como aconteceu por exemplo com o art.º 508.º. O que deixa antever que os despachos proferidos no âmbito destes preceitos com carácter vinculativo, admitirão recurso. Contudo não será bem assim. Antevendo, quanto a nós, a possibilidade de recurso de um número muito superior de despachos, o legislador consagrou no nº2, do referido artigo excepções ao recurso de despachos proferidos dentro do seu dever de gestão processual. E percebe-se que nem todos os despacho sejam recorríveis: “na verdade, as demoras inerentes ao exercício sistemático de um duplo grau de jurisdição sobre essas casuísticas decisões do juiz de flexibilização, agilização e adequação processual, proferidas com respeito pelos princípios básicos da igualdade e do contraditório, e o factor inibitório que seguramente decorreria
dos
riscos
de
um
diferente
entendimento
(assente
identicamente numa avaliação prudencial e discricionária) da Relação – que conduzisse eventualmente à revogação do despacho inicialmente
57 Cfr. art.º 152.º, nº4 , correspondente ao ex-‐artigo 156.º, nº 4 58 Cfr.
REIS, José Alberto dos, Código de Processo Civil Anotado, volume V, pág. 252 e ss. , Coimbra Editora, 2012 59 A este propósito vejam-‐se Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 13-‐01-‐2005 (relator Desembargador Pelayo Gonçalves) e do Tribunal da Relação de Évora de 28-‐02-‐2005 (relator Desembargador Manuel Nabais).
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Discricionariedade em Processo Civil? 27 OS PODERES DO JUIZ
proferido e à ulterior anulação do processado – iriam retirar eficácia e efectividade à pretendida aplicação prática.”60 Assim, não é admissível recurso: - das decisões de simplificação ou de agilização processual proferidas nos termos previstos no nº1 do artigo 6.º; - das decisões proferidas sobre as nulidades previstas no nº1 do artigo 195.º - das decisões de adequação formal, proferidas nos termos previstos no artigo 547.º Por conseguinte o art.º 630.º, no geral, torna irrecorríveis, além dos despachos de mero expediente e os proferidos no uso legal de um poder discricionário, os despachos proferidos dentro do seu dever de gestão
processual
(onde,
pelas
razões
aduzidas,
incluímos
a
excepção
à
adequação formal). Contudo, irrecorribilidade
o
art.º
das
630.º,
decisões:
nº2, “salvo
contém se
uma
contenderem
com
os
princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios probatórios”. Veja-se
o
anteriormente
citado
ACÓRDÃO
DO
TRIBUNAL
DA
RELAÇÃO DE COIMBRA de 14-10-2014, “extrai-se a seguinte regra: todas as decisões judiciais relativas à simplificação ou agilização processual, ou à adequação formal, ou às regras gerais da nulidade dos actos processuais admitem recurso quando contendam quer com os princípios da igualdade ou do contraditório, quer com a aquisição processual probatórios
de 61
factos,
quer
com
a
admissibilidade
de
meios
. A decisão proferida no uso legal de um poder
discricionário não é recorrível com fundamento de que tal decisão não representa a melhor forma de prosseguir o fim que a lei pretende seja 60 Cfr. REGO, Carlos Lopes do, Os Princípios Orientadores Da Reforma Do Processo Civil Em Curso :
O Modelo De Acção Declarativa, Julgar, nº16, Coimbra Editora, 2012 61 Assim o diz expressamente o art.º 644.º, nº2, al. d).
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Discricionariedade em Processo Civil? 28 OS PODERES DO JUIZ
atingido. Mas já o será quando, como na situação sub judice, a avaliação do imóvel se enquadra na prova pericial, estando na presença de um meio de prova, admissível de recurso.” Na outra vertente da gestão processual consagrada no art.º 6, nº2, são atribuídos poderes ao juiz de, oficiosamente, suprir a falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação. Mas quais as consequências da violação deste dever de gestão processual62? Para PAULO RAMOS FARIA63, “estamos perante uma actividade da qual o juiz é devedor, pela qual responderá não só por acção, mas também por omissão.” Portanto, uma vez que é um dever processual, em princípio, a sua omissão, ou seja, se o juiz devesse ter dado certo despacho de agilização, será recorrível, mas será, por si só, nulo? Segundo ISABEL ALEXANDRE64, “dir-se-ia que mesmo que seja recorrível o despacho que indefira uma arguição de nulidade por omissão do dever de gestão processual – porque a omissão significou, por ex., uma violação do princípio da igualdade – o recurso não terá provimento, se a nulidade cometida não tiver influído no exame ou na decisão da causa (e não terá influído se se prender apenas com a agilização e simplificação do processo).”
Assim, o art.º 6, impõe a audição das partes - será este um dos requisitos da gestão processual, ou nos termos gerais sempre o contraditório seria assegurado pelo art.º3.º, nº3 - resultará a falta de audição das partes numa nulidade? 62 Repara-‐se que no regime anterior a gestão processual era apelidada de princípio e actualmente
de “dever de gestão processual”. 63 In obra cit., CEJ, pág. 116 64 In obra cit., a propósito da PL 113/XII
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Discricionariedade em Processo Civil? 29 OS PODERES DO JUIZ
Não nos parece. Como já referimos a audição prévia deve ser a regra, mas porém, em certos casos deve ser dispensada. Mas mesmo que ela tenha sido dispensada quando não o devesse ser, não é motivo para, por si só, gerar a nulidade do acto, pois “tal não significa, ainda assim, que a omissão seja sempre irregular. Para que uma verdadeira irregularidade (ilegalidade) ocorra, é necessário que se conclua que a participação das partes efectiva não foi assegurada por outra via.” Além disso, “a omissão de qualquer audição das partes não importa, ainda assim, que o acto esteja ferido de nulidade. Para tanto, é ainda necessário que a omissão possa, em concreto, influir no exame ou na decisão da causa” (art.º 195.º, n.º1.º).
VI - Conclusão A discricionariedade é inevitável. Como vimos na presente exposição, mesmos nos preceitos vinculativos ou inquisitivos, existirá uma apreciação discricionária. Contudo
não
podemos
confundir
discricionariedade
com
arbitrariedade, nem com convicções pessoais ou preconceitos. A margem para os julgadores decidirem segundo as suas próprias convicções, juízos e opiniões deve ser reduzida ao mínimo. Porque
como
alerta
CARLOS
ALBERTO
ÁLVARO
DE
OLIVEIRA65, “importa estar atento para que o poder concedido ao juiz não redunde em arbítrio ou comprometa sua necessária e imprescindível imparcialidade.” Foi um dos alicerces do nosso Código de Processo Civil a ampliação dos poderes do juiz, nomeadamente, como vimos, dos poderes de gestão processual. A gestão processual impõe um papel activo ao juiz, mas os preceitos ao seu dispor “são “fórmulas” gerais e
65 OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de, ob. cit.
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Discricionariedade em Processo Civil? 30 OS PODERES DO JUIZ
abstractas” que o podem deixar o julgador decidir segundo as suas próprias convicções, o que não pode acontecer. Por isso, as normas gerais devem ser evitadas sempre que possível por vários motivos: pela insegurança que criam no sistema jurídico, inclusive nos próprios juízes, pela falta de orientação que acarretam para o decisor, pela permeabilidade ao livre arbítrio 66 , sobretudo pela falta de limites expressos. Cremos que, a discricionariedade do juiz não pode ser total ou ilimitada, porquanto como bem alerta DIOGO FREITAS DO AMARAL67 (ainda que no âmbito administrativo)
“a discricionariedade é um
poder-dever jurídico”. A discricionariedade deve estar, pois, sujeita à lei e aos seus limites, mormente à sua ordem sistemática e funcional, aos seus princípios estruturantes e à visão holística do direito68.
66 Como reza o provérbio latino: Arbitrio judicis relínquitur quod in jure definitum non est (Fica
entregue ao arbítrio do juiz o que o direito não define) – in Provérbios Jurídicos em Latim, ob. Cit. 67 AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, vol. II, Almedina, 2001 68 RANGEL, Marco Aurélio Scampini Siqueira, Thiago Camatta Chaves Turra, A Discricionariedade Na Atividade Jurisdicional Sob O Enfoque Do Embate Entre Hart E Dworkin, Derecho Y Cambio Social, 2014, disponível em www.derechoycambiosocial.com, visão holística será uma visão geral do direito -‐ sendo esta a perspectiva de Dworkin.
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