Os pombos e a lira no coração dos homens: a estrutura do favor e o mascaramento da violência de gênero na sociedade patriarcal

June 13, 2017 | Autor: Danielle Takase | Categoria: Machado de Assis, Literatura brasileira
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO DANIELLE TAKASE QUEIROZ 8571711

Os pombos e a lira no coração dos homens: a estrutura do favor e o mascaramento da violência de gênero na sociedade patriarcal

Trabalho final de aproveitamento para a disciplina de Literatura Brasileira IV ministrada pela Prof.ª Dra Simone Rossinetti Rufinoni.

São Paulo 2015

Os pombos e a lira no coração dos homens: a estrutura do favor e o mascaramento da violência de gênero na sociedade patriarcal Todos os homens devem ter uma lira no coração, – ou não sejam homens. Que a lira ressoe a toda a hora, nem por qualquer motivo não o digo eu, mas de longe em longe, e por algumas reminiscências particulares... (A desejada das gentes, 1886)

Numa sociedade latifundiária, patriarcal e escravocrata, como pode ser caracterizado o Brasil colonial, há uma classe evidentemente dominante de possuidores e uma classe inteira de escravos responsáveis pela produção (que acabam por constituir os possuídos); os que não se encaixam nem em uma nem outra classe, os ditos homens livres, dependem dos grandes para distanciar-se da marginalização do não-ser. Machado de Assis, ao dar forma às incoerências de seu tempo, retrata temática e formalmente a sociedade funcionando pelo mecanismo do favor, através do qual, segundo SCHWARZ (1973), mantém-se toda essa classe que nem possui nem é possuída – e une-se de tal forma aos que têm e, assim, diferencia-se daqueles que nem chegam a ser. Para além disso, as opressões de gênero não deixam de ser reveladas num contexto indissociavelmente patriarcal, ou seja, onde prevalece a dominação masculina, o que se manifesta não apenas nas relações sociais de poder (da dinâmica político-econômica, por exemplo), mas também nas relações sociais do âmbito privado – na intimidade. A ideologia patriarcal vigente permitia (e ainda permite) que a violação do corpo feminino seja naturalizada. Apesar das violências psicológicas, emocionais e físicas que Jorge, na obra Iaiá Garcia, pratica contra Estela, sua figura permanece romântica e idealizada, e ironicamente torna-se ingênuo pelo discurso empregado pelo narrador. Jorge é permanentemente construído na narrativa como um idealista, quase um herói romântico (“sentia-se uma ressurreição de cavaleiro medievo, saindo a combater por amor de sua dama”). Estela, longe de efetivar-se como a dama romântica, “devia a essa família educação e carinho”, é apresentada acima de tudo como alguém que sabe seu lugar. Em oposição ao seu cavaleiro-cavalheiro, não é movida pelas paixões, mas sim pela razão ou, antes de tudo, uma “virilidade moral” que atrai o filho de sua mantenedora. No capítulo III, além de um aprofundamento do psicológico das personagens-chave para desenvolvimento desta tese (Jorge e Estela), há um episódio que retrata uma violência física que desencadeia uma perseguição emocional pelo resto

do romance, além do conflito moral que se estabelece e um desfecho material: a saída de Estela, agregada, e seu consequente afastamento da família a quem devia, por motivos óbvios, gratidão. Logo de início, o conflito evidenciado pelo episódio dos brincos à mesa de jantar (“reconhecimento da intenção louvável” de Valéria?) pressupõe uma tensão entre Estela e Jorge, e desencadeia no rapaz uma série de reflexões a respeito da moça (“não esqueceu nem a resposta da moça nem o constrangimento com que obedeceu. Não podia supor-lhe ingratidão, porque via a afeição com que Estela tratava a mãe. Em relação a ele não parecia haver afeição igual, mas havia certamente respeito e consideração”). Estela aparece no parágrafo seguinte como uma fixação. Nessa vida, meio patriarcal, as horas corriam depressa, tão depressa, que ele não as sentia. Ao cabo de cinco a seis semanas, fez-se ele seu próprio confessor, examinou a consciência, descobriu lá dentro alguma coisa que não era a fantasia sensual do primeiro instante, e, longe de absolver-se, condenou-se à crua penitência de abstenção. [...] No fim de um mês, a índole do sentimento havia mudado: era mais pura; mas o sentimento não parecia disposto a esvair-se: era mais violento. (Iaiá Garcia, cap. III, p. 31)

Logo a seguir, Jorge insinua à sua mãe a “conveniência” de restituir Estela ao pai dela, afinal ela configurava uma “responsabilidade que pesa sobre nós. Se fosse nossa parenta, vá, não se podia dispensar a obrigação; mas não sendo, creio que era melhor libertarmo-nos”. Discute-se então entre mãe e filho não somente a permanência da “estranha” na casa, mas o próprio mecanismo de favor que rege essa relação. A figura do agregado é, segundo Schwarz, a caricatura dessa estrutura, e Estela é essa caricatura em Iaiá Garcia. Indaga-se o narrador: No meio de semelhante situação, que sentia ou o que pensava Estela? Estela amava-o. [...] Tão depressa descobriu o sentimento, como tratou de o estrangular ou dissimular [...] como se fora uma vergonha ou um pecado. [...] Simples agregada ou protegida, não se julgava com direito a sonhar outra posição superior e independente; e dado que fosse possível obtê-la, é lícito afirmar que recusara, porque a seus olhos seria um favor, e a sua taça de gratidão estava cheia. Valéria, que também era orgulhosa, descobrira-lhe essa qualidade, e não lhe ficou querendo mal; ao contrário, veio a apreciá-la melhor.

O narrador, expondo a interpretação dos fatos à maneira de cada sujeito, parece colocar-se numa posição não necessariamente neutra, mas aproximativa, quase compadecida de ambos. O par de pombos que encontram no casarão da Tijuca age como desdobramento (um duplo?) do casal que resta à sós na varanda. Estela baixou silenciosamente a cabeça e buscou dar outra volta para entrar na sala ao pé; Jorge, porém, interceptou-lhe de novo o caminho. — Deixe-me passar, disse ela sem cólera nem súplica. [...] Jorge quisera-a suplicante ou desvairada; a tranquilidade feria-lhe o amor-próprio, fazendo-lhe ver que o perigo era nenhum, e revelando, em todo caso, a mais dura indiferença. Quem era ela para afrontar assim? [...]

— É animosa! Saiba que posso vir a odiá-la e que talvez a odeio; saiba também que posso tirar vingança de seus desprezos, e chegarei a ser cruel, se for necessário. Estela suspirou apenas, e foi encostar-se ao parapeito, a olhar para a chácara. Era sua intenção não irritá-lo, com a resposta seca e má que lhe ditava o coração, e esperar que Valéria descesse. Entretanto, na posição em que ficara tinha as costas voltadas para Jorge, circunstância que não era intencional, mas que pareceu a este um simples meio de lhe significar o seu desdém. A irritação de Jorge foi grande. Após uns dois ou três minutos de silêncio, Jorge caminhou na direção do parapeito, onde estava Estela, com a cabeça inclinada a beijar a cabeça dos pombos, que tinha encostados ao seio. [...] Esse instante, porém, voou depressa, e com ele a consideração. Inclinando-se para a moça, Jorge falou de um modo que nem a educação nem a índole, mas só o despeito explicava: — Por que há de gastar, com esses animais, uns beijos que podem ter melhor emprego? [...] Jorge tinha uma nuvem diante de si, através da qual não podia ver nem o seu decoro pessoal nem a dignidade da mulher amada; via só a mulher indiferente. Lançou-lhe as mãos na cabeça, puxou-a até si e antes que ela pudesse fugir ou gritar, encheu-lhe a boca de beijos.[...] Estela sufocara um gemido e cobrira o rosto com as mãos. Ouviam-se as vozes de Valéria e do mestre, que se aproximavam; Jorge teve um instante de incerteza e hesitação; mas a reação operara-se, e além disso, urgia apagar os vestígios daquela cena, de maneira que os não visse a viúva. — Aí vem mamãe, — disse ele baixinho a Estela; não tive culpa no que fiz, porque gosto muito da senhora.

Juntamente à relação de gênero, aqui alcunhada “amor” e “gostar muito” e “beijos que podem ter maior emprego”, soma-se a relação de dependência, a do mecanismo de favor, que permite a Jorge o privilégio de manipular, ameaçar e abusar concretamente de Estela. A dominação dos homens sobre as mulheres e o direito masculino de acesso sexual regular a elas estão em questão na formulação do pacto original. O contrato social é uma história de liberdade; o contrato sexual é uma história de sujeição [...] o pacto original é tanto um contrato social quanto sexual: é social no sentido patriarcal – isto é, o contrato cria o direito político dos homens sobre as mulheres -, e também sexual no sentido estabelecimento de um acesso sistemático dos homens ao corpo das mulheres. (SAFFIOTI, 2004)

É importante ressaltar que a relação desigual de poder que se estabelece entre essas duas personagens não se dá apenas pela posição social favorecida de Jorge, já que é Valéria quem exerce essa relação senhorial (uma presença quase patriarcal) de dependência com Estela, muito mais efetivamente que seu filho, que não representa nenhuma senhoria, mas que impõe a dominação através de sua masculinidade.

Tomando como ponto de partida a interpretação freyriana da formação da Família Brasileira sob o regime da Economia (sublinha-se:) Patriarcal, na obra Casa Grande & Senzala, é justamente a violação das mulheres negras torna-se a lembrança “da (mulata) que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-

vento, a primeira sensação completa de homem” – que apesar de soar fantasioso registra-se no campo sociológico, não mais na ficção. Para além do mecanismo de favor, estruturante das relações sociais do período colonial, a escravatura e o patriarcado eram os pilares desse sistema que estruturalmente violentava mulheres e estão disfarçadamente presentes na figura, nos discursos e nas ações de muitos personagens masculinos que povoam a obra de Machado de Assis. A dissimulação dos sentimentos em detrimento das conveniências também está presente no conto “A desejada das gentes”, mas reconfigura-se já que Divina Quintília está longe de ter semelhanças com Estela, afinal é possuidora de uma beleza arrebatadora e possuidora de muitas riquezas. O homem conta a história da disputa por tal mulher. O modo que o interlocutor narra a história ao amigo, numa estrutura de diálogo, sem presença de um narrador, apenas o discurso direto, faz com que a história assemelhe-se à contação de casos. Segundo ele, os tais rapazes do teatro evitavam falar dos bens da moça, que eram um dos feitiços dela, e uma das causas prováveis da desconsolação de uns e dos sarcasmos de todos. E dizia-me: - Escuta, nem divinizar o dinheiro, nem também banilo; não vamos crer que ele dá tudo, mas reconheçamos que dá alguma coisa e até muita coisa, - este relógio, por exemplo. Combatamos pela nossa Quintília, minha ou tua, mas provavelmente minha, porque sou mais bonito que tu. (“A desejada das Gentes”)

A relação que se trava entre Quintília e o contador da história gira em torno de uma suposta – já que, os recursos utilizados por Machado atribuem ambiguidade ao narrador em 1ª pessoa, que entrega a história de acordo com o que lhe é conveniente, redimensionando a nível estrutural o mascaramento – longa amizade que recusa em efetivar-se como casamento. Recusa específica justamente da mulher, que desfrutava de posição social muito mais privilegiada que o homem. A figura de Divina é (sub)julgada pela ótica e multiplicidade de vozes masculina que a definem, não a diminuindo (justamente por estarem muito abaixo dela socialmente), mas degradando sua imagem sexualmente, injuriando-a, remoendo-se. A altivez de ambas as mulheres trabalhadas aqui destoam do estereótipo de gênero que vigorava na sociedade de então. Mas o modo que são enxergadas pelos demais personagens incorporam toda a moralidade do sistema patriarcal. O embate entre um sentimentalismo que apenas disfarça um interesse de status social que motiva todas as relações faz-se novamente presente, recorrente denúncia machadiana. A ligeira romantização e dramatização que o interlocutor denota à sua história mascara o interesse inaugural que o motivou a apostar que conquistaria essa mulher.

No intervalo, respondeu ela à minha carta com um bilhete carinhoso, que rematava com esta ideia: "não fale de humilhação, onde não houve público." Fui, voltei uma e mais vezes e restabeleceram-se as nossas relações. Não se falou em nada; ao princípio, custou-me muito parecer o que era dantes; depois, o demônio da esperança veio pousar outra vez no meu coração; e, sem nada exprimir, cuidei que um dia, um dia tarde, ela viesse a casar comigo. [...] Não aceitou recusas nem pedidos meus; casou comigo à beira da morte. Foi no dia 18 de abril de 1859. Passei os últimos dois dias, até 20 de abril ao pé da minha noiva moribunda, e abracei-a pela primeira vez feita cadáver.

A idealização romântica que também permeia a constituição do caráter de Jorge, que ao longo do romance sempre enfatiza suas motivações excessivamente amorosas e romanticamente heroicas, permite o mascaramento das violências que pratica, isentando-o de culpa e responsabilidades. Culpa que leva Estela a deixar a casa. Não foi preciso interrogá-la. Logo na seguinte manhã, acabando de levantarse, entrou-lhe Estela na alcova, e pediu alguns minutos de atenção. Expôs-lhe a necessidade de voltar para casa; estava moça, devia ir prestar ao pai os serviços que ele precisaria de alguém e tinha o direito de exigir da filha. Não era ingratidão, acrescentava; levaria dali saudades eternas; voltaria muitas vezes; seria sempre obediente e grata. (Iaiá Garcia, p. 36)

A humilhação, artificialismo e resignação que ambientam a cena de despedida são retratos da vulnerabilidade da posição de Estela em tal situação. Sua condição de mulher e agregada é claramente expressa e a expôs à violência (ou ainda que ao tal amor irrealizável) e a resolução foi a abdicação, racional – e não sentimental – de permanecer na casa e na convivência daquelas pessoas. E para Valéria, que não deixa de representar o mundo patriarcal, a figura da moça intensifica-se como um possível obstáculo (que diminuiria socialmente sua família caso um casamento se efetivasse). Só então foram esclarecidos os motivos que arquitetam o restante da trama: a ida de Jorge à guerra, o casamento de Estela com Luís Garcia, a presença de Iaiá. Num mundo que funciona a partir da conveniência, as relações amorosas são estruturantes da complexa engrenagem do favor que tece as relações em Iaiá Garcia. O favor é nossa mediação quase universal – e sendo mais simpático do que o nexo escravista, a outra relação que a colônia nos legara, é compreensível que os escritores tenham baseado nele a sua interpretação do Brasil, involuntariamente disfarçando a violência, que sempre reinou na esfera da produção. [...] o favor assegurava às duas partes, em especial à mais fraca, de que nenhuma é escrava. Mesmo o mais miserável dos favorecidos via reconhecida nele, no favor, a sua livre pessoa, o que transformava prestação e contraprestação, por modestas que fossem, numa cerimônia de superioridade social, valiosa em si mesma. (SCHWARZ, 1973)

Assim, a representação menos grotescamente romantizada que a relação senhor de engenho–escrava dessa dominação masculina na figura de homens “de bem” (aqui Jorge, mas poderia ser o ciúme de Bentinho, o utilitarismo de Brás Cubas, o autoritarismo de alguns pais e patrões, as inúmeras traições que povoam os contos e romances,... os exemplos se desdobram ao infinito, incorporando de algum modo algum

elemento que reforce a presença da estrutura patriarcal) evidencia, dentro da estrutura de favor, o ambíguo discurso burguês que, ainda que em defesa da igualdade e da liberdade e da fraternidade, dentre outros ideais democráticos importados da Europa, no Brasil na prática reproduz exploração, dominação e violência, em prol do privilégio e do status. A crítica permanece urgente e necessária, pois poderia trazer à visibilidade e questionar as pombas e as liras que habitam o coração dos homens. A ambivalência que sempre constituiu a sociedade brasileira é presentificada e eternizada na ficção e, infelizmente, ainda faz-se presente cultural e socialmente, em séculos e ciclos e círculos de reprodução de violências patriarcais, pois o sistema em que estamos circunscritos cria novas maneiras de perpetuar-se.

Referências Bibliográficas

ASSIS, Machado de. Iaiá Garcia. São Paulo: Ática. 13ª ed, 1996. ______. “A desejada das gentes”. In: Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II. Disponível em: Acesso em: 15 nov. 2015. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: formação da Família Brasileira sob o regime da Economia Patriarcal. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 22ª ed., 1983. LAFETÁ, João Luiz. Simulação e personalidade. In: ASSIS, Machado de. Iaiá Garcia, op. cit., pp. 3-7. SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Perseu Abramo, 2004. SCHWARTZ, Roberto. As ideias fora do lugar. Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 3, p. 151-161, 1973.

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