Os \"pontos de contato\" entre Corpo, Sociedade, Dança e Educação Física

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OS “PONTOS DE CONTATO” ENTRE CORPO, SOCIEDADE, DANÇA E EDUCAÇÃO FÍSICA

Juliana Amelia Paes Azoubel, UFMG RESUMO: O que aproxima o coreógrafo Merce Cunningham, de Rudolf Van Laban, dos artistas vanguardistas do Judson Theatre, e do passista de frevo Nascimento do Passo? Esse artigo propõe um diálogo entre a Dança e a Educação Física, áreas do conhecimento que têm o corpo como principal objeto de estudo, e a aproximação dessas áreas dos Estudos Culturais e da Etnologia da Dança. Nesse artigo será descrito o projeto “Pontos de contato: interculturalidade, identidade e investigação do movimento nas práticas artísticas e pedagógicas da Dança no Brasil,” que deu origem ao processo de criação vivenciado na disciplina Prática de Dança VII da Licenciatura em Dança da UFMG e que culminou com a performance intitulada “Ruído Rosa”. Os desdobramentos desse processo serão apresentados como uma das muitas possibilidades do uso de temas geradores do conhecimento nas práticas corporais, sejam elas na área de Dança ou na área da Educação Física. Ao estabelecer relações entre corpo, sociedade, cultura e história, busca-se apresentar formas de se trabalhar com a interdisciplinaridade em processos de criação que provoquem o engajamento do envolvidos em questões sociais, culturais e corporais. As teorias de Michail Foucault, e suas relações de poder, as noções de corpo como capital simbólico de Pierre Bourdieu, a noção de corpo como fato social total de Marcell Mauss e as noções de percepção, imanência e transcendência de Merleau-Ponty aproximam as duas áreas de conhecimento que hoje ocupam os espaços das escolas brasileiras, e embasam propostas de construção e de transmissão da Dança na contemporaneidade. PALAVRAS-CHAVE: Dança. Educação Física. Dança Contemporânea. Corpo. Sociedade.

INTRODUÇÃO No período entre guerras, a história da Dança vive um dos seus maiores momentos com as explorações do movimento propostas por Rudolf Von Laban que, despretensiosamente, revoluciona a forma de se pensar e se fazer dança na Europa pós guerra e no mundo ocidental. Mas é somente na segunda metade do século XX, mais precisamente na década de 60, que a dança mundial tem seu movimento de vanguarda, quando um grupo formado por experimentalistas transforma em palco as ruas de Nova Iorque. As aspirações desse grupo de artistas se firmam com a rejeição das técnicas rígidas estabelecidas pelo movimento das três gerações da dança moderna americana. Ao invés de reproduzirem técnicas rígidas e os ensinamentos das escolas de movimentos estabelecidas até então, esse grupo enfatiza as expressões de corpos plurais e movimentos do cotidiano, invade espaços alternativos e espalha sua dança pelo mundo. É com base nesses movimentos, e na posição que a Europa e os Estados Unidos ocupam, como centros de poder e hegemonia política, que são ditadas as normas para o ensino da dança no mundo. Esse movimento afeta de forma positiva a dança mundial e não só fomenta os processos de criação em dança, como estabelece padrões estéticos e corporais a serem alcançados por quem faz dança em todos os continentes. Mas, países economicamente subdesenvolvidos, a exemplo do Brasil, que tendem a obedecer regras impostas pelos modelos economicamente mais bem sucedidos e culturalmente considerados mais avançados, muitas vezes importam os movimentos de outros países e se submetendo ideologicamente aos seus padrões. A dança da América do Sul, da Ásia e da África até os dias atuais refletem processos de colonização cultural na medida em que reproduzem, num processo de automatismo corpóreo, os padrões estéticos e culturais da Dança considerada 11º Seminário Nacional Concepções Contemporâneas em Dança – PRODAEX/EEFFTO/UFMG - novembro/2014

superior- e portanto mais transmissível quando se trata da formalização do conhecimento. Discutir no mesmo espaço questões que relacionam o frevo do passista Nascimento do Passo, com os processos de criação do coreógrafo americano Merce Cunnigham, com a pedagogia da Dança de Rudolf Von Laban e com os artistas vanguardistas da dança contemporânea de Nova Iorque é portanto uma proposta que requer o deslocamento do leitor de um lugar historicamente construído, sedimentado e transmitido. As escolas do Brasil, sejam elas de ensino formal ou informal, ao transmitirem qualquer conteúdo da área de Dança, além de refletirem uma orientação metodológica eurocêntrica, pautada em processos hierárquicos de transmissão das noções estéticas, de passos e de conceitos, dividem de forma arbitrária e mal fundamentada o ensino da Dança entre dois mundos, que nessa lógica são aparentemente dicotômicos: o erudito, definido pelo que é estrangeiro e o popular, definido pelo que é brasileiro. Vale salientar que a divisão da dança entre esses dois mundos reforça o estereótipo da dança feita no Brasil como uma dança exclusivamente folclórica. O que nos leva a concluir que todas as outras formas de se fazer dança no Brasil representam exclusivamente os referenciais europeus, e dentro dessa lógica devam ser classificadas como eruditas. Com essa visão, reforça-se, mesmo que num processo inconsciente de transmissão de conceitos, que as danças do Brasil sejam representadas exclusivamente como danças populares e atrelando esse olhar a fatores culturais, políticos e econômicos, elas passam a ser transmitidas somente como danças folclóricas. Ao apontar a hegemonia e a hierarquia estabelecidas nos processos de transmissão da Dança no Brasil, podemos analisar questões culturais e econômicas que constituem a dança de qualquer povo. Nesse sentido, a aproximação entre diferentes áreas do conhecimento, no caso específico a Dança, a Educação Física, a Sociologia e a Antropologia auxilia para uma compreensão mais ampla do corpo que dança. Reforço aqui que o corpo cultural, histórico e social, é o objeto de estudo comum à área de Dança e à área da Educação Física, o que aumenta a necessidade de diálogo entre as duas áreas. O diálogo entre áreas de conhecimento que dividem o mesmo espaço, no caso a escola, precisa existir para que se possa avançar na afirmação da Dança e para que a mesma possa funcionar como veículo de práticas engajadas, sociais, culturais e politicamente articuladas. Temos que partir do princípio de que essas duas áreas dividem o mesmo espaço: a escola, e trabalham com o mesmo objeto de estudo: o corpo. Faz-se necessário considerar o lugar de comunhão das duas áreas de conhecimento em questão, pois ambas interferem, constroem e transformam corpos que dançam. Partindo então dos lugares específicos que essas áreas ocupam, mas numa tentativa conciliadora, propõe-se pensar a Etnologia da Dança como um elo de ligação entre os corpos que dançam e as relações de poder historicamente estabelecidas. Na tentativa de proporcionar esse diálogo, a Etnologia da Dança aponta para questões que vão além do pensamento tecnicista de transmissão de conhecimento da Dança. Esse campo de estudos, que dialoga diretamente com os Estudos Culturais, aproxima a Dança de conceitos antropológicos e sociológicos, dentro do entendimento de que o corpo que dança é um corpo social, histórico e cultural, e portanto, interfere no meio, e torna-se produto do meio em que está inserido. 1 “PONTOS DE CONTATO”: UMA PROPOSTA METODOLÓGICA E INTERCULTURAL PARA O DIÁLOGO ENTRE AS ÁREAS DA DANÇA E DA EDUCAÇÃO FÍSICA Numa tentativa de síntese de experiências vivenciadas como artista-docente-pesquisadora da Dança no Brasil e nos Estados Unidos, inicialmente em Nova Iorque e depois na University of Florida, e como professora e coordenadora do Curso de Licenciatura em Artes da Universidade Federal do Paraná, o projeto “Pontos de Contato: interculturalidade, identidade e investigação do 11º Seminário Nacional Concepções Contemporâneas em Dança – PRODAEX/EEFFTO/UFMG - novembro/2014

movimento nas práticas artísticas e pedagógicas da Dança no Brasil” foi apresentado ao curso de Licenciatura em Dança da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais em 26 de fevereiro de 2014. Com o objetivo de construir um espaço de investigação e práticas de processos de criação e transformação da dança feita no Brasil na contemporaneidade, o projeto visa a inserção de estudantes em processos de criação artística, e de ensino-aprendizagem em práticas de dança inspiradas nos conceitos que constroem o campo de estudo da Etnologia da Dança. No referido projeto, defino como “pontos de contato” as diversas situações que podem ser criadas para possibilitar o contato entre a tradição e as criações em dança na contemporaneidade. Ao criar possibilidades de investigação, o projeto visa fomentar práticas de dança que possibilitem processos de criação em dança e que contribuam para o rompimento de paradigmas tão fortemente consolidados por processos culturais hegemônicos, entre eles as dicotomias que incentivam as distâncias entre o popular e o erudito e entre o fazer artístico e o fazer pedagógico da Dança. É nesse sentido que a proposta consiste na aproximação de universos aparentemente distantes do universo de atores sociais de diversas origens e vivências (coreógrafos contemporâneos, estudantes universitários e a cultura popular) e do uso de espaços diversificados (ruas, praças, companhias de dança, teatros, sala de aula) para a construção de um espaço de criação, investigação e prática da dança brasileira, uma dança feita no Brasil na contemporaneidade. Sendo assim, o projeto visa construir um espaço interativo e formar um grupo de pesquisa e práticas em dança para a investigação de processos de criação e transformação da dança feita no Brasil. Pretende-se utilizar as vivências em Dança e criar estratégias para a formação do artistaprofessor-pesquisador de dança. Para tal, um dos objetivos do projeto é a formação de um grupo de investigação da ressignificação do espaço e dos processos de criação e de exploração do movimento norteados pelas interfaces entre as tradições populares brasileiras e as criações contemporâneas em dança. A utilização de processos dialéticos de construção do conhecimento serve como base para a consolidação das práticas do projeto. A proposta utiliza “temas geradores do conhecimento” como estímulos para os processos de pesquisa e incentiva a criação, a investigação, e o desenvolvimento de movimentos individuais que sempre serão resultados das vivências propostas. A utilização de “props” (inglês para objetos de uso cotidiano) e de símbolos de afirmação das “identidades dançantes” (a exemplo das sombrinhas de frevo que representam a identidade dançante dos passistas de frevo de estado de Pernambuco) reforçam o entrelace entre teoria e prática, um dos eixos norteadores da proposta. Dialogar com objetos que podem ser símbolos de identidade e com símbolos de identidade que podem ser transformados em objetos de palco, também é um processo de ressignificação, e uma forma de enfatizar os “pontos de contato” entre a tradição e a contemporaneidade. Partindo do pressuposto de que as criações em Dança no Brasil na contemporaneidade ainda encontram-se permeadas por noções historicamente construídas de uma dança eurocêntrica e norteada por princípios hegemônicos, primeiramente, o projeto planeja a formação de um grupo de pesquisa/ação e vivências em dança, que motivado por discussões e práticas baseadas nos princípios da Etnologia da Dança e dos Estudos Culturais, entrelaça as teorias de Marcell Mauss, Pierre Bourdieu, Michel Foucault e Merleau Ponty. No planejamento inicial do projeto, as vivências acontecem na forma de leituras de textos e “rodas de conversas” sobre os temas geradores de conhecimento; observações etnográficas das tradições populares brasileiras e das criações contemporâneas em dança inspiradas no fazer popular; registro e análise do material encontrado; e práticas de criação e performances em espaços alternativos. Outra ação prevista no projeto é a criação de um espaço para as práticas em dança, que pode ser uma sede fixa ou um espaço itinerante. Metodologicamente, a fixação de um espaço para as práticas em dança traz vantagens artísticas e pedagógicas, a exemplo da criação de um “locus” que facilita a construção da identidade do grupo. Em contrapartida, a opção de utilizar vivências 11º Seminário Nacional Concepções Contemporâneas em Dança – PRODAEX/EEFFTO/UFMG - novembro/2014

itinerantes de exploração de movimentos abre um leque de possibilidades para processos de ressignificação dos espaços dançantes. Vale salientar que, concomitantemente às vivências, interações e pesquisas em dança, o projeto prevê rotinas de registro e a construção de blogs e websites. O projeto tem como principal objetivo: “Criar estratégias de ensino-aprendizagem das danças brasileiras na contemporaneidade para a formação do professor de dança-artista-pesquisador com ênfase na desconstrução das dicotomias historicamente estabelecidas entre o fazer artístico e o pedagógico, o erudito e o popular.” Além disso pretende-se: 1. Criar um espaço de interação e um grupo de pesquisa e práticas em dança para a formação do professor/artista/pesquisador da dança brasileira na contemporaneidade. 2. Construir propostas metodológicas que possam ser utilizadas nos processos de criação e ensino de dança com foco na cultura brasileira e suas influências e que visem: a. incentivar processos de investigação e criação em dança à partir da recriação e da ressignificação do espaço com o uso de objetos de uso cotidiano; b. Explorar possibilidades de movimento com o uso de objetos e seus significados relacionados com a afirmação da “identidade dançante” (sombrinhas de frevo, por exemplo); c. relacionar investigação, criação e exploração do movimento; d. Utilizar processos e criações coreográficas como recursos pedagógicos 3. Reconhecer, ressignificar e aproximar os diversos “espaços dançantes” (palco, rua, praças, comunidade, escola) e os seus “atores” (coreógrafos contemporâneos e brincantes da cultura popular) de práticas de dança contextualizadas. 4. Sistematizar e construir material de divulgação da pesquisa/ação em seus campos teóricos e práticos (aulas/espetáculo, performances, artigos, blogs, sites, apresentação em congressos e seminários). 5. Possibilitar que professores de dança em formação reconheçam e vivenciem etapas da produção de espetáculos e performances como espaços de construção do conhecimento artístico-pedagógico. 1.2 Conectando os “pontos de contato” no curso de Licenciatura em Dança da UFMG As primeiras ações do projeto aconteceram no primeiro e no segundo semestre de 2014. A abordagem utilizada, em consonância com os estudos da Etnologia da Dança e dos Estudos Culturais foram baseadas em processos dialógicos de investigação e construção de conhecimento. É importante lembrar que as pesquisas mais atuais no campo da Etnologia da Dança, sobre os estudos culturais em dança, tal como afirma a coreógrafa e etnógrafa da dança Joan Frosch, têm os seguintes objetivos (minha tradução): 1. Definir abordagens para o estudo da dança nos termos de sua própria cultura, analisando, o que e como a dança se ressignificar em relação ao seu contexto. 2. Analisar as tradições e suas performances como expressões de valores e formas de conhecimento. 3. Investigar como as performances constroem e mediam as noções sociais de gênero, status, religiosidade e agência do sujeito. 4. Explorar os limites da ética e da estética nas performances e na sociedade em geral. 5. Examinar a relação da dança com as formas de organização social, por exemplo, rituais, educação, recreação, expressão estética, processos de cura, rituais de passagem, trabalho. 6. Analisar as dinâmicas da dança em relação as tensões e mudanças da sociedade. 7. Analisar o papel do “performer” na sociedade e explorar processos de criação em dança. 8. Reconhecer o papel do pesquisador em dar forma ao material pesquisado e explorar as relações de mudanças estabelecidas entre o performer e o pesquisador no mundo post colonial. 9. Construir caminhos para a criação de movimento através de uma variedade de possibilidades: observação, “embodiment”, relação de identidade, produção de material escrito, discussões, colaborações e performances. 10. Determinar como e o que a pesquisa e a participação em processos de criação e performance motiva além do nosso próprio despertar a compreensão das formas que já nos 11º Seminário Nacional Concepções Contemporâneas em Dança – PRODAEX/EEFFTO/UFMG - novembro/2014

são familiares. Determinar como práticas etnográficas específicas podem nos ajudar a desenvolver pesquisas de responsabilidade social no século XXI. Determinar qual o papel que uma perspectiva intercultural tem no futuro das artes e suas conexões com as partes mais negligenciadas do mundo (Frosch, 1999, p. 251).

Com base nos princípios acima enumerados, uma proposta teórico-prática associada à necessidade de reconhecimento do espaço no curso de Licenciatura em Dança da UFMG, serviu como ponto de partida para as primeiras ações. Como um dos objetivos do projeto era criar possibilidades de exploração e investigação do movimento, e de compreensão e engajamento dos estudantes no contato entre cultura popular e erudita, a primeira ação do projeto aconteceu na disciplina “Ética e Crítica da Dança”, que resultou na criação do blog “EtC Dança”, um ponto de contato entre teoria e prática, ética e crítica, artista e público, a Universidade Federal de Minas Gerias e a comunidade artística de Belo Horizonte (http://etcdanca.wordpress.com acessado em 30/10/2014 as 11:34h).

Figura 1: Página de Abertura do Blog EtC Dança.

Como essa construção buscou-se fomentar processos de construção contínuos e dialéticos, onde as fases se entrelaçaram com os princípios da Etnologia da Dança e com os conceitos interdisciplinares dos Estudos Culturais em dança, e as salas de aula do curso de Licenciatura em Dança viraram espaços privilegiados para as ações do projeto, reafirmando assim a importância de se estabelecer “pontos de contato” entre os princípios norteadores do projeto e as atividades de ensino da universidade. Acredita-se que esses “pontos de contato”, quando bem explorados, podem trazer resultados que são essenciais para a quebra das barreiras historicamente construídas, a exemplo das investigações das relações entre cultura popular e erudita, do fazer artístico e do fazer pedagógico, das leituras, discussões e vivências em dança nas dependências da UFMG e na comunidade artística em BH, de práticas etnográficas de coletas e sistematização de dados através da observação/participante, de entrevistas, da construção de diários de bordo e de processos de vivências intensivas e criação em dança através de performances. Para isso, é importante que esses processos são embasados por contínuas sistematizações da proposta metodológica com a produção de material didático, apresentação de artigos em congressos e seminários, e da construção de blogs, vídeos e sites. Uma vez que o que está em questão é a quebra de fronteiras, o projeto prevê a exploração de caminhos que entrelaçam os saberes de coreográficas estrangeiros com os saberes locais. Uma forte inspiração para a fundamentação do projeto, é a prática do coreógrafo contemporâneo Merce Cunningham, com base no uso do “acaso”, assim como a utilização de “props,” inspiradas nas práticas do coreógrafo americano Mark Morris. Além delas, o Método Pilates, conjunto de princípios para condicionamento físico e reabilitação, criado por Joseph Pilates, funciona no projeto como recurso pedagógico para processos de criação do movimento e como tema gerador do 11º Seminário Nacional Concepções Contemporâneas em Dança – PRODAEX/EEFFTO/UFMG - novembro/2014

conhecimento para a exploração do movimento individual e das criações coletivas que envolvem os participantes. Desde seu início, o projeto busca desenvolver uma pesquisa com base no trinômio: investigação, criação e exploração do movimento para práticas artísticas e pedagógicas em Dança. Nas vivências propostas, os objetos a serem utilizados, podem e devem ser modificados de acordo com o contexto encontrado. A ordem dos fatores, propositalmente, altera ambos, processo e produto. E por essa razão, a partir do desenvolvimento e interesse do grupo, a ordem e o tempo de duração das fases do projeto serão sempre flexibilizados. Sendo assim, é essencial a sistematização de estímulos e situações dançantes com o objetivo de explorar o movimento humano em suas diversas possibilidades. 1.3 Os “Pontos de contato” como uma prática intercultural e investigativa O nome do projeto, “Pontos de contato: interculturalidade, identidade e investigação do movimento nas práticas artísticas e pedagógicas da Dança no Brasil” faz referência a fundamentação teórica, mas também a um dos recursos pedagógicos utilizados nos processos de criação em Dança que foram criados especialmente para as práticas do projeto: os pontos coloridos confeccionados de material sintético e que são espalhados pelo chão em cada prática do projeto. Nessa abordagem, todas as práticas se iniciam com a ressignificação do espaço físico a ser explorado, inicialmente transformado pelos pontos coloridos. A nomenclatura, ao mesmo tempo que descreve o título do projeto e os pontos espalhados pelo chão, faz uma referência metafórica as questões que podem conectar universos aparentemente distintos como o popular e o erudito, o teórico e o prático, o artístico e o pedagógico.

Figura 2: Prática com os “pontos de contato” realizada com a turma da disciplina Danças e Necessidades Especiais do Curso de Licenciatura em Dança da UFMG

Extrapolando esses significados, os pontos coloridos e os objetos utilizados na proposta passam a fazer referência as possíveis ligações num processo de criação em dança. A tabela 1 reflete a organização da proposta e sua nomenclatura. Os seguintes termos servem como orientações para as fases a serem desenvolvidas no projeto:

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Tabela 1: Nomenclatura das fases a serem desenvolvidas no projeto “Pontos de contato: interdisciplinaridade, “Pontos de contato: interculturalidade, identidade e investigação do movimento nas práticas artísticas e pedagógicas da dança no Brasil.” Pontos de Partida

O nosso corpo, lugar de início do movimento.

Entre pontos

A criação de movimentos a partir da ligação dos “pontos de contato” espalhados pela sala.

Entre linhas

A utilização dos “pontos de contato” na construção de linhas que servirão com novos espaços e “espaços de conexão” para a criação de movimentos.

Entre laços

Os “pontos de contato” que surgem com a interação com o corpo do outro, com os pontos no chão e espaços criados para exploração do movimento A ressignificação da sala de aula. Utilização de “pontos de contato” fixados nas paredes, que passam a ser consideradas também como “espaços dançantes”.

Entre tantos

Entre lugar

Entre o palco e as ruas, entre o erudito e o popular, surgem mais possibilidades de exploração do movimento. Bebemos das fontes da tradição e transformamos o movimento com a nossa criação. Essa fase da vivência dançante é constituída de processos de abstração com base em elementos da tradição, criando assim os “pontos de contato” entre o popular e o erudito e a exploração do movimento individual.

Banco de dados

Inspirada no Programa “Dancing for Parkinsons Desease” desenvolvido pela Mark Morris Dance Company, a prática objetiva a reflexão sobre o ensino da dança e suas diferentes culturas, com seus diferentes espaços dançantes. Uma forma de adaptar o processo de criação à idade, à condição física e aos corpos dos participantes, assim como de ressignificar o espaço com a utilização de objetos que limitam o ou expandem as possibilidades da criação do movimento individual e coletivo.

Os termos “pontos de contato”, “pontos de partida”, “entre pontos”, “entre linhas”, “entre laços”, “entre tantos”, “entre meios”, “entre lugar” e “banco de dados” constituem uma nomenclatura elaborada para o projeto “pontos de contato” e visa integrar a prática de dança em sala de aula aos conceitos desenvolvidos por coreógrafos e pensadores do movimento.

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Figura 3: Prática de Dança na disciplina Dança e Necessidades Especiais do curso de Licenciatura em Dança da UFMG. Utilização de bancos de plásticos, denominados “bancos de dados”, e também considerados “pontos de contato”.

Figura 4: Prática de Dança na disciplina Dança e Necessidades Especiais do curso de licenciatura em Dança da UFMG. Utilização de bancos menores, com cores diferentes, outra forma de se estimular a criação de movimentos com pontos de contato.

No desenvolvimento do projeto, todas essas fases constituem partes do processo de investigação, de criação e de exploração do movimento que objetiva a formação do professor/artista/pesquisador. Sendo assim, o aprofundamento de cada fase depende do tempo que pode ser investido na mesma. A flexibilidade da proposta objetiva uma prática inclusiva, com base na diversidade de corpos e vivências dos participantes, sempre considerando a complexidade das relações a serem estabelecidas, a diversidade dos corpos e os objetivos da proposta para aquela fase de exploração do movimento. Investigar, explorar e criar movimentos em suas múltiplas possibilidades são objetivos de todas as fases da proposta. 2 OS “PONTOS DE CONTATO”, OS PROCESSOS DE CRIAÇÃO, E OS CORPOS DÓCEIS Em seu livro “Corpo, comunicação e cultura: a dança contemporânea em cena”, a autora Denise Siqueira aborda a dança cênica contemporânea como fenômeno de comunicação e consequentemente como reflexo da sociedade em que ocorre. Ao falar de Foucault, Mauss e Merleau-Ponty, numa perspectiva transdisciplinar a autora tece algumas considerações que inspiram esse estudo. Para Siqueira, “Tratar de dança é também refletir acerca do corpo e das mudanças que sobre ele operam as diferentes culturas, uma vez que o corpo é um dos elementos fundamentais que 11º Seminário Nacional Concepções Contemporâneas em Dança – PRODAEX/EEFFTO/UFMG - novembro/2014

compõem o sistema dança” (Siqueira, 2006 p.6). Concordando com a autora, propõe-se aqui uma reflexão sobre alguns conceitos desenvolvidos por Foucault em sua obra “Vigiar e Punir” (1989) para estabelecermos o lugar do corpo na contemporaneidade. A obra está dividida em quatro partes: suplício, punição, disciplina (conceito de corpos dóceis e o panoptismo) e prisão. Ao falar de corpo, Foucault afirma: “As relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais... o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso” (Foucault, 1989, p.28). Aproximando as questões abordadas por Foucault das relações estabelecidas com a Dança dentro e fora dos muros da escola, importa-nos considerar que a submissão do corpo pode se dar pela coerção física e ideológica ou por controle implícito e oculto mas presente nos discursos políticos, educativos, comunitários, familiares, médicos, jurídicos, e etc. No século XXI, ainda temos um sistema educacional onde, muitas vezes, se educa castigando. E o castigo está sempre associado ao não-movimento, à imobilidade, à não ação corporal. Castigar implica em deixar o aluno parado, restrito, sem acesso aos espaços desejados, e muitas vezes a qualquer tipo de locomoção. Os espaços escolares também estão segmentados dentro de padrões e de noções disciplinares que associam o movimento à liberdade e o não movimento à punição. As salas de aulas fechadas, com carteiras enfileiradas são espaços de confinamento, porém considerados espaços de aprendizagem, e os pátios, que são destinados aos curtos momentos de lazer e de movimento, são lugares onde os corpos se movem livremente, e obedecem aos limites de espaço e tempo estabelecidos para momentos de lazer, e não de aprendizagem. É nesse cenário, que as áreas da Educação Física e da Dança cumprem seus papéis e podem ser úteis na ressignificação dos corpos e dos movimentos individuais. Na escola, o movimento também acontece durante as aulas de Educação Física que, dependendo do professor pode vir a incluir aulas de dança. E aqui introduzimos uma das questões que conectam nossa análise: a dança ensinada na Educação Física brasileira, quando ensinada, também reflete a hierarquização e a colonização do movimento aos quais os corpos brasileiros têm se submetido. Vale salientar que, no sistema de ensino brasileiro, os professores de Educação Física podem escolher o que ensinar em suas aulas, e por vezes quando os mesmos não têm formação em dança, não ensinam dança, ou ainda, tentam transmitir uma dança associada à reprodução de passos e criações coreográficas formatadas para apresentações em datas comemorativas (ressalto que esse não é um problema exclusivo do professor de Educação Física, muitos professores formados em Dança trabalham com a dança reproduzindo esses padrões). Sendo assim, a dança na escola fica ainda mais hierarquizada, pois além de refletir esse processo já mencionado de colonização dos corpos, enfatiza processos de ocupação de espaços que são, por natureza, hierarquizados, e tanto limitam processos de criação em dança quanto formatam os corpos envolvidos. E um fator retroalimenta o outro: corpos formatados resultam em mentes menos criativas, e espaços hierarquizados criam “corpos dóceis”, usando a terminologia utilizada por Foucault. 3

OS PROCESSOS DE CRIAÇÃO E AS NOÇÕES DE FATO SOCIAL TOTAL, DE CAPITAL SIMBÓLICO, E DE PERCEPÇÃO, IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA,

Segmentar o saber em diversas disciplinas é uma característica da nossa cência. Para o sociólogo Marcell Mauss, essa prática é insuficiente para explicar os fenômenos sociais contemporâneos (Siqueira, 2006 p. 43). Mauss propõe o desaparecimento das dicotomias tão afirmadas como indivíduo e sociedade, sujeito e objeto, natureza e cultura, à medida que os 11º Seminário Nacional Concepções Contemporâneas em Dança – PRODAEX/EEFFTO/UFMG - novembro/2014

fenômenos psicofisiológicos são explicados pela sociologia. Seu texto, “As técnicas corporais,” foi primeiramente apresentado em um congresso de psicologia e afirma a necessidade de entrelace entre perspectivas comportamentais, fisiológicos e neurológicos, o que ele chama de “fato social total.” O autor denomina de técnicas corporais, “as maneiras como os homens, sociedade por sociedade, e de maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos (Mauss, 1974a p. 211). Assim, propõe a compreensão das atitudes corporais como representações sociais, o corpo passa a ser um “fato social, passível de ser lido de diferentes modos, de acordo com o grupo social e cultura a qual pertença, e ao mesmo tempo “é o primeiro e mais natural instrumento do homem” (idem, p.217). Mauss classifica as técnicas do corpo de acordo com as fases do desenvolvimento humano: técnicas do nascimento e da obstetrícia, da infância, da adolescência e da idade adulta. Com base nesses princípios, sugerimos a análise e inserção da nossa Dança na escola e na universidade como um “fato social total”. Para o mesmo autor: “não há técnica e tampouco transmissão se não há tradição” (idem, ibidem). Mas como reconhecer essa Dança como símbolos das nossas técnicas corporais se a escola brasileira e a formação dos professores de Dança, sejam eles formados pela Educação Física ou pelos bacharelados e licenciaturas em Dança, ainda preconizam uma visão estereotipada e pautada em noções dicotômicas? Na tentativa de propor ações e a quebra dos paradigmas já estabelecidos, talvez precisemos pensar no papel de representação de classe que os artistas da dança americana e europeia tiveram ao criar novas formas de se dançar. O que se aprende hoje no Brasil, uma dança importada, representou um dia nos Estados Unidos e na Europa, a história e a luta desses artistas dentro das sociedades e dos seus países de origem. Alguns expoentes dessa classe artística, que foi importada para a formação dos professores de Dança no Brasil, são exemplos do elo necessário entre dança, história e sociedade. Na Europa ocidental, Laban baseia seus movimentos nos estudos de uma classe operária que sobrevivia ao período pós guerra, Wigman, sua discípula de maior projeção artística, representa em seus movimentos a angústia vivida por seus conterrâneos, Kurt Jooss fala sobre os jogos políticos aplicados ao seu povo. Entre os Estados Unidos e a Europa, a americana Isadora Duncan propõe um movimento leve, baseado nos movimentos da natureza. Na costa oeste americana, Ruth St. Dennis e Ted Shawn buscam conectar suas danças com os princípios da dança oriental que tanto lhes interessavam. Martha Graham, considerada a matriarca da dança moderna, fala de uma dança interior que representa as angústias de uma mulher americana ao movimentar como árvores e deuses orientais e ao invés disso, opta pela representação das questões psicológicas que vivia. Doris Humphrey e Ted Shawn criam formas para se coreografar o movimento americano, argumentando que precisavam olhar para o movimento do seu próprio povo, o movimento que nascia em solo americano, representado por corpos também americanos. José Limon, um mexicano radicado nos Estados Unidos, apresenta questões de gênero inerentes ao seu lugar naquela sociedade e se destaca por uma dança que representa a força masculina no palco. Merce Cunnigham e Lester Horton se destacam por criarem escolas que propõem a ressignificação de um movimento com características americanas, frutos de uma sociedade americana. Alvin Ailey que assume a escola de seu professor Lester Horton, afirma sua dança com base em suas experiências gospel, prática representativa da sociedade afro americana da metade do século XX. A lista seguiria até os dias atuais, com a inclusão de outros expoentes da dança moderna e contemporânea americana e europeia, e seria preenchida com toda a geração do Judson Dance Theatre que, como exposto anteriormente, ocupa a Nova Iorque da segunda metade do século XX propondo novas formas de se dançar. Além deles, Pina Bausch revoluciona o cenário da dança na Alemanha. Mas a dança não tem fronteiras e essas revoluções são espalhadas pelo mundo. Os artistas da dança viajam, migram, fundam escolas, espalham e consolidam suas formas de fazer 11º Seminário Nacional Concepções Contemporâneas em Dança – PRODAEX/EEFFTO/UFMG - novembro/2014

dança. E isso não é problema. A questão que propomos analisar aqui não diz respeito à importação ou exportação da dança, já que esse é um fenômeno inevitável, principalmente se consideramos a globalização da atualidade. Analisamos aqui, a passividade da cena artística de países menos desenvolvidos (economicamente), e que abraçam as técnicas corporais de outros povos como as técnicas ditadoras de suas danças. Vale ressaltar que incorporar elementos de outra cultura também é inevitável para qualquer cultura, mas a questão se agrava quando fazemos desses elementos, pilares norteadores de nossas e ditadores de regras da nossa dança e de nossos processos de criação, dentro e fora da escola. O antropólogo Pierre Bourdieu compreende o corpo como objeto de pesquisa e de construção das expressões artísticas ao propor que o corpo pode estar submetido ao poder simbólico. O autor define como poder simbólico, “Esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe são sujeitos ou mesmo que o exercem (Bourdieu, 1989, p.7). Ao partir dessa compreensão localizamos as transmissões de movimentos, incluindo entre elas as práticas de Educação Física e de Dança na escola, como processos de transformação e transmissão de conhecimento para corpos que são, por natureza, mesmo que culturalmente construídos, vulneráveis e finitos. Pensar o corpo como algo a ser transformado por qualquer prática de movimento também é essencial para que compreendamos o corpo como algo a ser construído por cada experiência vivida. Nesse sentido, as técnicas de preparação física, reabilitação e prevenção se unem as técnicas de educação somática na busca de uma dança mais plural, mais inclusive, que considere a diversidade de corpos encontradas, e as diferentes abordagens para se trabalhar com esses corpos. Essas técnicas também funcionam como elos de ligação entre as duas áreas do conhecimento. Seguindo as reflexões do autor, ao cnsiderarmos o corpo como capital simbólico, assumimos a necessidade de investirmos em práticas conscientes e seguras, e que possam proporcionar a todos os corpos total capacidade de entrega a experiências de movimento que sejam de fato transformadoras. Nesse sentido, as duas áreas de conhecimento se unem novamente, numa perspectiva interdisciplinar de formação de professores e de aplicação de práticas que, a exemplo do Método Pilates, Feldenkrais, Alexander, entre tantos outros, são influenciados por bailarinos em suas construções, mas são também objetos de estudos da Educação Física, e priorizam o bom funcionamento do principal “instrumento” de trabalho das duas áreas de conhecimento: o corpo. O uso dessas tecnologias também nos faz ressignificar o corpo. O filósofo MerleauPonty (1971) citado por Siqueira (2006) nos afirma que “se conhece o mundo por intermédio do corpo e o mundo conhece o sujeito através do seu corpo” (Meraleau-Ponty apud Siqueira 2006, p. 62). Os recursos tecnológicos podem transformar corporalmente um indivíduo e estarão sempre relacionados com o rompimento de fronteiras característicos da pós-modernidade. Se a formação dos corpos através de exercícios, do trabalho e da escola foi objeto de estudo da modernidade, a diversidade dos corpos e a contextualização do trabalho feito com eles são características da pósmodernidade. Ao se referir à necessidade de integração entre o indivíduo e sua visão de mundo, o filósofo afirma: “Não posso me pensar como uma parte do mundo, como o simples objeto da biologia, da psicologia e da sociologia, nem fechar sobre mim o universo da ciência. Tudo o que sei do mundo, mesmo devido à ciência, o sei à partir de minha visão pessoal ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência nada significariam (MerleauPonty, 1971, p. 61).

Com base nessas reflexões, o filósofo desenvolve as noções de percepção, imanência e transcendência, conceitos que relacionam sujeito e objeto, corpo, indivíduo e sociedade. Para o autor, a noção de percepção é à relação estabelecida entre o sujeito e um determinado objeto, a exemplo de um espetáculo que é corpo, palco, iluminação, música, plateia, entre tantas outras 11º Seminário Nacional Concepções Contemporâneas em Dança – PRODAEX/EEFFTO/UFMG - novembro/2014

coisas. A noção de imanência é definida pelo fato imediatamente dado e que não é estranho ao sujeito, e a noção de transcendência é definida pelo que vai além do imediatamente dado, ou seja, toda percepção indica uma não percepção. Partindo dessas noções, relacionamos as percepções corporais com seus contágios culturais. Para o autor: “O seu corpo é o seu ponto de vista sobre o mundo” (Merlaeau-Ponty, 1971, p. 83). A percepção que temos sobre o mundo e seus fenômenos também está diretamente relacionada com a cultura e sociedade que estamos inseridos, a nossa percepção não é neutra, imparcial ou pura. A filosofia de Merleau-Ponty propõe que o corpo seja uma síntese entre a ambiguidade existente entre imanência x transcendência, e situa o corpo como algo que precisa ser entendido como forma de expressão, sempre com base na sua intenção e no seu poder de significação. Os comportamentos humanos podem então ser classificados em “biológicos e culturais”, e sendo assim, os movimentos dançados são frutos das experiências vividas e percebidas, a plateia transcendo o que é apresentado, e toda conduta humana relaciona psiquismo e fisiologia. O corpo é a aparência da interioridade, é um instrumento que habita o mundo, e o homem é consciência do seu corpo e corpo da sua consciência, espírito do seu corpo e corpo do seu espírito. Viver é estar no mundo refletindo-o e por, e nele, refletindo-se. O corpo é ao mesmo tempo, sujeito e objeto. Com essas relações analisamos o corpo e a Dança na contemporaneidade à partir da experiência social e cultural de um indivíduo em seu grupo. O indivíduo cria o seu discurso a respeito da sociedade em que vive, o movimento é o discurso do corpo. Na contemporaneidade, temos leituras diferenciadas de atores sociais distintos. Os gestos e movimentos são construídos e transmitidos socialmente, e portanto, as manifestações artísticas refletem o contexto cultural vivido. Para nossa análise, consideremos o corpo e a Dança na contemporaneidade como construção e expressão do pensamento. O corpo contemporâneo é ao mesmo tempo, objeto pensante e objeto pensado, ele é espírito, psique, corpo físico e alma que obedece a regras sociais e culturais, determinando-as, mas também sendo determinado por elas. Nesse sentido, o corpo do outro passa a servir como modelo para as nossas criações, e pode vir a ser símbolo e signo, portador de mensagens, de atos físicos e psíquicos. Ao mesmo tempo, a imagem do corpo como atributo da individualidade é construída à partir de um modelo divulgado pelos meios de comunicação de massa. Em consequência disso, as noções hierárquicas sobre Dança são reforçadas e transmitidas através das gerações. É nesse cenário, complexo e desafiador, formado por fatores sociais, culturais e históricos, que propomos nesse trabalho uma visão mais inclusiva, menos preconceituosa, que quebre com as barreiras históricas já estabelecidas e integre várias áreas do conhecimento em prol de uma Dança que adentre os muros da escola brasileira de forma mais diversa e plural. A proposta aqui apresentada, além de apresentar uma abordagem metodológica pensada para tal fim, reforça a necessidade e um entendimento social, cultural, pedagógico e político para que as portas das escolas e das universidades sejam abertas para a união dos saberes, para a integração das diversas áreas de conhecimento, principalmente quando essas áreas comungam do mesmo objeto de estudo, no caso da área de Dança e da área de Educação Física: o corpo humano. 4

OS “PONTOS DE CONTATO” E OS TEMAS GERADORES DO CONHECIMENTO

Apesar do estabelecimento da Dança como área do conhecimento nos séculos XX e XXI no Brasil e no mundo, as diferenças corporais nem sempre servem como base sólida para os processos de criação e para a formação do professor de Dança, salvo nas disciplinas específicas de Dança e Necessidades Especiais e/ou Dança e inclusão social que constituem, na maioria das vezes apenas 10% do currículo dos cursos de graduação em Dança no Brasil. 11º Seminário Nacional Concepções Contemporâneas em Dança – PRODAEX/EEFFTO/UFMG - novembro/2014

Aproximando as questões abordadas por pensadores sociais das relações estabelecidas com a Dança dentro e fora dos muros da escola, como já exposto, é necessário considerarmos a submissão do corpo que pode se dar pela coerção física e ideológica ou por controle implícito e oculto mas presente nos discursos da nossa sociedade. Na atualidade, Ainda temos uma escola onde, muitas vezes, se educa castigando. E o castigo está sempre associado ao não-movimento, à imobilidade, à limitação dos movimentos. Castigar implica em deixar o aluno parado, restrito, sem acesso aos espaços desejados. E os espaços escolares também estão segmentados dentro de padrões e de noções disciplinares que associam o movimento à liberdade e o não movimento à punição, a exemplo das salas fechadas, com carteiras enfileiradas que são espaços de confinamento, mas considerados espaços de aprendizagem. E os pátios, que são destinados aos curtos momentos de lazer e de movimento, onde os corpos se movem livremente, e obedecem aos limites de espaço e tempo estabelecidos, mas não aprendem, não constroem aprendizados significantes. Para amenizar tal quadro, a disciplina Educação Física entra em ação. Na escola, a exploração do movimento também acontece durante as aulas de Educação Física que, dependendo da formação do professor pode vir a incluir a dança. E aqui introduzimos uma das questões que conectam nossa análise. A dança ensinada na educação física brasileira, quando ensinada, também reflete a hierarquização a colonização do movimento aos quais os corpos brasileiros têm se submetido. Vale salientar que, no sistema de ensino brasileiro, os professores de Educação Física podem escolher o que ensinar em suas aulas, e por vezes quando os mesmos não têm formação em dança, não ensinam dança, ou ainda, quando ensinam dança, esses professores transmitem uma dança associada à reprodução de passos e criações coreográficas formatadas para apresentações em datas comemorativas. Com esse cenário, a dança na escola fica ainda mais hierarquizada, pois além de refletir esse processo de colonização dos corpos já mencionados, enfatiza um processo de ocupação de espaços hierarquizados que tanto limita processos de criação em dança quanto formata os corpos. E um fator retroalimenta o outro: corpos formatados resultam em mentes menos criativas. Espaços hierarquizados resultam em corpos dóceis, usando a terminologia utilizada por Foucault. Com base nos princípios já discutidos anteriormente, sugerimos a análise e inserção dos temas geradores do conhecimento na escola e práticas artísticas e pedagógicas como um “fato social total”. Ao sugerir essa abordagem, é inevitável que indaguemos a ausência de maiores aprofundamentos desses temas dentro da escola brasileira, seja como conteúdo da Educação Física, seja como conteúdo da Dança. Mas como reconhecer esses temas geradores como símbolos das técnicas corporais se a escola brasileira e a formação dos professores de Dança ainda preconizam uma visão compartimentada dos processos de ensino em dança? Ainda se ensina dança nas escolas brasileiras como se o corpo fosse um simples instrumento para execução de passos, dissociado de questões sociais, políticas, econômicas, cultuais e principalmente humanas. 4.1 A cor rosa como tema gerador de conhecimento na dança e os tons de rosa como “pontos de contato”. Quem assistiu aos movimentos dos doze corpos que ocuparam os espaços do campus da UFMG e a praça da Liberdade na cidade de Belo Horizonte no mês de outubro de 2014 pôde perceber a intensidade dos processos artísticos e pedagógicos vivenciados por todos os envolvidos na performance apresentada. “Ruído Rosa”, título da performance que será descrita nas linhas abaixo, vai muito além de um processo de criação, e proporciona para professores de dança em formação, a possibilidade de trabalhar com temas geradores do conhecimento. Nas linhas abaixo descreveremos e analisaremos o processo de criação vivenciado na disciplina Prática de Dança VII do curso de Licenciatura em Dança da UFMG e apresentaremos os desdobramentos desse processo como uma das muitas possibilidades de se abordar temas geradores do conhecimento nas práticas 11º Seminário Nacional Concepções Contemporâneas em Dança – PRODAEX/EEFFTO/UFMG - novembro/2014

corporais. Ao estabelecer relações entre corpo, sociedade, cultura e história como uso de temas geradores do conhecimento, o processo de criação da obra teve como base reflexões sobre as teorias de Michail Foucault, e suas relações de poder, nas noções de corpo como capital simbólico de Pierre Bourdieu, na noção de corpo como fato social total de Marcell Mauss e nos conceitos de percepção, imanência e transcendência de Merleau-Ponty. Ao descrever o processo de criação de “Ruído Rosa” também procuro aproximar duas áreas de conhecimento que hoje ocupam os espaços das escolas brasileiras de conceitos que podem embasar propostas de construção e de transmissão da Dança na contemporaneidade. Como já exposto, a proposta é estabelecer um diálogo entre a Dança e a Educação Física, duas áreas do conhecimento que têm o corpo como principal objeto de estudo. Foi pensando nas diferenças corporais e nos recursos pedagógicos que podem ser utilizados para processos de criação em Dança, e em processos de criação como recursos pedagógicos, que a construção da performance “Ruído Rosa” foi concebida e dirigida pela autora desse texto. Síntese de um processo de ensino-aprendizagem, a criação de uma performance incluindo os estudantes da disciplina Prática de Dança VII do curso de Licenciatura em Dança da UFMG foi pensada desde o início da disciplina. Esse texto é escrito após três performances do “Ruído Rosa” realizadas em diferentes espaços no campus da Universidade Federal de Minas Gerais e uma performance na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, e portanto apresenta, além das fases de desenvolvimento do processo, o impacto do produto apresentado e algumas questões intrínsecas ao tema gerador proposto: a exploração da cor rosa. De uma cor suave, associada as meias, aos collants, as saias e as sapatilhas de ponta utilizadas nas aulas de balé clássico, ou até mesmo a cor preferida da maioria das meninas durante a infância, a cor rosa, de repente, pode vir a causar outras percepção, sensações e sentimentos. Longe de significar pureza e suavidade, o diagnóstico de uma doença como o câncer de mama, que causa medos, angústias, transformações corporais, dores físicas e também psicológicas pode transformar e ressignificar a cor rosa para muitos. Atualmente associada à campanha do câncer de mama desde ... nos Estados Unidos e desde ... no Brasil, o significado da cor rosa também mudou para a autora desse texto que se submeteu a duas cirurgias e a sessões de radioterapia para erradicação da doença. Mas foi inspirada nos tantos significados que a cor rosa pode ter para diferentes corpos, e principalmente para os corpos dançantes, que todo o processo artístico e pedagógico, parte do projeto “pontos de contato” e tema gerador da disciplina Prática de Dança VII, foi planejado.

Figura 5: Apresentação de RUÍDO ROSA na Escola de Belas Artes da UFMG

A Prática de Dança VII é uma das disciplinas obrigatórias do currículo do curso de Licenciatura em Dança da UFMG. Composta de 60 horas de aulas práticas, a ementa da disciplina 11º Seminário Nacional Concepções Contemporâneas em Dança – PRODAEX/EEFFTO/UFMG - novembro/2014

está assim apresentada no Projeto político pedagógico do curso: “Aprofunda o estudo das disciplinas Prática de Dança V e VI com ênfase nos princípios de Klauss Vianna: resistência e oposições. Ludicidade, estímulos conflitantes e Improvisação. Dança autoral.” (PPC do Curso de Licenciatura em Dança da UFMG). Com base na ementa, as práticas de Dança dessa disciplina tiveram início com a imersão dos estudantes na abordagem “Pontos de Contato.” Como já apresentado, essa abordagem é um dos pilares do projeto “Pontos de contato: interculturalidade, identidade e investigação do movimento nas práticas artísticas e pedagógicas da Dança no Brasil.” Em linhas gerais, a abordagem, que tem como símbolos a utilização de pontos coloridos espalhados pelo chão, sintetiza uma forma de conectar a tradição e a contemporaneidade, estimulando a quebra de barreiras historicamente construídas entre o popular e o erudito, e entre a dança brasileira e a dança estrangeira. Como tema gerador do conhecimento, entre as atividades práticas propostas, os integrantes da disciplina Prática de Dança VII foram surpreendidos com “pontos de contato” da cor rosa espalhados pelo chão da sala, e foram motivados a responder a uma pergunta que nortearia o processo investigativo: “O que a cor rosa significa para você?” Suavidade, amor, pureza, sensualidade, cafonice, determinação, emoção, infância, brincadeira, lúdico, conquista, melancolia, feminino, delicadeza, vaidade, entre muitas outras palavras definiram naquele primeiro dia, a cor rosa para os corpos presentes, que se movimentavam à partir de estímulos diversos de exploração do movimento individual e coletivo. Como todos já haviam participado de alguma prática utilizando os “pontos de contato” com cores variadas, e como a discussão do significado da cor rosa se aprofundava, aos poucos, vários estudantes expressaram o choque que sentiram ao adentrarem e ao se movimentarem em um espaço invadido pela cor rosa. Essa prática, aconteceu com o objetivo de proporcionar um contato com a cor rosa, de despertar sentimentos e sensações, e de proporcionar uma imersão dos corpos dos participantes em um universo rosa até então pouco explorado por todos. Essa foi a primeira vez que aqueles corpos dançaram em um universo invadido pela cor rosa.

Figura 6: Aula prática e processo de criação de RUÍDO ROSA na disciplina Prática de Dança VII

Como uma tarefa a ser entregue na próxima aula, foi solicitado que cada um trouxesse peças de roupas e acessórios na cor rosa. Nesse dia, além de um ambiente transformado pela cor rosa, os corpos presentes vestiam peças de roupas que os transformavam e os construíam, causando para alguns a sensação de prazer e ludicidade, e para outros um estranhamento associado a uma cor que, ou não gostavam, ou não estavam acostumados a vestir. Esse conjunto de sensações criou e transformou as práticas propostas em práticas cor de rosa, como passaram a ser chamadas. Essas práticas passaram a ser compostas por universos múltiplos, que se entrelaçavam a cada estímulo e a cada movimento proposto. 11º Seminário Nacional Concepções Contemporâneas em Dança – PRODAEX/EEFFTO/UFMG - novembro/2014

As rodas de conversa se tornaram práticas essenciais ao processo. Ao final de cada aula, as impressões eram compartilhadas e os questionamentos divididos com todos os participantes. Essa prática também proporcionava, aos poucos, uma maior intimidade e criava laços entre os membros do grupo que se transformavam em um coletivo motivados por um único tema: a exploração da cor rosa. Começava-se a se formar uma espécie de comunidade, unida em prol de um único tema, mas que por ser tão múltiplo e multifacetário, tão individual, mas ao mesmo tempo tão universal, causava a aproximação e estreitava os laços já construídos em outras disciplinas do curso. Em uma das aulas, foi solicitado que cada estudante criasse uma sequência com alguns movimentos que representassem o seu conceito de rosa. Dessa sequência de movimentos, os estudantes foram motivados a escolher apenas um movimento que traduzisse suas sensações em relação a cor rosa naquele dia. Como um elemento surpresa baseado nos princípios do acaso, propositalmente, nenhum dos estudantes sabia que a combinação daqueles movimentos seria utilizada para montagem de uma performance. Para aqueles estudantes, a princípio todas as fases da “vivência rosa” faziam parte de um processo, que não intencionava a construção de um produto. Reforço aqui a necessidade de estabelecermos espaços de ensino onde o artista-criador possa transmitir sua arte e portanto ser professor de Dança. Acreditar em fazer fazendo, ou seja, transmitir a dança, dançando pode vir a ser uma das forças motrizes de um processo de ensino-aprendizagem. E foi o que aconteceu na disciplina Prática de Dança VII. Para uma outra aula, foi solicitado que cada um escolhesse uma música que simbolizasse as suas ideias, sentimentos e sensações relacionadas a cor rosa. À medida que as discussões se aprofundavam, a exploração dos movimentos começava a indicar a construção de uma identidade rosa, dentro desse movimento dialético entre a construção de um movimento individual e dos movimentos de um coletivo. Paulatinamente, o grupo começava a viver o que passamos a chamar de “momentos rosas”, que eram aprofundados individualmente nas construções individuais que preenchiam esse processo. Após os integrantes enviarem as músicas, que representavam suas vivências e experiências com a cor rosa, todos foram mais uma vez surpreendidos em uma próxima aula com a apresentação ao grupo de uma mixagem de todas as músicas enviadas. Com 20 minutos de duração, a mixagem combinava todas as músicas enviadas. Mais um elemento do acaso. À partir da combinação entre essa mixagem e os movimentos já criados, foi proposta uma performance que sintetizaria todos os momentos vivenciados com a cor rosa até aquele momento, e que também tivesse o caráter de construção contínua de movimentos dentro de uma estrutura coreográfica de improvisação planejada. Misturando arte e vida, e partindo da imprevisibilidade característica da condição humana, a proposta era ressignificar a cor rosa (e a cor rosa de cada um) em cada espaço e em cada dia que a performance acontecesse. A ordem das músicas, escolhidas sem a intervenção dos estudantes, propositalmente foi composta de transições suaves e bruscas, e além de ser caracterizada pela sua variedade de sons, ritmos e estilos, representava a escolha individual e a cor rosa de cada um. Um processo coreográfico de construção de uma improvisação estruturada foi então proposto ao grupo. Um plano coreográfico, que atendia aos anseios e visões da artista/professora que aqui escreve, mas influenciado pelas respostas do grupo aos estímulos aplicados foi testado nos vários momentos da prática, com o uso de experimentações e processos de estímulo a criação do movimento individual e do movimento do coletivo. Motivado pela campanha do outubro rosa, o plano consistiu em levar a performance a vários espaços da UFMG e de Belo Horizonte no mês de outubro. Mais uma vez com a intenção de deixar o “acaso” comandar o processo, definiu-se que os trechos das músicas utilizadas serviriam como sub temas geradores de movimento. Com a mixagem dos trechos das músicas que incluía vários gêneros musicais, as direções coreográficas foram passadas ao grupo pela artista/professora. A primeira foi a entrada do único integrante do sexo masculino do grupo espalhando ao chão os “pontos de contato” cor de rosa. Na performance, esse 11º Seminário Nacional Concepções Contemporâneas em Dança – PRODAEX/EEFFTO/UFMG - novembro/2014

momento acontece sem a música, e funciona como uma forma de chamar a atenção do público para a performance que está para acontecer. Enquanto isso, as meninas se posicionam aos fundos do espaço utilizado em poses fixas e com roupas que nada remetem a cor rosa. Com os primeiros acordes da primeira música, as integrantes do sexo feminino se movimentam e utilizam pentes cor de rosa com movimentos contidos e sustentados, que representam ora à queda de cabelo causada pelos tratamentos quimioterápicos, ora outras questões femininas. Esse primeiro momento da performance representa uma seriedade que posteriormente será contrastada com a invasão da cor rosa e seus múltiplos tons e efeitos que invadirão o ambiente. A performance se desenvolve com vários momentos que se mesclam e fazem referências explícitas e implícitas às questões do câncer de mama e do feminino, entrelaçadas e desenvolvidas em momentos de ludicidade, vigor corporal, e principalmente da ocupação do espaço em seus diversos níveis e com as mais variadas intenções de movimento. Todos os momentos da performance partem dos corpos e dos vários tons de rosa construídos e representados por cada integrante. A identidade individual ajuda a criar uma identidade coletiva. Corpos brasileiros dançam questões sociais e culturais que pertencem a corpos do mundo inteiro.

Figura 7: Momento da performance RUÍDO ROSA na Escola de Belas Artes da UFMG

Na performance, que se desenvolve com a transformação dos corpos em cena, uma vez que aos poucos, as roupas sérias e escuras são tiradas, enquanto roupas cor de rosa são mostradas, os diferentes níveis do espaço também são explorados com a diversidade de movimentos e temas interpretados pelo grupo. O uso de “props” marca a composição da performance. Além dos pentes e das roupas cor de rosa que traçam relações diretas com os movimentos criados, bancos de plásticos, ora sevem como suporte para movimentos simples do cotidiano a exemplo do ato de sentar em uma sala da espera de um hospital, e ora constituem a base para a exploração de movimentos mais amplos desenvolvidos pelos corpos que dançam e ressignificam o espaço explorado com o subir e descer dos bancos. Com todas essas ferramentas para que a cor rosa invada o ambiente, tudo acontece aos poucos, à medida que cada integrante tira ou veste peças de roupas que caracterizam a cor rosa que cada um encontrou durante o processo de pesquisa e prática de movimento.

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Figura 8: Performance de RUÍDO ROSA na Praça da Liberdade em Belo Horizonte

Ao longo do processo, foi solicitada a cada participante uma frase que definisse a experiência cor de rosa vivenciada. Também como surpresa ao grupo, as frases compiladas foram organizadas em um flyer que foi entregue a plateia na performance realizada no dia ..... nos corredores da FAFICH na UFMG.

Figura 9: Frente do flyer contendo as frases de cada integrante do processo, distribuído para a plateia após cada performance

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Figura 10: Verso do flyer contendo as frases de cada integrante do processo, distribuído para a plateia após cada performance

Como passos de um processo em eterna construção, pouco a pouco, os diversos tons de rosa são transmitidos aos interpretes e a plateia, seja pela suavidade da música ou pela agressividade de alguns movimentos e pelos movimentos do grupo que invadem o ambiente a construção do grupo. Cabe a cada um que assiste à performance, e que participa dela, interpretar os diversos tons de rosa que são ressignificados pelos corpos, que apesar, de não terem vivido o mesmo tom de rosa que a artista-professora que propôs a performance, vivenciaram a proposta dos “pontos de contato”, e encontraram o seu rosa e enfrentaram em um processo artístico, pedagógico, mas também social, político e cultural, um tema tão presente, mas com frequência pouco discutido na nossa sociedade: a luta contra o câncer de mama. Para esses artistas-docentes em formação, a cor rosa, além de representar a tão famosa campanha do outubro rosa, passou a ter um significado artístico, social e político. Com esse processo de criação, a cor rosa foi ressignificada para todos os envolvidos na performance, e para a plateia. CONCLUSÃO Para finalizar essa análise, faz-se necessário explicar que a concepção de danças brasileiras que utilizamos está atrelada as danças feitas no Brasil na contemporaneidade com base no reconhecimento e compreensão de um contexto social e cultural. Esse contexto precisa ser investigado e vivenciado numa proposta dialética para poder então servir como fonte para criações artísticas e para a transmissão de conhecimento. Ao longo desse texto, propusemos uma investigação que não tenha como ponto de partida uma visão folclórica, justificando o ensino da nossa dança pela necessidade de resgate do povo, ou como reconstrutora de uma identidade de nação, mas pelo reconhecimento de suas características interculturais e inclusivas, com potencial para construção de processos de ensino-aprendizagem que relacionam tempo e espaço, e principalmente indivíduo e sociedade. Como afirma Bastos: “Valorizar as ligações intrínsecas entre arte e vida cotidiana constitui a base de uma arte/educação democrática, porque envolve o reconhecimento de várias práticas artísticas sem distinguir entre o erudito e popular (Bastos, 2008, 11º Seminário Nacional Concepções Contemporâneas em Dança – PRODAEX/EEFFTO/UFMG - novembro/2014

p. 228) Atualmente, ainda influenciados por uma visão eurocêntrica e hegemônica da dança na sociedade brasileira, pesquisadores, artistas e professores da Dança e da Educação física encontram inúmeros desafios relacionados ao ensino da dança nas escolas. Mas os desafios, muitas vezes vistos como empecilhos, encontrados pelos profissionais envolvidos geralmente se restringem à falta de “espaço apropriado para a prática de dança”, a falta de equipamentos e as diferenças geográficas. Pouco se fala sobre as bases teóricas e as pesquisas que devem constituir esse ensino. Sobre as tentativas de estabelecimento de um “ensino ideal”, Bastos afirma: “De um lado, continuamos a categorizar e delimitar diferentes tipos de arte. De outro as distinções entre a arte erudita e popular tem se esvanecido, principalmente porque esses rótulos não nos ajudam mais a compreender a arte produzida atualmente” (Bastos, 2008, p. 229). Para amenizar esse quadro, o elo proposto entre Dança e Educação Física à partir de conceitos pertencentes ao campo da Etnologia da Dança e dos Estudos Culturais enfatiza várias formas de se fazer dança, como por exemplo, processos de criação em espaços alternativos, rompimento de fronteiras entre o popular e o erudito e ações desenvolvidas com recursos locais, mas principalmente com recursos humanos, com corpos que ressignificam os espaços e os temas ao seu redor. A proposta metodológica apresentada pretende valorizar a dança enquanto arte com o potencial de trabalhar a capacidade de criação, imaginação, sensação e percepção, integrando o conhecimento corporal ao intelectual, mas principalmente engajando os corpos dos sujeitos que dançam em temas do seu cotidiano e que representam a sociedade em que vivem. Para Reid (1983): A construção do conhecimento no campo das artes implica três tipos de saber diferenciados, e ao mesmo tempo complementares: o conhecimento direto, sem intermediação das palavras (ou do inglês “knowing this”), o conhecimento sobre as artes (do inglês “konwing that”) e o conhecimento de como fazer algo (do inglês “knowing how”). Na área da dança, estes conhecimentos equivaleriam a experimentar, sentir, fazer dança, enfim, para que construíssemos um conhecimento em dança em si; conhecer/saber disciplinas que não dizem respeito ao dançar propriamente dito, mas que indiretamente complementam esse conhecimento; e aprender as habilidades necessárias para poder criar e dançar, respectivamente (REID, 1983, apud MARQUES, 1997).

Reforça-se assim, a necessidade de conscientização do nosso pertencimento histórico e cultural, como norte de uma reflexão crítica, dos nossos processos de criação e da nossa participação social. Trata-se de criar, na formação de professores e artistas da dança, possibilidades de interfaces entre os processos de pesquisa e criação em dança. Mas qual seria o caminho a ser seguido? Longe de tentar passar “receita de bolo” para professor de dança, esse texto aponta para a interdisciplinaridade como uma das possibilidades para a formação de um professor de dança comprometido com a sua realidade. Formados pela Educação Física (pela escassez dos cursos de graduação em dança no nosso país até a última década, a grande maioria dos profissionais que trabalham com a dança no nosso país são formados em Educação Física), ou formados pelos novos cursos de bacharelados e licenciaturas em Dança, esses profissionais precisam estar abertos para a imbricação de saberes e para a interdisciplinaridade. A noção de Fato social total de Marcell Mauss, as noções de corpo como capital simbólico de Pierre Bourdieu, as relações de poder de Michel Foucault, e as noções fenomenológicas de percepção, imanência e transcendência de Maurice Merleau-Ponty, são alguns dos muitos caminhos que proporcionam o diálogo entre áreas e que poderão ser percorridos para uma transmissão de conhecimento comprometida com a cultura e com a sociedade dos envolvidos. Este modo de olhar para a dança brasileira na contemporaneidade, não é um método, uma teoria, e sim uma abordagem, com múltiplos caminhos a serem trilhados, mas com foco nas 11º Seminário Nacional Concepções Contemporâneas em Dança – PRODAEX/EEFFTO/UFMG - novembro/2014

relações entre dança e cultura, erudito e popular, artista e professor, e comunidade e universidade. A inclusão de pensadores de outras áreas de conhecimento, assim como de coreógrafos contemporâneos e de estudantes e professores universitários norteiam essa abordagem a fim de revelar as interfaces de um processo intercultural, antropológico, sociológico, artístico e educacional baseado nos diversos modos de se dançar as várias culturas existentes no Brasil. A exploração dos movimentos dos nossos corpos a ressignificação dos espaços e a valorização do contexto social no qual estamos inseridos, reforçam as relações entre indivíduo, dança e sociedade. Sendo assim é a nossa própria dança que une as reflexões feitas por pensadores da antropologia, da sociologia, da dança moderna e contemporânea, que, com seus pressupostos teóricos e suas práticas artísticas, auxiliam na identificação de possibilidades para construção de uma base de investigação. Propõe-se como ponto de partida da abordagem, independente do tema gerador de conhecimento, a investigação dos processos de afirmação de identidade dos sujeitos participantes, os artistas-professores-pesquisadores em formação, e para isso, é essencial considerarmos o lugar de comunhão das duas áreas de conhecimento em questão, pois ambas interferem, constroem e transformam corpos que dançam. Partindo então dos lugares específicos que essas áreas ocupam, mas numa tentativa conciliadora, propõe-se pensar a Etnologia da Dança como um elo de ligação entre os corpos que dançam e as relações de poder historicamente estabelecidas. Na tentativa de proporcionar esse diálogo, a Etnologia da Dança aponta para questões que vão além do pensamento tecnicista de transmissão de conhecimento da Dança. Esse campo de estudos, que dialoga diretamente com os estudos culturais, aproxima a dança de conceitos antropológicos e sociológicos, dentro do entendimento de que o corpo que dança é um corpo social, histórico e cultural, e portanto, é produto do meio em que está inserido, que pode ser rosa ou de qualquer outra cor.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BASTOS, Flávia. “O perturbamento do familiar: uma proposta teórica para a Arte/Educação baseada na comunidade” in BARBOSA, Ana Mae Arte/educação contemporânea: consonâncias internacionais. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2008. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. 1989. Blog EtC Dança. http://etcdanca.wordpress.com/, acessado em 30/10/2014 as 11:34h. FROSCH, Joan. 1999. “Tracing the weave of dance in the fabric of culture” in Researching Dance: evolving Modes of Inquiry. University of Petesburg Press. MARQUES, Isabel. “Dançando na Escola”. Motriz, Volume 3, Número 1, Junho 1997. MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2003. Mendes, M. G. 2001. A dança. Editora Gráfica Bernardi Ltda/Editora Ática. São Paulo.

PPC do curso de Licenciatura em Dança da UFMG SIQUEIRA, Denise. Corpo, comunicação e cultura: a dança contemporânea em cena. SP. Autores associados. Campinas. 2006

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