Os postulados da razão prática pura e seu sentido antropológico - dissertação de mestrado

Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

Os postulados da razão prática pura e seu sentido antropológico

Gabriel Almeida Assumpção

Belo Horizonte, 2015.

Gabriel Almeida Assumpção

Os postulados da razão prática pura e seu sentido antropológico

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia. Linha de Pesquisa: Filosofia Moderna. Orientador: Prof. Dr. Leonardo Alves Vieira

Belo Horizonte, 2015. 2

100 A851p 2015

Assumpção, Gabriel Almeida Os postulados da razão prática pura e seu sentido antropológico [manuscrito] / Gabriel Almeida Assumpção. 2015. 141 f. Orientador: Leonardo Alves Vieira. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Inclui bibliografia 1. Filosofia – Teses. 2. Fé e razão - Teses. 3. Kant, Immanuel, 1724- 1804. I. Vieira, Leonardo Alves, 1959- . II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

3

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador, o professor Leonardo Alves Vieira, por todo seu rigor filosófico, cautela no uso dos termos e nos passos da argumentação, e pela abertura de ter recebido um graduando de psicologia nas terras misteriosas e fascinantes da filosofia. Sou grato pela orientação e pelas mais de sete disciplinas que cursei com o professor Vieira. Aprendi não só a escrever e a pesquisar melhor, mas também aprendi muito sobre didática com o Leonardo. Devo especiais agradecimentos à profª. Giorgia Cecchinato, por todo o apoio e por nossos trabalhos juntos. Obrigado pela receptividade às minhas ideias. Também agradeço, com carinho, ao prof. Manuel Moreira da Silva, por todo o apoio e diálogo filosófico desde 2012. Não posso deixar de agradecer ao prof. Carlos Roberto Drawin, que me iniciou nas sendas filosóficas e que me ensinou não só filosofia, mas também psicanálise. Sou grato a Vittorio Hösle pela disposição constante a tirar dúvidas acadêmicas e pelo envio de material que me ajudou na pesquisa e na formação filosófica. Além disso, foi importante interlocutor na dissertação. Agradeço ao Padre Mac Dowell, Vanda, Zita, Aldair, Adriano, Jordan, Bruno, Gabriela e Rogério, ou seja, o pessoal da Biblioteca Padre Vaz, com quem tive prazer de trabalhar como voluntário entre 2012 e 2013. A Biblioteca Padre Vaz também foi de grande valia em minha pesquisa e sei que me auxiliará bastante nos planos futuros. Sou grato ao CNPq pelo privilégio de ser bolsista e me fornecer ótimas condições para a pesquisa. Graças à bolsa, tive condições de me sustentar durante dois anos e de publicar artigos e de apresentar comunicações. Também agradeço à Fundação Universitária Mendes Pimentel (FUMP) pelo incentivo durante os anos de graduação, bem como pelo auxílio 4

financeiro no intercâmbio na University of Texas at Austin, onde foi possível adquirir material valioso para minha formação filosófica em geral e para minha dissertação em particular. Sou grato ao Departamento de filosofia pelo bom ambiente. Tanto aos funcionários e ao chefe de departamento antigos (Andrea Baumgratz, Talita Oliveira, Helton Adverse – meu primeiro mentor filosófico) quanto ao pessoal novo: Telma Birchal, Amanda de França, André, José e Gláucia. Agradeço eternamente à minha família. À minha mãe – minha primeira professora de filosofia, que sempre me inspirou no confronto com a filosofia e com as artes, me incentivou a estudar inglês e que foi paciente com os filhos que quiseram optar pela difícil via acadêmica. À Alessandra que me ensinou a estudar (e me ajudou com o sumário), e ao Tiago que, além de me ensinar cedo a ser responsável, deixa tudo mais divertido. Agradeço a meus avós, Arlindo e Adélia, por terem me fornecido meios de estudar inglês, e por terem me auxiliado durante a época da graduação, bem como durante o intercâmbio. Sou grato também a meu pai, Carlos Alberto, por sempre ter me incentivado a estudar e por ter me ajudado com o inglês e com a viagem de intercâmbio para o Texas. Sou grato a Aninha por ter sido companheira e compreensiva com minha vida de estudos e desejo muito sucesso no seu mestrado também. Obrigado: Acríssio Gonçalves, Mariana Condé, Bruno Cunha, Débora Mariz, Fabrício Veliq, Wendell Evangelista, Stephanie Hamdan, Juliana Sales e Neilson Soares pelas discussões filosóficas. Sou grato a Isabela Campos e João Alberto pela presença constante em comunicações que apresentei em 2014. Também agradeço a Hirohiko Araki por deixar o mundo mais belo e interessante com sua arte. Thanks to Patrick and Brian for always being there. I hope we can meet again soon in America or in Europe.

5

Dedico esse trabalho à minha mãe, Ângela, à minha irmã, Alessandra, e ao meu irmão, Tiago. Obrigado por me deixarem sempre disposto a aprender mais.

6

RESUMO

Estabeleceu-se comparação entre a argumentação kantiana da Kritik der praktischen Vernunft (1788) e a da Kritik der reinen Vernunft (1781) sobre o conceito de sumo Bem e os postulados da razão prática pura. O sumo Bem kantiano é um vínculo necessário no qual a moralidade conduz à felicidade moralmente condicionada. O curso da natureza, por si só, não possibilita tal integração, de modo que o sumo Bem não é natural, devendo ser produzido. À luz da contraposição que Kant faz entre o sumo Bem sintético (cristianismo), de um lado, e sumo Bem analítico (estoicismo e epicurismo), de outro, nota-se a limitação do ser humano em tentar produzir o sumo Bem com as próprias forças, fazendo-se necessário conceber os postulados da razão prática pura (liberdade, imortalidade da alma e existência de Deus) como elementos auxiliares no esforço para se efetuar o sumo Bem. O sumo Bem de Kant e a doutrina dos postulados (Postulatenlehre) apontam, dessa forma, para o ser humano como um ser de esperança, de carências e de limites. Nota-se também, na argumentação kantiana, uma tentativa de fazer jus a diferentes aspectos do ser humano: faculdades inferior e superior de apetição; aspectos sensível e inteligível; fé racional pura.

Palavras-chave: Fé racional pura; Kant; postulados; razão prática pura.

7

ABSTRACT

A comparison has been established between the Kantian rationale on the concept of highest Good and the postulates of practical pure reason on the Kritik der praktischen Vernunft (1788) and the Kritik der reinen Vernunft (1781). The Kantian highest Good is a necessary bond in which morality leads to a morally conditioned happiness. The course of nature, on itself, does not enable such an integration, in such a way that the highest Good is not natural and must be produced. By shedding light on the contraposition Kant makes between synthetic highest Good (Christianity), at one side, and the analytic highest Good (Stoicism and Epicureanism), on the other side, human being’s limitation in attempting to produce the highest Good with its own strength is noticed. It is, therefore, necessary to conceive the postulates of practical reason (freedom, immortality of the soul and the existence of God) as auxiliary elements on the effort to effectuate the highest Good. The Kantian highest Good and the doctrine of the postulates (Postulatenlehre) lead, therefore, to human being as a being of faith, needs and limits, and it consists in an attempt to do justice to different aspects of human being: lower and upper faculties of appetition, sensible and intelligible aspects; pure rational faith.

Key-words: Kant; practical reason; postulates; pure rational faith.

8

ÍNDICE INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 10 Capítulo I – Os postulados da razão prática e a carência da razão pura ......................... 18 I.1. Apresentação ....................................................................................................... 18 I.2. Os postulados da razão prática pura em geral ................................................ 20 I.3. O primado do uso prático da razão e a aplicação prática das ideias ............. 32 I.4. A carência da razão pura no uso prático: fé racional pura ............................ 39 I.5. A fé entre o saber e a opinião ............................................................................ 48 I.6. Deus e uma vida futura na primeira Crítica: artigos de fé ............................. 55 Capítulo II – Os postulados da razão prática pura e a lei moral ..................................... 65 II.1. Apresentação ..................................................................................................... 65 II.2. A lei moral e o postulado da liberdade ........................................................... 67 II.3. A lei moral e o sumo Bem ................................................................................. 79 II.4. A ‘polêmica Beck versus Silber’ e a questão da importância do sumo Bem 92 II.5. O postulado da imortalidade da alma ............................................................. 99 II.6. O postulado da existência de Deus: ............................................................... 103 Capítulo III - O sentido antropológico dos postulados ................................................. 108 III.1. Apresentação ................................................................................................. 108 III.2. A crítica de Kant aos estóicos e aos epicuristas .......................................... 110 III.3. Kant e o cristianismo na Kritik der praktischen Vernunft .......................... 116 III.4. Possibilidade de uma “antropologia moral” kantiana ............................... 122 III.4.1. O caráter dual e os limites do ser humano....................................................................... 123 III.4.2. Uma nova relação do humano com Deus e com a religião: a fé racional pura ............... 124 III.4.3. O humano: um ser de desejo e de obrigação ................................................................... 126

CONCLUSÃO .............................................................................................................. 129 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ........................................................................ 135

9

INTRODUÇÃO

O objetivo geral da dissertação foi compreender o sentido antropológico dos postulados da razão prática pura, a saber: liberdade, imortalidade da alma, existência de Deus, com base na Critica da Razão Prática (Kritik der praktischen Vernunft) (1788). Os postulados são elementos de apoio para a produção do sumo Bem (ligação necessária entre virtude como causa e felicidade moralmente condicionada como efeito). Segundo Kant, eles apontam para a limitação do ser humano em não conseguir efetuá-lo apenas com uso das próprias forças. Para atingir esses objetivos, buscamos demonstrar como a carência (Bedürfnis) da razão pura no uso prático, carência lógico-objetiva, e não de origem afetiva, é noção fundamental para se compreender como os postulados funcionam e para quê são necessários. A partir do mesmo conceito, busca-se expor como essa doutrina dos postulados, por tratar de crença (Glauben), e não de saber (Wissen), não contradiz os pressupostos teóricos de Kant. Além disso, verificamos o sentido antropológico dessa doutrina dos postulados a partir das comparações que Kant empreende entre o cristianismo, de um lado, e o estoicismo e epicurismo, de outro. Buscamos entender por que o ser humano não é capaz de efetivar o sumo Bem somente com o próprio engenho. Para Kant, o cristianismo teria sido mais conforme aos limites (Schranken) dos seres racionais finitos, limitando a presunção humana. O tema dos postulados da razão prática pura se insere nas discussões sobre a importância do conceito kantiano de sumo Bem, havendo controvérsias em torno à interpretação da doutrina dos postulados, bem como sobre a visão kantiana do sumo Bem, tema que remete a debates dos

10

antigos.1 Kant conferia tanta importância à doutrina do sumo Bem que a chamava de doutrina da sabedoria (Weisheitslehre), sendo as tarefas mais elevadas da filosofia a delimitação do conceito de sumo Bem e a estipulação da conduta a ser seguida para atingi-lo2. Para Kant, um postulado da razão prática pura é “(...) uma proposição teórica, porém indemonstrável como tal, na medida em que é inseparavelmente inerente a uma lei prática a qual vale incondicionalmente a priori” 3. O postulado é inseparável da lei moral, pois sua validação provém da mesma: a lei moral, ao determinar a vontade, legitima o sumo Bem como objeto necessário da vontade determinável pela lei moral4. O sumo Bem é fundamento que podemos chamar ‘secundário’ de determinação da vontade, pois tem essa propriedade se e somente se a vontade for determinável pela lei moral5. É digno de nota que o sumo Bem não deve ser pensado como objeto do desejo individual, mas como demanda da razão prática pura. Kant menciona que o sumo Bem é objeto de juízo de uma razão imparcial, e não do olhar parcial da pessoa6. Isso se mostra coerente com a visão de Kant segundo a qual a moral consiste não em doutrina de como nos fazemos felizes, mas de como devemos nos tornar dignos da felicidade7. Os postulados da razão prática pura e a visão kantiana do sumo Bem foram objeto de atenção e confronto crítico na trajetória inicial dos principais expoentes do idealismo alemão8. No caso de Fichte, há a obra Versuch einer Kritik aller Offenbarung (ou Tentativa de uma Crítica a toda Revelação, de 1792). Em Schelling, há o embate com os “postulados práticos” (praktische 1

DÜSING, K. “Das Problem des höchsten Gutes in Kants praktischer Philosophie”, p. 5. KANT, I. Kritik der praktischen Vernunft (Doravante KpV A), 194ss. 3 KANT, I. KpV A 220. “(…) [Worunter ich] einen theoretischen, als solchen aber nicht erweislichen Satz [verstehe], so fern er einem a priori unbedingt geltenden praktischen Gesetze unzertrennlich anhänght”. Todas as traduções são de nossa responsabilidade. 4 HERRERO, F. X. Religião e história em Kant, pp. 39-40; VIEIRA, L. A. “Filosofia prática e incondicionado”, pp. 21-22. 5 KANT, I. KpV A 260ss. 6 KANT, I., KpV A 198s. 7 KANT, I. KpV A 233. 8 DÜSING, K. “Die Rezeption der Kantischen Postulatenlehre in den frühen philosophischen Entwürfen Schellings und Hegels”, p. 53. 2

11

Postulaten) kantianos em várias obras: Vom Ich als Prinzip der Philosophie; Philosophische Briefe über Dogmatismus und Kriticismus (Do Eu como Princípio da Filosofia; Cartas Filosóficas sobre Dogmatismo e Criticismo, ambas de 1795); algumas passagens da Allgemeine Übersicht (Panorama Geral, conjunto de contribuições que Schelling publica anonimamente no jornal de Niethammer entre 1797-98). Finalmente, não se pode deixar de mencionar Hegel e a figura da “visão moral do mundo”, trecho emblemático da Phänomenologie des Geistes (1807), ou Fenomenologia do Espírito. Nessa figura em questão, há o embate hegeliano com a proposta kantiana de vínculo entre moralidade e felicidade. Ainda que essa recepção de teses kantianas pelos filósofos do idealismo alemão seja um fecundo campo de estudos, nossa pesquisa se concentrou nos textos de Kant, tratando-se de um estudo imanente às obras do filósofo de Königsberg, e não de um trabalho de Wirkungsgeschichte, de história da recepção da obra, tampouco de Entstehungsgeschichte, gênese da mesma. Mesmo quando há menção a recepção da obra por intérpretes do século XX, como Habermas, Hösle e Silber, o intuito é na recepção por esses teóricos na condição de historiadores da filosofia, considerando seus textos como interpretações da filosofia kantiana e tendo em vista o sentido antropológico dos postulados. Outra importante nota preliminar a nosso trabalho se faz necessária, em termos de delimitação: as implicações históricas e teleológicas da exposição kantiana do sumo Bem, assim como dos postulados da razão prática pura, não serão levadas em conta. Isso se deve ao fato de que o foco de nossa dissertação é nos aspectos antropológicos dos postulados, de forma que os mesmos serão considerados no âmbito do ser racional finito como sujeito moral, e não como membro de uma comunidade ou de um processo histórico9.

9

Isso é trabalhado de forma extensa na obra de HERRERO, F. X. Religião e história em Kant. Trad. José Ceschin. São Paulo: Loyola, 1991.

12

Ademais, as considerações kantianas sobre teleologia, juízo reflexionante e a éticoteologia (Ethikotheologie) da terceira Crítica já mereceriam, por si só, uma dissertação de mestrado à parte. Como as argumentações presentes nas duas primeiras Críticas já apresentam toda uma complexidade interna e disparidades uma em relação à outra, decidimos mais adequado nos atermos a elas. Assim sendo, para fins metodológicos, não serão levadas em conta na presente dissertação nem a Kritik der Urteilskraft (Crítica da faculdade de julgar), tampouco material como as Reflexionen de Kant que abordem o sumo Bem e/ou os postulados da razão prática pura10. Embora nosso trabalho apresente o termo “antropológico” no título, a “antropologia” que está em jogo em nossa dissertação deve ser entendida como a ideia de ser humano que parece estar implícita na argumentação kantiana de sumo Bem. Kant chega, por exemplo, a afirmar que há obstáculos à efetuação do sumo Bem, como a “fraqueza ou a desonestidade da natureza humana” (Schwäche oder Unlauterkeit der menschlichen Natur)11. Em outros termos, à luz da contraposição que Kant faz entre cristianismo, de um lado, e escolas helenísticas (estoicismo e epicurismo), de outro, veremos como Kant aborda os limites humanos na busca de efetuação do sumo Bem. Portanto, não será consultada a obra Antropologie in pragmatischer Hinsicht (1798) ou as Vorlesungen (preleções) sobre antropologia, pois trata-se de pensar não a antropologia tematizada explícita e publicamente por Kant, mas sim de se refletir sobre uma possível antropologia que pode ser inferida a partir das argumentações sobre o sumo Bem kantiano e os postulados da razão prática pura presentes nas duas primeiras Críticas.

10

No caso das Reflexionen, o trabalho já foi feito com maestria por DÜSING, K. “Das Problem des höchsten Gutes in Kants praktischer Philosophie”. Kant-Studien, v. 62, (1971): 5-42. 11 KANT, I. Kritik der reinen Vernunft (De agora em diante, KrV B=A) B 836 = A 808.

13

Feitas essas considerações, as referências que Kant faz aos postulados da razão prática pura na Kritik der praktischen Vernunft – obra na qual consta o tratamento mais detalhado, da parte de Kant, da doutrina dos postulados da razão prática pura – constituem o objeto a ser investigado na presente dissertação. Também será levado em conta o embrião dessa argumentação na Doutrina do Método da Kritik der reinen Vernunft. As lacunas que permanecem abertas nesse campo de estudos podem ser sintetizadas nas seguintes questões: Como o sumo Bem se relaciona com a faculdade superior e inferior de apetição? Como isso aponta para os limites do ser racional finito? Em que sentido Kant vê a aceitação dos postulados como questão de fé racional pura, e não de conhecimento teórico? A metodologia adotada se serviu da identificação e de análise de passagens da Crítica da Razão Prática nas quais Kant discute os postulados da razão prática pura e conceitos importantes a eles vinculados. De igual importância foram os trechos nos quais Kant explicita as relações desses postulados com a (in)capacidade do ser racional finito de promover/produzir o sumo Bem, geralmente mencionando o cristianismo, o estoicismo e o epicurismo, contrapondo estes àquele, o qual reconheceria, para o filósofo alemão, os limites do ser racional finito. O estudo dos postulados da razão prática pura e de seu sentido antropológico foi desenvolvido a partir dos seguintes trechos da Kritik der praktischen Vernunft: Prefácio e Introdução (KpV A 3-32); Analítica da razão prática pura (principalmente KpV A 31-154) e Dialética da razão prática pura (KpV A 192-263). Consultamos, para melhor compreensão da problemática em jogo, seções da Kritik der reinen Vernunft: Prefácio à segunda edição; Dialética Transcendental; e mais especificamente a Doutrina Transcendental do Método (principalmente B 832-859), sobre o sumo Bem e sobre as noções de crença/fé (Glauben) e saber (Wissen). Apenas uma alusão à Fundamentação foi feita no capítulo III, que se refere ao projeto kantiano de uma moral que, em seus fundamentos, prescinda de considerações sobre a natureza humana – questão 14

que foi criticada no capítulo em questão. Em seguida, houve continuidade com consulta aos comentadores do texto kantiano, aduzidos tanto de literatura nacional quanto internacional. Houve, portanto, cinco etapas: (1) a consulta ao texto kantiano e dos comentadores; (2) a escrita e organização de informações em resumos; (3) o processo de reflexão e análise sobre as informações, tendo em mente a redação dos textos que vieram a constituir o corpus do trabalho; (4) escrita de artigos e comunicações com base nos resultados preliminares e, por último, (5) correção, revisão e adequações com auxílio do orientador. Os capítulos foram os seguintes: Capítulo I – Os postulados da razão prática e a carência da razão pura: Neste capítulo, investigamos os postulados em seu aspecto cognitivo/gnosiológico: os postulados são proposições teóricas que, no entanto, não se deixam demonstrar como teóricas, obtendo sua validade da prática, isto é, da lei moral. Foram importantes, nesse contexto, as distinções entre postulado da razão prática pura e postulado da geometria pura; carência da razão pura (carência lógica, racional) e carência sensível (carência afetiva); saber (Wissen) e fé/crença (Glauben). A necessidade de apoio para se produzir o sumo Bem é a carência da razão pura no uso prático (carência lógico-objetiva, e não afetiva), não se tratando de objetos de conhecimento teórico, mas de fé racional pura. Neste contexto, também discutimos, com base na Crítica da Razão Pura, as diferenças entre saber, Wissen, e fé/crença, Glauben. Capítulo II – A lei moral e os postulados da razão prática pura: O segundo capítulo é um tratamento mais elaborado dos postulados da razão prática, elucidando em que sentido eles partem da proposição fundamental da moralidade. Mostramos como cada um dos postulados (liberdade, imortalidade da alma, existência de Deus) se constitui como elemento de apoio para a efetuação do sumo Bem. O segundo capítulo tratou da relação entre a lei moral e os postulados: a lei moral, ao determinar a vontade de seres racionais, obriga-os a efetuar o sumo Bem. Os postulados derivam da própria lei moral, a qual não é postulado, mas sim proposição fundamental 15

da moralidade. A crença nos postulados não é dever, se trata de constatar a existência de objetos, e não de uma ação por respeito à lei moral. O dever é de se promover o sumo Bem, e os postulados são elementos de apoio no cumprimento desse dever. Capítulo III – O sentido antropológico dos postulados: Finalmente, o terceiro capítulo abordou o sentido antropológico propriamente dito dos postulados. Tendo-se visto como os postulados se relacionam com as duas primeiras perguntas kantianas (“o que posso saber?” e “o que devo fazer”?); verificamos que os postulados também se conectam com a terceira pergunta kantiana, “o que me é permitido esperar”? Os postulados lançam luz sobre o ser humano como um ser de esperança e de fé: acredita-se ser capaz de vincular moralidade e felicidade de forma necessária, com auxílio da liberdade, da imortalidade da alma e da existência de Deus. Além disso, verificamos como Kant empreende apologia do cristianismo, comparando-o com os estóicos e epicuristas, escolas pagãs que dispensavam a necessidade dos postulados para se atingir o sumo Bem, propondo um sumo Bem analítico, e não sintético. Uma observação importante é que resultados da pesquisa que foram formalizados, por meio de publicação, em periódicos de filosofia foram incorporados em nossa dissertação, particularmente na conclusão. Os artigos que foram escritos paralelamente à dissertação, e auxiliaram a lapidar a conclusão da mesma, foram os seguintes:

ASSUMPÇÃO, G. “O sumo Bem de Kant e o Reino da Graça de Leibniz: Gênese e divergências em torno a um conceito". Revista Cogitationes, vol. III, n. 9 (2013): 4-12. ___________. “Sobre a Fé: Confrontando Kant e Feuerbach”. Kínesis, Vol. VI, n. 11 (2014): 88-96.

16

___________. “The Highest Good as the Kingdom of God: the role of Christianity in the Critique of Practical Reason.” Trilhas Filosóficas – Revista Acadêmica de Filosofia, v.VI, n. 1 (2013): 47-60.

Ainda há um artigo no prelo, que discute a importância do cristianismo na Kritik der praktischen Vernunft e que foi enviado à revista Síntese, da FAJE (Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia). Esse texto também foi importante para a confecção de nosso trabalho final.

Lista de abreviações:

GMS – Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (Fundamentação da metafísica dos costumes), citada de acordo com a Edição da Academia (Akademieausgabe) das obras de Kant. KpV – Kritik der praktischen Vernunft (Crítica da razão prática), citada de acordo com a primeira edição original (Originalausgabe), à qual será feita referência com a letra A, como é costume entre estudiosos de Kant. KrV – Kritik der reinen Vernunft (Crítica da razão pura) citada de acordo com a primeira e com a segunda edições originais (Originalausgabe), às quais será feita referência com as letras A e B, respectivamente, como é feito pelos pesquisadores de Kant.

17

Capítulo I – Os postulados da razão prática e a carência da razão pura

I.1. Apresentação

Nesse capítulo, apresentaremos os postulados da razão prática pura em sua articulação com noções como carência da razão pura no uso prático e fé racional pura. Será necessário indicarmos em que sentido os postulados são elementos auxiliares na produção do sumo Bem, objeto necessário de uma vontade determinável pela lei moral e ligação na qual a moralidade causa a felicidade. A incapacidade do ser racional finito de efetuar (bewirken), com as próprias forças, o que se é, ao mesmo tempo, coagido a fazer pela razão prática pura, consiste numa carência da razão pura no uso prático. Para sanar tal carência, concebem-se os postulados da razão prática pura: liberdade no sentido positivo (isto é, a possibilidade de se autodeterminar como membro de um mundo inteligível), imortalidade da alma e existência de Deus. Faz-se necessário, para uma apresentação detalhada dos postulados, uma elucidação de como Kant expõe a noção de carência da razão pura no uso prático, em sua articulação com a fé racional pura. Para essa tarefa, o primeiro capítulo versa sobre aspectos gnosiológicos12 envolvidos nos postulados da razão prática pura. Os postulados são uma forma que Kant encontrou de lidar com alguns objetos que não se configuram como objetos de conhecimento, mas apenas do pensamento. Os postulados são afirmações teóricas que, no entanto, só podem ser consideradas em relação à lei moral, da qual se desdobram.

12

O que não quer dizer que já não abordaremos aspectos antropológicos e morais nesse capítulo, e tampouco que aspectos gnosiológicos não estarão presentes nos dois seguintes. Nosso intento é apenas apontar para o fio condutor de cada capítulo: aspectos gnosiológicos no primeiro capítulo; aspectos morais no segundo; aspectos antropológicos e religiosos no terceiro.

18

Ter que contar com os postulados como uma das únicas formas13 de um arrazoado filosófico considerado aceitável por Kant sobre Deus e a alma aponta para uma limitação da razão, para uma carência da razão pura no uso prático. É de grande importância, todavia, estarmos cientes de que a carência da razão prática pura não consiste em mandamento. Não se é obrigado a crer em Deus ou na imortalidade, pois juízos sobre existência de objetos são juízos teóricos, e não morais. ‘Deus existe’, ‘a alma é imortal’, são proposições teóricas, ainda que com isso não se trate de conhecimento teórico. São proposições que dizem respeito à crença moral, para Kant. Mandamentos, por sua vez, provêm apenas da lei moral e de sua demanda de cumprimento do dever, o que inclui o dever de se efetuar o sumo Bem. Recorreremos também à concepção kantiana de tomar por verdadeiro (Führwahrhalten), tal como exposta na Kritik der reinen Vernunft (KrV), para se ter claro em que sentido Kant concebe os postulados como objetos de crença (Glauben), um tomar por verdadeiro suficiente subjetivamente, mas não objetivamente, como no caso do saber (Wissen), que possui validade tanto subjetiva quanto objetiva. Após a exposição desses pressupostos kantianos, buscaremos mostrar como Kant apresenta o sumo Bem na KrV, indicando que já estavam presentes tanto os postulados da existência de Deus e da imortalidade da alma (mas ainda não o da liberdade) 14, quanto a proximidade com o cristianismo, e também a noção de que a moralidade que deve conduzir à felicidade no sumo Bem, e não o contrário. O mais importante, no entanto, será mostrar que Kant ainda não apresentava a relação entre sumo Bem e lei moral com o mesmo grau de 13

Outra forma seria a carência da razão pura no uso teórico, ou seja: o uso de hipóteses que, ainda que não configurem conhecimento, podem possuir função heurística valiosa. A metáfora é bem importante nesse sentido. Cf. KANT, I. KpV A 255s. 14 Ainda que Kant adote, na KrV, terminologia ligeiramente diferente. Usa ‘vida futura’ (‘künftiges Leben’). Cf. KANT, I. Kritik der reinen Vernunft (doravante, KrV) B 838s = A 810s. É digno de nota que Kant não considerava a liberdade um postulado, ou pressuposição necessária (Cf. KANT, I. KrV B 831s = A 803s); e também que se servia não do termo postulado da razão prática pura, mas do termo artigos de fé (Glaubensartikel). Cf. KANT, I. KrV B 858 = A 830.

19

detalhe e sistematicidade que viria a apresentar na KpV. Esse passo será de grande importância para compreendermos a argumentação madura sobre o sumo Bem apresentada na KpV, alvo de nosso segundo capítulo, no qual papel especial será conferido à lei moral, uma vez que o foco será nos aspectos morais envolvidos nos postulados da razão prática pura.

I.2. Os postulados da razão prática pura em geral

Para Kant, a razão é dotada de um uso teórico (ou especulativo) e de um uso prático. O uso teórico da razão se preocupa com o conhecimento de objetos e com a delimitação do uso do entendimento. No caso do uso prático da razão, a ocupação reside nos fundamentos determinantes da vontade (Bestimmungsgründe des Willens), faculdade de produzir objetos conforme ao que afeta o sujeito (aspecto que iremos denominar passivo), ou de escolher os próprios objetos a se produzir (ou seja, determinar sua causalidade; aspecto ativo)

15

. No

primeiro caso, trata-se de uma faculdade inferior de apetição e, no segundo, de uma faculdade superior de apetição16. A faculdade superior de apetição aponta para algo que vai além dos desejos individuais, indica o ser racional finito como membro de algo que transcende a finitude fenomênica. A vontade pode ser determinável pelas inclinações e pelo desejo de felicidade pessoal – o que Kant agrupa sob o nome de princípio de amor de si – ou pela própria razão prática pura, seguindo, nesse caso, a lei moral. O objeto a ser efetuado (bewirkt) por uma vontade determinável pela lei moral é o sumo Bem, em que tem lugar o vínculo necessário entre

15 16

KANT, I. KpV A 29s. KANT, I. KpV A 41.

20

moralidade como causa e felicidade como efeito17. Tal ligação possui como condição inicial que a lei moral seja o fundamento supremo determinante da vontade18. A partir da adesão da vontade à lei moral, é possível vislumbrar um objeto elevado, que só a razão prática pura consegue desejar: o sumo Bem. A felicidade e a moralidade não são, dessa forma, incompatíveis para o filósofo de Königsberg, desde que não se eleve a felicidade pessoal a princípio de moralidade19. O que Kant enfatiza é a necessidade de se tornar digno da felicidade, não sendo preciso, no entanto, prescindir da mesma. Ela apenas não é o critério mais adequado de moralidade. O sumo Bem20 é tema controverso nos estudos kantianos, havendo quem o considere um elemento desnecessário à moral kantiana, como Murphy, por exemplo21. Beck pensa que o conceito de sumo Bem não seria compatível com a visão de Kant sobre a moralidade, sendo um ideal dialético, e não conceito prático22. Beck concebe o sumo Bem de Kant como heteronomia, vendo nele meramente uma recompensa pela conduta moral. Veremos que essa noção de recompensa talvez não seja a mais apropriada, pois Kant enfatiza o aspecto produtivo/ativo do sumo Bem, ao passo que recompensa dá noção de algo passivo, de um receber inerte. O sumo Bem, para Kant, é algo a se produzir, a se efetuar, promover23.

17

KANT, I. KpV A 5s; 198-203; 214. KANT, I. KpV A 196s. No capítulo seguinte, observaremos, ao tratar da antinomia da razão prática, por que o caminho inverso não é possível, para Kant. Por hora, basta dizer que as máximas da felicidade, devido ao seu caráter contingente e oscilante, são incapazes de promover um vínculo necessário. 19 ROHDEN, V. “A Crítica da razão prática e o estoicismo”, p. 165. 20 Como nosso foco no presente capítulo é nos aspectos gnosiológicos envolvidos nos postulados da razão prática pura, entraremos aqui apenas brevemente na discussão sobre a pertinência ou não do sumo Bem na filosofia prática kantiana. Essa discussão, todavia – que é importante, inclusive, para uma de nossas hipóteses de trabalho (O sumo Bem é um conceito kantiano no qual fica nítida a limitação do ser humano no âmbito prático e também no teórico) – não será subestimada na presente dissertação. Ela receberá seu devido tratamento no capítulo II, no qual exploramos, em maior detalhe, os aspectos morais em jogo nos postulados. Discutiremos, nesse capítulo, a ‘polêmica Beck versus Silber’. 21 MURPHY, J. “The highest good as content for Kant’s ethical formalism”, p. 102. 22 BECK, L. W. A commentary on Kant´s Critique of Practical Reason, p. 244-245. 23 Cf. KANT, I. KpV A 75; 219; 226s; 234; 257. 18

21

Inclusive, na KrV Kant já defendia que leis práticas puras tinham como fim produtos (Produkte) da razão pura24. Em contraposição a esses comentadores que consideram o sumo Bem kantiano como sem importância, temos intérpretes como Kienzle, o qual afirma a importância do vínculo entre moralidade e felicidade para Kant25. Uma referência capital para nosso estudo é Düsing, para quem o sumo Bem aborda o problema da finitude da natureza humana, sendo os postulados da razão prática pura uma forma de tentar sanar tal limitação26. Nossa interpretação se dá mais segundo essa vertente hermenêutica, pois pensamos que o sumo Bem kantiano aborda a finitude humana tanto no âmbito teórico quanto no prático. No escopo prático, porque, sem os postulados, não é possível realizar o sumo Bem que a própria lei moral coage a promover. No âmbito teórico, em função da incapacidade de conhecimento teórico dos postulados, que não são objetos de saber, mas sim de fé. Temos, ainda, o ponto de vista de Hamm:

(...) para o próprio Kant, a questão do sumo bem (e da sua realizabilidade no mundo) constituiu muito mais do que um mero apêndice doutrinal que, se for necessário, poderia ser tirado ou alterado à vontade. Que ele viu, bem pelo contrário, na solução desta questão uma tarefa central, não só da filosofia moral, mas até da filosofia em geral, mostra-se não só no fato de ela estar presente, desde o período ‘précrítico’ até o ‘opus postumum’, em quase todos os seus escritos principais, mas também em numerosas manifestações explicitas a esse respeito, das quais vale citar, entre outras, aquela da segunda Crítica, em que lemos que até ‘seria bom deixar’ à palavra Filosofia ‘o seu antigo significado de doutrina do sumo bem, na medida em que a razão se esforça por se constituir em ciência’27.

Ainda que Hamm aponte como o tema do sumo Bem está presente em vários escritos kantianos, nosso trabalho se concentra nas argumentações kantianas defendidas na KrV e, principalmente, na KpV e, por isso mesmo, também nossas conclusões não puderam ter como 24

KANT, I. KrV B 828 = A 800. KIENZLE, B. “Macht das Sittengesetz unglücklich?”, pp. 280-281. 26 DÜSING, K. “Das Problem des höchsten Gutes in Kants praktischer Philosophie”, p. 17. 27 HAMM, Christian. “O lugar sistemático do Sumo Bem em Kant”, p. 43. A citação de Kant refere-se a KpV A 194. 25

22

escopo toda a obra de Kant. A afirmação de que o sumo Bem ‘constituiu mais do que um mero apêndice doutrinal’ é contrária a vários intérpretes que criticam o sumo Bem kantiano, vendo em tal ideia apenas resquícios religiosos no filósofo. Será mostrado, ao longo do trabalho, que concordamos com essa última afirmação de Hamm, tendo em vista a necessidade do sumo Bem para a articulação entre moral e felicidade; a afirmação kantiana sobre o sumo Bem como o ‘fim último’28; assim como a argumentação sobre o primado do uso prático da razão pura. Nossa tarefa, nesse primeiro capítulo, é apresentar o que são os postulados e também mostrar o que significa, para Kant, afirmar que são objetos de crença, e não de saber. Apontaremos como, na primeira Crítica, os postulados contribuem para a efetuação (Bewirkung) do sumo Bem. A argumentação da segunda Crítica, que já abordamos no presente capítulo, será aprofundada no segundo capítulo com circunspecção, visto que é nesse capítulo que abordaremos a relação dos postulados com a lei moral com maior detalhe – vínculo que se mostra nítido na KpV. Para Kant, um postulado da razão prática pura é “(...) uma proposição teórica, porém indemonstrável como tal, na medida em que é inseparavelmente inerente a uma lei prática a qual vale incondicionalmente a priori” 29. Por lei prática a priori, nesse caso, Kant se refere à lei moral, a qual contém o fundamento da aceitação de afirmações metafísicas existenciais que a razão humana não consegue demonstrar teoricamente30. Para Forschner, nessa questão reside o lugar sistemático da KpV: há proposições teoricamente indemonstráveis que tornam,

28

KANT, I. KpV A 233. Cf. também a expressão ‘fim total’ em A 239. KANT, I. KpV A 220. “(…) [Worunter ich] einen theoretischen, als solchen aber nicht erweislichen Satz [verstehe], so fern er einem a priori unbedingt geltenden praktischen Gesetze unzertrennlich anhänght”. 30 FORSCHNER, M. , “Immanuel Kant über Vernunftglaube und Handlungsmotivation”, p. 333. 29

23

todavia, compreensível a realização do fim último31: os postulados da razão prática pura são essas proposições, e o sumo Bem é o fim último. Beckenkamp afirma, nessa linha, que “(...) a peculiaridade de ser uma proposição teórica apenas legitimável praticamente é compartilhada pelos três postulados da razão prática32”. O postulado não pode ser demonstrado teoricamente: sua evidência é dada pela lei moral, tida na segunda Crítica como um factum da razão pura: a consciência da lei moral é anunciada como fato da razão por não ser possível de se deduzir de outra instância qualquer33. Ainda segundo Beckenkamp, “Pela consciência da lei moral como único fato da razão, a razão prática pura constitui seu domínio próprio num terreno que a razão teórica foi forçada a reconhecer como inacessível para ela. A constituição da esfera prática repousa, pois, inteiramente sobre a consciência da lei moral.34” A partir da lei moral, os conceitos ligados ao uso prático da razão pura ganham sua inteligibilidade e legitimidade, inclusive os postulados da razão prática pura. “Eles [os postulados] partem da proposição fundamental da moralidade, que não é postulado algum, mas uma lei, através da qual a razão determina imediatamente a vontade35”. Nesse sentido, Kemp Smith afirma: “A consciência moral, ao nos revelar um ideal de valor absoluto, põe em nossas mãos a única chave disponível para os mistérios da existência. Como essa consciência moral representa a realidade mais profunda da vida humana, pode-se esperar que possua uma maior significação metafísica que tudo o mais na experiência humana

31

FORSCHNER, M., “Immanuel Kant über Vernunftglaube und Handlungsmotivation”, p. 340. BECKENKAMP, J. “O lugar sistemático do conceito de liberdade na filosofia crítica Kantiana”, p. 46n. 33 BECKENKAMP, J. “O lugar sistemático do conceito de liberdade na filosofia crítica Kantiana”, p. 33. 34 BECKENKAMP, J. “O lugar sistemático do conceito de liberdade na filosofia crítica Kantiana”, p. 33. 35 KANT, I. KpV A 238. “Sie [d.h.,die Postulaten] gehen alle vom Grundsatze der Moralität aus, der kein Postulat, sondern ein Gesetz ist, durch welches Vernunft unmittelbar den Willen bestimmt (...)”. A relação entre os postulados e a lei moral será abordada com maior atenção no capítulo II, que versa especificamente acerca das questões morais envolvidas nos postulados da razão prática pura. 32

24

(...)36”. Surge, a partir da filosofia prática kantiana, a possibilidade de uma interpretação do mundo sob uma chave moral e a consciência moral se torna fonte de sentido37. Segundo Kröner, em raciocínio semelhante, as visões morais e religiosas de Kant são melhores para se compreender sua visão de mundo que sua epistemologia. O mundo no qual agentes morais agem e perseguem seus fins não pode ser penetrado pelo conhecimento teórico e o suprassensível só é acessível mediante a atividade moral. Esse mundo é construído ao se agir conforme a lei moral38. Kant enfatiza que os postulados não são instrumentos de conhecimento teórico, tampouco dogmas, não se tratando de uma teologia natural, mas de um discurso da razão prática pura acerca de Deus, da liberdade e da alma: “Esses postulados não são dogmas teóricos, mas pressuposições com intenção necessariamente prática, logo não expandem o conhecimento especulativo, mas conferem realidade objetiva às ideias da razão especulativa em geral (mediante sua referência à razão prática)

39

”. Esse trecho traz algo curioso. No

prefácio da KpV, Kant afirma que é apenas a liberdade que confere realidade objetiva às ideias de Deus e da imortalidade da alma40. Talvez aqui Kant queira dizer que os postulados são a forma que Kant encontrou de atestar uma realidade – ainda que realidade prática, e não teórica – para as ideias da razão? Em uma longa nota do Prefácio à Crítica da razão prática, Kant esclarece alguns termos e possíveis mal-entendidos. Para o filósofo, a expressão ‘um postulado da razão

36

KEMP SMITH, N. A commentary to Kant’s Critique of Pure Reason, p. 570. “The moral consciousness, in revealing to us an Ideal of absolute value, places in our hands the only available key to the mysteries of existence. As this moral consciousness represents the deep reality of human life, it may be expected to have greater metaphysical significance than anything else in human experience”. 37 KEMP SMITH, N. A commentary to Kant’s Critique of Pure Reason, p. 571. 38 KRÖNER, R. Kant’s Weltanschauung, p. 1ss. 39 KANT, I. KpV A 238. “Diese Postulate sind nicht theoretische Dogmata, sondern Voraussetzungen in Notwendig praktischer Rücksicht, erweitern also nicht das spekulative Erkenntnis, geben aber den Ideen der spekulativen Vernunft im Allgemeinen (vermittelst ihrer Beziehung aufs Praktische) objektive Realität (...)” 40 KANT, I., KpV A 4.

25

prática pura’ (‘[ein Postulat] der reinen praktischen Vernunft’) poderia levar a uma interpretação equivocada (Missdeutung), caso seja entendida como postulado da matemática pura, que possui certeza apodítica41. Apodítico, em Kant, diz respeito a proposições ligadas à consciência de sua necessidade (Notwendigkeit). Proposições fundamentais da matemática, por exemplo, são apodíticas42. Os postulados da matemática pura postulam a possibilidade de uma ação (por exemplo, a construção de um círculo a partir de um ponto e de uma reta), cujo objeto (círculo) já se conhece como possível, teoricamente e “com certeza plena” (mit völliger Gewissheit)43. Na KrV, Kant afirma que a certeza diz respeito a uma validade tanto objetiva quanto subjetiva44, tratando-se de Wissen, saber. Vejamos o que Kant afirma sobre um postulado da matemática já na primeira Crítica:

Ora, um postulado na matemática é a proposição prática que não contém nada além da síntese, por meio da qual nos damos um objeto a nós mesmos, e produzimos o conceito deste; por exemplo, com uma dada linha, descrever um círculo sobre uma superfície a partir de um dado ponto. Tal proposição não pode ser demonstrada, pois o procedimento que ela demanda é exatamente aquele por meio do qual, antes de qualquer coisa, produzimos o conceito de tal figura 45.

O postulado matemático é uma proposição em que o que se exige corresponde à própria produção do conceito, mas não há obrigatoriedade envolvida. Já os postulados da razão prática pura postulam não a possibilidade de uma ação, mas a “possibilidade de um objeto mesmo” (die Möglichkeit eines Gegenstandes selbst), no caso, de objetos

41

KANT, I. KpV A 21n. APODIKTISCH. In: EISLER, Rudolf. Kant-Lexikon, p. 34. 43 KANT, I. KpV A 21n. O exemplo de postulado da matemática está em KrV B 287 = A 234. 44 KANT, I. KrV B 850 = A 822. 45 KANT, I. KrV B 287 = A 234. “Nun heisst ein Postulat in der Mathematik der praktische Satz, der nichts als die Synthesis enthält, wodurch wir einen Gegenstand uns zuerst geben, und dessen Begriff erzeugen, z. B. mit einer gegebenen Linie, aus einen gebenen Punkt auf einer Ebene einen Zirkel zu berschreiben, und ein dergleichen Satz kann darum nicht bewiesen werden, weil das Verfahren, was er fordert, gerade das ist, wodurch wir den Begriff von einer solchen Figur zuerst erzeugen”. 42

26

suprassensíveis – Deus e imortalidade da alma, a partir da lei moral, o que nos conduz a admitir que esses postulados se configurem em função da razão prática pura46. Os postulados auxiliam no agir necessário (uma vez que ordenado pela lei moral) em prol do sumo Bem. A certeza da possibilidade postulada, nesse caso, não é teórica, tampouco apodítica. Apodítica é a lei prática da qual essa certeza surge, isto é, a lei moral. Não se trata de necessidade conhecida em relação ao objeto, de certeza; mas de carência, de “hipótese necessária” (notwendige Hypothesis)47. O caráter necessário dessa hipótese é oriundo da lei moral, que impõe ao ser racional finito a tarefa de produzir o sumo Bem. Uma ação para se observar uma lei prática é uma ação por respeito à lei moral, consequentemente, um dever48. Kant afirma que se trata de uma “(...) necessidade subjetiva, porém verdadeira e incondicionada da razão49”. Necessidade subjetiva, porque parte de uma demanda que a lei moral impõe ao sujeito: a efetuação do sumo Bem. Necessidade incondicionada, porque provém da lei moral, o incondicionado prático na filosofia kantiana. Por que verdadeira? Veremos abaixo que a aceitação dos postulados é uma espécie de crença ou fé (Glauben), que Kant defende, na KrV, consistir em uma forma de assentimento, ou tomar por verdadeiro (Führwahrhalten) que é suficiente, ainda que apenas subjetivamente, uma espécie de intermediário entre opinião e saber.50 Os postulados, conforme mencionado acima, são imortalidade da alma, liberdade no sentido positivo, isto é: considerada “como causalidade de um ser, na medida em que pertence

46

KANT, I., KpV A 21n. KANT, I., KpV A 22n. 48 Dever (Pflicht) é ação feita por respeito (Achtung) à lei moral, sendo esta a única ação com valor moral, de modo que, por ele, limitamos a eventual determinação de nossas ações por parte das inclinações, enquanto elas se apresentam como fundamento de determinação da vontade. O dever não pode derivar da experiência, e sim de exigências da própria razão pura no uso prático.Cf. EISLER, R., Kant-Lexikon, pp. 410-417. 49 KANT, I., KpV A 22n. “ (...) Subjektive, aber doch wahre und unbedingte Vernunftnotwendigkeit”. 50 KANT, I. KrV B 850 = A 822. 47

27

ao mundo inteligível” (Freiheit, (...) als der Kausalität eines Wesens, so fern es zur intelligibelen Welt gehört)51, e a existência de Deus52. A liberdade é uma pressuposição da capacidade de se determinar a vontade segundo a causalidade do mundo inteligível. A liberdade mostra sua realidade pela lei moral 53, que é evidente ao ser racional finito como um factum da razão pura, “(...) nossa consciência comum da lei moral como impositiva suprema54”. Trata-se de uma pressuposição fundamental, para Kant, uma vez que é só a partir da liberdade que posso seguir a lei moral. Sem a liberdade, sequer posso vislumbrar o sumo Bem como demanda da lei moral, pois nem minha vontade sequer seria determinável pela lei moral. Beckenkamp comenta essa questão:

(...) por que a liberdade é apresentada, na dialética da KpV, como um dos postulados, se Kant pretende ter apresentado uma dedução dela na analítica? Na dialética da KpV, assim como no cânon da KrV, trata-se de apresentar os dois postulados que enunciam uma condição necessária, a ser, portanto, pressuposta, da possibilidade do objeto da razão prática pura (o sumo Bem). Na analítica da KpV, mostra-se que a liberdade é uma condição necessária da própria legislação prática da razão pura, antes mesmo que se chegue a mencionar um objeto prático necessário e incondicional. O que a dedução da liberdade na analítica da KpV faz é apresentá-la como um pressuposto de uma lei prática necessária e isso é, ao mesmo tempo, apresentá-la como um postulado da razão prática pura55.

Por liberdade como um postulado, portanto, Kant quer dizer liberdade no sentido positivo56, o que diz respeito ao ponto de vista inteligível sobre o ser racional finito. Tal ser, para Kant, é cidadão de dois mundos, o sensível e o inteligível. Não é só um ser de natureza,

51

KANT, I. KpV A 238. KANT, I. KpV A 238. 53 KANT, I. KpV A 238s. 54 ALLISON, H. E. Kant’s theory of freedom, p. 230. “(...) our common consciousness of the moral Law as supremely authoritative”. 55 BECKENKAMP, J. “O lugar sistemático do conceito de liberdade na filosofia crítica Kantiana”, p. 46n. 56 Liberdade no sentido negativo significa a capacidade da razão prática pura de conter os móbiles sensíveis na determinação da vontade. Não se trata de rejeitá-los pura e simplesmente, mas de recusá-los como critério de moralidade. Cf. KANT, I. KpV A 52ss. 52

28

mas também um ser de razão pura. Uma hipótese de Lewis White Beck é que Kant resolveu escrever a KpV por alguns motivos, entre eles a necessidade de provar a unidade do uso teórico e uso prático da razão e de uma elucidação mais elaborada do conceito de liberdade57. Inclusive, é interessante observar aqui que o próprio Beck aponta elementos diretamente ligados ao tema do sumo Bem, o qual ele considera sem valor prático-ético na filosofia de Kant58: liberdade e unidade entre uso teórico e prático da razão são elementos fundamentais para se compreender a ideia de sumo Bem. O postulado da imortalidade da alma decorre da necessidade, do ponto de vista prático, de se adequar à necessidade de completude do cumprimento da lei moral. Tal duração prolongada da existência decorre da necessidade de conformidade com a lei moral no sumo Bem, ‘fim total’ da razão prática pura59.

Provavelmente em nenhum outro aspecto de sua doutrina, Kant se mantém, tão inteiramente quanto aqui, dentro da linha de continuidade da concepção filosófica de mundo própria do século XVIII. Assim como Lessing em A educação do Gênero Humano, Kant sustenta, na ideia da imortalidade, o postulado de uma possibilidade infinita no desenvolvimento do sujeito moral.60

Essa passagem é de grande importância para nós, pois atenta para a dimensão pedagógica, de Bildung, ou Paideia, do postulado da imortalidade da alma. O tempo de uma vida é curto para se adequar à lei moral, sendo necessária uma extensão da personalidade. Isso se vincula estreitamente a outra hipótese de trabalho que adotamos em nossa dissertação: O ser humano não é apenas ser de natureza, sujeito ao determinismo natural; não é apenas 57

BECK, L. W. A commentary on Kant´s Critique of Practical Reason, pp. 12-15. BECK, L. W. A commentary on Kant´s Critique of Practical Reason, pp. 242-254. 59 KANT, I. KpV A 238s. 60 CASSIRER, E. Kant, Vida y Doctrina, pp. 311-312. “Probablemente en ningún otro punto de su doctrina se mantiene Kant tan de lleno como aquí dentro de la línea de continuidad de la concepción filosófica del mundo propia del siglo XVIII. Lo mismo que Lessing en la Educación del género humano, Kant sostiene en la Idea de la inmortalidad El postulado de una posibilidad infinita de desarrollo del sujeto moral.” 58

29

pessoa (Person); é também personalidade (Persönlichkeit), que significa, para Kant, liberdade em relação ao mecanismo da natureza e capacidade de pertença não apenas ao mundo sensível, mas também ao mundo inteligível61. Há uma dimensão transempírica para o ser racional finito, segundo Kant e, ainda que não se possa versar teoricamente sobre ela, pode-se reconhecer sua importância prática. Há, no entanto, críticas à visão kantiana sobre imortalidade da alma. Talvez seja o mais controverso dos três postulados da razão prática pura62, conforme veremos com maior detalhe no capítulo II. Finalmente, a existência de Deus é um postulado que se desdobra da ‘necessidade da condição de um tal mundo inteligível’ (Notwendigkeit der Bedingung zu einer solchen intelligibelen Welt) (grifo nosso), para que haja o sumo Bem “mediante a pressuposição do sumo Bem independente, isto é, da existência de Deus” (durch die Voraussetzung des höchsten selbstständigen Guts, d. i. des Daseins Gottes)63. Essa afirmação de Kant é intrigante. Se Deus é a condição do mundo inteligível, então a liberdade realmente existe? O que acontece com o caráter incondicionado da liberdade?64 Apesar dessa questão, o postulado se mostra importante, no sentido de ser aquele que possibilita a conexão necessária entre moralidade e felicidade no sumo Bem (liberdade e imortalidade da alma apenas são pressuposições que justificam racionalmente a possibilidade de adesão do ser racional finito à moralidade). Bueno afirma que, baseados apenas em nossa natureza humana, não podemos garantir que alcancemos a felicidade que merecemos, ainda que possamos pensar tal sistema de fins. É necessário, para realizar o sumo Bem, postular a

61

KANT, I. KpV A 155. Cf. também ALLISON, H. E. Kant’s theory of freedom, p. 172s; SANS, G. “Immortalità dell’anima e sommo bene: Sulla metafisica pratica di Immanuel Kant”, pp. 272-276. 63 KANT, I. KpV A 239. 64 Uma crítica dura de Vittorio Hösle a Kant segue essa direção. Cf. HÖSLE, Vittorio. “Grandeza e limites da filosofia prática de Kant”, p. 115. 62

30

ideia de um ser supremo, livre e causa da natureza65. Hösle indica a importância desse postulado:

A contribuição de Kant à teologia natural não é limitada ao trabalho destrutivo empreendido em O único argumento possível e na primeira Crítica. A Crítica da Razão Prática introduz Deus como um postulado da razão prática (A 223ss), e mesmo que o estatuto epistemológico desse postulado seja controverso e não tão preciso, claramente Kant pode reivindicar ter fornecido um novo fundamento para o argumento moral sobre a existência de Deus. Isso é vinculado ao rompimento radical de Kant com a ética eudaimonista: a questão do que seja nosso dever não pode ser reduzido ao problema do que nos 66 faz felizes.

De fato, Kant não se preocupa em apontar como nos tornamos felizes, mas em como nos tornamos dignos da felicidade67. É a partir disso que a discussão sobre a felicidade tem seu lugar. Não chegamos a pensar, como Hösle, que o estatuto epistemológico do postulado seja pouco preciso, pois Kant deixa claro que não é objeto de saber, mas de fé, e explica detalhadamente o que entende por fé e por saber, como veremos abaixo. Kant afirma que o ponto de vista do sumo Bem é necessário mediante “respeito/veneração à lei moral” (Achtung fürs moralische Gesetz), atitude que é justamente a noção kantiana de dever (ação por respeito à lei moral)68. A produção do sumo Bem é um dever, que conduz a conceitos que não podiam ser resolvidos pela razão especulativa, e que agora são tomados como postulados da razão prática pura69. O que, na razão especulativa, era

65

BUENO, V. C. de A. “Kant e o Conceito de Fé Racional”, p. 67. HÖSLE, V. “Why Teleological Principles Are Inevitable for Reason: Natural Theology after Darwin”, p. 46. “Kant’s contribution to natural theology is not limited to the destructive work done in The Only Possible Argument and in the First Critique. The Critique of Practical Reason introduces God as a postulate of practical reason (A 223ff.), and even if the epistemological status of this postulate is unclear and controversial, clearly Kant can claim to have given the moral argument for the existence of God a new foundation. This is linked to Kant’s radical break with eudemonist ethics: the question of what our duty is cannot be reduced to the problem what makes us happy.” 67 KANT, I. KpV A 234. 68 Cf. KANT, I. KpV A 239; EISLER, R., Kant-Lexikon, pp. 410-417. 69 KANT, I. KpV A 239. 66

31

transcendente (as ideias), agora é imanente, na razão prática, desde que mantido sob um ponto de vista prático, tal como aprofundaremos no item seguinte e no capítulo II. Ainda não conhecemos a natureza da alma e do mundo inteligível. Seus conceitos são considerados apenas em relação à lei moral e ao objeto que ela ordena (in Ansehung des Objekts, das es [das moralische Gesetz] gebiet)70. Desse modo, não se pode afirmar que se sabe algo sobre a existência de Deus ou sobre a imortalidade, mas que se crê, para fins morais, em que sejam possíveis: trata-se da questão da fé racional pura, a qual será abordada adiante, nos itens I.4 a I.6. Qualquer discurso que vá para além dessa fé, que Kant chama fé racional pura, seria um retorno ao dogmatismo, para Kant, e um risco de fanatismo, ou Schwärmerei. De acordo com o Kant-Lexikon de Eisler, mediante a lei moral – que exige a existência do sumo Bem – a possibilidade dos objetos das ideias é postulada. Apenas se postula sua existência, e com isso nada se conhece teoricamente sobre a composição/natureza ou propriedades do suprassensível71. Vejamos como o primado da razão prática é importante na preservação dessas intenções de Kant.

I.3. O primado do uso prático da razão e a aplicação prática das ideias

Em Kant, o interesse (das Interesse) é um tipo de princípio que contém a única condição sob a qual o exercício de uma faculdade do ânimo (Gemüt) se promove. A razão, segundo Kant, é Vermögen der Prinzipen, faculdade de princípios,72 e determina o próprio interesse e o das demais faculdades do Gemüt. Isso confere à razão o primado (das Primat)

70

KANT, I. KpV A 240. POSTULATE, der praktische Vernunft. IN: EISLER, Rudolf. Kant-Lexikon, p. 427. 72 KANT, I. KrV B 356. 71

32

sobre as outras faculdades, primado que consiste na prerrogativa do interesse de uma faculdade sobre a outra73. A razão, conforme afirmamos acima, possui um uso especulativo e um uso prático. O uso especulativo diz respeito ao conhecimento de objetos; o uso prático, por sua vez, diz respeito à vontade e à sua relação com objetos de apetição. Pode ser um uso prático puro, que é relativo à determinação da vontade em relação ao fim último e completo (o sumo Bem), e pode ser também o uso prático-técnico, ou uso empiricamente condicionado, que se refere à produção de objetos com base em fins. O sujeito pode se por a produzir objetos, determinando a causalidade dos mesmos mediante sua vontade74.Vontade, para o filósofo de Königsberg, é uma faculdade de produzir objetos correspondentes às representações, ou de determinar a si própria para efetuação dos mesmos. No primeiro caso, é passiva às representações que recebe, no segundo, determina-se ativamente a produzir objetos a partir de sua autodeterminação pela lei moral – como será o caso no conceito de sumo Bem75. Notamos que a vontade ou é determinável pelas inclinações, ou é autodeterminante mediante o exercício da razão prática pura. Segundo Eisler, a vontade pura é efetividade do intelecto, é a razão prática mesma. O querer (das Wollen), na medida em que é moldado por motivos sensíveis, é determinado empiricamente. Quando é ‘conduzida’ (geleitet) pela razão prática pura, a vontade segue a lei moral, tratando-se de vontade moralmente livre76. Convém distinguirmos entre livre arbítrio e vontade moralmente livre: a ideia de liberdade no sentido prático refere-se à capacidade de uma vontade de deter a influência da coerção e dos impulsos sensíveis. A vontade é sensível, na medida em que é patologicamente afetada (arbitrium brutum, no caso dos animais, e arbitrium sensitivum, no caso dos 73

KANT, I., KpV A 216. KANT, I., KpV A 29s. 75 KANT, I., KpV A 29s. 76 WILLE. In: EISLER, Rudolf. Kant-Lexikon, p. 606. 74

33

humanos). A liberdade de um ser racional sensível, como o ser humano, não chega a ser somente brutum, mas também não é plenamente liberum, tratando-se de um arbitrium sensitivum liberum77. Se a razão prática só pudesse admitir e pensar como dado o que a razão especulativa pode oferecer, então o primado seria desta. Nesse caso, a razão prática deveria efetuar sínteses entre o empírico e o a priori. Mas a razão prática possui um princípio que é autônomo em relação à razão teórica: ao acolher o incondicionado, a lei moral adquire o primado sobre a razão teórica, podendo legitimar certas proposições que não seriam acolhidas como conhecimento especulativo. Tais proposições, ainda que teóricas, subtraem-se do conhecimento da razão especulativa78. O postulado da razão prática pura, como havíamos frisado no item anterior, é “(...) uma proposição teórica, porém

indemonstrável como tal, na medida em que é

inseparavelmente inerente a uma lei prática a qual vale a priori incondicionalmente”79. Tratase de “(...) pressuposições com intenção necessariamente prática, logo não expandem o conhecimento especulativo, mas conferem realidade objetiva às ideias da razão especulativa em geral (mediante sua referência à razão prática)80”. Se a razão prática pura possui um princípio que é independente da razão teórica, qual interesse da razão é o supremo? É curioso notar que, para Kant, se a razão teórica detivesse o primado, estar-se-ia procedendo como o Cânone de Epicuro, rejeitando o que não se deixa conferir mediante exemplos dados na experiência81. Independente da pertinência ou não dessa

77

KANT, I., KrV B 561s. KANT, I., KpV A 216. 79 KANT, I. KpV A 220. “(…) [Worunter ich] einen theoretischen, als solchen aber nicht erweislichen Satz [verstehe], so fern er einem a priori unbedingt geltenden praktischen Gesetze unzertrennlich anhänght”. 80 KANT, I. KpV A 238. “(...) Voraussetzungen in Notwendig praktischer Rücksicht, erweitern also nicht das spekulative Erkenntnis, geben aber den Ideen der spekulativen Vernunft im Allgemeinen (vermittelst ihrer Beziehung aufs Praktische) objektive Realität (...)” 81 KANT, I., KpV A 217 KANT, I., KpV A 216. 78

34

avaliação, da parte de Kant, é digno de nota que uma postura como a de Epicuro, para Kant, não aceitaria nem a lei moral, tampouco os postulados da razão prática pura, uma vez que todas essas proposições não se deixam conferir na experiência. Como mostraremos no capítulo III, Epicuro e os estóicos teriam proposto, na visão de Kant, um conceito de sumo Bem unilateral, não contemplando as diferentes dimensões do ser racional finito – sensível e inteligível: O epicurista se deteve na felicidade, ou no lado estético (ästhetische Seite); e o estóico se fixou na moralidade, ou princípio lógico (logische Seite)82. Esse problema já aponta para uma de nossas principais hipóteses: o sumo Bem, para Kant, é uma ideia na qual se deve, para um pleno exame, levar em conta a fraqueza humana, a sua limitação e caráter dual. O ser humano é sensível, mas é também inteligível, ser de natureza e também ser de razão. O ser racional finito, como no caso dos humanos, é cidadão de dois mundos, e o sumo Bem é a busca, em última instância, de sanar sua incompletude constitutiva. Retomando a questão de qual uso da razão detém o primado: não é o caso, para o filósofo de Königsberg, de a razão só aceitar como válido o que se deixa comprovar pela experiência. Afinal, os princípios a partir dos quais se julga – tanto no uso especulativo quanto no prático – são sempre a priori83, isto é, necessários, universais e sem bases anteriores à experiência. A razão, no uso especulativo, deve assumir proposições que pertençam ao interesse prático da razão. Ainda que eu não possa afirmar tais proposições teoricamente, tampouco posso refutá-las do ponto de vista especulativo. Ainda que eu não possa provar a existência de Deus, por exemplo, tampouco posso desmenti-las:

82 83

KANT, I. KpV A 201. KANT, I. KpV A 218.

35

(...) tornar o sumo Bem objeto da vontade de um ser racional é uma carência da razão prática pura, que se funda sobre um dever: o de tornar algo (o sumo Bem) objeto de minha vontade, para promovê-lo com todas as minhas forças, para o qual devo pressupor, porém, sua possibilidade e também as condições do mesmo, a saber: Deus, liberdade e imortalidade, visto que eu não posso provar estas por meio da minha razão especulativa, mas tampouco posso refutá-las84.

Do ponto de vista teórico, tanto o crente quanto o ateu seriam dogmáticos. A razão especulativa deve acolher as proposições da razão prática (os postulados da razão prática pura), tentando unificá-las com seus conceitos, como algo estranho85. Isso significa que um discurso filosófico sobre os postulados (Deus, imortalidade da alma e liberdade) não pode, para Kant, consistir em especulação teórica sobre a essência de Deus, detalhes sobre a criação do mundo ou a natureza da alma. O que permanece é a possibilidade de se falar sobre a alma, a liberdade e Deus como recursos que completam o agir moral na busca da promoção do sumo Bem, e apenas para esse fim. São proposições teóricas submetidas à racionalidade prática, por isso, objetos dessas proposições se tornam objeto de crença racional pura. A razão especulativa, nesse caso, deve tentar comparar essas proposições e conectá-las com tudo o que está em seu poder. Não se trata de conhecimento teórico, mas de extensão prática da razão pura, o que não se contradiz ao seu interesse, uma vez que é a “limitação do ultraje especulativo” (Einschrankung des spekulativen Frevels). Assim sendo, o vínculo entre razão especulativa pura e razão prática pura é marcado pelo primado da razão prática86. Esse vínculo não é contingente, mas fundado a priori sobre a razão – sendo, portanto, necessário.

84

KANT, I. KpV A 256s. “(...) ist ein Bedürfnis der reinen praktischen Vernunft, auf einer Pflicht gegründet, etwas (das höchste Gut) zum Gegenstande meines Willens zu machen, um es nach allen meinen Kräften zu befördern; wobei ich aber die Möglichkeit desselben, mithin auch die Bedingungen dazu, nämlich Gott, Freiheit und Unsterblichkeit voraussetzen muss, weil ich diese durch meine spekulative Vernunft nicht beweisen, obgleich auch nicht widerlegen kann.” 85 KANT, I. KpV A 218. 86 KANT, I. KpV A 218s.

36

“Todo interesse é, em última instância, prático, e até o interesse da razão especulativa é condicionado, só sendo completo no uso prático87”. Mencionamos rapidamente, acima, que a liberdade pode ser considerada um princípio originário a priori ligado aos demais postulados (imortalidade da alma e existência de Deus). No prefácio da KpV, o conceito de liberdade, ao ter sua realidade (Realität) provada por uma lei apodítica da razão prática, isto é, por uma lei cuja certeza é evidente, não precisando ser demonstrada, constitui-se no fecho de abóbada (Schlussstein) do edifício de um sistema da razão pura – tanto prática, quanto especulativa. Além disso, os conceitos de Deus e de imortalidade não se tratam, no uso prático da razão pura, de meras ideias sem sustentação: mediante a ideia de liberdade, os conceitos de Deus e de imortalidade recebem permanência e realidade objetiva (Bestand und objektive Realität)88. Isso significa, para o filósofo, que a possibilidade dos conceitos em questão é provada no âmbito moral pelo fato de a liberdade ser efetiva (wirklich): essa ideia é manifestada pela lei moral89. Desse modo, a liberdade difere das demais ideias da razão especulativa: “A liberdade, todavia, é também a única entre todas as ideias da razão especulativa cuja possibilidade nós sabemos a priori¸ ainda que não a examinemos, pois ela é a condição da lei moral, da qual nós sabemos” 90. Para Kant, poderia ser problemático o uso do termo ‘condição’ para se referir à lei moral, uma vez que a lei moral é incondicionada. Não se trata, entretanto, da liberdade condicionando a lei moral, restringindo-a. O que o filósofo de Königsberg quer dizer é que a liberdade é a razão de ser (“ratio essendi”) da lei moral, ao passo que esta é a razão de se

87

KANT, I. KpV A 218s. “(...) alles Interesse zuletzt praktisch ist, und selbst das der spekulativen Vernunft nur bedingt und im praktischen Gebrauche allein vollständig ist”. 88 KANT, I., KpV A 4. 89 KANT, I. KpV A 5. 90 KANT, I. KpV A 5. “Freiheit ist aber auch die einzige unter allen Ideen der spekulativen Vernunft, wovon wir wissen, ohne sie doch einzusehen, weil sie die Bedingung des moralischen Gesetzes ist, welches wir wissen.”

37

conhecer (“ratio cognoscendi”) da liberdade. Em outros termos: a existência da liberdade permite a nós, seres racionais finitos, encontrarmos a lei moral em nós; e é a lei moral pensada em nossa razão que nos legitima a admitir a liberdade em nosso agir91. As ideias de Deus e de imortalidade da alma não são condições (no sentido de “ratio essendi”) da lei moral, mas condições do objeto necessário de uma vontade determinável pela lei moral (isto é, condições do sumo Bem), ou objeto necessário do uso prático da razão pura. Não podemos afirmar, desse modo, sobre a efetividade (Wirklichkeit) e nem sobre a possibilidade de conhecer essas duas ideias92. Isso pode confundir o leitor que acabara de ler, ainda no prefácio, Kant afirmar que a liberdade confere realidade objetiva (objektive Realität) às mesmas ideias93. Talvez, com Wirklichkeit, Kant queira dizer uma realidade teórica, uma fundação teórica para se afirmar a realidade das ideias, o que não seria possível para Kant – visto que Deus e a alma não são encontráveis no espaço e nem no tempo. O Kant-Lexikon nos afirma que a razão prática fornece, mediante o conceito de liberdade, realidade objetiva às ideias da razão, mas apenas realidade prática, e não teórica94. Apesar da impossibilidade de conhecimento teórico dessas ideias, Kant afirma sua aplicabilidade prática, reconhecendo que Deus e imortalidade da alma são “(...) condições da aplicação da vontade moralmente determinada a seu objeto que lhe é dado a priori (o sumo Bem). Consequentemente, sua possibilidade nesse aspecto prático pode e deve ser admitida, ainda que sem conhecê-las e examiná-las praticamente95”. Trata-se, aqui, de um “fundamento meramente subjetivo do tomar por verdadeiro” (bloss subjektiver Grund des Führwahrhaltens) que é, no entanto, objetivamente válido para 91

KANT, I. KpV A 5n. KANT, I. KpV A 6. 93 KANT, I. KpV A 4. Kant reafirma esse termo (“objektive Realität”) em A 6. 94 IDEE, In: EISLER, Rudolf. Kant-Lexikon, IDEE, p. 258. 95 KANT, I. KpV A 6. “(...) die Bedingungen der Anwendung des moralisch bestimmten Willens auf sein ihm a priori gegebenes Objekt (das höchste Gut). Folglich kann und muss ihre Möglichkeit in dieser praktischer Beziehung angenommen werden, ohne sie doch theoretisch zu erkennen und einzusehen”. 92

38

uma razão prática pura, com o que – e por meio do conceito de liberdade – confere-se realidade objetiva (objektive Realität) às ideias de Deus e da imortalidade da alma, bem como à capacidade de aceitá-las, o que é uma “necessidade subjetiva e carência da razão prática” (subjektive Notwendigkeit (Bedürfniss der reinen Vernunft)) 96, sem que se expanda, com isso, o conhecimento teórico, mas conectando-se o uso prático da razão com elementos do uso teórico da mesma. Tal carência não é hipotética, ligada à especulação (não se trata de uma carência da razão pura no uso especulativo ou teórico), mas uma carência legal (gesetzliches) – vinculada à lei moral – de se pressupor aquilo sem o qual não pode acontecer o que deve ser posto como objeto/propósito de sua conduta97: os postulados são pressupostos sem os quais não pode se efetuar o sumo Bem. Veremos, na seção a seguir, como na KrV a carência da razão pura no uso teórico/especulativo da razão está ligada a um modo de tomar por verdadeiro chamado crença doutrinal, ao passo que a carência da razão pura no uso prático é uma fé moral – ou, na linguagem da KpV – fé racional pura.

I.4. A carência da razão pura no uso prático: fé racional pura

A noção de carência da razão pura no uso prático é uma noção que, a nosso ver, ainda não recebeu o devido tratamento nos estudos de Kant. Vemos poucas menções ao termo em comentários sobre o sumo Bem e sobre os postulados da razão prática pura. Para nossa investigação, isso bastou para despertar o interesse no tema: como um elemento tão importante na argumentação kantiana sobre o sumo Bem e os postulados recebeu tão pouca atenção? O próprio Kant teria desenvolvido pouco o tema? Não parece ser o caso. É digno de 96 97

KANT, I. KpV A 6. KANT, I. KpV A 7.

39

nota que haja, além da menção no prefácio da KpV, um capítulo inteiro da Dialética sobre o tema, o capítulo VIII. O filósofo de Königsberg nos afirma que uma carência da razão pura no uso especulativo conduz apenas a hipóteses, ao passo que a carência da razão pura no uso prático conduz a postulados. No primeiro caso, procede-se para “satisfazer minha razão investigadora” (um meine forschende Vernunft (...) zu befriedigen)98. Assemelha-se à crença doutrinal expressa na primeira Crítica, sobre a qual discorreremos abaixo. Pode-se pressupor, por exemplo, uma divindade como Autor da natureza, para explicar uma conformidade a fins e ordem que se vê na natureza. Isso não amplia, no entanto, o conhecimento especulativo, mas apenas permite estabelecer hipóteses sobre a natureza99.

Em contraste, tornar o sumo Bem objeto da vontade de um ser racional é uma carência da razão prática pura, que se funda sobre um dever: o de tornar algo (o sumo Bem) objeto de minha vontade, para promovê-lo com todas as minhas forças, para o qual devo pressupor, porém, sua possibilidade e também as condições do mesmo, a saber: Deus, liberdade e imortalidade, visto que eu não posso provar estas por meio da minha razão especulativa, mas tampouco posso refutá-las100.

Esse dever de tornar o sumo Bem objeto da vontade, promovendo-o com todas as forças, funda-se numa lei que independe desses pressupostos (os postulados) e que é apoditicamente certa por si mesma (a lei moral), não sendo necessária especulação sobre essas questões101.

98

KANT, I. KpV A 255s. KANT, I. KpV A 256. Isso parece já antecipar toda a discussão da Crítica da faculdade de julgar teleológica a qual, todavia, não será abordada em nossa dissertação, como mencionamos na introdução. 100 KANT, I. KpV A 256s. “Dagegen ist ein Bedürfnis der reinen praktischen Vernunft, auf einer Pflicht gegründet, etwas (das höchste Gut) zum Gegenstande meines Willens zu machen, um es nach allen meinen Kräften zu befördern; wobei ich aber die Möglichkeit desselben, mithin auch die Bedingungen dazu, nämlich Gott, Freiheit und Unsterblichkeit voraussetzen muss, weil ich diese durch meine spekulative Vernunft nicht beweisen, obgleich auch nicht widerlegen kann”. 101 KANT, I. KpV A 257. 99

40

O efeito subjetivo dessa lei, ou seja, a disposição conforme a ela necessária para se promover o sumo Bem pressupõe que o mesmo seja possível. Se não fosse possível, não seria ordenado pela lei moral, como defende Kant. Seria impossível, do ponto de vista prático, procurar o objeto de um conceito que fosse, no fundo, vazio e sem objeto. Esse é o problema que Kant aborda na Dialética da razão prática pura102. As considerações de John Silber sobre esse ponto são particularmente interessantes. Ainda que não concordemos com suas teses sobre o “sumo Bem imanente”

103

, algumas de

suas concepções sobre a importância do sumo Bem em Kant são dignas de nota. Para Silber, da mesma forma que no uso especulativo da razão, conceitos sem intuição são vazios, no uso prático, a lei moral sem um objeto é “vazia e infrutífera” (leer und unfruchtbar) 104. A razão, em seu uso prático, quer encontrar preenchimento e conferir expressão à ideia de sumo Bem na efetividade105. A ação moral não é desprovida de sensibilidade. A vontade dos seres racionais finitos não é apenas razão prática pura, mas também é vinculada a uma faculdade de desejo inferior, sensível. Como tal, a vontade contém seu querer na forma de desejos e de inclinações106. Silber é ciente da relação inevitável entre lei moral e sumo Bem: “(...) a efetivação dessa ideia da razão é uma tarefa moral; ela não é, de modo algum, um luxo, como na pesquisa científica. A demanda moral da razão somente se satisfaz se o sumo Bem é encarnado, efetivado. A exigência da ideia moral da razão é uma demanda de existência, e não apenas de conhecimento” 107 (grifo nosso).

102

Cf. principalmente KANT, I. KpV A 192-218. SILBER, J. R. “Der Schematismus der praktischen Vernunft”, p. 264; SILBER, J. R. “Kant's Conception of the Highest Good as Immanent and Transcendent”, p. 492. Essa noção será apresentada e criticada com a devida atenção no segundo capítulo. 104 SILBER, J. R. “Der Schematismus der praktischen Vernunft”, p. 255s. 105 SILBER, J. R. “Der Schematismus der praktischen Vernunft”, p. 258. 106 SILBER, J. R. “Der Schematismus der praktischen Vernunft”, p. 258. 107 SILBER, J. R. “Der Schematismus der praktischen Vernunft”, p. 262. “Und doch ist die Verwirklichung dieser Vernunftidee eine moralische Aufgabe; sie ist keineswegs ein Luxus, wie in der wissenschftlichen Forschung. Die moralische Forderung der Vernunft ist erst befriedigt, wenn das höchste Gut verkörpert, 103

41

Não chegamos a concordar que a pesquisa científica seja um luxo para Kant, pois ele conferia à ciência um papel fundamental no sistema do saber humano, inclusive no combate ao fanatismo, ou Schwärmerei. Apesar de discordarmos de Silber nesse ponto, vemos que o comentador captou bem dois pontos fundamentais da argumentação kantiana sobre o sumo Bem: (a) sua efetuação é uma atitude/atividade moral, e não algo alheio à moralidade; (b) a exigência da lei moral só se completa com a efetuação do sumo Bem, que vincula sensível e inteligível. Os postulados não existem em função de um propósito especulativo, mas sim “(...) de um fim prático necessário de vontade racional pura, o qual aqui não escolhe, mas obedece a um mandar inflexível da razão108.” (grifo nosso). Não se trata, para Kant, de uma carência que se funda na inclinação, para um fim baseado em fundamentos subjetivos, mas de uma carência com fundamento objetivo: a lei moral. O humano honesto tem base, segundo Kant, para querer que existam Deus, mundo inteligível (liberdade no sentido positivo, i. e., liberdade como postulado) e duração infinita (imortalidade), e para querer não ser privado dessa fé (Glauben). É o único caso, segundo Kant, em que o Interesse determina o juízo sem precisar de argumentos sutis109. Kant diferencia entre carência da razão e carência sensível, respondendo a uma objeção do filósofo Wizenmann. Este objetara contra a capacidade de se deduzir a realidade objetiva da ideia do Belo a partir de uma ilusão, da parte de um apaixonado. Kant responde que esse caso seria de uma carência sensível, a qual jamais pode postular a existência de um objeto em prol daquele que é afetado por ela. O fundamento de desejo, nesse caso, é

verwirklicht ist. Die Forderung der Moralischen Vernunftidee ist eine Forderung von Existenz und nicht nur von Erkenntnis.” (grifo nosso) 108 KANT, I. KpV A 258. “(...) eines praktisch notwendigen Zwecks der reinen Vernunftwillens, der hier nicht wählt, sondern einem unnachlasslichen Vernunftgeboten gehorcht (...)”. 109 KANT, I. KpV A 258.

42

meramente subjetivo110. Inclusive, é digno de nota mencionar que no Kant Dictionary de Caygill, o verbete “Needs” só aponta para descrição das carências sensíveis (inclinações). Isso parece mostrar como ainda há pouca atenção conferida ao termo ‘carência da razão pura’111. Já a carência da razão pura parte de um fundamento objetivo da vontade: a lei moral. Esse é o elemento que não torna a carência da razão em uma mera ‘onipotência do pensamento’. A razão prática pura e a lei moral autorizam, a priori, a pressupor condições adequadas à lei moral. É um dever tornar o sumo Bem efetivo mediante uso de nossas forças. Por isso, ele deve ser possível de se efetuar112. Na KpV, Kant fala sobre aspectos cognitivos e volitivos da fé racional, mas não dos emotivos, para que a fé não seja confundida com desejo individual113. Ao falar sobre a necessidade moral de se admitir a existência de Deus, no capítulo V da Dialética da razão prática pura, Kant frisa que “(...) essa necessidade moral é subjetiva, isto é, carência, e não objetiva, ou seja, ela mesma um dever114”. Não pode haver dever de se admitir a existência de algo: isso diz respeito ao uso teórico da razão, e dever é algo que concerne ao uso prático puro da mesma. Kant é bem claro acerca dessa questão: “Ao dever compete aqui apenas o empenho pela produção e promoção do sumo Bem no mundo, cuja possibilidade, então, deve ser postulada, mas que nossa razão não acha pensável, senão sob o pressuposto de uma inteligência suprema (...)115”. (grifo nosso). Essa citação contém um elemento curioso: se o sumo Bem deve ser produzido no mundo, por que precisamos de um postulado da imortalidade da alma? Esse ponto nos parece 110

KANT, I. KpV A 259n. NEEDS. In. CAYGILL, H. A Kant Dictionary. p. 300. 112 KANT, I. KpV A 259n. 113 FORSCHNER, M., “Immanuel Kant über Vernunftglaube und Handlungsmotivation”, p. 340. 114 KANT, I. KpV A 226. “(...) diese moralische Notwendigkeit subjektiv, d.i. Bedürfnis, und nicht objektiv, d. i. selbst Pflicht sei”. 115 KANT, I. KpV A 226s. “Zur Pflicht gehört hier nur die Bearbeitung zur Hervorbringung und Beförderung des höchsten Guts in der Welt, dessen Möglichkeit also postuliert werden kann, die aber unser Vernunft nicht anders denkbar findet, als unter Voraussetzung einer höchsten Intelligenz (...)”. 111

43

um dos mais controversos em jogo na argumentação kantiana do sumo Bem. Ora o filósofo fala de uma vida futura (principalmente na argumentação presente no Cânone da KrV, que será abordada abaixo), ora fala de se efetuar/produzir o sumo Bem no mundo116. Talvez esse ponto mostre os limites de um arrazoado prático sobre temas metafísicos: fica-se, em alguns pontos, no limiar entre uma carência da razão prática e um discurso metafísico ‘forte’, dogmático. Talvez essa aporia também venha do fato de Kant estar introduzindo elementos do Cristianismo em sua argumentação. A própria discussão cristã sobre noções como Reino de Deus é bem divergente, havendo quem defenda se falar de uma realidade transcendente, e quem defenda se tratar de algo a ser realizado no mundo. Tal questão será retomada no capítulo II. A existência de Deus, por sua vez, também não deve ser admitida como fundamento de obrigação em geral (uma obrigação (Verbindlichkeit), para Kant, só depende da autonomia da própria razão). Reparamos aqui, um equívoco da parte de um importante comentador, Lewis White Beck, que chega a afirmar que Deus, na argumentação kantiana, é necessário para a moral117. A razão teórica pode adotar uma hipótese referente à existência de Deus. Sendo essa hipótese ligada ao dever de se produzir o sumo Bem, é uma carência, de um ponto de vista prático, que pode se chamar fé racional pura (reiner Vernunftglaube), pois a razão pura – tanto no uso teórico quanto no uso prático, é a fonte de que surge118. Note-se que, aqui, Kant iguala a carência da razão pura no uso prático com a fé racional pura.

116

KANT, I. KpV A 219; A 225s. BECK, L. W. A commentary on Kant´s Critique of Practical Reason, p. 271. 118 KANT, I. KpV A 227. 117

44

Kant quer evitar interpretações equivocadas (Missdeutungen) em relação ao uso de “um conceito ainda tão inusitado, pouco familiar quanto o de uma fé racional prática pura” (ein noch so ungewohnten Begriff, als der eines reinen praktischen Vernunftglaubens)119. Essa fé racional não é um mandamento (Gebot) de se admitir o sumo Bem como possível, pois “uma fé que seja ordenada é um absurdo” (ein Glaube aber, der geboten wird, ist ein Unding)120. A razão especulativa deve reconhecer a possibilidade do sumo Bem sem ser consultada, pois nenhum ser racional poderia querer afirmar que um merecimento da felicidade, (ou seja, conduta concordante com a lei moral), seja impossível de se vincular com uma posse de felicidade proporcional a esse merecimento, uma vez que há um interesse moral que deseja a possibilidade121. E o interesse, como dissemos anteriormente, é um princípio que constitui a condição sob a qual uma dada faculdade é exercida122. Para Kant, desse modo, a fé racional pura não é mandamento. O mandamento é dado pela lei moral, a qual impele a vontade a buscar promover o sumo Bem123. Prova de quão complexa é a argumentação kantiana é que mesmo Frederick Beiser, importante intérprete de Kant e do idealismo alemão, comete um erro em relação a esse problema. Um erro no texto é o autor considerar que é dever crer na existência de Deus124. Kant é enfático que não é o caso125. Não temos dever de crer nos postulados. Crença é questão de tomar um objeto por verdadeiro, e isso é algo que compete ao uso teórico da razão, e não ao uso prático. O dever não se funda nos postulados, mas a lei moral é apodítica por si só126.

119

KANT, I. KpV A 260. KANT, I. KpV A 260. 121 KANT, I. KpV A 260s. 122 KANT, I. KpV A 216. 123 KANT, I. KpV A 260. 124 BEISER, F. C. “Moral faith and the highest good”, p. 607; 617. 125 KANT, I. KpV A 259ss. 126 FORSCHNER, M., “Immanuel Kant über Vernunftglaube und Handlungsmotivation”, p. 339. 120

45

Os postulados surgem da necessidade de se sanar a de incompatibilidade entre a finitude humana e a demanda da razão pura no uso prático: a produção do sumo Bem como seu objeto necessário. Essa necessidade é a carência da razão pura no uso prático. A ‘fé racional pura’ de Kant, ao deslocar a problemática de Deus da metafísica para a moral, ofereceu uma alternativa que não era nem tão ambiciosa quanto a dos wolffianos, nem tão cética quanto a de Hume. Mesmo se a razão não demonstra a existência de Deus e a imortalidade da alma, fornece justificativa moral para crermos nelas. Isso é, para Beiser, a principal razão pelo sucesso da filosofia de Kant no início dos anos 1790127. Kant menciona uma tese importante ao longo da segunda Crítica: “(...), baseado em um mero curso natural do mundo, não podemos esperar a felicidade exatamente adequada ao valor moral e esta deve ser tomada por impossível, e que desse modo, a possibilidade do sumo Bem só pode ser concedida sob o pressuposto de um Autor moral do mundo” 128. Kant considera, no entanto, que essa impossibilidade de se esperar felicidade proporcional ao valor moral é apenas subjetiva (bloss subjektiv). Dito de outro modo: com base num mero curso natural, nossa razão considera impossível a si mesma conceber uma interconexão segundo fins entre dois acontecimentos do mundo que seguem leis tão diversas (moralidade e felicidade) 129. Aliás, como com tudo o que se dá segundo fins na natureza, faz-se difícil mostrar essa interconexão a partir de fundamentos objetivos. “O mandamento de promover o sumo Bem” (das Gebot, das höchste Gut zu befördern) é objetivamente fundado na lei moral e, por conseguinte, na razão prática pura. A possibilidade do mesmo é objetivamente fundada na 127

BEISER, F. The Fate of Reason: German Philosophy from Kant to Fichte, p. 4. KANT, I. KpV A 261. “(...) nach einem blossen Naturgange in der Welt, die genau dem sittlichen Werte angemessene Glückseligkeit nicht zu erwarten und für unmöglich zu halten sei, und das also die Möglichkeit des höchsten Guts, von dieser Seite, nur unter Voraussetzung eines moralischen Welturhebers könne eingeräumt werden”. 129 KANT, I. KpV A 261. 128

46

razão teórica, que não se opõe a isso130. Nesse sentido que Kant diz que um postulado da razão prática pura é “(...) uma proposição teórica, porém indemonstrável como tal, na medida em que é inseparavelmente inerente a uma lei prática a qual vale a priori incondicionalmente”131. Pela razão teórica, não podemos depor nem contra, nem a favor de um sábio Autor do mundo. Pela via prática, no entanto, há um livre interesse da razão prática pura, que decide pela aceitação de um sábio Autor. O princípio que determina nosso juízo é subjetivo como carência, mas ao mesmo tempo, meio de promoção (Beförderungsmittel) que é praticamente necessário. Trata-se de um fundamento da máxima do tomar por verdadeiro com um propósito moral; uma fé racional pura (reiner Vernunftglaube)132. A fé racional pura não é mandamento, mas é, como determinação livre, compatível com o propósito moral (este sim, ordenado)133. Nesse sentido, a interpretação de Allen Wood nos parece bem correta: segundo o comentador, as questões metafísicas com as quais o ser humano se preocupa mais (liberdade, imortalidade da alma, existência de Deus) só podem ser endereçadas adequadamente, em Kant, sob um ponto de vista prático (ou moral) da razão pura134. A fé racional pura é um conceito capital para se compreender a visão kantiana sobre religião, que já começa a ser esboçada nos textos da KrV e da KpV: a lei moral conduz à religião – aqui compreendida no sentido de reconhecimento dos deveres como mandamentos divinos, não como interditos, mas como leis que vontades livres dão a si próprias. Essa condução ocorre porque, para se conceber o sumo Bem como possível de se efetuar –

130

KANT, I. KpV A 262. KANT, I. KpV A 220. “(…) [Worunter ich] einen theoretischen, als solchen aber nicht erweislichen Satz [verstehe], so fern er einem a priori unbedingt geltenden praktischen Gesetze unzertrennlich anhänght”. 132 KANT, I. KpV A 262s. 133 KANT, I. KpV A 263. 134 WOOD, A. Kant’s Ethical thought, p. 12. 131

47

exigência da própria razão prática – deve-se aceitar a imortalidade da alma e a existência de Deus, e essa aceitação é um ato de fé. Mas essa não é uma fé historicamente condicionada, pelo menos na intenção do filósofo de Königsberg. Por se tratar de crenças que decorrem da obediência à lei moral, trata-se de uma fé da razão prática pura – nos termos de Kant, fé racional pura135. Wood chega a defender que “(...) a doutrina da fé racional pura Kantiana é consistente com seu melhor pensamento crítico136” e que “(...) um entendimento completo de sua doutrina é necessário para uma apreciação genuína do panorama da filosofia crítica como um todo” 137. Vejamos com mais detalhe como Kant concebe a fé (Glaube) como um intermediário entre o saber (Wissen) e o opinar (Meinen). Recorreremos ao terceiro capítulo do Cânone da razão pura, na primeira Crítica, bem como a comentários como o de Kemp Smith e de Bueno.

I.5. A fé entre o saber e a opinião

Retomando a citação de Hösle acima138, em que sentido o estatuto epistemológico dos postulados não seria tão preciso? Seria por se tratar de fé; de objetos de crença, e não de saber? O que, exatamente, Kant quer dizer com Führwahrhalten (tomar por verdadeiro)? O Kant-Lexikon nos indica que tomar por verdadeiro consiste, em geral, de duas espécies: ou certo, ou incerto. O tomar por verdadeiro certo se liga à consciência de uma necessidade. O 135

WOOD, A. “Rational theology, moral faith, and religion”, p. 403. WOOD, A. Kant’s Moral Religion, p. vii. “(…) Kant’s doctrine of moral faith is consistent with his best critical thinking”. 137 WOOD, A. Kant’s Moral Religion, p. vii. “(...) a full understanding of his doctrine is necessary for any genuine appreciation of the outlook of critical philosophy as a whole.” 138 HÖSLE, V. “Why Teleological Principles Are Inevitable for Reason: Natural Theology after Darwin”, p. 46. “Kant’s contribution to natural theology is not limited to the destructive work done in The Only Possible Argument and in the First Critique. The Critique of Practical Reason introduces God as a postulate of practical reason (A 223ff.), and even if the epistemological status of this postulate is unclear and controversial, clearly Kant can claim to have given the moral argument for the existence of God a new foundation. This is linked to Kant’s radical break with eudemonist ethics: the question of what our duty is cannot be reduced to the problem what makes us happy.” 136

48

incorreto, por sua vez, é vinculado a um acaso ou à possibilidade de seu contrário139. Vejamos na Doutrina do Método da Primeira Crítica a argumentação kantiana a respeito do tema. Kant inicia a terceira seção do Cânone da razão pura (“Vom Meinen, Wissen und Glauben) com a seguinte afirmação: “O tomar por verdadeiro é uma ocorrência em nosso entendimento que pode repousar sobre fundamentos objetivos, mas que também exige causas subjetivas no ânimo daquele que julga” 140. Se o tomar por verdadeiro vale para todos os seres dotados de razão, o fundamento é objetivamente suficiente, tratando-se de convicção (Überzeugung). Caso se tenha fundamento apenas na natureza particular do sujeito, é persuasão (Überredung)141. A “pedra de toque do tomar por verdadeiro” (Probierstein des Führwahrhaltens), para se saber quando se trata de uma convicção ou de mera persuasão, é externa: a possibilidade de se comunicar e de considerar esse tomar por verdadeiro válido para a razão de todo ser humano. Um princípio comum sobre o qual os juízos vão concordar, apesar das diferenças subjetivas, é externo: o objeto, com o qual todos os sujeitos concordarão, demonstrando a verdade do juízo142. O tomar por verdadeiro, ou validade subjetiva do juízo, em relação à convicção (ou seja, na medida em que vale objetivamente), possui três graus: Meinen (opinião), Glauben (crença/fé), e Wissen (saber). A opinião é um tomar por verdadeiro que é insuficiente tanto objetiva quanto subjetivamente. Já o saber é um tomar por verdadeiro suficiente tanto subjetiva quanto objetivamente. Trata-se de Gewissheit (certeza), suficiência para todos. A crença ou fé (Glauben), por sua vez, consiste em um tomar por verdadeiro que é suficiente

139

FÜHRWAHRHALTEN. In: EISLER, Rudolf. Kant-Lexikon, p. 172. KANT, I. KrV B 848 = A 820. “Das Führwahrhalten ist eine Begebenheit in unserem Verstande, die auf objektiven Gründen beruhen mag, aber auch subjektive Ursachen im Gemüte dessen, der da urteilt, erfordert”. 141 KANT, I. KrV B 848 = A 820. 142 KANT, I. KrV B 848s = A 820s. 140

49

apenas subjetivamente, uma espécie de intermediário entre Meinen e Wissen. A convicção (Überzeugung) vale apenas para mim mesmo, nesse caso143. O estado de ânimo diante dos postulados da razão prática pura e do sumo Bem não é a convicção que temos ao conhecer algo. No conhecimento, os juízos são verificáveis na experiência, o que nos garante que são verdadeiros. Ao postularmos a existência de Deus, por exemplo, as coisas são diferentes, pois esse postulado se liga à possibilidade de um domínio suprassensível e da liberdade144. Embora essa convicção seja mais frágil objetivamente que o saber ou conhecimento teórico, é mais forte subjetivamente que a opinião. Trata-se da crença (Glauben). Tal estado de ânimo é exigência da própria racionalidade prática pura145. No uso prático da razão, somente, pode um tomar por verdadeiro teoricamente insuficiente se chamar crença (Glauben). Esse ponto de vista prático é ou o da habilidade/engenho (Geschicklichkeit), ou o da Sittlichkeit (moralidade). Enquanto a primeira se refere a fins contingentes e arbitrários, a segunda se refere a fins absolutamente necessários146 (lembrando que é o tomar por verdadeiro certo que se liga à consciência de uma necessidade). Quando um fim é pressuposto, as condições para alcançá-lo são “hipoteticamente necessárias” (hipotetisch notwendig)147. Tal necessidade é subjetiva, mas suficiente apenas comparativamente, quando não conheço outras condições para atingir o fim. Todavia, é suficiente absolutamente (schlechthin) e para todos, se eu sei com certeza que não se pode

143

KANT, I. KrV B 850 = A 822. BUENO, V. C. de A. “Kant e o Conceito de Fé Racional”, p. 68. 145 BUENO, V. C. de A. “Kant e o Conceito de Fé Racional”, p. 69. 146 KANT, I. KrV B 851 = A 824. 147 Termo próximo do que Kant se serve para se referir aos postulados na KpV. Cf. KpV A 21n. 144

50

conhecer nenhuma outra condição mediante a qual se atingirá o fim proposto. Trata-se, nesse caso, de uma crença necessária (notwendiger Glaube)148. Como vimos acima, Kant afirma o sumo Bem, para seres racionais finitos, só é possível com adesão aos postulados da razão prática pura. O mesmo sumo Bem é considerado um fim, inclusive, o fim último. Trata-se de uma “(...) necessidade subjetiva, porém verdadeira e incondicionada da razão”

149

. Seu caráter incondicionado vem do fato de que o

sumo Bem é demanda de uma vontade determinável pela lei moral. A proposição fundamental da moralidade, para Kant, acarreta necessidade. Daí se tratar, no caso dos postulados, de uma crença necessária: a única via para se atingir o fim proposto (o sumo Bem) é a adesão aos postulados da razão prática pura (Deus, imortalidade e liberdade). Há, portanto, formas bem diferentes de crença. Quando um médico acredita que sua prescrição vai fazer bem a um paciente, procede de maneira contingente. Trata-se de uma crença pragmática150: uma crença contingente (afirmada com a consciência de que, sob um exame mais minucioso, pode ser tomada como falsa) e que, ainda assim, fornece fundamento para o emprego de meios, de modo a se atingir certos fins desejados151. Quando se crê em Deus com fins heurísticos, trata-se de uma crença/fé doutrinal, na qual Deus é um fio condutor na investigação da natureza. Tal crença/fé não é ainda prática152; não obstante, é uma crença importante para um fim contingente, mas relevante, tal como a descoberta de ordem no sistema de natureza. Isso está bem de acordo com o uso regulador das ideias para Kant, apresentado no Apêndice à Dialética Transcendental153, e parece antecipar

148

KANT, I. KrV B 851s = A 824s. KANT, I., KpV A 22n. “(...) Subjektive, aber doch wahre und unbedingte Vernunftnotwendigkeit”. 150 KANT, I. KrV B 852 = A 825. 151 KEMP SMITH, N. A commentary to Kant’s Critique of Pure Reason, p. 577. 152 KANT, I. KrV B 854 = A 826. 153 KEMP SMITH, N. A commentary to Kant’s Critique of Pure Reason, p. 577. 149

51

questões da terceira Crítica (que, todavia, não será alvo de nossa dissertação, conforme mencionamos na introdução). Finalmente, temos a moralischer Glaube, crença/fé moral. Aqui, é absolutamente necessário que algo ocorra, a saber: que eu obedeça, sob todos os aspectos, a lei moral. O fim (o sumo Bem) está fixado, e só há uma condição sob a qual esse fim concordará com outros fins: que existe um Deus, e que há um mundo futuro (künftige Welt). Para Kant, ninguém “conhece” outras condições que conduzam a essa “unidade de fins sob a lei moral” (Einheit der Zwecke unter dem moralischen Gesetze), isto é, o sumo Bem154. Na crença/fé moral, o fim (sumo Bem) é absolutamente necessário, e só há uma condição sob a qual podemos conceber sua realização, a saber: a suposição da existência de Deus e de uma vida futura155. Caygill afirma que, para Kant, a fé moral é mais estável que a fé doutrinal, e essa certeza se baseia na inabilidade de se desfazer dos postulados sem se tornar detestável (abhorrent,

expressão

de

Caygill)

aos

próprios

olhos156.

Kant

usa

o

termo

verabscheuungswürdig (digno de desprezo): não se pode vacilar na fé em Deus ou numa vida futura, caso contrário, as proposições fundamentais morais seriam derrubadas, e não se pode renunciar a elas sem se tornar digno de desprezo aos próprios olhos157. Algo semelhante, ainda que menos retórico, encontra-se na segunda Crítica: a falsidade do sumo Bem – para cuja realização deve-se contar com os postulados da razão prática – tornaria a lei moral falsa e erguida sobre fins vazios158. Kant menciona, ironicamente, que não se pode afirmar, de ninguém: “ele sabe, que existe um Deus e uma vida futura; pois, se ele o souber, então, é exatamente o homem que eu

154

KANT, I. KrV B 856 = A 829. KEMP SMITH, N. A commentary to Kant’s Critique of Pure Reason, p. 577. 156 FAITH, In. CAYGILL, H. A Kant Dictionary, p. 193. 157 KANT, I. KrV B 856 = A 828. Cf. KANT, I. KpV A 205. 158 KANT, I. KpV A 204s. 155

52

procurei longamente” 159. Mas é possível, de outro lado, ter uma certeza moral dessas noções, a qual repousa sobre princípios subjetivos. Sendo subjetiva, a certeza moral deve ser expressa nos seguintes termos: ‘eu tenho certeza moral de que Deus existe, eu estou certo de que há uma vida futura’, mas não ‘é moralmente certo que Deus existe, é certo que há uma vida futura’160. Crença em Deus e na vida futura são artigos de fé (Glaunbesartikel)161. Kant indicou, no prefácio à segunda edição da Kritik der reinen Vernunft, que a Crítica não possui apenas uso negativo (ensinar não ir além dos limites da experiência), mas também apresenta um uso positivo, o uso prático da razão pura162. Ainda que a primeira Crítica mostre que não se possa conhecer Deus e a imortalidade da alma, mostra que se pode pensá-los, e que isso possui uma importância prática. Nesse sentido que deve ser entendida a célebre afirmação kantiana, segundo a qual precisou suprimir o saber (Wissen) para deixar lugar para a fé (Glauben)163. Kant recorre a um argumento de cunho teleológico: a natureza não distribuiu com parcialidade seus dons aos humanos, de modo que, em relação aos fins essenciais da natureza humana, a mais alta filosofia não leva mais longe que o senso comum: o sumo Bem não é apenas para os eruditos164. Isso encontra eco na segunda Crítica, na qual a convicção do

159

KANT, I. KrV B 856s = A 828s. “(...) er wisse, dass ein Gott und dass ein künftig Leben sei; denn, wenn er das Weiss, so is ter gerade der Mann, den ich längst gesucht habe”. 160 KANT, I. KrV B 857 = A 829. 161 KANT, I. KrV B 858 = A 830. 162 KANT, I. KrV B XXIV. 163 KANT, I. KrV B XXIV-XXX. 164 KANT, I. KrV B 859 = A 831. Parece haver influência de Rousseau nessa questão. Segundo Cassirer, Rousseau já defendia de que a única via para o conhecimento de Deus era através da moral. A única teologia que Kant e Rousseau podem admitir é a ‘teologia ética’. Rousseau não confiava nas provas metafísicas da imortalidade da alma e da existência de Deus, considerando-as supérfluas para que se mantenha o que é essencial na fé. Para o filósofo, os deveres da religião eram independentes daqueles da instituição. Acrescente-se que, para ele, a certeza moral consiste num suporte e fundamento da crença religiosa, e não o contrário. O que faltou a Rousseau, segundo Cassirer, na questão de uma teorização acerca da fé, foi a capacidade metodológica de Kant. Cf. CASSIRER, E. Rousseau, Kant, Goethe. Two Essays, pp. 48-54.

53

homem comum de que imortalidade, existência de Deus e liberdade são verdadeiros conceitos persiste165: “Essa fé racional é a do homem comum e do juízo moral humano saudável166”. A fé racional guia o ser humano em sua busca racional de seu fim último incondicionado, mostrando-lhe como ele pode ver o mundo de sua ação moral de forma a não se enganar pelo desespero moral que ameaça sua busca da destinação prática moral. A fé moral é resposta do ser finito às perplexidades que surgem na busca do propósito mais elevado da existência167. “A doutrina da fé moral de Kant exibe uma perspectiva plenamente racional, ainda que profundamente sensível em termos religiosos, do mundo, o que merece ser contado entre as maiores das contribuições filosóficas de Kant”168. Com interpretação similar à de Wood, nesse ponto, Kröner defende que não se trata de mera resignação intelectualista, ao se adotar a fé moral em relação a questões metafísicas. A obrigação moral é o limite e ápice da consciência humana, e não é necessário nem recomendado ir além dela. Fazer isso geraria temor à ‘fonte’ da moralidade, o suprassensível, de modo que se cairia em heteronomia169. Essa noção kantiana de Glaube exposta na primeira Crítica nos parece bem articulada com sua exposição, na KpV, da reiner Vernunftglaube, ou fé racional pura, que é justamente, aos olhos de Kant, a carência da razão pura no uso prático. É a necessidade de um ser racional finito conceber Deus, imortalidade e liberdade como existentes para que sua tarefa moral de produzir o sumo Bem possa ser cumprida.

165

KANT, I. KpV A 241. FORSCHNER, M., “Immanuel Kant über Vernunftglaube und Handlungsmotivation”, p. 333. “Dieser Vernunftglaube ist der des gemeinen Mannes und des gesunden moralischen Menschenverstandes”. 167 WOOD, A. Kant’s Moral Religion, p. 8. 168 WOOD, A. Kant’s Moral Religion, p. 9. “Kant’s doctrine of moral faith exhibits a fully rational yet profoundly sensitive religious outlook of the world, which deserves to be counted among the greatest of Kant’s philosophical contributions”. 169 KRÖNER, R. Kant’s Weltanschauung, p. 23. Cf. KANT, I., KpV A 263ss. 166

54

Zöller afirma que a teologia racional falha como projeto de saber, mas é substituída por uma doutrina da fé. O objeto da fé moral prática é aquilo que, sob a mesma suposição incondicionada do fim moral, garante a concordância desse fim com todos os demais fins. Uma suposição necessária, feita por razões objetivas, integra-se subjetivamente na formação da vontade e na fundamentação do agir de cada um. Trata-se de uma crença convicta e ligada à lei moral170.

(...) O Cânone da razão pura, que vindica moral-teleologicamente os objetos suprassensíveis, indisponíveis no modus do saber – especialmente a existência de Deus e a imortalidade da alma –, resulta numa doutrina crítica da religião, que fundamenta a crença religiosa de forma críticaracional, reduzindo-a, com isso, sistematicamente a uma ético-teologia [Ethikotheologie] e, com respeito à prática da vida, a um teísmo moral esclarecido 171.

Veremos, a seguir, como essas reflexões de Kant estão articuladas com sua apresentação do sumo Bem na primeira Crítica, enfatizando a relação entre o sumo Bem e um aspecto antropológico: ser racional finito é ser de crença, de esperança. A partir desses fundamentos lançados no primeiro capítulo, poderemos trabalhar com mais pertinência a relação entre a lei moral, o sumo Bem e os postulados da razão prática pura, no capítulo dois.

I.6. Deus e uma vida futura na primeira Crítica: artigos de fé

Para Kemp Smith, a argumentação de Kant sobre o sumo Bem e os postulados na primeira Crítica está incompleta, apresentando mesmo uma concepção não crítica de liberdade, que tem um tratamento superficial. Aliás, Kant sequer utiliza o termo ‘postulado da razão prática pura’ para se referir a Deus e a uma vida futura, nessa obra. No entanto, Kant se

170 171

ZÖLLER, G. “Credo quia rationale, Kant sobre a Fé Moral”, p. 70. ZÖLLER, G. “Credo quia rationale, Kant sobre a Fé Moral”, p. 71.

55

refere, no texto da KrV, a Deus e a uma vida futura como pressupostos inseparáveis da razão172, e apresenta essas noções no contexto da delimitação do conceito de sumo Bem, o que nos permite considerá-los como próximos dos postulados. Kant chega a afirmar que a liberdade transcendental não se relaciona com a liberdade prática. O cânone da KrV, como veremos abaixo, considera postulados apenas Deus e a imortalidade da alma173. No segundo capítulo, apresentaremos a argumentação da KpV, com intuito de mostrar a importância, para uma delimitação mais adequada do conceito de sumo Bem, das noções de liberdade e da lei moral. Kemp Smith considera que a exposição é muito condensada para ser clara de fato174. Segundo Zöller: “O capítulo sobre o cânone da razão pura sugere restringir sua problemática às duas questões pertinentes ao fim último proposto pela razão pura e que incidem sobre uma vida futura e sobre a existência de Deus, o que será retomado posteriormente pela dialética da Crítica da razão prática175”. Kant afirma que é humilhante para a razão humana (die menschliche Vernunft) que, no uso especulativo puro, ela precise de disciplina para restringir seus excessos e impedir as ilusões que surgiriam destes. Por outro lado, no entanto, há algo que, em compensação, eleva a razão humana e lhe fornece confiança em si mesma: o fato de ela poder e dever ser a única que pode e deve exercer essa disciplina, sem admitir qualquer censura acima de si mesma176. Deve haver algo no domínio da razão pura que exprima o objetivo dos esforços constantes da razão (das Ziel der Beeiferung der Vernunft), uma vez que a razão mostra esse desejo de ir além da experiência, exigindo objetos que apresentam grande interesse para ela. O que ela tenta obter pela experiência, mas não consegue, deve buscar em seu uso prático177:

172

Cf. KANT, I. KpV 226. KEMP SMITH, N. A commentary to Kant’s Critique of Pure Reason, p. 569s. 174 KEMP SMITH, N. A commentary to Kant’s Critique of Pure Reason, p. 571. 175 BECKENKAMP, J. “O lugar sistemático do conceito de liberdade na filosofia crítica Kantiana”, pp. 38-39. 176 KANT, I. KrV B 823= A 795 177 KANT, I. KrV B 823s= A 795s. 173

56

“Ela [a razão pura] vindica conceitos os quais apresentam grande interesse para ela. Ela trilha o caminho da mera especulação para se aproximar deles; mas estes escapam diante dela. Possivelmente, será de se esperar melhor sorte para ela no único caminho que ainda lhe resta, a saber: o uso prático178”. Para Kant, um cânone é o conjunto de proposições fundamentais a priori sobre o uso correto de uma faculdade cognitiva. No caso do uso especulativo da razão pura, não há cânone, pois não há conhecimento sintético, apenas há disciplina. Se houver um cânone para a razão pura, ele deve dizer respeito ao uso prático da razão, e não ao seu uso especulativo179. Kant apresenta uma discussão que já aborda algo que se fará presente também no capítulo III da Dialética da KpV: a questão sobre qual uso da razão possui interesse proeminente (ou, numa linguagem da segunda Crítica, qual faculdade possui o primado). A razão possui uma tendência a ir além do uso empírico, até os limites do conhecimento. Tende a buscar unidade sistemática. Essa tendência (Bestrebung) se funda no interesse especulativo, ou no prático180? O filósofo de Königsberg afirma que o propósito final (Endabsicht) da investigação transcendental consiste em três objetos: a liberdade da vontade, a imortalidade da alma e a existência de Deus. Em relação aos três, o interesse meramente especulativo da razão é bem diminuto. Não é possível fazer ciência com tais objetos: uma vez que não são possíveis de se intuir no tempo e no espaço, não possibilitam ato sintético, não ampliando o conhecimento181.

178

KANT, I. KrV B 824= A 796. “Sie [die reinen Vernunft] ahndet Gegenstände, die ein grosses Interesse für sie bei sich führen. Sie tritt das Weg der blossen Spekulation an, um sich ihnen zu nähern; aber diese fliehen vor sie. Vermutlich wird auf dem einzigen Wege, der ihr noch übrig ist, nähmlich dem des praktischen Gebrauchs, besserer Glück für sie zu hoffen sein.” 179 KANT, I. KrV B 824s= A 796s. 180 KANT, I. KrV B 825= A 797. 181 KANT, I. KrV B 825s= A 797s.

57

Se tais objetos não nos valem como saber (Wissen) e, ainda assim, nossa razão os recomenda, sua importância deve dizer respeito somente ao uso prático da razão182. Para Kant, “prático é tudo aquilo o que é possível através da liberdade183”. A razão prática possui um uso empiricamente condicionado, em que os fins se unificam sob um fim único: a felicidade (Glückseligkeit), unificação de todos os fins (Vereinigung aller Zwecke) do uso empiricamente condicionado da razão prática184. Já no uso puro da razão prática, temos as leis práticas puras, cujo fim é inteiramente dado a priori pela própria razão pura. Esses fins são produtos (Produkte) da razão pura. Kant irá falar de uma produção (Hervorbringung) do sumo Bem na KpV185: o sumo Bem é um fim dado a priori pela razão mediante a lei moral, tema a receber o devido tratamento no capítulo dois. Kant afirma que se servirá da liberdade apenas no sentido prático, e não no sentido transcendental. Abordará, desse modo, apenas a liberdade como arbitrium liberum (arbítrio determinado pela razão pura no uso prático) em oposição ao arbitrium brutum (arbítrio determinado patologicamente). Aqui parece haver uma diferença notável em relação à argumentação da KpV sobre o sumo Bem: Kant não considerava a liberdade um postulado na KrV 186. Kant chega a afirmar, polemicamente, que a liberdade prática pode ser demonstrada pela experiência187. Estaria o filósofo, aqui, antecipando sua ideia de Faktum da razão? O que Kant toma, aqui, por ‘experiência’? Provavelmente, a experiência da moralidade, que seria comum a todo ser racional. Kant afirma, em relação à liberdade transcendental: “A questão a respeito da liberdade transcendental diz respeito apenas ao saber especulativo, o que pode nos deixar de lado como 182

KANT, I. KrV B 827s = A 799s. KANT, I. KrV B 828 = A 800. “Praktisch ist alles, was durch Freiheit möglich ist”. 184 KANT, I. KrV B 828 = A 800. Na KpV, Kant utilizará os termos princípio da “felicidade própria” ou princípio do “amor de si”. Cf. KANT, I. KpV A 41. 185 Cf. KANT, I. KpV A 75; 219; 226s; 234; 257. 186 BECKENKAMP, J. “O lugar sistemático do conceito de liberdade na filosofia crítica Kantiana”, p. 39. 187 KANT, I. KrV B 829s = A 801s. “Die praktische Freiheit kann durch Erfahrung bewiesen werden”. 183

58

totalmente indiferente, quando se trata do que é prático, e sobre a qual esclarecimentos suficientes já se encontram na antinomia da razão pura”188. Ora, essa passagem indica uma das maiores disparidades entre a argumentação da KrV e a que veremos com maior profundidade na KpV, no capítulo seguinte. Na KrV, Kant não considera a liberdade um postulado. Já na KpV, Kant irá considerar a liberdade no sentido positivo (a autodeterminação da vontade) um postulado da razão prática pura, ou seja, uma pressuposição indemonstrável e ligada à lei moral, que é elemento de apoio na produção necessária do sumo Bem. A liberdade transcendental sequer é considerada nessa argumentação da primeira Crítica. Nesta, Kant considera apenas a liberdade prática, e ainda assim não como um postulado. Já na segunda Crítica, a liberdade prática é um postulado que confere realidade objetiva às demais ideias da razão (Deus e alma), e a liberdade transcendental também tem um papel fundamental na resolução da antinomia da razão prática: só mediante a pressuposição da liberdade transcendental, isto é, de uma causalidade além da ordem material das causas, eu posso conceber como possível a ligação entre moralidade e felicidade. Isso se deve ao fato de que somente se o agente moral não for inteiramente determinado pela natureza, é possível uma adesão à lei moral189. Sendo a liberdade prática conhecível pela experiência, ela está excluída das preocupações de um cânone da razão pura. Restam duas questões que dizem respeito ao cânone da razão pura: “Há um Deus?” e “Há uma vida futura?” 190.

188

KANT, I. KrV B 831s = A 803s. “Die Frage wegen der tranzendentalen Freihei betrifft bloss das spekulative Wissen, welche wir als ganz gleichgültig bei Seite setzen können, wenn es um das praktische zu tun ist, und worüber in der Antinomie der reinen Vernunft schon hinreichende Erörterung zu finden ist”. 189 KANT, I. KpV A 196-213. 190 KANT, I. KrV B 831 = A 803.

59

Todo interesse da razão (tanto especulativa quanto prática) se agrega nas seguintes questões, segundo Kant: “O que posso conhecer?” /(”was kann ich wissen?”); “o que devo fazer?” /(“was soll ich tun?”); “o que me é permitido esperar?”/ (“was darf ich hoffen?”). A primeira questão é meramente especulativa. Nunca se poderá saber algo sobre a existência de Deus e sobre a vida futura, visto que Kant julga ter esgotado todas as respostas possíveis para tais questões, ao alegar como única solução possível a necessidade de disciplina da razão em relação a esses objetos191. A segunda questão, por sua vez, é meramente prática192.

Já a terceira questão é, ao

mesmo tempo, teórica e prática, de modo que a ordem prática é apenas um fio condutor (Leitfaden) para a resposta à questão especulativa193. “Felicidade é a satisfação de todas as nossas inclinações (tanto extensiva, em relação à multiplicidade das mesmas, quanto intensiva, no que tange ao grau, e protensiva, no que concerne à duração)”194. A lei prática que tem por móbil apenas nos indicar como nos tornar dignos da felicidade é a lei moral (lei dos costumes)195. O filósofo afirma que o mundo moral (moralische Welt) é o mundo, na medida em que é conforme as referidas leis morais. Tal mundo é pensado apenas como mundo inteligível e abstrai dos fins e outros obstáculos à moralidade, entre os quais a “fraqueza ou a desonestidade da natureza humana” (Schwäche oder Unlauterkeit der menschlichen Natur”)196. Esses termos de que Kant se serve são valiosos para nossa hipótese sobre o aspecto antropológico dos postulados: os postulados da razão prática pura são uma espécie de contrapeso que Kant encontrou para os

191

KANT, I. KrV B 833 = A 805. KANT, I. KrV B 833 = A 805. 193 KANT, I. KrV B 833 = A 805. 194 KANT, I. KrV B 834 = A 806. “Glückseligkeit ist die Befriedigung aller unserer Neigungen (so wohl intensive, der Mannigfaltigkeit derselben, als intenstive, dem Grade, und auch protensive, der Dauer nach)”. 195 KANT, I. KrV B 834 = A 806. 196 KANT, I. KrV B 836 = A 808. 192

60

limites dos seres racionais finitos, incluindo aí os limites da natureza humana. Kemp Smith tem consciência do elemento antropológico que queremos frisar aqui, ainda que não os explore a fundo. “Devido às limitações de nossas capacidades, a aquisição completa desse fim supremo é concebível por nós apenas ao supor uma vida futura na qual merecimento perfeito pode ser obtido, e de um Ser Divino onipotente que irá proporcionar felicidade de acordo com o mérito”197 (grifo do autor). Essa ideia de um mundo moral possui realidade objetiva (objektive Realität), na medida em que é ideia prática que pode e deve ter sua influência no mundo sensível198. Não se trata, no entanto, de um objeto de intuição inteligível (intelligibele Anschauung), pois isso é inconcebível para Kant199, além de se tratar de uma forma de misticismo da razão prática200, isto é, de se tentar intuir o suprassensível (por exemplo, um Reino de Deus) e aplicar tais intuições a conceitos morais, como por exemplo, a vontade. Em relação à segunda pergunta, Kant diz: “Faz o que pode tornar-te digno de ser feliz201”. Já em relação à terceira, afirma: posso esperar alcançar a felicidade, caso eu me comporte de modo a ser digno dela? Quais princípios a priori se associam a essa esperança de forma necessária (notwendigerweise)? Segundo o filósofo de Königsberg, da mesma maneira que os princípios morais são necessários no uso prático da razão, é necessário que a razão, em seu uso teórico, aceite que cada um tem motivo para ter esperança na felicidade, na medida em que se mostrou, em sua conduta, digno de ser feliz. Na ideia da razão pura, a moralidade se liga à felicidade202.

197

KEMP SMITH, N. A commentary to Kant’s Critique of Pure Reason, p. 574. KANT, I. KrV B 836 = A 808. 199 KANT, I. KrV B 836 = A 808. 200 Cf. KANT, I. KpV A 125. 201 KANT, I. KrV B 836s = A 808s. 202 KANT, I. KrV B 836s = A 808s. 198

61

Nesse mundo moral, pode-se pensar a felicidade como proporcionalmente ligada à moralidade: a felicidade seria causada pela liberdade e os seres racionais, nesse sentido, seriam causadores da própria felicidade, desde que cada um aja moralmente. Mesmo assim, a conexão necessária entre a esperança na felicidade e o esforço incessante para se tornar feliz não pode ser conhecido pela razão, caso o fundamento seja apenas a natureza. Só mediante uma razão suprema (höchste Vernunft) tomada como seguidora da lei moral e causa da natureza que se tem fundamento de tal conexão203:

Eu chamo ideal de sumo Bem a ideia de tal Inteligência – na qual a vontade moral mais perfeita e a mais elevada bem-aventurança estão vinculadas – que é causa de toda felicidade no mundo, na medida em que está em exata relação com a moralidade (como dignidade de ser feliz). Portanto, a razão pura só pode encontrar no ideal de sumo Bem originário o fundamento de ligação práticonecessária entre ambos os elementos do sumo Bem derivado, ou seja, de um mundo inteligível. Uma vez que nós devemos nos representar – de forma necessária e mediante a razão – como seres de um mundo inteligível, ainda que os sentidos não nos apresentem nada além de um mundo dos fenômenos, devemos admitir tal mundo como efeito de nossa conduta no mundo sensível. Como esse mundo não oferece tal ligação para nós, admitimos um mundo futuro. Deus e uma vida futura são duas pressuposições inseparáveis da razão pura e da obrigação segundo princípios que a mesma razão nos impõe. (grifo nosso)204.

Kant afirma, nessa passagem, o caráter necessário da ligação entre moralidade e felicidade contida no sumo Bem e Deus e uma vida futura como pressupostos inseparáveis da razão (o termo ‘vida futura’ será substituído, na segunda Crítica, por ‘imortalidade da alma’). Também já se tem a distinção sumo Bem originário e sumo Bem derivado205. Já se trata de uma argumentação próxima daquela empreendida na Dialética da KpV. Todavia, ainda falta

203

KANT, I. KrV B 837s = A 809s. KANT, I. KrV B 838s = A 810s. “Ich nenne die Idee einer solchen Intelligenz, in welcher der moralischen vollkommente Wille, mit der höchsten Seligkeit verbunden, die Ursache aller Glückseligkeit in der Welt ist, so fern sie mit der Sittlichkeit (als der Würdigkeit, glücklich zu sein) in genauem Verhältnisse steht, das Ideal des höchsten Guts. Also kann die reine Vernunft nur in dem Ideal des höchsten ursprünglichen Guts den Grund der praktischnotwendigen Verknüpfung beider Elemente des höchsten abgeleiteten Guts, nähmlich einer intelligibelen, d. i. moralischen Welt, antreffen. Da wir uns nun notwendiger Weise durch die Vernunft, als zu einer solches Welt gehörig, vorstellen müssen, obgleiche die Sinne uns nichts als eine Welt von Erscheinungen darstellen, so werden wir jene als eine Folge unserers Verhaltens in der Sinnenwelt, da uns diese eine solche Verknüpfung nicht darbietet, als eine für uns künftige Welt annehmen müssen. Gott also, und ein künftiges Leben, sind zwei vor der Verbindlichkeit, die uns reine Vernunft auferlegt, nach Prinzipien eben derselben Vernunft nicht zutrennende Voraussetzungen”. 205 Cf. KANT, I. KpV 226. 204

62

na KrV um elo explícito com a lei moral, ainda que Kant chegue a mencionar uma relação entre as pressuposições e obrigação – não no sentido de aderir aos postulados ser uma obrigação, mas de que a demanda da razão prática pura, com seu caráter necessário, conduz aos postulados. Deus e vida futura (künftiges Leben) são pressupostos inseparáveis da lei moral. Há ligação entre esses dois pressupostos e suposição do ponto de vista do mundo inteligível206. O lugar adequado para Deus em Kant é a experiência prática207: segundo Kant, a razão se vê coagida a admitir um Autor (Urheber) e soberano (Regierer) de um mundo inteligível; assim como se encontra compelida à admissão de existência de uma vida futura. Caso contrário, as leis morais serão consideradas meras quimeras (Hirngepinste)208. Esses aspectos também se assemelham bastante a alguns trechos da KpV: Kant utiliza o termo Autor quando expõe o postulado da existência de Deus e também insiste. na antinomia da razão prática, que a falsidade do sumo Bem e dos postulados levaria a um colapso da própria lei moral209. Em seguida, Kant faz menção a Leibniz e ao Reino da Graça (Reich der Gnade), uma comunidade moral sob um sábio Autor e Governante. O Reino da Graça é distinto do Reino da Natureza, e é como membro do Reino da Graça que se pode esperar a felicidade, desde que se tenha tornado digno dela210.

206

UNSTERBLICHKEIT, In EISLER, Rudolf. Kant-Lexikon, p. 555. GOD, In. CAYGILL, H. A Kant Dictionary. p. 215s. 208 KANT, I. KrV B 839 = A 811. 209 KANT, I. KpV A 204s. 210 KANT, I. KrV B 840 = A 812. A aproximação entre Kant e Leibniz é delicada e o próprio Kant a faz de modo bem apressado na primeira Crítica. Algo que devemos ter em mente é que Kant (pelo menos do período crítico em diante) não aceitaria muitas noções de Leibniz, como a de mônada e a de harmonia preestabelecida. Sobre as relações entre Kant e Leibniz, Cf. ASSUMPÇÃO, G. “O sumo Bem de Kant e o Reino da Graça de Leibniz: Gênese e divergências em torno a um conceito”, pp. 4-12; “The Highest Good as the Kingdom of God: the role of Christianity in the Critique of Practical Reason”, pp. 47-60; HALDAR, H. “Leibniz and German Idealism”, pp. 378-394; KEMP SMITH, N. A commentary to Kant’s Critique of Pure Reason, pp. 601-606; MARTIN, G. 207

63

Kant já defendia, nessa argumentação da KrV, que a felicidade por si só, tal como a moralidade por si só, não constituem o bem perfeito. Ademais, a razão só aprova a felicidade se for legitimada moralmente: a moralidade deve causar a felicidade no sumo Bem. Na ideia do sumo Bem os dois elementos se ligam, e mesmo “a razão livre de todas as considerações particulares” (die von aller Privatabsicht freie Vernunft) não consegue pensar de outra forma. A moralidade que deve ser a condição, senão sequer se é digno da felicidade. Essa noção de imparcialidade da razão encontra eco na KpV211. Nota-se que o aspecto de produção do sumo Bem, ainda que abordado, é pouco enfatizado na KrV, dando-se mais ênfase ao papel de Deus como sumo Bem originário do que ao empenho dos humanos na produção do sumo Bem consumado. Kant também ainda não utilizava o termo ‘postulado’ na primeira Crítica, e não aborda a carência da razão pura no uso prático na KrV, possivelmente porque ainda não havia desenvolvido essa concepção de forma amadurecida, como no caso da KpV. Essa noção de carência não é desenvolvida no texto e isso parece estar ligado ao fato de que tampouco vemos Kant desenvolver, de forma mais detida, a relação entre a incongruência entre demanda da lei moral e incapacidade do ser racional finito de realizá-la, no contexto da primeira Crítica. No capítulo que segue, abordaremos o sumo Bem e a sua relação com a lei moral.

“Kant und Leibniz”, pp. 409-416; WILSON, C. “The reception of Leibniz in the eighteenth century”, pp. 442474. 211 KANT, I. KrV B 841 = A 814. Cf. KpV A198; A 223.

64

Capítulo II – Os postulados da razão prática pura e a lei moral

II.1. Apresentação

No capítulo anterior, abordamos os postulados da razão prática pura com ênfase em seus aspectos gnosiológicos: os postulados em questão se definem como proposições teóricas, ainda que indemonstráveis como tais, inseparavelmente vinculadas à lei moral. Por mais que sejam proposições teóricas – por dizerem respeito à existência de objetos como Deus e a alma – os postulados não consistem em conhecimento teórico ou especulativo da razão pura. Tais proposições dizem respeito apenas a uma expansão da razão pura, embora extensão somente com fins práticos, e não especulativos. Pode-se, desse modo, postular a existência de Deus, a imortalidade da alma, e a liberdade no sentido positivo – capacidade que um ser racional possui de autodeterminação da vontade – sem, com isso, incorrer em ilusão transcendental, ou seja, sem violar os princípios da crítica da razão empreendida por Kant na KrV. Pelo contrário, os postulados são justamente uma forma de salvaguardar esses objetos tanto do niilismo quanto de um retorno ao dogmatismo. Deus, alma e liberdade não constituem objetos de saber, Wissen, mas objetos de fé, Glaube, ou ainda, fé racional pura – reine Vernunftglaube, uma carência inerente à razão pura em seu uso prático. Uma vez deslocados para o âmbito prático por meio da lei moral, esses objetos ligados ao suprassensível encontram sua verdadeira vocação: não se trata de uma resposta a problemas teóricos, mas sim de indicativos de uma abertura do ser racional sensível para a moralidade, para o âmbito prático, bem como para sua maior realização possível: o sumo Bem, ou seja, vínculo necessário no qual a moralidade é causa da felicidade. Uma grande diferença entre a apresentação kantiana do sumo Bem na primeira Crítica e na KpV é, além de 65

maior capacidade sistemática nesta (em relação a esse tema, pelo menos), a ênfase no vínculo entre lei moral e os postulados. A lei moral contém o fundamento da aceitação de afirmações metafísicas existenciais que a razão humana não consegue demonstrar teoricamente212. Entre outras diferenças, observamos o uso do termo ‘postulado’, o tratamento da liberdade como uma pressuposição necessária/postulado, e também a menção ao sumo Bem como algo a ser realizar no mundo, e não em uma vida futura. Assim sendo, o foco do presente capítulo é a lei moral e os postulados. Examinaremos os postulados da razão prática pura sob um enfoque não mais gnosiológico, mas moral: qual o papel dos postulados na produção do sumo Bem? Por que os postulados se fazem necessários para o sumo Bem kantiano? Pode-se considerar possível a efetuação do vínculo necessário entre moralidade e felicidade sem os postulados? São questões sobre as quais nos debruçamos na presente etapa de nosso estudo. Será necessário, em nosso empreendimento, um exame mais minucioso de elementos que já foram abordados no primeiro capítulo: vontade, lei moral, sumo Bem, e cada um dos postulados (liberdade, imortalidade da alma e existência de Deus ou sumo Bem originário). Além disso, faz-se mister apresentar debates entre intérpretes do sumo Bem kantiano acerca da importância do mesmo, bem como as discussões sobre possibilidade de se dispensar os postulados para se pensar o sumo Bem. Já adiantamos que nossa interpretação defende tanto a importância do sumo Bem kantiano em sua filosofia prática, quanto dos postulados da razão prática pura na realização do mesmo. Ao longo da exposição, buscaremos apontar elementos centrais à nossa hipótese de trabalho: os postulados da razão prática pura

212

FORSCHNER, M. , “Immanuel Kant über Vernunftglaube und Handlungsmotivation”, p. 333.

66

resultam de um constatação da limitação humana: eles atestam a incapacidade dos seres racionais finitos de, por conta própria, efetuarem o vínculo entre moralidade e felicidade.

II.2. A lei moral e o postulado da liberdade

Kant se serve de termos que podem parecer estranhos ao leitor do século XXI, que tenderá – talvez involuntariamente – ou a ignorar certos termos, ou a projetar alguns préconceitos em sua leitura dos mesmos. Três desses termos que parecem trazer maior dificuldade na leitura da KpV são ‘vontade’, ‘fim’, e o principal, ‘razão’. Para Kant, a razão é uma faculdade de princípios (Vermögen der Prinzipen) 213, dotada tanto de um uso teórico quanto de um uso prático. Trata-se de uma só razão, mas com dois usos214. O uso teórico se preocupa com o conhecimento de objetos e com afirmações sobre a existência dos mesmos. O uso prático, por sua vez, diz respeito aos fundamentos determinantes da vontade (Bestimmungsgründe des Willens)

215

, que é uma faculdade de fins

(Vermögen der Zwecke) 216. A vontade também é definida na KpV como uma faculdade tanto de produzir objetos correspondentes às representações, quanto de se determinar para efetuálos.217 Segundo o filósofo de Königsberg, o querer deve ter um fim, podendo ser um fim como consequência de uma ação guiada pela vontade, ou um fim como fundamento determinante da vontade. De acordo com Forschner, “para Kant, o conceito de fim já implica

213

KANT, I. KrV B 356 = A 299. BECK, L. W. A commentary on Kant´s Critique of Practical Reason, p 39. 215 KANT, I., KpV A 29. 216 KANT, I., KpV A 103. 217 KANT, I. KpV A 29. 214

67

uma orientação afetiva do sujeito em relação a um objeto”

218

. Para se tornar real, o fim deve

ser intencionado antes, deve ser representado para, em seguida, ser efetivado219. A razão, em Kant, envolve também afetividade e desejos, não sendo apenas ligada a cálculo e raciocínios lógicos, como geralmente o senso comum pensa ‘razão’. Há fins que um ser racional põe em sua conduta e estipulam-se meios para se adquirir tais fins. A vontade pode ser determinada tanto pelos objetos de desejo (caso em que prevalece o cálculo de meios/fins) quanto pode se autodeterminar (nesse caso, a ação moral é fim em si mesmo e pode produzir outros fins, como no caso do sumo Bem). A relação entre fim e vontade, bem como sua importância na filosofia kantiana, não escapou aos olhos de Kröner. Para o comentador, a vontade pode ser concebida como cerne da vida moral. O suprassensível, ou inteligível, não se atinge por meio de intuição intelectual ou de conhecimento científico, mas é aberto aos que subordinam sua vontade à lei moral e, em seguida, ao fim último, o qual transcende os desejos finitos, individuais e a mera parcialidade subjetiva220. Tendo isso em mente, é importante termos cautela com a expressão ‘deontologia’ para se referir à moral kantiana. Se de fato, o dever é um conceito norteador em sua moral 221, isso não implica exclusão de fins e ausência de uma teleologia envolvida na moral kantiana. Tanto que Kant chama o sumo Bem – objeto que a vontade determinável pela lei moral deseja, elo necessário e perfeito no qual a moralidade causa a felicidade222 – de “fim último da razão prática pura” (Endzweck der reinen praktischen Vernunft)

223

. A centralidade do conceito de

dever e da lei moral na filosofia prática de Kant, portanto, não significa uma exclusão de um 218

FORSCHNER, M., “Immanuel Kant über Vernunftglaube und Handlungsmotivation”, p. 335. “Für Kant impliziert bereits der Begriff des Zwecks eine affektive Ausrichtung des Subjekts auf einen Gegenstand.” 219 HERRERO, F. J. Religião e História em Kant, p. 39. 220 KRÖNER, R. Kant’s Weltanschauung, p. 10. 221 DUTY, In. CAYGILL, H. A Kant Dictionary. p. 164. 222 KANT, I. KpV A 198-203; 223. 223 KANT, I. KpV A 233. Kant também usa a expressão ‘fim total’ (ganze Zweck): Cf. KANT, I. KpV A 239.

68

sistema de fins do seu pensamento. É a possibilidade de finalidade moral que conduz à questão do sumo Bem como fim maior que uma vontade determinável pela lei moral busca. Em outros termos, a razão prática pode ser empiricamente condicionada, ou pode ser pura. A razão prática pura é aquela que se autodetermina, que aceita como fundamento, como razão de seu agir a lei moral. Quando a razão prática é empiricamente condicionada, trata-se de um uso da razão que é guiada pelo princípio geral da felicidade própria (eigene Glückseligkeit) ou pelo princípio do amor de si (Selbstliebe) 224, e quando a razão prática atua em seu uso puro, o que ocorre é que a razão está sendo ela mesma o guia de seu agir, contendo a influência dos móbiles empíricos225. Note-se que a razão prática também auxilia o sujeito na busca do interesse próprio, de modo que, para Kant, agir de forma contrária à lei moral não é agir ‘irracionalmente’, ou ‘por sentimento’, como é comum ver em manuais e leituras mais vulgarizantes de Kant, mas é uma forma de empreendimento racional. É a razão prática pura que promove o exercício da moralidade. A experiência da moralidade, nesse sentido, pode ser compreendida como um progressivo descentramento do sujeito rumo à moralidade, ou ainda como um progressivo abandono do egoísmo em prol de uma perspectiva mais ampla que leve em conta o bem de todos (tal como já mencionamos, baseados em Kröner). Trata-se, de certa forma, de uma integração gradual entre faculdade superior e inferior de apetição226. Os termos faculdade superior e faculdade inferior de apetição (ou de desejo) são, segundo Beck, herança da distinção escolástica entre appetitus sensitivus (paixão) e appetitus rationalis (vontade) 227. O ser racional finito possui, na visão do filósofo, tanto uma faculdade superior de apetição quanto uma faculdade inferior de apetição. À faculdade inferior de apetição 224

KANT, I. KpV A 40. KANT, I. KpV A 56s. 226 KRÖNER, R. Kant’s Weltanschauung, p. 10. 227 BECK, L. W. A commentary on Kant´s Critique of Practical Reason, p 94. 225

69

correspondem nossos afetos e inclinações, ou ainda, nosso aspecto sensível 228. O mencionado amor de si (Selbstliebe) busca atender à faculdade inferior de apetição. A faculdade superior de apetição, por sua vez229, é ‘alimentada’ pelo que a vontade determinável pela lei moral aspira, a saber: o cumprimento do dever e a integração da moralidade com a felicidade moralmente legitimada (o sumo Bem). O que satisfaz nossa faculdade superior de apetição, desse modo, é a própria lei moral230. Para Kant, o critério de moralidade só se encontra na razão prática pura, e não na razão prática empiricamente condicionada. Isso se deve ao fato de que a felicidade possui um caráter oscilante e mesmo fragmentário231. A felicidade é definida pelo filósofo como a consciência que se tem da agradabilidade da vida, um estado ininterrupto de consciência 232: “Felicidade é um estado em que, para um ser racional, no todo de sua existência, tudo se passa segundo seu desejo e vontade e depende, dessa forma, da concordância da natureza com todo o seu fim, assim como com os fundamentos determinantes essenciais de sua vontade233”. Esse estado, para Kant, possui um caráter passivo: sou feliz na medida em que os objetos me afetam. Já ao falar do sumo Bem, na Dialética da razão prática pura, podemos observar que a felicidade moralmente condicionada é necessária e decorre de atividade, é fruto de uma produção. A felicidade envolvida no amor de si, por sua vez, é sempre dependente de como o sujeito é afetado pelo objeto, ocorrendo contingentemente. A priori, para Kant, não é possível saber se dado objeto me causará prazer, desprazer, ou me será indiferente. Ao longo da vida, um mesmo objeto não irá mais ser prazeroso para

228

KANT, I. KpV A 41s. KANT, I. KpV A 41-45. 230 KANT, I. KpV A 48-55. 231 KANT, I. KpV A 39. 232 KANT, I. KpV A 40. 233 KANT, I., KpV A 224. “Glückseligkeit ist der Zustand eines vernünftigen Wesens in der Welt, dem es, im Ganzen seiner Existenz, alles nach Wunsch und Willen geht, und beruhet also auf der Übereinstimmung der Natur zu seinem ganzen Zwecke, ungleichen zum wesentlichen Bestimmungsgrunde seines Willens”. 229

70

um indivíduo. Muitas pessoas cansam de escutar determinado tipo de música, de assistir certos tipos de programas, porque não mais lhes são prazerosos. De indivíduo para indivíduo, então, a variação é maior ainda. O caso da culinária é bem ilustrativo para essa questão: considerando-se diversidades culturais, educacionais e mesmo fisiológicas, há muitas pessoas que terão predileção por determinados tipos de refeição em detrimento de outras. Esse caráter fragmentário da felicidade a impossibilita de ser o móbil primeiro da ação moral 234. Isso não quer dizer, no entanto, que o ser humano deva desistir de buscar a felicidade 235. Só significa que a felicidade não pode ser o critério da moralidade. A moral nos mostra como ser dignos da felicidade, e não como ser felizes236. Dito de outra maneira: o oposto exato do princípio da moralidade é tornar o princípio da felicidade própria o fundamento determinante da vontade237. Distinguir a doutrina da felicidade da doutrina da moralidade é, para Kant, algo análogo a um processo químico, como a separação entre ácido muriático e cal. Mas distinguir não é opor. Para Kant, não se deve abandonar a reivindicação da felicidade, mas apenas se deve zelar para que ela não seja tomada em conta quando se trata do dever238. Como a felicidade possui um caráter empírico, múltiplo, fragmentário, não fornece, para Kant, critério de moralidade, uma vez que a moralidade deve envolver algo de irredutível, de incondicionado. Esse âmbito de que a experiência moral nos permite fazer parte é o âmbito do inteligível, ou do suprassensível. Ao contrário do que ocorre no uso especulativo da razão, no uso prático da razão é benéfica essa capacidade de se ir além da experiência dos sentidos. A lei moral não é um objeto dos sentidos, não sendo encontrável na série dos fenômenos. A determinação da vontade pela forma da lei, desse modo, não é uma 234

KANT, I. KpV A 45-50. KANT, I. KpV A 166. 236 KANT, I. KrV B 834 = A 806; B 836s = A 808s.; KpV A 234. 237 KANT, I. KpV A 61. 238 KANT, I. KpV A 165s. 235

71

determinação natural, possível de se inserir numa série determinística, mas diz respeito à causalidade da razão; ou seja, à ordem do inteligível239. Como veremos abaixo, isso se mostrará de importância crucial na resolução da antinomia da razão prática. Em que consiste a lei moral, para Kant? Trata-se de uma lei prática, ou seja, proposição fundamental prática (praktische Grundsatz) objetiva, um tipo de proposição fundamental cuja condição é conhecida como válida para todo ser racional. Difere, portanto, de máximas ou princípios fundamentais subjetivos, que são válidos apenas para uma vontade individual240. Para Kant, se há uma razão prática pura, então há leis práticas. Na vontade patologicamente afetada (pathologisch-affiziert) de um ser racional, pode haver conflito entre máximas e leis práticas. No conhecimento da natureza, os princípios do que ocorre são, ao mesmo tempo, leis da natureza (por exemplo, a lei da ação e reação). Já no “conhecimento prático” (praktische Erkenntnis), as proposições fundamentais ainda não são leis. O âmbito prático diz respeito ao sujeito e a sua faculdade de apetição, que envolve multiplicidade e oscilação, sendo, portanto difícil captar uma regularidade nessas proposições fundamentais241. No caso dos seres racionais finitos, o imperativo categórico expressa, desse modo, um dever ser, um Sollen, o qual consiste na necessidade objetiva da ação242. Sem imperativos categóricos, a ética pode cair em uma mera doutrina de técnicas para se alcançar o máximo de poder, felicidade, prazer sexual e outros desejos243. A razão pura, para tais seres, inclusive para os humanos, é prática e fornece a eles uma lei universal, a qual se chama lei moral, ou lei

239

KANT, I. KpV A 51. KANT, I. KpV A 35. 241 KANT, I. KpV A 36s. 242 KANT, I. KpV A 37. 243 HÖSLE, Vittorio. “Grandeza e limites da filosofia prática de Kant”, p.105. 240

72

dos costumes (Sittengesetz)

244

, e que transcende as condições subjetivas e contingentes, que

distinguem um ser racional do outro245. Para se avaliar uma máxima segundo o critério da lei moral, deve-se poder representar tal máxima como, ao mesmo tempo, objetivamente válida246: “Age de forma tal que a máxima de sua vontade possa sempre, e ao mesmo tempo, valer como princípio de uma legislação universal247”. A característica essencial da lei moral, segundo Paton, é a universalidade. A lei deve valer em todos os casos, não admitindo exceção. Tal lei deve ser a mesma para todo ser racional. Ela é um comando apenas no caso dos seres racionais finitos, cuja vontade é determinada por outros fatores além da própria lei moral248. Hösle acrescenta que a ética de Kant pode ser universalizável, e a razão é o único fundamento de validade das normas. Os sentimentos são meramente subjetivos e incapazes de fundamentar a ética que pretenda ser válida para todos os seres dotados de razão249. Uma vontade que só é determinável pela forma da lei moral, e não pelas inclinações, é uma vontade que deve ser pensada em relação com a liberdade transcendental: tal vontade é uma vontade livre (ein freier Wille). Liberdade e lei prática incondicionada se referem de maneira recíproca250, de modo que pode ser difícil determinar onde se inicia o “conhecimento” do incondicionado prático (Erkenntnis des Unbedingt-Praktischen): da liberdade ou da lei moral? É importante reparar que Kant usa o termo conhecimento para se referir à liberdade e à lei prática, o que é um pouco controverso, já que não são objetos possíveis de se conhecer teoricamente.

244

KANT, I. KpV A 56. KANT, I. KpV A 38. 246 KANT, I. KpV A 49. 247 KANT, I. KpV A 54. “Handle so, dass die Maxime deines Willens jederzeit zugleich als Prinzip einer allgemein Gesetzgebung gelten könne”. 248 PATON, H. G. The Categorical Imperative, pp. 69-73. 249 HÖSLE, Vittorio. “Grandeza e limites da filosofia prática de Kant”, p. 107. 250 KANT, I. KpV A 51s. Cf. KpV A 5n. 245

73

Kant afirma que o conhecimento do incondicionado prático não pode se iniciar pela liberdade, pois nosso conceito inicial da liberdade é meramente negativo: evitar os móbiles empíricos como fundamento determinante da vontade. Não conseguimos conhecimento teórico da liberdade. A experiência só nos permite conhecer o mecanismo da natureza (Mechanismus der Natur), que é o exato oposto da liberdade (das gerade Widerspiel der Freiheit)

251

. O conhecimento do incondicionado prático, portanto, só pode se iniciar pela lei

moral, da qual nos tornamos conscientes imediatamente: por meio da determinação da vontade pela razão prática pura, somos levados ao conceito da liberdade252. Kant elabora uma interessante diferença entre o postulado da geometria e a lei moral. No caso do postulado da geometria, tomemos o exemplo da KrV: “com uma dada linha, descrever um círculo sobre uma superfície a partir de um dado ponto” 253. No caso desse postulado, o que está em questão é a possibilidade, o poder (können) fazer algo, ao passo que, quando se considera a lei moral, o que se deve levar em conta é o dever-ser (sollen). O postulado da geometria contém o pressuposto de que se pode fazer algo, quando ordenado. Já na lei moral, contém-se a ordem de que se deve agir de determinada maneira. Por isso, a lei moral é incondicionada e representada a priori como proposição prática categórica254. A consciência da lei moral é chamada, por Kant, um Faktum der Vernunft (fato da razão), pois ela não pode ser retirada “de dados antecedentes da razão, por exemplo, da consciência da liberdade” (vorhergehende Data der Vernunft, z. B. das Bewusstsein der Freiheit)255. O caso da liberdade mencionado anteriormente deixa isso claro: nossa primeira

251

KANT, I. KpV A 53. KANT, I. KpV A 53. Cf. KpV A 82. 253 KANT, I. KrV B 287 = A 234. “(...) mit einer gegebenen Linie, aus einen gebenen Punkt auf einer Ebene einen Zirkel zu berschreiben (...)”. 254 KANT, I. KpV A 55; A 53. 255 KANT, I. KpV A 56. 252

74

noção de liberdade é negativa, não sendo possível deduzir a lei moral a partir da liberdade, mas sim o contrário256. A lei moral não é fato empírico, mas o único fato da razão pura. Esse fato é inseparável da consciência da lei moral257. O Faktum da razão prática pura é inverificável. Descreve a consciência imediata da lei moral que “se força” como um fato da razão pura. É provido de certeza apodítica, não com base verificável, mas por sermos conscientes a priori dela258. Nela, reside um elemento de necessidade moral, e a coerção da vontade livre ocorre mediante a autocoerção, uma coerção intelectual que, para Kant, prova que a vontade pode conter, em certa medida, a influência dos móbiles sensíveis259. A lei moral não pode, aos olhos de Kant, ser deduzida a partir de dados anteriores da razão, mas ela nos permite deduzir a liberdade, “uma faculdade inescrutável” (ein unerforschliches Vermögen) que só era pensável como possível na especulação. A lei moral se impõe como um fato que não se funda nem sobre intuição empírica, tampouco sobre intuição intelectual260. Nisso, Kant se distancia de Fichte, por exemplo, que (pelo menos nos anos 1790) relacionará consciência da lei moral e intuição intelectual261. O Faktum da razão é a consciência da liberdade da vontade, e conduz ao postulado da liberdade, isto é, à liberdade no sentido positivo, pois fornece indícios de um mundo inteligível e do ponto de vista do ser racional como um ser moral262. Kant denomina essa relação da liberdade com a lei moral uma credencial (Kreditiv) da lei moral263. Essa

256

KANT, I. KpV A 53ss; A 167s. FAKTUM der reinen praktischen Vernunft, In EISLER, Rudolf. Kant-Lexikon, p.152. 258 FACT of reason, In. CAYGILL, H. A Kant Dictionary. p. 189. 259 KANT, I. KpV A 57; PFLICHT, In EISLER, Rudolf. Kant-Lexikon, p. 418ss. 260 KANT, I. KpV A 56; 98. 261 FICHTE, G. “Zweite Einleitung in die Wissenschaftslehre”, § 5, p. 465s. 262 KANT, I. KpV A 72ss. 263 KANT, I. KpV A 83. 257

75

determinação positiva da liberdade como causalidade da razão prática pura a partir da lei moral é, para Kant, a liberdade como postulado da razão prática pura264. Segundo Beckenkamp, a consciência da lei moral como factum da razão só é possível para uma filosofia crítica em geral, a qual mostra não ser possível conhecimento direto da liberdade, mas que tampouco pode mostrar a impossibilidade de ações livres. A filosofia kantiana desautoriza argumentos com fundamentação meramente teórica contra a pressuposição da liberdade265. Hösle, por sua vez, já vê a questão do factum da razão como um problema na filosofia kantiana, notando um elemento aporético no imperativo categórico: posso simplesmente afirmar que não reconheço essa consciência da lei moral em mim mesmo e, se não a reconheço, como aceitá-la racionalmente? O filósofo aponta a importância de argumentos reflexivos nesse sentido, e elogia a Doutrina dos Costumes de Fichte por tentar realizar uma dedução do imperativo categórico266. Hösle apresenta uma posição mais crítica em relação à Kant, à qual nos filiamos pelo seguinte motivo: recorrer à consciência da lei moral como um fato da razão é um pressuposto, um ponto de partida. Poder-se ia partir do ponto de vista oposto: não existe a moralidade, o que existe é uma obediência servil a instintos, por exemplo, e isso que chamo de consciência moral é apenas uma transformação de um instinto. Se não se aceita esse ponto de partida kantiano, todo o edifício de sua argumentação corre o risco de não ser aceita, sendo mais interessante uma fundamentação mais rigorosa da moral, ainda que críticas também sejam possíveis a esse esforço – por exemplo, crítica aos pressupostos metafísicos de uma eventual fundamentação metafísica da moral (na ideia de bem, por exemplo). Apesar dessas críticas, continuemos a seguir a argumentação kantiana. Pela razão prática pura, somos conscientes de uma lei moral, uma “lei da causalidade mediante a 264

KANT, I. KpV A 238. BECKENKAMP, J. O Jovem Hegel: formação de um sistema pós-kantiano, p. 47. 266 HÖSLE, Vittorio. “Grandeza e limites da filosofia prática de Kant”, pp. 110-111. 265

76

liberdade” (Gesetz der Kausalität durch Freiheit)

267

a partir da qual as outras máximas são

avaliadas. Essas máximas são submetidas (unterworfen) à lei moral. Essa lei não consiste em ideia de uma natureza dada empiricamente, mas sim de uma natureza suprassensível (übersinnliche Natur), que adquire realidade objetiva a partir de uma perspectiva prática268. Novamente segundo Hösle, uma das grandes contribuições kantianas é a pressuposição da necessidade de uma ontologia em que haja lugar para mais que o mundo empírico269. Concordamos nesse ponto: a moral de Kant aponta para algo além do natural e do sensível. Nesse sentido, há a diferença entre leis de uma natureza à qual a vontade está submetida (Unterschied (...) zwischen Gesetze einer Natur, welcher der Wille unterworfen ist) e uma natureza que é submetida a uma vontade (eine Natur, die einer Willen (...) unterworfen ist). No primeiro caso, os objetos são causa das representações que determinam a vontade, o sujeito é passivo. No segundo caso, por sua vez, a vontade é causa dos objetos. A causalidade está na própria razão prática pura, e o sujeito é ativo270. O princípio da moralidade não se restringe meramente aos humanos, mas vale para todos os seres racionais finitos, inclusive o ser infinito como inteligência suprema (das unendliche Wesen, als oberste Intelligenz) 271. No caso dos seres racionais finitos, a lei moral é um imperativo. A vontade desses seres pode ser pura, na medida em que são seres de razão. No entanto, considerando seres afetados por carências e causas eficientes sensíveis (Bedürfnisse und sinnliche Bewegursachen), sua vontade não é santa, pois vontade santa só existe em seres racionais em que não há máxima que entra em conflito com a lei moral272.

267

KANT, I. KpV A 82. KANT, I. KpV A 76. 269 HÖSLE, Vittorio. “Grandeza e limites da filosofia prática de Kant”, pp. 104-105. 270 KANT, I. KpV A 77. 271 KANT, I. KpV A 57. 272 KANT, I. KpV A 57. Schelling é crítico dessa noção, que resultaria, para o filósofo, na situação em que até Deus seria limitado pela lei moral. Para Schelling, ou Deus cria a lei moral, ou a lei moral existiria independentemente da vontade do ser supremo, o que poderia conduzir ao fatalismo. Schelling considera uma 268

77

É importante notar que a noção de carência que Kant menciona aqui é a carência sensível, o âmbito dos afetos, e não a carência da razão pura no uso prático, sobre a qual versamos no capítulo anterior. No entanto, há certo entrelaçamento entre ambas, na medida em que a necessidade de se aderir aos postulados surge do problema da ligação entre moralidade e felicidade – portanto, dos dois âmbitos de que Kant fala nessa passagem: o ser humano como ser de razão e como ser de carências sensíveis. Vemos, aí, uma dupla carência do ser humano: a carência sensível, por se tratar de um ser dotado de sensibilidade, paixões, afetos; e a carência da razão pura, que surge do fato de a razão humana ser finita, e não um intelecto divino, que devido à sua natureza somente inteligível, prescinde da necessidade de objetos de apetição (na visão do filósofo de Königsberg) e que, ademais, efetua o vínculo entre moralidade e felicidade nos seres racionais finitos. Para Kant, a lei moral antecede o próprio conceito de bem273. Os antigos (die Alten), para Kant, cometeram o erro de depositar toda sua investigação moral no conceito de sumo Bem, sem considerar antes a necessidade de determinação da vontade pela lei moral. Para Kant, todavia, o sumo Bem é “um objeto, que só bem posteriormente, quando a lei moral for, pela primeira vez, confirmada por si mesma e justificada como fundamento imediato determinante da vontade, poderá ser representado como objeto de uma vontade agora determinada a priori segundo a forma (...) 274”. O filósofo de Königsberg critica os modernos em relação ao sumo Bem: estes teriam ocultado o mesmo erro dos antigos, a heteronomia no sistema moral 275. Tendo em mente o

espécie de hybris, desmesura, um ser finito tentar impor limites ao absoluto. Cf. SCHELLING, F. W. J. v. Philosophische Briefe über Dogmatismus und Kriticismus, p. 53. 273 HÖSLE, V. “Pode-se fazer um relato plausível da história da ética? Uma alternativa a After Virtue, de MacIntyre”, pp. 369-370. 274 KANT, I. KpV A 113s. “ein Objekt, welches weit hinterher, wenn das moralische Gesetz allerest für sich bewärt und als unmittelbar Bestimmungsgrund des Willens gerechtfertigt ist, dem nunmehr seiner Form nach a priori bestimmten Willen als Gegenstand vorgestellt werden kann (...)”. 275 KANT, I. KpV A 114.

78

significado da lei moral para Kant no contexto da segunda Crítica, vejamos como o sumo Bem se articula com a lei moral. Em que medida o sumo Bem é demanda dessa lei?

II.3. A lei moral e o sumo Bem

Observemos uma definição que Kant nos fornece de sumo Bem: “(...) um fim, como objeto (da vontade), o qual, independentemente de todos os princípios teóricos, é representado como prático-necessário por meio de um imperativo (categórico) que determina a vontade imediatamente e esse é, aqui, o sumo Bem”276. Esse trecho nos é de grande valia, uma vez que nos mostra como Kant insiste na relação entre sumo Bem e lei moral – que, no caso dos seres racionais finitos, é um imperativo categórico. Compete observar que, na visão de Kant, não haveria um sumo Bem nem para um ser plenamente sensível, como um animal (que, segundo a ótica do filósofo iluminista, não seria dotado de moralidade), tampouco para um ser plenamente inteligível, como Deus. No primeiro caso, só se aspira à realização de apetições; no segundo caso, só se realiza a lei moral como que espontaneamente, não se preocupando com apetites. Não haveria, desse modo, um sumo Bem derivado (vínculo necessário no qual a moralidade causa à felicidade) para Deus, o sumo Bem originário (ser moral perfeito que, por ser Autor da natureza, consegue atuar na mesma com perfeição). O sumo Bem, tal como Kant o concebe, é algo somente para seres racionais finitos, como o ser humano. É precisamente devido a essa natureza dual que o ser humano tenta efetivar o sumo Bem: trata-se de uma exigência da razão prática pura que nele se encontra e 276

KANT, I. KpV A 241. “(…) Ein Zweck, als Objekt (des Willens), welches, unabhängig von allen theoretischen Grundsätze, durch einen den Willen unmittelbar bestimmenden (kategorischen) Imperativ, als praktisch-notwendig vorgestellt wird, und das ist hier das höchstes Gut.”

79

que, todavia, só exige que a felicidade complete o bem moral devido à natureza dual do ser humano: ser sensível e inteligível; noumênico e fenomênico, pessoa e personalidade). Além disso, Kant enfatiza, no trecho citado acima, no início do item II.3, o caráter necessário do sumo Bem. Este e outros trechos do capítulo VII da Dialética da KpV nos parecem relevantes para diferenciar a argumentação kantiana sobre o sumo Bem na KrV e na KpV, já que deixam mais clara a relação entre sumo Bem e lei moral. Ademais, trata-se de trechos frequentemente negligenciados nas interpretações que reduzem – ou até negam – a importância do sumo Bem e dos postulados da razão prática pura na filosofia moral kantiana277, ou que tentam atribuir a eles um caráter meramente regulador278, ao invés de constitutivo, o que não é o caso, para Kant279. Essa questão é a que Kröner critica em algumas interpretações de viés neokantiano, que tendem a interpretar os postulados com um viés meramente regulador280. Compete frisar que o caráter prático-necessário do sumo Bem kantiano lhe confere um elemento de necessidade moral, de dever, algo frequentemente objetado por intérpretes como Beck e Murphy, que negam que o conceito kantiano de sumo Bem envolva a realização de um dever281. Esses dois intérpretes serão abordados com maior detalhe na seção seguinte. Por enquanto, retomemos uma consideração sobre o dever de se produzir o sumo Bem. Conforme mencionamos no capítulo anterior, dever é uma ação feita por respeito à lei moral. A lei moral exige, para os seres racionais finitos, a produção do sumo Bem. Se o sumo 277

BECK, L. W. A commentary on Kant´s Critique of Practical Reason, p. 244-245. FERRER, S. G. “Die Locke der Antinomie: La sortija de la Antinomia”, pp. 49-50; MARIÑA, J. “Making Sense of Kant's Highest Good”, p. 340-341; MURPHY, J. “The highest good as content for Kant’s ethical formalism”, p. 106.; O’NEILL, O. “Kant on Reason and Religion”, pp. 285-287; PATON, H. G. The Categorical Imperative, pp. 255-256. 278 Um exemplo se encontra em LEBRUN, G. Kant e o fim da metafísica, p. 285-286. 279 KANT, I. KpV A 244. 280 KRÖNER, R. Kant’s Weltanschauung, pp. 37n; 37-38. Todavia, nem todas as interpretações neokantianas são nesses moldes. Cassirer, por exemplo, defende que as ideias da razão se tornam imanentes e constitutivas na realização do fim último da vontade determinável pela lei moral, ou seja, do objeto necessário da razão prática pura, o sumo Bem. Cf. CASSIRER, E. Kant, Vida y Doctrina, pp. 300-302. 281 BECK, L. W. A commentary on Kant´s Critique of Practical Reason, p. 244-245; MURPHY, J. “The highest good as content for Kant’s ethical formalism”, p. 106.

80

Bem deve ser produzido, deve também ser possível de se produzir. Todavia, com as próprias forças, os seres racionais finitos (como os humanos, por exemplo), não conseguem vincular, de forma necessária, moralidade com felicidade, ou seja, eles não conseguem promover o sumo Bem. Por isso, necessita-se dos postulados. Dito de outro modo: os postulados surgem de uma incompatibilidade entre o dever de se produzir o sumo Bem e a incapacidade do ser racional finito de fazê-lo com suas próprias forças. Nas palavras de Kant:

Mas este [o sumo Bem] não é possível, sem se pressupor três conceitos teóricos (para os quais, uma vez que são meros conceitos puros da razão, não se deixa encontrar intuição correspondente, portanto, pela via teórica, tampouco se deixa encontrar realidade objetiva), a saber, liberdade, imortalidade e Deus. Portanto, através da lei prática, a qual ordena/manda a existência do sumo Bem possível num mundo, é postulada a possibilidade daqueles objetos da razão especulativa pura, a realidade objetiva dos quais ela não lhes podia assegurar 282. (grifos nossos)

Esse denso trecho da argumentação kantiana também nos é de grande valia. O filósofo de Königsberg reafirma que a lei prática ordena a existência do sumo Bem (ou seja, que a produção do sumo Bem é um dever para seres racionais finitos), e que não é possível intuir Deus, a imortalidade e a liberdade. Kant também reafirma que o sumo Bem só é possível se pressupusermos os postulados, não sendo possível um ‘sumo Bem imanente’. Por ‘sumo Bem imanente’ entenda-se um sumo Bem que dispense os postulados da razão prática pura (ou os elementos suprassensíveis de apoio à produção do sumo Bem), como defende Silber283. Há

282

KANT, I. KpV A 241s. “Dieses [das höchste Gut]ist aber nicht möglich, ohne drei theoretische Begriffe (für die sich, weil sie blosse reine Vernunftbegriffe sind, keine korrespondierende Anschauung, mithin, auf dem theoretische Wege, keine objektive Realität finden lässt), vorauszusetzen: nähmlich Freiheit, Unsterblichkeit, und Gott. Also wird durchs praktische Gesetz, welches die Existenz des höchsten in einer Welt möglichen Guts gebiet, die möglichkeit jener Objekte der reinen spekulativen Vernunft, die objektive Realität, welche diese ihnen nicht sichern konnte, postuliert”. (grifos nossos) 283 SILBER, J. R. “Kant's Conception of the Highest Good as Immanent and Transcendent”, pp. 475-492; SILBER, J., “The Metaphysical Importance of the Highest Good as the Canon of Pure Reason in Kant’s Philosophy”, pp. 240-241.

81

algo bem próximo em outros intérpretes, como O’Neil e Rawls 284, que se servem do termo ‘sumo Bem secular’. Retomemos a argumentação kantiana: a razão prática carece inevitavelmente (unvermeidlich bedarf) da existência desses objetos (liberdade, Deus e alma imortal) para que o sumo Bem seja possível, e este é o objeto absolutamente necessário praticamente (praktisch-schlechthin notwendige Objekt) 285. É interessante que Kant se serviu aqui do verbo bedürfen, que se liga justamente à noção de carência, Bedürfnis, que trabalhamos no capítulo anterior. Essa questão linguística parece mesmo enfatizar como Kant vincula os postulados à carência da razão pura no uso prático. Por meio da lei prática necessária, as três ideias da razão especulativa recebem realidade objetiva, como condições necessárias da possibilidade do objeto ordenado pela própria lei moral286. Adquirir essa realidade objetiva não implica conhecimento teórico dessas ideias, mas aplicação prática das mesmas na produção do sumo Bem. Essa realidade objetiva se traduz no fato de que o uso prático das ideias é constitutivo e imanente287, e não meramente regulativo e transcendente, tal como pensaram Lebrun e outros, inclusive Silber288. Kant afirma:

Aqui elas [as ideias] se tornam imanentes e constitutivas, na medida em que são fundamento de possibilidade de tornar efetivo o objeto necessário da razão prática (o sumo Bem), pois, sem isso, elas são transcendentes e princípios meramente regulativos, da razão especulativa, que não lhe

284

O’NEILL, O. “Kant on Reason and Religion”, pp. 285-287; RAWLS, J. “Themes in Kant’s Moral Philosophy”, p. 509. 285 KANT, I. KpV A 242. 286 KANT, I. KpV A 243; 246; A 4s. 287 KANT, I. KpV A 244. 288 LEBRUN, G. Kant e o fim da metafísica, p. 285-286; SILBER, J. R. “Kant's Conception of the Highest Good as Immanent and Transcendent”, pp. 475-492; SILBER, J. R. “Der Schematismus der praktischen Vernunft”, p. 264.

82

impõem admitir um novo objeto para além da experiência, mas somente se aproximar da completude do seu uso na experiência 289.

Victoria Wike menciona essa peculiaridade da segunda Crítica: a antinomia da razão prática lida com ideias de caráter constitutivo (os postulados da razão prática pura e o sumo Bem), pois se trata do estabelecimento da realidade prática do conceito de sumo Bem290. Qual relação entre as máximas de virtude e as máximas de felicidade fornece a possibilidade do sumo Bem como algo real? Não se trata de um uso meramente regulador das ideias como ocorre nas antinomias da KrV:

A natureza das afirmações na antinomia da razão prática parece contrastar com a natureza reguladora das asserções nas antinomias teóricas. As asserções na antinomia prática buscam ser mais do que máximas reguladoras ou princípios subjetivos. De fato, as reivindicações feitas na antinomia prática são proferidas para servir como fundamento determinante da vontade. (...) é crucial observar que as asserções nas antinomias teóricas possuem sentido regulador, e que aquelas na antinomia prática possuem um sentido não regulador. 291

É importante, todavia, lembrar que, por ‘fundamento determinante’, aqui Wike quer dizer o mesmo que Kant: o sumo Bem, para o filósofo de Königsberg, pode ser o fundamento determinante apenas da vontade pura, isto é, da vontade que já tenha sido determinável pela lei moral, uma vez que o sumo Bem kantiano necessariamente inclui, em si, a ideia de lei

289

KANT, I. KpV A 244. “Hier warden sie [die Ideen] immanent und konstitutiv, indem sie Gründe der Möglichkeit sind, das notwendige Objekt der reinen praktischen Vernunft (das höchste Gut) wirklich zu machen, da sie, ohne dies, transzendent und bloss regulative Prinzipien der spekulativen Vernunft sind, die ihr nicht ein neues Objekt über die Erfahrung hinaus anzunehmen, sondern nur ihren Gebrauch in der Erfahrung der Vollständigkeit zu näheren, auferlegen”. 290 WIKE, V. Kant’s Antinomies of Reason: Their Origin and their Resolution, p. 8. 291 WIKE, V. Kant’s Antinomies of Reason: Their Origin and their Resolution, p. 8. “The nature of the assertions in the antinomy of practical reason seems to contrast with the regulative nature of the assertions in the theoretical antinomies. The assertions in the practical antinomy intend to be more than regulative maxims or subjective principles. Indeed, the claims made in the practical antinomy are meant to function as the determining ground of the will. (…) it is crucial to observe that the assertions in the theoretical antinomies have regulative import and that those in the practical antinomy have a non-regulative import.”

83

moral292. Vieira elucida tal questão, afirmando que sumo Bem só é concebível mediante a lei moral e em virtude de sua mediação, podendo, nesse caso, atuar como fator de determinação da vontade293. O filósofo de Königsberg, em sua exposição do sumo Bem, propõe um rearranjo em relação à tradição filosófica, “transportando” as ideias da razão para um campo no qual elas tinham outras finalidades, até então. Aprofundemo-nos na discussão kantiana sobre o sumo Bem, tal como lançada na KpV, a fim de compreender melhor essa operação kantiana, como os postulados derivam da lei moral, e como atuam na produção do sumo Bem. A razão, sendo uma faculdade de princípios, busca a totalidade, tanto em seu uso teórico quanto no uso prático. A razão tem sede pelo incondicionado, e as ideias continuam sendo buscadas, tanto na teoria quanto na prática. Some-se a isso o fato de que o interesse prático da razão nas ideias reside no fato de que noções como alma imortal e a liberdade são, para o filósofo, pedras angulares da moral e da teologia294. No caso do uso prático – que é nosso foco nesse capítulo em particular e nessa dissertação em geral – a totalidade incondicionada diz respeito ao maior objeto que a razão prática pode desejar: o sumo Bem. A razão pura sempre tem sua dialética, seja no uso teórico, seja no prático. Busca a totalidade de condições para um dado condicionado, e essa totalidade só se encontra nas coisas em si295. O intelecto humano, todavia, só é dotado de intuições sensíveis296. A razão prática pura procura o incondicionado para o prático-condicionado, não como fundamento

292

KANT, I. KpV A 196s. VIEIRA, L. A. “Filosofia prática e incondicionado”, p. 22. 294 KANT, I. KrV B 492ss = A 463ss. 295 KANT, I. KpV A 192. 296 KANT, I. KpV A 192. 293

84

determinante da vontade (que já foi encontrado na lei moral), mas como “totalidade incondicionada do objeto da razão prática pura, sob o nome de sumo Bem” 297. Para Kant, no sumo Bem a virtude e a felicidade estão necessariamente vinculadas para a razão prática pura, entendendo-se por virtude (Tugend) a “disposição moral em luta” (moralische Gesinnung im Kampfe)298, e por felicidade, a já mencionada consciência ininterrupta da agradabilidade da vida. Essa ligação é ou analítica, ou sintética299. Aos olhos do filósofo, tal ligação não pode ser analítica, pois se trata de elementos diferentes. Deve, portanto, ser pensada sinteticamente como conexão causal: ou a felicidade causa a virtude, ou vice-versa. Para Kant, o primeiro caso é impossível, pois as máximas de felicidade não são morais. O segundo caso também é impossível, pois toda relação causal se dá segundo leis naturais, uma vez que se mantém no âmbito do entendimento300. A solução recorre à causalidade da liberdade, à causalidade prática. Para Kant, não resolver essa antinomia seria muito problemático:

Ora, a promoção do sumo Bem, que contém essa ligação em seu conceito, é um objeto necessário a priori de nossa vontade, e é inseparavelmente vinculado à lei moral; então a impossibilidade da primeira deve também provar a falsidade da lei moral. Portanto, caso o sumo Bem seja impossível segundo regras práticas, então também a lei moral, que exige a promoção daquele, seria algo fantasioso e fundado sob fins fictícios, logo, falsa em si mesma 301. (grifos nossos)

297

KANT, I. KpV A 194. “(...) unbedingte Totalität des Gegenstandes der reinen praktischen Vernunft, unter dem Namen des höchsten Guts.” 298 KANT, I. KpV A 151. 299 KANT, I. KpV A 204. 300 KANT, I. KpV A 205. 301 KANT, I. KpV A 205. “Da nun die Beförderung des höchsten Gutes, welches diese Verknüpfung in seinem Begriffe enthält, ein a priori notwendiges Objekt unseres Willens ist, und mit dem moralischen Gesetz unzertrennlich Zusammenhängt, so muss die Unmöglichkeit des ersteren auch die Falschheit des zweiten beweisen. Ist also das höchste Gut nach praktischen Regeln, unmöglich, so muss auch das moralisches Gesetz, welches gebiet dasselbe zu befördern, phantastisch und auf leere eingebildete Zwecke gestellt, mithin an sich falsch sein”.

85

O sumo Bem é vinculado inseparavelmente à lei moral, é fim que a lei moral exige realizar, e dever que a lei moral exige cumprir. A lei moral não pode exigir um dever impossível de se realizar, senão, seria fictícia e mesmo irracional. É importante lembrar que, aqui, o que está em jogo não é o sumo Bem fundamentar a lei moral (o que não é compatível com a incondicionalidade da lei moral), mas o sumo Bem ser pensado como o fim realizável pela vontade que se determina mediante a lei moral. O sumo Bem é um objeto necessário da razão prática pura, e essa necessidade se deve a seu vínculo com a lei moral. Para Kant, o próprio termo ‘sumo’ (‘höchst’) traz consigo uma ambiguidade: pode significar tanto das Oberste, supremum, quanto das Vollentede, consumatum. No primeiro caso, trata-se do bem supremo, a virtude ou moralidade, o bem que Kant também chama originarium, por não haver nenhum ao qual este bem se subordina. A virtude é um progresso sem fim das máximas da razão prática rumo à santidade, seu modelo302. A adesão da vontade à lei moral, ou sua capacidade de se autodeterminar mediante a lei moral, é o bem supremo, não havendo bem algum acima dela. Todavia, o bem supremo não corresponde à totalidade dos bens. O bem supremo não é o bem consumado ou total, que Kant denomina também perfectissimum, um bem acima do qual não haja tipo algum de bem303. O que isso significa, em termos de razão prática? Significa que a moralidade, por si só, não é o único anelo dos seres racionais finitos. Tampouco a felicidade o é. A dignidade de ser feliz sem a felicidade, ou o contrário, são coisas incompletas, para Kant, só se totalizando quando unidas304. Como mencionamos acima, há tanto uma faculdade inferior de apetição

302

WIKE, V. Kant’s Antinomies of Reason: Their Origin and their Resolution, p. 119. KANT, I. KpV A 198. 304 HAPPINESS, In. CAYGILL, H. A Kant Dictionary. p. 223. 303

86

quanto uma superior. Isso significa que ser apenas moral (ou seja, atender à faculdade superior de apetição) ou ser apenas feliz (ou seja, apenas buscar realizar as demandas da faculdade inferior de apetição) não faz jus à totalidade da experiência de um ser racional finito. Wike é atenta a essa ambiguidade na determinação do sumo Bem: trata-se de bem supremo (condição incondicionada; limitação; parte que subordina as demais) ou de bem perfeito/consumado (todo que não é parte de um todo maior – uma série inteira, ou o infinito) 305

? Tanto a lei moral quanto o sumo Bem são incondicionados, mas sob aspectos distintos306:

“Kant diz que virtude é o bem supremo, enquanto a virtude e felicidade unidas são o bem perfeito. A primeira definição do sumo Bem (isto é, o bem supremo) se refere à virtude, ao passo que a segunda definição do sumo Bem (isto é, o bem perfeito) exige tanto a virtude quanto a felicidade307”. Para o bem consumado, é necessário vincular elementos distintos virtude e felicidade, e de forma necessária, por ser uma exigência da lei moral. Esse vínculo é exigência da lei moral com base na própria razão prática pura: para Kant, não é uma razão parcial que quer promover esse vínculo, mas é a própria imparcialidade da razão308. O sumo Bem é objeto de “juízo de uma razão imparcial” (Urteil einer unparteiischen Vernunft), e não do “olhar parcial da pessoa” (parteiische Augen der Person)

309

. A razão prática pura não considera aceitável

que uma conduta moralmente correta não seja acompanhada de felicidade:

305

WIKE, V. Kant’s Antinomies of Reason: Their Origin and their Resolution, pp 113-115. WIKE, V. Kant’s Antinomies of Reason: Their Origin and their Resolution, p. 117. 307 WIKE, V. Kant’s Antinomies of Reason: Their Origin and their Resolution, p. 118. “Kant says that virtue is the supreme good while virtue and happiness together are the perfect good. The first definition of the highest good (i.e., the supreme good) refers to virtue whereas the second definition of the highest good (i.e., the perfect good) requires both virtue and happiness”. Vieira chega a utilizar os termos ‘incondicionado formal’ para a lei moral, e ‘incondicionado material’ para o sumo Bem. Cf. VIEIRA, L. A. “Filosofia prática e incondicionado”, p. 22. 308 KANT, I. KpV A 224; KANT, I. KrV B 841 = A 814. 309 KANT, I., KpV A 198s. 306

87

Nós, humanos, devemos e queremos, como seres racionais, ser morais. Também queremos, como seres racionais sensíveis finitos, carentes, vulneráveis, ser felizes. Entretanto, na medida em que ultrapassamos o viés em relação a nós mesmos, passamos a julgar a partir de uma perspectiva da razão imparcial e queremos também o seguinte: que seja feliz apenas todo aquele que esteja conforme seu merecimento, isto é, que seja merecedor sob um ponto de vista moral 310.

É fundamental notar – e Kant deixa isso claro –

que não se trata, aqui, de

heteronomia, de um agir moral que busca somente a felicidade. Não é o caso, porque o vínculo que Kant considera necessário – o vínculo apropriado para o sumo Bem – deve ter como causa a moralidade, e não a felicidade, de modo que essa felicidade só pode ser válida se legitimada moralmente (e Kant já considerava que devia ser dessa forma pelo menos desde a primeira Crítica311, como observamos no capítulo I). Nas palavras de Vieira, Kant “concede ao sumo Bem o papel de determinador da vontade, sem, contudo, colocar em questão a autonomia da vontade. Isto se deve ao fato de que o sumo Bem contém em si, como “condição suprema” (oberste Bedingung), a lei moral. (...). De qualquer forma, a lei moral é o que nos conduz ao sumo Bem”. Aproveitamos ter tocado nesse ponto para indicar, brevemente, como Kant vê duas escolas filosóficas da Antiguidade. Para Kant, a determinação do conceito de sumo Bem é tão importante que ele a chama ‘doutrina da sabedoria’ (Weisheitslehre). E Kant elogia, nesse sentido, as escolas antigas, por serem mais coerentes com a relação entre filosofia e prática do que as vertentes modernas de filosofia312. Merece destaque o fato de que o próprio Kant

310

FORSCHNER, M., “Immanuel Kant über Vernunftglaube und Handlungsmotivation”, p. 328. “Wir Menschen sollen und wollen als vernünftige Wesen moralisch sein; wir wollen als endliche, bedürftige, verletzbare vernünftige Sinnenwesen auch glücklich sein. Wir wollen indessen auch, insofern wir die Vorliebe für uns selbst übersteigen und aus einer Perspektive unparteilicher Vernunft heraus urteilen, dass jeder und nur der glücklich ist, der es nach Gesichtspunkten seiner Würdigkeit, d. h. nach moralischen Gesichtspunkten zu sein verdient.” 311 KANT, I. KrV B 836s = A 808s. 312 KANT, I. KpV A 194.

88

repara que a discussão sobre o sumo Bem se tornara secundária entre os modernos313, e isso talvez seja um sintoma da era moderna como uma época em que não se pensa mais a relação entre teoria e prática. Não obstante o elogio aos antigos, Kant é enfático ao se afastar do estóicos e dos epicuristas: para estes, ser feliz era, automaticamente, ser moral; para aqueles, ser moral era, imediatamente, ser feliz. Tanto estóicos quanto epicuristas – sem entrar no mérito da interpretação kantiana dessas escolas helenísticas – procediam analiticamente na determinação do conceito de sumo Bem. Isso significa dizer que ambas as escolas consideravam haver uma identidade entre moralidade e felicidade314. A antinomia da razão prática lança a síntese, portanto, entre a virtude e a felicidade. Há quem se oponha a tal síntese, para Kant, como a forma tal como ele vê os estóicos e os epicuristas, os quais seriam “identitários”, posto que concebem a virtude e a felicidade como uma mesma coisa. Eles estariam filiados ao intelectualismo moral: saber o vínculo lógico entre a virtude e a felicidade levaria a agir bem. Kant rompe com essa tradição e diz que a ação possui princípios autônomos em relação ao saber315. Esse confronto que Kant empreende entre sua filosofia e as filosofias greco-romanas será abordado com a devida ênfase no capítulo III, em que abordamos o caráter antropológico dos postulados da razão prática pura. Veremos como Kant julga aproximar o seu conceito de sumo Bem da visão cristã de sumo Bem, e que confere mérito ao cristianismo por ter sido mais humilde em relação à natureza humana316. Por enquanto, o importante é que Kant, ao afirmar que a delimitação correta do sumo Bem deve ser sintética, e não analítica, propõe um conceito de sumo Bem mais compatível com a realidade dos conceitos morais (na medida em 313

SCHNEEWIND, J. B. “Kant and Stoic Ethics”, pp. 293-294. KANT, I. KpV A 199-201. 315 FERRER, S. G. “Die Locke der Antinomie: La sortija de la Antinomia”, pp. 41-42. 316 KANT, I. KpV A 227s. 314

89

que moralidade e felicidade são elementos distintos) e também com as limitações dos seres racionais finitos. Essa ligação sintética deve se dar por uma lei de causalidade, e deve promover uma ligação real. Não se trata, portanto, de uma lei da identidade, ou de ligação meramente lógica317. Para Kant, o sumo Bem deve ser uma síntese, e esse problema da ligação sintética, por sua vez, nos conduz ao problema da antinomia da razão prática. Se moralidade e felicidade são elementos distintos, então é a moralidade que deve conduzir à felicidade, ou o contrário? Já vimos que Kant é a favor da primeira tese, mas o filósofo ainda não explicitou, na segunda Crítica, como esse vínculo é possível. Kant afirma que a distinção entre noumenon e fenômeno deve ser levada em conta para se resolver essa antinomia: na medida em que um ser racional finito se considera noumenon, ou seja, “inteligência pura, em sua existência não determinável de acordo com o tempo318”, a lei moral lhe confere fundamento determinante intelectual de causalidade no mundo sensível. Essa abertura para o inteligível resgata o problema da terceira antinomia da primeira Crítica, como apontam Wike e Ferrer319. Segundo Rohden:

O homem pensado como noumenon pode ser livre determinante de certos eventos. A proposição estóica, de que a virtude promove necessariamente a felicidade, não é falsa de modo absoluto, mas apenas condicional. Kant, porém, pensa esse nexo entre a moralidade e a felicidade mediante Deus, porque a vinculação que nós podemos estabelecer com a felicidade como objeto dos sentidos é contingente e, portanto, insuficiente para o sumo bem320.

A afirmação de que a aspiração à felicidade produz a moralidade é absolutamente falsa (schlechterdings falsch), já a afirmação contrária, segundo a qual a disposição à virtude 317

KANT, I. KpV A 199-201. KANT, I. KpV A 206. “(...) reine Intelligenz, in seinem nicht der Zeit nach bestimmbaren Dasein”. 319 FERRER, S. G. “Die Locke der Antinomie: La sortija de la Antinomia”, pp. 45-48; WIKE, V. Kant’s Antinomies of Reason: Their Origin and their Resolution, pp. 140; 145-147. 320 ROHDEN, V. “A Crítica da razão prática e o estoicismo”, p. 168. 318

90

(Tugendgesinnung) produz necessariamente a felicidade não é falsa em absoluto, mas apenas se considerarmos essa disposição como causalidade que só se dá segundo o sensível321. Kant defende que, se penso na determinação da vontade a partir da lei moral, é possível que a moralidade apresente um nexo com a felicidade. Tal nexo é necessário e mediato; mediante um autor (Urheber) inteligível da natureza322, entendido como Deus. O filósofo afirma que o referido nexo entre moralidade e felicidade é apenas ao acaso, se pensarmos em uma natureza que é apenas objeto dos sentidos, sendo necessário concebermos um âmbito suprassensível323. Esse trecho ilustra tanto a importância do postulado da existência de Deus (Autor da natureza) quanto o da liberdade. Segundo o filósofo de Königsberg, uma vez que temos que buscar a conexão necessária entre moralidade e felicidade na ideia de um mundo inteligível, é estranho que os filósofos antigos e modernos julgassem poder encontrar a felicidade no presente/nesta vida (schon in diesem Leben), ou acreditassem ser cientes dessa proporção324. Esse, para Kant, é um dos problemas na postura moral dos estóicos e dos epicuristas: acreditar que o sumo Bem é possível sem os postulados como o da liberdade (conexão com um mundo inteligível) e da imortalidade da alma (pois julgavam a proporção ser possível já nessa vida). Esse é um erro de alguns comentadores que observaremos na seção seguinte, que julgam ser possível o sumo Bem – pelo menos, o sumo Bem tal como Kant o defende – sem os postulados da razão prática pura. É digno de nota, todavia, reparar que a própria escrita de Kant pode confundir, visto que ele afirma, muitas vezes, ser o sumo Bem algo a se produzir no mundo.

321

KANT, I. KpV A 206s. KANT, I. KpV A 206. 323 KANT, I. KpV A 207. 324 KANT, I. KpV A 207s. 322

91

A antinomia prática se resolve com o postulado da liberdade e aponta para os demais postulados (imortalidade da alma e existência de Deus). Na próxima seção, observaremos algumas aporias decorrentes de se subestimar o papel dos postulados na produção do sumo Bem, tal como Kant o concebe.

II.4. A ‘polêmica Beck versus Silber’ e a questão da importância do sumo Bem

Há algumas décadas, houve um debate sobre a importância do sumo Bem na filosofia prática kantiana. Geralmente, os intérpretes se filiavam ou à interpretação de Beck (para quem o sumo Bem é um conceito que serve apenas como um ideal da razão, sendo desprovido de valor prático-ético), ou à de Silber (para o qual o sumo Bem kantiano é importante, mas deveria ser considerado, em termos práticos, como ‘imanente’, que prescindia dos postulados da razão prática pura). Longe de esgotarem as posições possíveis de interpretação do sumo Bem kantiano, salta aos olhos que ambas as interpretações conferem papel reduzido aos postulados. Provavelmente, isso é compatível com tendências antimetafísicas que se observa na filosofia contemporânea – em parte, fruto da própria obra de Kant. Segundo Beiser, em relação a esses pensadores, como Beck e Murphy (que negam a importância do sumo Bem na moral kantiana) ou ainda à vertente de Silber, O’Neill e Mariña (que propõem um sumo Bem ‘secular’, aceitando o sumo Bem, mas negando os postulados): “(...) Esses estudiosos defenderam uma concepção completamente secular e imanente do sumo Bem, de acordo com a qual é simplesmente um objetivo da luta humana que não precisa envolver as crenças em Deus ou na imortalidade da alma”325.

325

BEISER, F. C. “Moral faith and the highest good”, p. 589. “These scholars have defended a completely secular and immanent conception of the highest good, according to which it is simply a goal of human striving that need not involve the beliefs in the existence of God or immortality.” (grifo do autor).

92

Beiser defende pontos importantes em relação ao sumo Bem, em Kant, com os quais nossa interpretação converge: o sumo Bem em Kant não é uma concepção secular; é impossível separar o sumo Bem kantiano dos postulados da razão prática pura e das crenças em Deus e na imortalidade da alma. Beiser chega a afirmar que se trata de uma concepção ‘protestante’ de sumo Bem326. Quanto a esse último ponto, há controvérsias que serão melhor exploraremos no capítulo III. Nosso propósito, nessa seção, é apontar alguns dos argumentos utilizados pelos intérpretes do sumo Bem e dos postulados kantianos, e mostrar como muitos deles frequentemente negligenciam as temáticas que abordamos no capítulo I: a carência da razão pura no uso prático; o primado do uso prático da razão pura; o fato de os postulados serem forma de garantir à filosofia crítica um espaço para pensar Deus, imortalidade e liberdade. Principalmente, esses comentadores negligenciam um aspecto que será nossa temática principal no capítulo seguinte: os postulados como forma de se compensar as limitações dos seres racionais finitos. Os seres humanos, para Kant, não são capazes de efetuarem, meramente com seu próprio engenho, o vínculo entre moralidade e felicidade. Dessa forma, faz-se necessário apoio nos postulados. Negligenciar os postulados seria adotar posturas como a dos epicuristas ou a dos estóicos (tal como Kant os interpreta): isso significaria superestimar as capacidades dos seres racionais finitos (por exemplo, os seres humanos) de promover o referido vínculo. Vejamos como um confronto crítico com os intérpretes das duas vertentes do debate “Beck versus Silber” permite fortalecer nossa hipótese sobre o sentido antropológico dos postulados da razão prática pura.

326

BEISER, F. C. “Moral faith and the highest good”, p. 590.

93

O tema do sumo Bem sofre de certos preconceitos devido aos elementos teológicos em jogo na exposição kantiana sobre os mesmos. Apesar disso, na literatura mais recente, há aumento de interpretações que reconhecem a importância do sumo Bem não só na moral kantiana, mas na unificação de seu sistema como espécie de fio condutor327. Para Beck, há algo obscuro sobre se o sumo Bem é ou não fundamento determinante da vontade328. Beck pensa que a esperança é um incentivo, mas que disso não se pode tornar fundamento determinante da vontade, pois isso comprometeria a autonomia da vontade, e o conceito de sumo Bem não seria compatível com a visão de Kant sobre a moralidade, sendo um ideal dialético, e não conceito prático329. Beck parece não ter percebido que a razão prática pura não se esgota no comando moral, ela necessita de um objeto330. Conforme já mencionado acima, o sumo Bem é fundamento secundário de determinação da vontade, uma vez que a vontade tenha sido determinada previamente pela lei moral. É plenamente compatível com as visões kantianas de dever, fim, faculdade de apetição, autonomia. Kant equivale agir por dever com agir por respeito à lei moral331, e afirma que “É necessário a priori (moralmente) produzir o sumo Bem mediante a liberdade da vontade332”. Ora, o mesmo comentador que defende que Kant resolveu escrever a KpV por alguns motivos, como a prova da unidade do uso teórico e uso prático da razão e a conexão da lei moral com o homem333, o próprio Beck, aponta elementos que só são compreensíveis em profundidade em se levando em conta o problema do sumo Bem, o qual ele considera sem

327

HAMM, Christian. “O lugar sistemático do Sumo Bem em Kant”, pp. 41-43. BECK, L. W. A commentary on Kant´s Critique of Practical Reason, p. 244. 329 BECK, L. W. A commentary on Kant´s Critique of Practical Reason, p. 244-245. 330 BECK, L. W. A commentary on Kant´s Critique of Practical Reason, p. 251-254. 331 KANT, I. KpV A 144. 332 KANT, I. KpV A 203. “Es ist a priori (moralisch) notwendig, das höchste Gut durch Freiheit des Willens hervorzubringen”. 333 BECK, L. W. A commentary on Kant´s Critique of Practical Reason, pp. 12-15. 328

94

valor prático-ético na filosofia de Kant334. Compete reparar que a tentativa, da parte de Beck, de reconstrução do sumo Bem revela que ele confunde virtude com santidade, e Kant deixa claro que se trata de realidades morais distintas: virtude é um estado de luta (Kampf) rumo à santidade, não a santidade mesma, e santidade é um estado de perfeição moral. Para Murphy, adepto das ideias de Beck, vê-se a seguinte posição em relação ao sumo Bem “a introdução dessa noção por Kant foi desnecessária e temerária, servindo a propósitos teológicos extramorais (...)”

335

·. O exemplo que Murphy dá de um indivíduo que quer ser

‘menos virtuoso’ para a sua felicidade ser proporcional à sua virtude é particularmente infeliz, pois a virtude que é o merecimento da felicidade336, e se fosse o caso, tal ligação seria uma ligação contingente e astuciosa, e não uma determinação da vontade pela lei moral, portanto ligação necessária337. Esse exemplo parece tanto subestimar o raciocínio de Kant como não compreender as relações entre lei moral e vontade. Merece destaque que o autor não menciona a primazia da razão prática sobre a teórica, a fé racional pura, e tampouco a carência da razão pura no uso prático. A interpretação que Ferrer propõe do sumo Bem kantiano é imanentista, conferindo apenas papel lógico, e não real, aos postulados338. De um lado, os comentadores que se opõem à ideia de sumo Bem em Kant, ou defendem que o sumo Bem deve ser imanente, geralmente não se atentam para a relação entre a carência da razão pura no uso prático, nem para a fé racional pura e o primado do uso prático da razão pura, e tampouco para a unidade conceitual do texto kantiano. Quando muito, abordam apenas um desses elementos. De outro lado, é indicativo da pertinência de nossa

334

BECK, L. W. A commentary on Kant´s Critique of Practical Reason, pp. 242-254. MURPHY, J. “The highest good as content for Kant’s ethical formalism”, p. 102. “(…) Kant’s introduction of this notion was unnecessary and ill-advised, serving as it does extra-moral theological purposes (…)”. 336 KANT, I. KrV B 834 = A 806; B 836s = A 808s.; KpV A 234. 337 MURPHY, J. “The highest good as content for Kant’s ethical formalism”, p. 106. 338 FERRER, S. G. “Die Locke der Antinomie: La sortija de la Antinomia”, pp. 49-50. 335

95

estratégia hermenêutica o fato de que Allen Wood, um intérprete de Kant que mostra domínio de noções como o primado do uso prático da razão pura, fé racional pura e carência da razão pura, recomende que se evitem tanto as posições de Beck quanto as de Silber em relação ao problema do sumo Bem339. Silber, por sua vez, defende que os postulados, caso negados, não levam à renúncia do sumo Bem. Ora, a crítica de Kant na Dialética é justamente mostrar a importância dos postulados para que o sumo bem seja promovido. Do contrário, o sumo Bem seria analítico e o ponto de vista do estoicismo e do epicurismo seria o correto. Silber parece não ter atentado o suficiente para a fé racional pura e para a carência da razão prática, e para a finitude humana em jogo na discussão kantiana dos postulados.340 Ele se serve de um recurso, pensando que é possível um sumo Bem que se tenta ‘promover’, que é o sumo Bem ‘imanente’ (constitutivo) e um sumo Bem ‘transcendente’ (regulatório) 341. Em outros termos: Silber propõe o sumo Bem como um ideal, o sumo Bem “transcendente”, e o sumo Bem “imanente”, como aquele que se pode realizar na Terra. O problema de Silber é justamente achar que o que é uma coisa só em Kant se divide em duas, pois para o próprio Kant, trata-se de pressupostos para se conceber o sumo Bem como realizável, e não como um ideal distante342. Um problema de outra comentadora, Mariña, é que ela fala do sumo Bem “transcendente” como se fosse um conceito de Kant 343. O sumo Bem kantiano é uma tentativa de conciliar imanência e transcendência, sensível e inteligível, fenômeno e noumenon, faculdade superior e inferior de apetição, pessoa e personalidade.

339

WOOD, A. Kant’s Ethical thought, p. 313n. SILBER, J. R., “The Metaphysical Importance of the Highest Good as the Canon of Pure Reason in Kant’s Philosophy”, p. 240-241. 341 SILBER, J. R. “Der Schematismus der praktischen Vernunft”, p. 264; SILBER, J. R. “Kant's Conception of the Highest Good as Immanent and Transcendent”, pp. 475-492. 342 KANT, I. KpV A 219. 343 MARIÑA, J. “Making Sense of Kant's Highest Good”, p. 340-341. 340

96

Outra intérprete de um sumo Bem ‘secular’ ou ‘imanente’ é O’Neill, para a qual devemos ter como meta produzir o sumo Bem, e cada indivíduo deve esperar por essa coordenação necessária entre virtude como causa e felicidade como efeito, sem se postular a imortalidade da alma e a existência de Deus. A autora propõe que se troque a ideia dos postulados por uma visão do sumo Bem como algo a se produzir numa marcha histórica344, dando menos importância à finitude humana do que Kant no texto da KpV. O’Neill propõe pressuposições que seriam, segundo ela, ‘menos ambiciosas’ que as de Kant, por exemplo, a tarefa de progresso histórico. A posição de O’Neill acaba se aproximando dos estóicos e dos epicuristas – tal como retratados na KpV, ainda que isso não necessariamente corresponda a um retrato histórico fidedigno das escolas da era helenística – defendendo que o sumo Bem seja possível de se realizar sem auxílio dos postulados, e perdendo o seu caráter de necessidade. O interessante aqui é pensarmos como a visão que Kant apresenta dos estóicos e dos epicuristas representa posturas morais que negligenciam a finitude humana. Tais posturas atribuem ao ser racional finito, como no caso do ser humano, a capacidade de produzir o sumo Bem sem auxílio dos postulados. Por mais que soe como uma proposta louvável, tais intérpretes nos parecem perder de vista o caráter de necessidade que a lei moral impõe na realização de seu objeto, superestimando a capacidade humana de vincular, necessariamente, moralidade e felicidade. A leitura de Silber, O’Neill, Rawls et alii se distancia em parte do texto kantiano, inclusive por subestimar o papel do cristianismo no pensamento kantiano. Esse papel, por sua vez, receberá tratamento mais aprofundado no capítulo seguinte. Estamos mais próximos de

344

O’NEILL, O. “Kant on Reason and Religion”, p. 285-287.

97

comentadores como Hamm, que reconhece a importância dos postulados para se cumprir o dever de promoção do sumo Bem345. As crenças metafísicas sobre Deus e imortalidade da alma, segundo Paton, não alteram o conteúdo da ética kantiana. Para o intérprete, os postulados servem apenas como apoio existencial, não tendo valor nenhum na filosofia prática kantiana346. O comentador vê os postulados como apenas uma espécie de ‘muleta’ e amparo mental, ou ainda como forma que Kant encontrou para conceber ser possível um mundo justo em que a moral possa se realizar plenamente. É uma crítica contundente, mas podemos objetar que alteram o conteúdo da ética kantiana, na medida em que se trata da possibilidade de realização plena da moral, e nos permitem compreender melhor como Kant vê a felicidade, como aponta Watkins:

É porque a razão busca a totalidade das condições e, portanto, o incondicionado, que Kant se interessa pelo sumo Bem completo e pode entender a relação entre virtude e felicidade como uma relação da condição incondicionada com o condicionado, [relação] que possui um efeito fundamental em como um conceito propriamente moral de felicidade deve ser entendido 347.

A partir dessa compreensão mais ampla que agora temos do sumo Bem e da antinomia da razão prática, da lei moral e do postulado da liberdade, veremos os postulados seguintes, a saber: imortalidade da alma e a existência de Deus.

345

HAMM, Christian. “O lugar sistemático do Sumo Bem em Kant”, p. 49-51. PATON, H. G. The Categorical Imperative, pp. 255-256. 347 WATKINS, E. “The Antinomy of Practical Reason: reason, the unconditioned and the highest good”, p. 166. “It is because reason searches for the totality of conditions and thus the unconditioned that Kant is interested in the complete highest good and can understand the relation between virtue and happiness as a relation of unconditioned condition to conditioned, which has a fundamental effect on how a properly moral concept of happiness is to be understood”. 346

98

II.5. O postulado da imortalidade da alma

Verificamos, nas sessões anteriores, como o postulado da liberdade permite que a vontade seja determinável pela lei moral, e não apenas pelas inclinações. A partir dessa determinação positiva da vontade, a antinomia da razão prática é resolvida: é possível o sumo Bem, desde que haja uma vontade livre coexistindo com a vontade determinável pelas inclinações. Todavia, uma vontade livre não é, aos olhos de Kant, o bastante para que se tenha uma conduta moral perfeita. Uma vez que somos seres racionais finitos, não somos capazes de atingir a santidade (Heiligkeit). Esta é uma ideia prática que é um arquétipo (Urbild) do qual devemos, como seres racionais finitos, nos aproximar rumo ao infinito348. A lei moral para um ser moralmente perfeito é lei de santidade (Gesetz der Heiligkeit), enquanto, para a vontade de um ser racional finito, é lei do dever (Gesetz der Pflicht) 349. O progresso rumo ao infinito com vistas ao desenvolvimento constante, que Kant chama virtude (Tugend) é a coisa mais elevada que a razão prática finita (endliche praktische Vernunft) pode efetivar350. Essa noção é fundamental para nossa pesquisa. A vontade humana não é santa. Por isso, é necessário um progresso moral e a forma que Kant encontrou para esse progresso ser possível tender ao infinito, para os humanos, é o postulado da imortalidade da alma351. Um ser racional finito, como o ser humano, não segue a lei moral sempre, em função de sua natureza dual: é um ser de natureza e de razão; sensível e inteligível, fenomênico e numênico. O sumo Bem kantiano é uma tentativa de integrar esses dois aspectos ou 348

KANT, I. KpV A 58. KANT, I. KpV A 146. 350 KANT, I. KpV A 58. Cf. A 215. 351 KANT, I. KpV A 219ss. 349

99

dimensões do ser racional finito. Se o ser humano seguisse sempre a lei moral, seria um ser apenas inteligível e não haveria o sumo Bem. Mas o ser humano é limitado pelos desejos da faculdade inferior de apetição, sendo também um ser sensível. Por isso, a lei moral kantiana prescreve, e não descreve, como seria o caso da inteligência suprema e perfeição moral, Deus. Pois, apenas no caso de um ser plenamente inteligível que a lei moral é uma descrição do comportamento. O ser humano não consegue a santidade, sendo necessária a virtude como luta (Kampf) rumo à perfeição moral. A condição suprema (oberste Bedingung) do sumo Bem é a conformidade plena das disposições à lei moral. Tal conformidade deve, portanto, ser tão possível quanto o sumo Bem, por estar contida na ordem prescrita pela lei moral: promover e efetuar o sumo Bem352. No entanto, uma adequação plena (völlige Angemessenheit) da vontade com a lei moral é santidade (Heiligkeit), “uma perfeição da qual nenhum ser racional do mundo sensível é capaz, em nenhum momento de sua existência”353. (grifo nosso). Este trecho nos afirma a incapacidade de perfeição moral em vida, e um possível argumento em favor de que o sumo Bem não é alcançável em vida, neste mundo, embora Kant chegue a afirmar que o sumo Bem deve ser realizado no mundo354. Mas tal perfeição ainda é exigida de um ponto de vista prático e somente se encontra em um progresso que avança ao infinito, rumo à adequação plena, que passa a ser um pressuposto necessário da razão prática355. Estranhamente, Kant chama esse prosseguimento prático (praktische Fortschreitung) de “objeto real de nosso querer” (das reale Objekt unseres Willens). Mas objeto não seria o sumo Bem? Não se trataria, aqui, de um postulado, e não de um objeto356?

352

KANT, I. KpV A, 219. KANT, I. KpV A, 220. “eine Vollkomenheit, deren kein vernünftiges Wesen der Sinnenwelt, in keinem Zeitpunkte seines Daseins, fähig ist)”. (grifo nosso) 354 KANT, I. KpV A 219. 355 KANT, I. KpV A, 220. 356 KANT, I. KpV A, 220. 353

100

Apesar desse trecho ambíguo, retomemos o raciocínio kantiano: o sumo Bem é possível praticamente apenas mediante a pressuposição de existência e personalidade prolongadas ao infinito, ou seja, a pressuposição da imortalidade da alma357. A filosofia crítica, no entanto, não entra em detalhes especulativos sobre essa questão: se se trata de ressurreição, ou de reencarnação, ou ainda de outra forma de vida após a morte. Isso corrobora com o que foi discutido no capítulo 1: os postulados auxiliam a filosofia crítica, no sentido de conferirem lugar adequado a objetos que anteriormente se tratava como objetos de saber, Wissen. Agora, trata-se de objetos de fé racional pura (reiner Vernunftglaube). Embora Kant critique as provas da imortalidade, ele não abandonou a convicção subjetiva na imortalidade358. A razão prática possui, em relação ao uso teórico da razão, a prerrogativa de aceitar como pressuposições o que, na especulação, não seria aceito359. No entanto, esse postulado, de certa forma, nos parece incongruente com a afirmação kantiana de que o sumo Bem deve ser produzido no mundo360. Afinal, se ele é algo a ser produzido no mundo, por que seria preciso conceber a imortalidade da alma? Talvez com mundo, Kant queria dizer ‘mundo moral’, tal como falava na primeira Crítica? Por mais aporética que essa questão permaneça, o postulado é importante na argumentação kantiana. Segundo Kienzle, o argumento de Kant a favor da imortalidade da alma repousa no princípio “dever implica poder”, e esse princípio encontra equivalente à regra latina “ultra posse nemo obligatur”. “(...) A versão condensada de seu argumento segue

357

KANT, I. KpV A, 220. IMMORTALITY, In. CAYGILL, H. A Kant Dictionary. p. 250. 359 KERN, U. “Natur und Freiheit als die beiden Gegenstände der Philosophie – Eine material Propädeutik in Kants Denken”, p. 120. 360 KANT, I. KpV A 219. 358

101

dessa forma: porque devemos cumprir a lei moral, devemos também poder cumprir – ainda que dure uma eternidade, até que o façamos”361 (grifo nosso). A maior dificuldade com a ‘prova moral’ da imortalidade diz respeito à ideia de uma vida futura em progresso que tende ao infinito. Allison chama a argumentação kantiana de “artificial ao extremo”

362

. Devemos nos atentar, todavia, para a proposta antropológica em

jogo na argumentação kantiana. Primeiro, o postulado se articula com a relação entre lei moral e sumo Bem. Em segundo lugar, aponta a limitação antropológica de estar à altura da lei moral, e faz sentido especial se inserida na crítica kantiana aos estóicos e epicuristas: a outra vida decorre da impossibilidade de atingirmos a perfeição moral num tempo finito363. É interessante reparar, como Sans, que o postulado kantiano da imortalidade da alma é um tema menos comum na atualidade que Deus e liberdade, os outros dois postulados kantianos,364 e que apresenta diferença significativa em relação à fé cristã, segundo a qual a morte é o último ponto possível para a conversão365. Convém lembrar, todavia, que Kant não tem a intenção de refletir sobre o cristianismo do ponto de vista teológico, não como doutrina religiosa (Religionslehre)366, mas sim como moral cristã (christliche Moral)367, e essa reflexão kantiana sobre moral e cristianismo será abordada com maior ênfase no capítulo III. Vejamos, antes disso, o postulado da existência de Deus.

361

KIENZLE, B. “Macht das Sittengesetz unglücklich?”, p. 282. “(...) Die Kurzfassung seines Argumentes lautet wie folgt: Da wir das Sittengesetz erfüllen sollen, müssen wir es auch erfüllen können – obwohl es eine Ewigkeit dauert, bis wir es tun.” 362 ALLISON, H. E. Kant’s theory of freedom, p. 172. “artificial in the extreme”. 363 HÖSLE, Vittorio. “Grandeza e limites da filosofia prática de Kant”, p. 110. 364 SANS, G. “Immortalità dell’anima e sommo bene: Sulla metafisica pratica di Immanuel Kant”, p.272. 365 SANS, G. “Immortalità dell’anima e sommo bene: Sulla metafisica pratica di Immanuel Kant”, p.276. 366 KANT, I. KpV A, 229s. 367 KANT, I. KpV A, 230n.

102

II.6. O postulado da existência de Deus:

Observamos, nas seções anteriores, a relação entre a lei moral e os postulados da liberdade e da imortalidade da alma. Com esses dois postulados, assegura-se a possibilidade de um desenvolvimento moral rumo à perfeição moral. No entanto, ainda não se tem o vínculo necessário entre a moralidade e a felicidade. Este não é proporcionado pela lei moral. Tampouco na natureza se encontra a base para esse vínculo, de forma necessária 368. Quando muito, o vínculo ocorre contingentemente, e momentaneamente, de modo que se é feliz por se ter agido moralmente, mas apenas de maneira efêmera. Parece que a única via que resta para promover esse vínculo é mediante algo que interfira ou na natureza, ou na lei moral. Se interferir na lei moral, ela perde o caráter de incondicionalidade. Portanto, deve ser na natureza. Em um trecho do capítulo VII da Dialética, Kant resume que o sumo Bem só é admissível como possível para seres racionais finitos,

(...) sob a pressuposição de um Autor do mundo de suprema perfeição. Ele deve ser onisciente, para conhecer minha conduta ao mais íntimo da minha disposição, em todos os casos possíveis e por todo o futuro; onipotente, para conferir àquela as consequências adequadas; e, da mesma forma, onipresente, eterno, etc. Consequentemente, a lei moral determina, por meio do conceito de sumo Bem como objeto de uma razão pura, o conceito de ser originário como ser supremo, o que o curso físico (e, continuado de forma superior, o curso metafísico) e, portanto, todo o curso especulativo da razão não conseguiu realizar. Logo, o conceito de Deus é um conceito que não pertence originariamente à física, i. e., à razão especulativa, mas à moral, e o mesmo pode ser dito dos demais conceitos da razão, dos quais tratamos acima como postulados da razão pura em seu uso prático369. (grifos nossos). 368

KANT, I. KpV A 224s. KANT, I. KpV A 253. “(…) unter Voraussetzung eines Welturhebers von höchster Vollkomenheit. Er muss allwissend sein, um mein Verhalten bis zum Innersten meiner Gesinnung in allen möglichen Fällen und in alle Zukunft zu erkennen; allmächtig, um ihm die angemessenen Folgen zu erteilen; eben so allgegenwärtig, ewig, u.s.w.Mithin bestimmt das moralische Gesetz durch den Begriff des höchsten Guts, als Gegenstandes einer reinen praktischen Vernunft, den Begriff der Urwesens als höchsten Wesens, welches der physiche (und höher fortgesetzt der metaphysische) mithin der Ganze speculative Gang der Vernunft nicht bewirkt konnte.Also ist der Begriff von Gott ein ursprünglich nicht zur Physik, d. i. für die spekulative Vernunft, sondern zur Moral gehöriger Begriff, und eben das kann man auch von den übrigen Vernunftbegriffen sagen, von denen wir, als Postulaten derselbe in ihrem praktischen Gebrauche, oben gehandelt haben.” (grifos nossos). 369

103

Na filosofia prática, pode-se admitir Deus como Autor da natureza, e ainda assim, unicamente para o fim último da moralidade (o sumo Bem)

370

. Kant reconfigura, ou pelo

menos julga estar reconfigurando, atributos divinos (onisciência, onipresença, etc.) de modo a ser compatível com a racionalidade prática pura, evitando uma teologia dogmática. Esse trecho, além de elucidar mais a fundo o postulado da existência de Deus, enfatiza a relação entre postulados, sumo Bem e lei moral: o sumo Bem é exigido pela lei moral. Na promoção do sumo Bem, legitima-se a aceitação das ideias de liberdade, imortalidade da alma e existência de Deus, coisa que a física e a metafísica teórica, aos olhos de Kant, não conseguira. Tais ideias são atingidas pela via prática, e não pelo conhecimento da essência de tais ideias, mas conferindo-lhes realidade objetiva pela via da ação. A lei moral conduz ao problema da tarefa prática (praktische Aufgabe) de se promover o sumo Bem. A primeira parte deste problema é a moralidade, que só pode ser totalmente resolvido na eternidade. Assim, para se cumprir a primeira parte do sumo Bem, a lei moral conduziu ao postulado da imortalidade da alma371. Já na tarefa de assegurar a segunda parte do mesmo, a saber, a felicidade, a lei moral conduz ao postulado da existência de Deus372. Kant argumenta a favor da existência de Deus, segundo um ponto de vista moral, da seguinte maneira: a felicidade envolve concordância entre a natureza e os fins de um ser racional. Ora, a lei moral, por ser uma lei da liberdade, ordena mediante fundamentos determinantes que não devem ter como critério de moralidade a natureza e a concordância da mesma com a faculdade inferior de apetição. Mas o ser racional finito, agindo no mundo, não é causa do mundo e da própria natureza, simultaneamente. Logo, na lei moral não há o

370

KANT, I. KpV A 198. KANT, I. KpV A, 223. 372 KANT, I. KpV A, 223s. 371

104

fundamento da capacidade do ser racional finito de efetuar (bewirken), com as próprias forças, o vínculo necessário entre a moralidade e felicidade proporcionada a ela373. Não obstante, tal conexão é postulada como necessária: devemos procurar promover o sumo Bem, o qual, portanto, deve ser possível. Portanto, postula-se também a existência de uma causa da natureza distinta desta em seu conjunto, que contenha o fundamento da exata concordância de felicidade com a moralidade374. Tal causa suprema, por sua vez, deve conter o fundamento da concordância da natureza não somente com uma lei da vontade de seres racionais, mas com a representação dessa lei, a qual estes põem para si como fundamento determinante supremo da moralidade. Logo, o sumo Bem só pode ser considerado possível no mundo na medida em que admitirmos uma causa suprema da natureza a qual contenha causalidade adequada à disposição moral. Portanto, a causa suprema da natureza, enquanto deve ser pressuposta para o sumo Bem, é um ser que é causa e Autor da natureza, mediante entendimento e vontade: Deus375. Consequentemente, o “postulado da possibilidade do sumo Bem derivado” (Postulat der Möglichkeit des höchsten abgeleiten Guts) é, ao mesmo tempo, “o da efetividade de um sumo Bem originário, a saber, a existência de Deus” (Postulat der Wirklichkeit eines höchsten ursprünglichen Guts, nämlich der Existenz Gottes)376. Tomemos, no entanto, cautela com o uso que Kant faz do termo “sumo Bem originário”. Esse sumo Bem não é o sumo Bem derivado, pelos seguintes motivos: o sumo Bem derivado é o sumo Bem propriamente dito que Kant discute mais extensamente na Dialética da KpV, isto é: objeto da vontade determinável pela lei moral, e a efetuação desse objeto é busca dos seres racionais finitos. Já o sumo Bem originário não é objeto da vontade, mas o que torna a realização necessária do

373

KANT, I. KpV A, 224s. Cf. SCHNEEWIND, J. B. “Kant and Stoic Ethics”, p. 294. KANT, I. KpV A, 224s. 375 KANT, I. KpV A, 225. 376 KANT, I. KpV A, 226. Cf. REARDON, B, Kant as a Philosophical Theologian, p. 56. 374

105

sumo Bem derivado possível de se efetuar, uma vez que Deus é o distribuidor (Austeiler)377 da felicidade proporcionamente à conduta moral de cada um. Além disso, sendo dotado de entendimento perfeito, tal Autor é capaz de captar a intenção

dos

agentes

morais

e,

nesse

sentido,

consegue

atribuir

a

felicidade

proporcionalmente à adequação dos sujeitos à lei moral, de acordo com a conduta dos mesmos378. Compete lembrar que a postulação da existência de um sumo Bem originário, isto é, da existência de Deus, segundo Cassirer, não é necessária para a moralidade, mas para a vinculação desta com a felicidade379. É curioso que Kant se refere a Deus como sumo Bem originário, pois já utilizara o termo originarium para falar do bem consumado (vollendet)380. Em suma, Kant concebe que a segunda parte do sumo Bem, a felicidade, só é possível com a pressuposição de um Autor da natureza que seja, ao mesmo tempo, um ser moral, capaz de distribuir a felicidade proporcionalmente à conduta moral de cada um. Deus, nesse sentido, seria um juiz e também distribuidor (Austeiler)381 da felicidade, capaz de avaliar a conduta moral dos indivíduos. Trata-se da pressuposição necessária de uma causa da natureza que, no entanto, não se confunda com esta, mas que seja capaz de interferir no curso natural382. Não é a revelação, ou a Palavra de Deus que determina o critério da moralidade, para Kant, mas é a moralidade que revela o sentido genuíno destas manifestações religiosas. Nesse sentido, Kant afirma que, com a questão do sumo Bem, vai-se da moral para a religião. Kant aproximará sua moral do Cristianismo, e mostrará que o Cristianismo está mais próximo

377

KANT, I., KpV A 231. KANT, I., KpV A 222ss. 379 CASSIRER, E. Kant, Vida y Doctrina, pp. 310-311. 380 KANT, I., KpV A 198. 381 KANT, I. KpV A 231. 382 KANT, I., KpV A 224ss. 378

106

de sua filosofia do que os estóicos e os epicuristas, por ter reconhecido mais os limites dos seres racionais finitos. Veremos isso com maior profundidade no capítulo seguinte.

107

Capítulo III - O sentido antropológico dos postulados

III.1. Apresentação

No primeiro capítulo, abordamos os postulados da razão prática pura em seu vínculo com a carência da razão pura no uso prático e com a noção de fé racional pura. Ademais, examinamos a exposição do sumo Bem e das pressuposições necessárias para a realização do mesmo na primeira Crítica, mostrando que a liberdade como um postulado da razão prática e a relação entre sumo Bem e lei moral ainda não eram abordadas em detalhe por Kant na Kritik der reinen Vernunft. Deixamos explícito, no segundo capítulo, justamente a relação entre lei moral e liberdade, e entre lei moral e os demais postulados da razão prática pura (existência de Deus, imortalidade da alma), a partir do texto Kritik der praktischen Vernunft. Não obstante as diferenças, notamos que a questão da esperança e da crença, ou fé, é de fundamental importância nas argumentações de Kant sobre o sumo Bem. É conhecida a afirmação kantiana, já trabalhada no capítulo I, de que o interesse da razão, seja no uso especulativo, seja no uso prático, culmina nas questões: “O que posso conhecer?” /(”was kann ich wissen?”); “o que devo fazer?” /(“was soll ich tun?”); “o que me é permitido esperar?”/ (“was darf ich hoffen?”)

383

. A primeira questão compete à especulação, e a segunda, ao

agir384. Já a terceira questão diz respeito a ambas as esferas da racionalidade385 e culmina, na segunda Crítica, no que Kant denomina fé racional pura (reine Vernunftglaube). Ao longo dos dois capítulos, buscamos apresentar a nossa hipótese de trabalho: a argumentação kantiana sobre como os postulados da razão prática pura tornam concebível a 383

KANT, I. KrV B 833 = A 805. KANT, I. KrV B 833 = A 805. 385 KANT, I. KrV B 833 = A 805. 384

108

efetuação do sumo Bem permite inferir uma antropologia, já implícita na KrV e tornada mais nítida na KpV. Essa antropologia, que não é a mesma que a Anthropologie de 1798 – a qual não foi nosso objeto de estudo – aponta para os limites do ser humano em particular e também do racional finito em geral, e também nos indica o ser humano como um ser de esperança e de fé. Kant apresentou sua concepção de sumo Bem por considerar que seu arrazoado sobre o dever precisava ser aproximado da natureza humana – não no que diz respeito à fundamentação, mas à sua realização por seres racionais finitos386. Verificamos, nos arrazoados do filósofo de Königsberg presentes na Doutrina do Método da KrV e na Dialética da KpV, uma visão da natureza humana que parte de uma incompletude dos seres racionais finitos. Tal incompletude se mostra na incapacidade desses seres de vincularem – mediante seu próprio engenho – de forma necessária, moralidade e felicidade no conceito de sumo Bem. Por que, para Kant, estoicismo e epicurismo não contemplavam o ser humano em ambas suas dimensões – sensível e inteligível? Por que o cristianismo possuía uma antropologia mais conforme aos limites dos seres racionais finitos? Em que medida os postulados e o sumo Bem apontam para a esperança como um elemento importante na concepção kantiana de ser humano? Essas questões serão abordadas no presente capítulo.

386

REARDON, B, Kant as a Philosophical Theologian, p. 54.

109

III.2. A crítica de Kant aos estóicos e aos epicuristas

Düsing nos mostra como, já nas reflexões do começo da vida adulta, Kant se debruçava sobre o tema do sumo Bem, pensando em Epicuro e em Zenão. Já nessas reflexões e em suas preleções de ética, Kant pensava numa apologia do cristianismo, que oferecia uma visão de sumo Bem mais adequado à finitude dos seres racionais finitos, além de possuir um princípio moral formal, segundo sua interpretação da moral cristã387. Kant possuía certa admiração pelos estóicos. Não obstante, para o filósofo, os estóicos não reconheciam as limitações humanas, bem como a necessidade de um crescimento nas virtudes (o que é ilustrado em Kant com o postulado da imortalidade da alma) 388. Não entraremos no mérito da interpretação kantiana do estoicismo, do epicurismo e do cristianismo. Basta, para nossa dissertação, compreender como Kant vê os estóicos, os epicuristas e a moral cristã, e como isso reflete em sua argumentação sobre o sumo Bem e os postulados da razão prática pura. Kant afirma que a unidade entre moralidade e felicidade, no contexto do sumo Bem, pode ser analítica, ou segundo uma conexão lógica (logische Verknüpfung), segundo a lei da identidade (nach dem Gesetze der Identität) ou sintética, segundo uma vinculação real (reale Verbindung), segundo lei da causalidade389. O primeiro caso seria, para o filósofo, o método de duas escolas antigas. Os estóicos e epicuristas buscavam unificação do princípio do sumo Bem segundo a regra da identidade – portanto, não tomando moralidade e felicidade como elementos diversos. Para o epicurista, a autoconsciência da máxima que conduz à felicidade já contém o conceito de virtude (segundo

387

DÜSING, K. “Das Problem des höchsten Gutes in Kants praktischer Philosophie”, pp. 7-13; 25. SCHNEEWIND, J. B. “Kant and Stoic Ethics”, pp. 290-293. 389 KANT, I. KpV A, 199s. 388

110

o qual o princípio está no lado estético – ästhetische Seite). A felicidade, para o epicurista, é o sumo Bem total (das ganze höchste Gut), a virtude é apenas um uso de meios para se atingir a felicidade, de modo que a prudência (Klügheit) equivale à moralidade (Sittlichkeit)

390

. Sua

ideia de sumo Bem se funda na “consciência da carência sensível” (Bewusstsein des sinnlichen Bedürfnisses)391. O estóico, por sua vez, pensava que a consciência da virtude continha o sentimento de felicidade. A moralidade é a verdadeira sabedoria (Weisheit) e seu princípio do sumo Bem está no lado lógico (logische Seite). A virtude é o sumo Bem total e a felicidade, para o estóico, é apenas consciência da posse da virtude392. O estóico tem sua ideia de sumo Bem fundamentada na “independência da razão prática de todos os fundamentos determinantes sensíveis”

(Unabhängigkeit

der

praktischen

Vernunft

von

allen

sinnlichen

Bestimmungsgründen)393. Todavia, a Analítica da razão prática pura deixa claro que as máximas da virtude e as máximas da felicidade própria são completamente heterogêneas em relação a seu princípio prático supremo. Felicidade e moralidade são dois elementos do sumo Bem totalmente diversos quanto à sua espécie, de modo que sua vinculação não é analítica, mas sim uma síntese de conceitos394.

À diferença dos antigos, Kant afirma que a conexão necessária entre essas duas determinações, como razão e consequência, não é só analítica e lógica, mas sintética e real, submetidas aquela à lei de identidade e esta à lei de causalidade (em sentido prático). Quando penso em virtude e em felicidade, tenho duas máximas diversas, duas consciências diversas como fundamento, que precisam unificar-se, ou seja, que não são analiticamente uma só 395.

390

KANT, I. KpV A, 200ss. KANT, I. KpV A, 201s. 392 KANT, I. KpV A, 200ss. 393 KANT, I. KpV A, 202. 394 KANT, I. KpV A, 202. 395 ROHDEN, V. “A Crítica da razão prática e o estoicismo”, p. 167. 391

111

Além de terem concebido o sumo Bem de forma errônea, estóicos e epicuristas teriam deixado de lado os postulados da razão prática pura. Kant menciona que o postulado da existência de Deus torna possível conceber por que as escolas gregas (die grieschichen Schulen) nunca chegaram, para o filósofo, a uma solução desse problema da possibilidade prática do sumo Bem. Tais escolas fizeram da regra do uso que uma vontade faz de sua liberdade fundamento único e suficiente da possibilidade do sumo Bem, sem carecerem da existência de Deus, ou seja, do sumo Bem originário. Kant já afirmara, no início da Dialética:

Quando nós nos vemos obrigados a buscar a possibilidade do sumo Bem – essa meta de todos os desejos morais, destacada pela razão de todos os seres racionais – em tal distância, a saber: na conexão com um mundo inteligível, então deve estranhar que, apesar disso os filósofos, tanto antigos quanto os dos tempos modernos, encontram a felicidade em proporção totalmente adequada à virtude já nessa vida (no mundo sensível), ou terem se convencido de ser conscientes de tal proporção396.

Ambas as escolas procederam de forma parcialmente correta, pois ao menos conceberam o princípio moral independente desse postulado, unicamente na relação do princípio com a vontade – fazendo-o, por conseguinte, condição suprema do sumo Bem. Todavia, tal princípio não é, por isso, princípio consumado, completo do sumo Bem397. O bem supremo só se torna bem consumado mediante a ideia de um sumo Bem originário, isto é, por meio do postulado da existência de Deus. No caso dos epicuristas, o princípio moral escolhido era falso – a felicidade – que substitui a lei por uma máxima que vai de acordo com a inclinação de cada um. Todavia, esses gregos foram consequentes, ao rebaixarem o sumo Bem proporcionalmente à qualidade 396

KANT, I. KpV A 207s. “Wenn wir uns genögtig sehen, die Möglichkeit des höchsten Guts, dieses durch die Vernunft Allen vernünftigen Wesen ausfesteckten Ziels aller ihrer moralischen Wünsche, in solcher Weise, nähmlich in der Verknüpfung mit einer intelligibelen Welt, zu suchen, so muss es befremden, dass gleichwohl die Philosophen, alter so wohl, als neuer Zeiten, die Glückseligkeit mit der Tügend in ganz geziemender Proportion schon in diesem Leben (in der Sinnenwelt) haben finden, oder sich ihrer bewust zu sein haben überreden können”. 397 KANT, I. KpV A, 227.

112

das máximas por eles adotadas, de forma que “(...) não esperaram nenhuma felicidade maior do que aquela que pode ser adquirida com a prudência humana398”. E essa felicidade, para Kant, revela-se de várias maneiras, de acordo com as circunstâncias, havendo tantas exceções que as regras prudenciais não se configuram como leis. Os estóicos, por sua vez, foram totalmente corretos na escolha do princípio supremo da moralidade – a virtude (Tugend) enquanto condição para o sumo Bem – mas, ao representarem o grau dela exigido pela lei pura da mesma, como alcançável nesta vida, não só elevaram excessivamente a capacidade moral do homem para além dos limites da natureza (na condição de sábio), mas também não quiseram considerar que o segundo elemento pertencente ao sumo Bem consiste em um objeto desejado pelos humanos 399. Para Kant, desse modo, os estóicos “(...) não só reforçaram demasiadamente a capacidade moral do ser humano, sob o nome de sábio, para além de todos os limites de sua natureza (...), mas tornaram o seu sábio, na consciência da excelência de sua pessoa, uma divindade totalmente independente da natureza (no que diz respeito a seu contentamento)” 400. Os estóicos teriam, para Kant, efetivamente eliminado o segundo elemento do sumo bem, a felicidade, tendo-o colocado simplesmente na ação e no contentamento com sua postura moral401. Kant critica essa exacerbação da figura humana pelo estoicismo, bem como o papel drasticamente reduzido da felicidade na conduta individual que vê nessa escola grega. O estoicismo, segundo Mariña, “(...) defendeu a possibilidade de se adquirir o sumo Bem nesse mundo ao equacionar a felicidade com a consciência da virtude. Ignorou, portanto, que

398

KANT, I. KpV A, 223. “(...) keine grösser Glückseligkeit erwarteten, als die sich durch menschliche Klugheit (...) erwerben lässt”. 399 KANT, I. KpV A, 228. 400 KANT, I. KpV A, 228s. “ (...) nicht allein das moralische Vermögen des Menschen unter dem Namen eines Weisen über alle Schranken seiner Natur hoch gespannt (...) ihren Weisen gleich einer Gottheit im Bewusstsein der Vortrefflichkeit seiner Person von der Natur (in Absichte der Zufriedenheit) ganz unabhängig gemacht (...) ”. 401 KANT, I. KpV A, 229.

113

somos seres racionais finitos carentes, e que, consequentemente, a consciência da virtude não é a mesma coisa que a felicidade402”. Retomemos, nesse contexto, a crítica que Kant já faz aos estóicos na Analítica403. Se o fanatismo (Schwärmerei), em acepção mais geral, é transgressão dos limites da razão humana, o fanatismo moral, por sua vez, é transgressão dos limites que a razão prática estabelece para a humanidade, já que ela faz do pensamento do dever o princípio de vida supremo da moralidade do homem, abatendo, com isso, a philautia e a arrogância. Os estóicos, para Kant, estatuíram uma espécie de fanatismo moral. Em contraposição, o Evangelho zela tanto pela pureza do princípio moral quanto pela conformidade com os limites dos seres finitos404. Para Kant, a doutrina moral do Evangelho (moralische Lehre des Evangelii) tem o mérito de (a) fornecer pureza do princípio moral (Reinigkeit des moralisches Prinzips) e de (b) conformidade aos limites de seres finitos (Angemessenheit (...) mit dem Schranken endlicher Wesen). Além disso, (c) impôs a limitação da humildade ao amor próprio e à presunção humana por meio do conhecimento de si (Selbsterkenntnis)405. O cristianismo seria, dessa forma, mais ‘humilde’ que o estoicismo, além de apresentar o fundamento determinante da vontade que é moralmente legítimo. O cristianismo, tal como Kant o concebe, reconhece tanto a necessidade de um princípio formal para a moralidade quanto admite a finitude do homem. O estoicismo, para Kant, exigia demais da natureza humana, ao passo que o epicurismo propôs um fim da moralidade como algo, pelo menos, não digno do homem 402

MARIÑA, J. “Making Sense of Kant's Highest Good”, p. 334. “ (…) it [the stoicism] accounted for the possibility of achieving the highest good in this world by equating happiness with consciousness of this virtue. It thus ignored that we are finite rational beings of needs, and that consequently consciousness of virtue is not the same as happiness”. 403 Curiosamente, Leibniz também já criticara os estóicos em relação a uma incompletude em seu sistema moral, defendendo o cristianismo como apresentando uma moral mais completa. Cf. ASSUMPÇÃO, G. “The Highest Good as the Kingdom of God: the role of Christianity in the Critique of Practical Reason.”, p. 57. 404 KANT, I. KpV A, 154. 405 KANT, I. KpV A 153s.

114

racional406. O cristianismo, por sua vez, apresentaria uma espécie de ‘equilíbrio antropológico’.

Ao usar o termo [Deus], eu estou articulando, ou declarando, a orientação básica de minha vida como um ser racional, divulgando minha atitude ou postura moral fundamental. Kant acredita que nisto reside a essência do cristianismo, distinta das doutrinas éticas tanto do epicurismo quanto do estoicismo da antiguidade; pois, enquanto aquele baseou a moralidade na felicidade, sem consideração pelo dever, esta se ateve apenas à obrigação, sem considerar levar a felicidade em conta. Em ambos os casos, o verdadeiro caráter da moralidade foi concebido de forma errônea, seja como algo muito menos que digno do homem racional, seja como algo que impõe uma exigência em demasia à sua natureza efetiva. 407

O cristianismo é interpretado simbólica e eticamente por Kant, e a moral cristã fornece um conceito de sumo Bem que reconhece as rigorosas demandas da razão408. Observemos, antes de tecermos nossas considerações antropológicas, o que Kant quer dizer com ‘cristianismo’ na Kritik der praktischen Vernunft.

406

REARDON, B, Kant as a Philosophical Theologian, p. 62. REARDON, B, Kant as a Philosophical Theologian, p. 62. “In using the term [God] I am articulating or declaring the basic orientation of my life as a rational being, disclosing my fundamental moral attitude or stance. Kant believes that herein lies the essence of Christianity as distinct from the ethical doctrines of either the Epicureanism or Stoicism of antiquity; for while the former based morality on happiness without regard to obligation, the latter dwelt only on obligation without regard to happiness. In both cases the true character of morality was misconceived, either as something much less than worthy of rational man or else as imposing an excessive demand upon his actual nature.” 408 CHRISTENTUM, In EISLER, Rudolf. Kant-Lexikon, p. 78. 407

115

III.3. Kant e o cristianismo na Kritik der praktischen Vernunft

Para Kant, o cristianismo, ainda que não considerado como doutrina religiosa (Religionslehre)409, fornece, sob o ponto de vista das exigências da razão prática, isto é, como moral cristã (christliche Moral)410, um conceito de sumo Bem satisfatório, de sumo Bem como Reino de Deus (Reich Gottes)411. O cristianismo, para Kant, oferece vantagem sobre o ponto de vista dos estóicos. Para estes, a consciência da fortaleza da alma era eixo em torno do qual a disposição moral devia girar, sendo a virtude, para eles, heroísmo do sábio autossuficiente que se eleva sobre a natureza animal (thierische Natur) do homem, não sendo tentado a transgredir a lei moral412. Além disso, do ponto de vista filosófico, o cristianismo fornece o conceito de sumo Bem

que

satisfaz

à

“mais

rigorosa

exigência

da

razão

prática”

(strengste

Foderung der praktischen Vernunft)413. A lei moral é santa e exige a santidade moral, sendo que o homem consegue alcançar apenas a perfeição moral da virtude – disposição conforme a lei por respeito à mesma, por conseguinte consciência de uma propensão contínua a transgredir esta mediante adição de outros motivos à observância da lei. Em relação à santidade que a lei cristã exige, resta ao ser finito um progresso ao infinito, legitimando a esperança de uma duração infinita (retomando o postulado da imortalidade da alma)

414

.

Criaturas nunca podem atingir a santidade, pois nunca são totalmente livres de desejos e de inclinações.

409

KANT, I. KpV A, 229s. KANT, I. KpV A, 230n. 411 KANT, I. KpV A, 230s. Cf. ASSUMPÇÃO, G. “The Highest Good as the Kingdom of God: the role of Christianity in the Critique of Practical Reason.” Trilhas Filosóficas – Revista Acadêmica de Filosofia, v. 6, n. 1 (2013): pp. 47-60. 412 KANT, I. KpV A, 229n. 413 KANT, I. KpV A, 231. 414 KANT, I. KpV A, 229ss. 410

116

Kant empreende uma interessante distinção entre progresso ao infinito (Progressus ins Unendliche) e progresso infinito (Unendliche Progressus). O primeiro caso é um progresso do menor ao maior grau de perfeição moral, é o único tipo de progresso moral possível ao ser racional finito415. Já o segundo caso, o progresso infinito, não é próprio de seres racionais finitos, pois não se dá no tempo. A santidade apenas está contida nesse tipo de progresso, não sendo encontrável pelas criaturas (Geschöpfe)

416

. Ao ser racional finito, cabe

esperar (hoffen) uma continuação desse avanço: o ser racional finito é um ser de esperança, ecoando a terceira pergunta kantiana da Doutrina do Método da primeira Crítica. Para Kant, o cristianismo é a primeira doutrina a diferenciar os princípios da moralidade e da felicidade, reconhecendo a incapacidade do homem e a carência a qual conduz à necessidade de Deus como capaz de unir os âmbitos da natureza e da moral, bem como a limitação do ser humano em se adequar à lei moral, a qual se traduz, na linguagem kantiana, no postulado da imortalidade da alma417. O postulado da existência de Deus, já abordado nos capítulos anteriores, pode ser entendido, segundo Kant, como sumo Bem originário, ou seja, como ideia de um sumo Bem autossubsistente, condição sob a qual o sumo Bem derivado (vínculo necessário no qual a moralidade conduz à felicidade) pode se realizar418. Ao falar de Deus no sumo Bem, não estou implicando uma realidade ontológica, mas expressando minha intenção de buscar o sumo Bem e minha convicção do que pode ser buscado419. Beiser defende pontos importantes em relação ao sumo Bem, em Kant, com os quais nossa interpretação converge: o sumo Bem em Kant não é uma concepção secular; é impossível separar o sumo Bem kantiano dos postulados da razão prática pura e das crenças 415

KANT, I. KpV A, 221s. KANT, I. KpV A, 222. 417 DÜSING, K. “Das Problem des höchsten Gutes in Kants praktischer Philosophie”, pp. 12-13. 418 REARDON, B, Kant as a Philosophical Theologian, p. 56. 419 REARDON, B, Kant as a Philosophical Theologian, p. 62. 416

117

em Deus e na imortalidade da alma420. Yovel, assim como Beiser, mostra a proximidade da ideia de sumo Bem em Kant como herança de problemas já levantados por Agostinho e por Leibniz421. Sobre isso, afirma Caffarena:

(...) Kant não desligou sua ética autônoma da religião. Invertendo o que era a ordem habitual na reflexão teológica cristã, pensou reencontrar Deus precisamente a partir do projeto ético autônomo da humanidade (o ideal do ‘sumo Bem’, entendido como conexão máxima entre a atitude ética e a realização das aspirações a que chamamos ‘felicidade’). É o Deus da tradição bíblico-cristã, afirmado pela ‘fé racional’, como ‘postulado da razão prática pura’, em força da necessidade de não dar por irrealizável o dito ideal. É o ‘sumo Bem originário’, arquétipo e garantia do projeto do ‘sumo Bem derivado’422.

Concordamos em grande parte com o que Caffarena afirma. De fato, o Deus que Kant apresenta na Kritik der praktischen Vernunft é um Deus talhado segundo as medidas do cristianismo, isto é, trata-se de um Deus dotado de vontade e de inteligência, autor da natureza, onisciente e onibelevolente423, e distribuidor (Austeiler)424 da felicidade aos justos. Apontamos, todavia, dois elementos muito caros à tradição bíblico-cristã que não se encontram presentes na KrV e na KpV: (1) a questão do pecado, que é fundamental para se pensar a relação do ser humano com Deus. Temáticas como o perdão e o pecado são clássicas na história do cristianismo, mesmo se (aliás, principalmente se) tomarmos o cristianismo como doutrina moral (christliche Moral)425, tal como Kant propõe. A outra questão (2) é a ausência, nas duas Críticas, do papel de Jesus como mediador entre humano e Deus na 420

BEISER, F. C. “Moral faith and the highest good”, p. 590. YOVEL, Y. Kant and the Philosophy of History, pp. 49-50; 76-79. 422 CAFFARENA, J. G. “Afinidades de la Filosofía Práctica Kantiana con la Tradición Cristiana”, p. 474. “(...) Kant no desligó su ética autónoma de la religión. Invirtiendo el que era el orden habitual en la reflexión teológica cristiana, pensó reencontrar a Dios precisamente desde el proyecto ético autónomo de la humanidad (el ideal del ‘supremo bien’, entendido como conjunción máxima posible de la actitud ética con esa realización de las aspiraciones que llamamos ‘felicidad’). Es el Dios de la tradición bíblicocristiana, afirmado por ‘fe racional’, como ‘postulado de la razón práctica’, en fuerza de la necesidad de no dar por irrealizable dicho ideal. Es el ‘Supremo Bien Originario’, arquetipo y garante del proyecto del ‘bien supremo derivado’ ”. 423 KANT, I. KpV A 253. 424 KANT, I. KpV A 231. 425 KANT, I. KpV A, 230n. 421

118

fundação do Reino de Deus426. Provavelmente esses dois elementos não se fizeram presentes por não serem a prioridade do filósofo nos textos em questão. Nesse sentido, Georg Sans mostra que na argumentação kantiana sobre sumo Bem, está em jogo uma retomada do problema da Teodicéia: a história do debate sobre o mal no mundo mostra que há muitos exemplos que levam a duvidar não só da misericórdia, mas também da justiça divina. Como admitir a existência de Deus é o bastante para assegurar harmonia entre virtude e felicidade427? A ideia de perfeição moral poderia ter sido levada, para Sans, rumo a uma reflexão aprofundada segundo a qual o homem é sujeito ao perdão devido à existência de um Deus misericordioso428. Habermas menciona o criticismo como uma reflexão transcendental pós-metafísica e pós-cristã, ainda que isso não signifique ‘não-cristã’. A religião, em Kant, fornece uma promessa que a lei moral, por si só, não fornece, pois isso a privaria de sua incondicionalidade. O cristianismo compensa a falta dessa promessa, da parte da lei moral, fornecendo a representação de um mundo no qual os seres racionais se devotam à lei moral e ao sumo Bem como um Reino de Deus429. A moral cristã não é heterônoma, mas autônoma, pois o móbil para se seguir a lei moral reside apenas na representação do dever430. A moral cristã tira a confiança de ser possível a felicidade plena nessa vida, mas a reergue na forma de esperança de que, se

426

ASSUMPÇÃO, G. “The Highest Good as the Kingdom of God: the role of Christianity in the Critique of Practical Reason.”, p. 56. 427 SANS, G. “Immortalità dell’anima e sommo bene: Sulla metafisica pratica di Immanuel Kant”, La Civiltà Cattolica 163, III (2012): 271-280. 428 SANS, G. “Immortalità dell’anima e sommo bene: Sulla metafisica pratica di Immanuel Kant”, p.279. 429 HABERMAS, J. “Die Grenze zwischen Glauben und Wissen. Zur Wirkungsgeschichte und aktuellen Bedeutung von Kants Religionsphilosophie”, pp. 461-465. Cf. KANT, I. KpV A 258s. 430 CHRISTENTUM, In EISLER, Rudolf. Kant-Lexikon, p. 79.

119

agirmos tão bem quanto estiver em nosso alcance, o que não está em nosso alcance será compensado de outra forma, ainda que não saibamos como431.

O valor de uma disposição moral plenamente adequada à lei moral é infinito, pois toda a felicidade possível, no juízo de um ser sábio e onipotente distribuidor da mesma não possui outra limitação, senão a falta de adequação de seres racionais a seu dever. Mas a lei moral, por si só, não promete nenhuma felicidade; pois esta, segundo conceitos de uma ordem da natureza em geral, não está necessariamente vinculada com o cumprimento dessa lei. A doutrina moral cristã complementa essa falta (do segundo elemento indispensável do sumo Bem) pela apresentação do mundo, no qual seres racionais se dedicam, com toda a alma, à lei moral, como o Reino de Deus no qual natureza e moralidade chegam a uma harmonia por si mesmo estranha a cada um dos dois, por meio de um Autor santo, que torna possível o sumo Bem derivado 432.

Esse trecho consegue resumir pontos centrais da argumentação kantiana da Dialética, particularmente a relação entre sumo Bem originário (Deus como Autor do mundo moral) e sumo Bem derivado. É interessante notar que, aqui, Kant não usa mais a terminologia leibniziana de Reino da Graça, como fizera na primeira Crítica, mas apenas a linguagem cristã de Reino de Deus. A doutrina cristã complementa a falta do segundo elemento do sumo Bem (a felicidade) pela apresentação do mundo no qual os seres racionais se dedicam inteiramente à lei moral433. Sendo o progredir ao merecimento da felicidade uma adequação à lei moral rumo ao infinito, a felicidade não pode ser alcançada neste mundo (no que tange à nossa capacidade), tornando-se objeto de esperança. A beatitude (Seeligkeit) só é alcançável em outra vida, resgatando o postulado da imortalidade da alma. Apesar disso, o princípio moral

431

KANT, I. KpV A, 230n. KANT, I. KpV A, 231s. “Der Werth einer dem moralischen Gesetze völlig angemessenen Gesinnung ist unendlich: weil alle vermögenden Austheilers derselben keine andere Einschränkungen hat, als den Mangel der Angemessenheit venünftiger Wesen an ihrer Pflicht. Aber das moralische Gesetz für sich verheisst doch keine Glückseligkeit; denn diese ist nach Begriffen von eine Naturordnung überhaupt mit der Befolgung desselben nicht nothwendig verbunden. Die christliche Sittenlehre ergänzt nun diesen Mangel (des zweiten untentbehrlichen Bestandstücks des höchsten Guts) durch die Darstellung der Welt, darin vernünftige Wesen sich dem sittlichen Geetze von ganzer Seele weihen, als eines Reich Gottes, in welchem Natur und Sitten in eine jede von beiden für sich selbst fremde Harmonie durch einen heiligen Urheber kommen, der das abgeleitete höchste Gut möglich macht”. 433 KANT, I. KpV A, 232. 432

120

cristão não é heterônomo (teológico), mas autonomia da razão prática pura por si mesma, por não tomar o conhecimento de Deus e de suas leis o fundamento determinante da vontade, mas somente de acesso ao sumo Bem sob a condição do cumprimento da lei moral434. A preocupação de Kant com o sumo Bem, Habermas aponta, conflui na filosofia da religião, conferindo uso prático da razão um sentido para além de uma mera ética do dever, mediante os postulados da existência de Deus e da imortalidade da alma, e também da garantia de felicidade na qual estes auxiliam435. A lei moral acaba conduzindo, mediante o conceito de sumo Bem como objeto e fim último da razão prática pura, à religião (pela qual Kant entende o conhecimento dos deveres como mandamentos divinos – não sanções, mas leis de cada vontade livre por si mesma). Essa redução kantiana da religião à esfera moral é um tema importante na filosofia alemã e será criticado por filósofos como Scheleiermacher e Feuerbach: a religião que Kant propõe estaria desprovida da afetividade, dos rituais, do que faz o humano ser propriamente religioso, na perspectiva desses pensadores436. Não obstante as críticas, a moral kantiana não é doutrina de como nos fazemos felizes, mas de como devemos nos tornar dignos dela, e só se a religião é acrescida a ela podemos esperar participar da felicidade proporcionalmente a nosso merecimento da mesma 437. Nas palavras do filósofo:

Dessa forma, a lei moral conduz, por meio do conceito de sumo Bem como objeto e fim último da razão prática pura, à religião, isto é, ao conhecimento de todos os deveres como mandamentos divinos, não 434

KANT, I. KpV A, 232. HABERMAS, J. “Die Grenze zwischen Glauben und Wissen. Zur Wirkungsgeschichte und aktuellen Bedeutung von Kants Religionsphilosophie”, p. 465. 436 Cf. ALFARO, J. “De La cuestion del hombre a La cuestion de Dios: Kant, Feuerbach, Heidegger”. Gregorianum, pp. 211-272; ASSUMPÇÃO, G. “Sobre a Fé: Confrontando Kant e Feuerbach”, pp.88-96. 435

437

KANT, I. KpV A, 234.

121

como sanções, isto é, decretos arbitrários, por si próprios contingentes, de uma vontade estranha, mas sim como leis essenciais de cada vontade livre por si mesma que, todavia, tem de ser considerada mandamentos do Ser supremo, pois somente de uma vontade moralmente perfeita (santa e benévola) e, simultaneamente, onipotente, podemos esperar o sumo Bem, cujo ato de por como objeto de nosso esforço é tornado em dever pela lei moral e, portanto, só podemos esperar [o sumo Bem] por meio da concordância com essa vontade438.

Nessa passagem da moral à religião, a fé racional pura que trabalhamos no capítulo I tem um papel fundamental: o acesso às ideias que a filosofia crítica interdita na via teórica (imortalidade da alma, existência de Deus) se desdobra em uma nova forma de tomar por verdadeiro (Fürwahrhalten) que Kant chama fé, e fé racional pura, por ter sua origem na razão pura (em seu uso prático). A fé racional pura é a garantia subjetiva de que, sob um ponto de vista moral, é legítimo assumir a existência de Deus e a imortalidade da alma como elementos de apoio na produção do sumo Bem que a lei moral exige. Para Kant, a fé não é algo que parte da afetividade pura e simplesmente, mas resulta de uma incompatibilidade constitutiva do humano entre suas esferas sensível e inteligível. Vejamos (rumo à conclusão) a possibilidade de uma “antropologia moral” kantiana, com base nos problemas abordados em nossa dissertação.

III.4. Possibilidade de uma “antropologia moral” kantiana

Os postulados trazem à tona a abordagem “minimalista” de Kant em relação à religião, de modo que, para o filósofo, questões legítimas para a religião são apenas aquelas que

438

KANT, I. KpV A 233. “Auf solche Weise führt das moralische Gesetz durch den Begriff des höchsten Guts, als das Objekt und den Endzweck der reinen praktischen Vernunft, zur Religion, d. i., zur Erkenntnis aller Pflichten als gotlicher Gebote, nicht als Sanktionen, d. i., willkürliche für sich selbst zufällige Verordnungen, eines fremden Willens, sondern als Wesentlicher Gesetze eines freien Willens für sich selbst, die aber dennoch als Gebote des höchsten Wesens angesehen werden müssen, weil wir nur von einen moralisch – vollkommenen (heiligen und gütigen) zugleich auch allgewaltigen Willens das höchsten Gut, welches zum Gegenstande unseres Bestrebung zu setzen uns das moralische Gesetz zur Pflicht macht, und also durch Übereinstimmung mit diesem Willen dazu zu gelangen hoffen können”.

122

concernem à razão prática pura. Não obstante, há elementos antropológicos fecundos nessa passagem da moral para a religião. Apontaremos quatro elementos que consideramos dignos de nota:

III.4.1. O caráter dual e os limites do ser humano

Em relação ao postulado da liberdade, por exemplo, trabalhado nos dois capítulos anteriores, temos uma questão antropológica, a distinção kantiana entre pessoa (Person) e personalidade (Persönlichkeit). Personalidade é:

(...) a liberdade e independência do mecanismo de toda a natureza, considerada ao mesmo tempo como uma faculdade de um ser, o qual está submetido a leis particulares, a saber, leis práticas puras dadas por sua própria razão; portanto a pessoa, como pertencente ao mundo sensível, está submetida a sua própria personalidade, na medida em que pertence, simultaneamente, ao mundo inteligível 439.

Essa observação kantiana desdobra algo que já se pode inferir de seus escritos morais (e também de seções ligadas a questões morais na KrV): o caráter dual do ser racional finito. Apenas uma natureza sensível não leva ao sumo Bem, e apenas uma natureza inteligível não efetua o sumo Bem. Está em jogo, nessa discussão kantiana, tanto uma expansão da natureza humana quanto da natureza em geral (Kant chega a mencionar uma natureza suprassensível – übersinnliche Natur440).

439

KANT, I. KpV A 155. “(...) die Freiheit und Unabhängigkeit von dem Mechanismus der ganzen Natur; doch zugleich als ein Vermögen eines Wesens betrachtet, welchen eigentümlichen, nämlich von seiner eigenen Vernunft gegebenen reinen praktischen Gesetzen; die Person also, als zur Sinnenwelt gehörig, ihrer eigenen Persönlichkeit unterworfen ist, so fern sie zugleich zur inteligibelen Welt gehört (...)”. 440 KANT, I. KpV A 76.

123

A finitude, ou – em linguagem mais kantiana – os limites do ser racional finito – não se revelam apenas no âmbito teórico da primeira Crítica, mas também no âmbito prático, já aludido na mesma e abordado de forma mais sistemática na segunda Crítica: o ser racional finito, como o ser humano, não consegue produzir o sumo Bem apenas com seus esforços. Kröner afirma que o ser humano é um organismo biológico desenvolvido, mas é algo mais que um animal não-humano. A criatura humana é cidadã do mundo suprassensível, capaz de usar o poder da sua razão prática para estabelecer para si mesmo e para suas ações um valor que transcende o tempo e o espaço, colocando-o em contato com o suprassensível. Tal relação permeia o pensamento de Kant e o faz assumir um fundamento suprassensível da natureza e da moralidade, postulando um Autor de ambos os reinos441.

III.4.2. Uma nova relação do humano com Deus e com a religião: a fé racional pura

Outro aspecto central nas considerações kantianas sobre o sumo Bem e a fé racional pura é uma nova forma de se pensar Deus. Não se trata de pensar Deus como fundamento da realidade, como causa primeira ou como existente necessário, mas como objeto de crença moral. Não se prova a existência de Deus teoricamente, contentando-se com uma prova moral de que Deus é um elemento que proporciona que a moralidade possa ser vinculada, de forma necessária, com a felicidade. Hösle afirma:

(... ) Embora Kant compartilhe com Hume a glória de ter destruído a crescentemente embaraçosa físicoteologia do século XVIII, ele e só ele oferece um novo caminho para Deus através de sua nova forma de ético-teologia. Ela pode ser interpretada como o último ponto do desenvolvimento que começou com a

441

KRÖNER, R. Kant’s Weltanschauung, p. 32s.

124

idade eixo: só a moralidade pode conduzir a Deus – e, portanto, ela mesma não pode estar baseada na religião442.

O projeto kantiano de uma moral que, em seus fundamentos, prescinda de considerações sobre a natureza humana443 parece encontrar limites no fato de que Kant insere, em sua filosofia prática, questões típicas da antropologia cristã: a lei moral, a ideia de ser humano como fim em si mesmo, o valor da pessoa. No que tange ao objeto da razão prática pura, surgem ainda mais temas cristãos: a temática da justiça, a ideia de limitações e necessidade de auxílio divino (entendido aqui como a possibilidade da felicidade ser atribuída, por Deus, àqueles que agem corretamente), a Ideia de Deus como criador da natureza e inteligência suprema. Haveria aí um elemento eurocêntrico o qual comprometeria a universalidade da razão?444. Ou seria a própria consciência cristã que levaria Kant a propor uma ética universalista? Parece que, por mais que Kant tente uma fundamentação a priori da moral, a linguagem e imaginário cristão acabaram penetrando em elementos de sua filosofia prática. Não obstante, é digno de nota que Kant, mesmo influenciado pelo cristianismo, reconfigura a relação entre moral e religião, invertendo o vetor: a moral que conduz à religião, e não a via oposta445, sendo a religião o reconhecimento de deveres como mandamentos de um ser divino – não impedimentos à vontade, mas leis que vontades livres atribuem a si mesmas. Tanto a religião quanto a moral estarão não circunscritas ao âmbito do que é ditado pela tradição, mas sim vinculadas às demandas da razão prática pura.

442

HÖSLE, V. “Pode-se fazer um relato plausível da história da ética? Uma alternativa a After Virtue, de MacIntyre”, p. 372. 443 KANT, I. GMS, 389. 444 BEACH, E. A. “The Postulate of Immortality in Kant: To What Extent Is It Culturally Conditioned?” Philosophy East and West, Vol. 58, No. 4 (2008): 492-523. 445 ASSUMPÇÃO, G. “O sumo Bem de Kant e o Reino da Graça de Leibniz: Gênese e divergências em torno a um conceito”, p. 11; ASSUMPÇÃO, G. “Sobre a Fé: Confrontando Kant e Feuerbach”, p. 94. Cf. FISCHER, N. “Fé e razão: sua relação em Agostinho, Mestre Eckhart e Emanuel Kant”. Síntese – Revista de Filosofia, v. 40, n. 128 (2013): 349-382.

125

Independentemente dessa complexa relação entre a linguagem que Kant utiliza e a sua proposta de uma moral fundamentada a priori, percebemos que Kant também reconfigura a ideia de crença, ou de fé, defendendo não só que é compatível com a razão, mas que é imanente à razão, não a transcendendo, e diz respeito tanto ao âmbito prático da razão (fé racional pura) quanto ao âmbito teórico, ainda que de forma mais humilde (fé doutrinal, crença/fé com fins heurísticos e fio condutor na investigação da natureza). A fé racional pura se vincula à pergunta kantiana: “o que me é permitido esperar?”, sendo o sumo Bem o problema do sentido da existência humana e de sua realização no mundo. As limitações do ser racional finito o conduzem a esperar pela realização do sumo Bem – não só esperar passivamente, mas promovê-lo, tentar produzi-lo –, para o qual os postulados se fazem necessários. Essa esperança, portanto, é fruto da incompletude humana e da sua incapacidade constitutiva de efetuar, necessariamente, o vínculo entre moralidade e felicidade.

III.4.3. O humano: um ser de desejo e de obrigação

Kant, ao contrário do que comumente se pensa, conferiu um papel importante à felicidade, e a reconheceu como uma aspiração dos seres racionais finitos. A faculdade inferior de apetição, como dito anteriormente, diz respeito às inclinações humanas e à busca da felicidade própria, ao passo que a faculdade superior de apetição trata da busca de cumprimento do dever e da integração da moralidade com a felicidade. Nenhuma faculdade exclui a outra, em um ser racional finito. O ser humano, para Kant, é um ser de responsabilidades, de obrigação, mas também é um ser que deseja ser feliz, que busca tanto a realização moral quanto a satisfação de desejos. 126

Dessa tensão, surge a dificuldade de se situar entre ambas as esferas da atividade prática. O sumo Bem é uma tentativa de se integrar essas duas esferas, a obrigação e o desejo, a moralidade e a felicidade. A “ponte” que o filósofo de Königsberg encontrou para tentar integrar essas esferas distintas foram os postulados da razão prática pura. Independente do sucesso dessa investida kantiana, seu esforço de reconhecer as limitações dos seres racionais finitos é digna de nota. O cristianismo, como observamos, seria a doutrina moral que Kant mais considera compatível com sua ideia de sumo Bem, uma vez que é mais humilde em relação à natureza humana, reconhece esse conflito entre obrigação e desejo inerente ao ser humano, e admite a necessidade de algo além do humano para auxilia-lo a produzir o sumo Bem, de forma a sanar esse conflito. As escolas helenistas teriam sido acometidas de uma espécie de “hybris da razão prática”, escamoteando esse conflito e superestimando a capacidade humana (como os estóicos, tal como Kant os interpreta), ou reduzindo esse conflito a uma administração dos prazeres, subestimando a capacidade humana (tal como os epicuristas, na visão de Kant). O raciocínio kantiano em jogo na Dialética da KpV nos parece ser o seguinte: o estóico teria equiparado o humano a um ser racional plenamente inteligível, como Deus (na visão de Kant). O epicurista, por sua vez, teria considerado o ser humano como um ser sensível, o que seria mais próximo de um animal, para o filósofo de Königsberg. Esse raciocínio parece apontar para uma questão fecunda em termos antropológicos: o sumo Bem é um objeto que só seres racionais finitos buscam. Seres meramente sensíveis se limitam ao âmbito das apetições e do imediato, do “agora”. Já os seres plenamente inteligíveis não se preocupam com os apetites, realizam a moralidade espontaneamente e sem esforço, uma vez que não há conflito com as inclinações e com as apetições. Apenas os seres racionais finitos, como os seres humanos, tentam vincular o agora ao além, o apetite àquilo que se quer 127

– e se deve – realizar, projetando-se para uma ‘vida futura’ (künftiges Leben), termo que Kant utiliza já na KrV.

128

CONCLUSÃO

Nossa conclusão retoma o caminho percorrido, apontando para possibilidades futuras. Retomando o texto, há três pontos: (a) o valor heurístico do modo como Kant propõe a relação entre moralidade e felicidade; (b) o deslocamento de questões metafísicas teóricas para o âmbito da crença moral e da dimensão prática da metafísica; (c) a possibilidade de reflexão sobre os pressupostos antropológicos envolvidos na argumentação kantiana. No que diz respeito ao ponto (a), observamos que a discussão sobre a necessidade – e as dificuldades – de se promover uma ligação entre moralidade e felicidade revive, no debate moderno, a questão dos antigos: “como é possível a vida boa”? Mais do que mero cálculo de meios para a felicidade própria, a moral kantiana é uma pergunta pelos fundamentos do agir moralmente bom. Todavia, não se esgota nessa pergunta, ao nos direcionar para a investigação sobre a possibilidade de seres racionais se realizarem num mundo justo – retomando, dentro do contexto moderno, toda uma reflexão filosófica que se nota desde a Antiguidade. Kant tem o mérito de, além de retomar esses temas, buscar (novamente, assim como seus predecessores gregos e de outras culturas) fazer justiça a diferentes dimensões do ser humano: sensibilidade e inteligibilidade; felicidade e moralidade; faculdade de desejo inferior e superior. Influenciado pelo cristianismo, Kant não considerava justo que o indivíduo moralmente virtuoso não pudesse ser feliz. A essa temática clássica, que se encontra em material bíblico como o Livro de Jó, Kant tentou oferecer elucidação filosófica pela argumentação acerca da possibilidade da produção necessária do sumo Bem. Malgrado as criticas ao dualismo kantiano, há de se reconhecer seu esforço de tentar conciliar diferentes

129

aspectos dos seres racionais finitos: pessoa e personalidade; aspectos sensível e inteligível; noumênico e fenomênico; faculdades inferior e superior de apetição. É possível afirmar a dificuldade de se reconhecer a felicidade como atingível se deve ao fato de que Kant foi bem sincero no reconhecimento dos limites do ser humano. Não só dos limites, mas também da necessidade de buscar a felicidade, pelos seres racionais finitos. Isto, por sua vez, chama atenção para uma dimensão importante da vontade na filosofia prática kantiana. Levando em conta esses aspectos, somos a favor de que a moral kantiana deve ser vista não apenas como uma teoria principialista, deontológica, mas também como uma filosofia prática em que a noção de vontade desempenha importante papel – algo que, inclusive, será muito importante na reflexão filosófica posterior, como em Fichte. De todo modo, a importância da felicidade fica nítida para Kant, tendo em mente toda a longa argumentação sobre o sumo Bem e os postulados da razão prática pura: o filósofo de Königsberg refletiu sobre como seria concebível a felicidade para os seres racionais finitos que se façam dignos da mesma. Em relação ao ponto (b) (isto é, o deslocamento de questões metafísicas teóricas para o âmbito da crença moral, ou de uma metafísica prática), por sua vez, podemos ver o esforço de Kant para tentar manter algo no espaço vazio deixado pelo veto à metafísica teórica, e uma alternativa se mostra na doutrina dos postulados da razão prática pura. É digno de nota que o filósofo germânico via que a racionalidade não se limitava às operações do entendimento, mas que também envolvia processos de crença/fé, como a ‘fé racional pura’. Pode-se, para a filosofia crítica, postular a existência de Deus, a imortalidade da alma, e a liberdade no sentido positivo – capacidade que um ser racional possui de autodeterminação da vontade – sem, com isso, incorrer em ilusão transcendental, ou seja, sem 130

violar os princípios da crítica da razão empreendida por Kant na KrV. Pelo contrário, os postulados são justamente uma forma de salvaguardar esses objetos tanto do niilismo quanto de um retorno ao dogmatismo. Deus, alma e liberdade não constituem objetos de saber, Wissen, mas objetos de fé, Glaube, ou ainda, fé racional pura – reiner Vernunftglaube, uma carência inerente à razão pura em seu uso prático. Uma vez deslocados para o âmbito prático por meio da lei moral, esses objetos ligados ao suprassensível encontram o que Kant julga ser sua verdadeira vocação: não se trata de uma resposta a problemas teóricos, mas sim de indicativos de uma abertura do ser racional sensível para a moralidade, para o âmbito prático, bem como para suas maiores realizações possíveis: o exercício da liberdade e a busca da realização do sumo Bem, ou seja, do vínculo necessário no qual a moralidade é causa da felicidade. Essa problemática ainda nos conduz a pensar uma tensão inerente a se pensar os limites da especulação metafísica: seria a fé mais importante que o saber, para Kant? Afinal, é a fé racional pura que lida com as questões mais profundas da existência – pelo menos é o retrato que Kant pinta sobre os temas de Deus, liberdade e vida após a morte. Em relação a (c) (ou seja, a possibilidade de reflexão sobre os pressupostos antropológicos em jogo na argumentação de Kant), podemos refletir que o ser humano é um ser de liberdade, mas também é um ser de limitações sensíveis, de crenças e de finitude. Limites, todavia, que não são inerentes à razão prática pura – pois ela é da ordem do incondicionado – mas que são inerentes aos seres racionais finitos, como os humanos, precisamente por causa de seu aspecto sensível. Dar-se a própria lei é, sem dúvida, um passo importante. Todavia, na busca da felicidade – que é demanda não só do efeito das inclinações em nós, mas também da própria razão pura – percebe-se que apenas com a autonomia da vontade, não é possível ser um ser 131

humano plenamente realizado. Pensar assim seria demasiado autossuficiente. Há de se levar em conta as condições de se realizar a felicidade no mundo. Os comentadores que se opõem à ideia de sumo Bem em Kant, ou defendem que o sumo Bem deve ser imanente, geralmente não atentam para a relação entre a carência da razão pura no uso prático e a afirmação da fé racional. Quando muito, abordam apenas um desses elementos, perdendo de vista que o cristianismo, para Kant, considera mais a limitação humana que as filosofias pagãs, de modo que o filósofo vê compatibilidade entre sua moral e a visão cristã do sumo Bem. Isso permite indicar a filosofia kantiana como um pensamento de limites, de finitude, tanto na teoria quanto no âmbito da prática, sendo necessário auxílio divino (aqui compreendido como a possibilidade da felicidade ser atribuída, por Deus, o distribuidor (Austeiler), aos justos para que o sumo Bem seja concebido como possível de se realizar. A finitude, ou – em linguagem mais kantiana – os limites do ser racional finito não se revelam apenas no âmbito teórico da primeira Crítica, mas também no âmbito prático, já aludido na mesma e abordado de forma mais sistemática na segunda Crítica: o ser racional finito, como o ser humano, não consegue produzir ou efetuar o sumo Bem apenas com seus esforços. Observamos que, desde a primeira Crítica, Kant aponta para a necessidade de elementos de apoio para garantir a possibilidade do sumo Bem. Uma direção para a qual o texto da KpV parece apontar se apresenta na possível relação entre posturas morais e posturas antropológicas. Principalmente na Dialética, observamos que as escolas pagãs mencionadas por Kant (estóicos e epicuristas) optaram por um conceito de sumo Bem proporcional à antropologia adotada por cada uma delas: o sumo Bem, seja ele a virtude (estóico) ou a prudência (epicurista), seria uma identidade entre moralidade e felicidade, e não um vínculo necessário entre ambos. Essa identidade já seria 132

alcançável nesta vida, não havendo necessidade de nada além do próprio engenho humano para vincular e efetuar moralidade e felicidade. A moral kantiana e o cristianismo, por sua vez, também adotaram um conceito de sumo Bem proporcional à antropologia adotada por eles: o sumo Bem é, neste caso, compreendido como uma síntese a priori entre moralidade como causa e felicidade moralmente condicionada como efeito. Tal síntese não seria alcançável nessa vida, devido à limitação inerente aos seres racionais finitos em, com sua própria capacidade, não só vincular, mas também efetuar moralidade e felicidade de maneira necessária. A síntese só é alcançável em outra vida, mediante um Autor da natureza, Autor este que deve ser inteligente e inteligível. Nesse âmbito, a filosofia moral de Kant permite vislumbrar, ainda que apenas no âmbito da fé racional pura, um horizonte para além da efetividade e da vida presente. Tendo em mente esses três pontos levantados e também aspectos já trabalhados na introdução, podemos pensar em três questões: (1) um estudo posterior poderia levar em conta aspectos que foram deixados de lado devido a fins metodológicos, por exemplo: a éticoteologia (Ethikotheologie) da terceira Crítica, as considerações kantianas sobre o sumo Bem nas Reflexionen, entre outros materiais. A carência da razão pura, tanto no uso prático quanto no uso teórico, parece uma via interessante para se compreender melhor a filosofia kantiana em termos sistemáticos: como Kant compreende a finalidade? A carência da razão pura parece ser um recurso importante para se pensar essa questão. Talvez ela tenha sido suplantada pelo juízo reflexionante da terceira Crítica, mas não deixa de ser um valioso recurso kantiano de investigação nos anos 1780, inclusive para se investigar uma possível gênese do conceito de juízo reflexionante.

133

Outro possível desdobramento (2) desse estudo seria levar em conta a recepção do sumo Bem kantiano e da doutrina dos postulados nos filósofos do idealismo alemão, por exemplo, Fichte, Hegel ou Schelling446. Outra intrigante questão (3) que surge do sumo Bem kantiano, que o autor apresenta em confronto com escolas pagãs da filosofia: será que o sumo Bem, tal como pensado pelo filósofo de Königsberg, só é aceitável como possível pelo cristão ou, pelo menos, pelo teísta? Estaria, por exemplo, um ateu fadado a não conceber felicidade e moralidade como vinculáveis? Seria o ateu, afinal, aquele que não conseguiu desenvolver a racionalidade prática ao extremo, na perspectiva de Kant? São três pontos principais, três desdobramentos apontados e algumas respostas possíveis, mas isso é apenas uma dissertação, apenas o início de uma “tarefa infinita”.

446

Já iniciamos apontamentos nesse sentido, nos seguintes artigos: ASSUMPÇÃO, G. “A recepção em duas vias da teologia em Schelling na década de 1790”. Revista Cogitationes, vol. IV, n. 11 (2013): 4-18; “Liberdade e Ideia: a herança kantiana no jovem Schelling”. Outramargem: Revista de Filosofia, v. 1, Belo Horizonte, 2014, pp. 55-66.

134

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Bibliografia primária:

KANT, I. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten . Stuttgart: Reclam, 2008. ________. Kritik der praktischen Vernunft. Stuttgart: Reclam, 2008. ________. Kritik der reinen Vernunft. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1974.

Bibliografia secundária:

ALFARO, J. “De La cuestion del hombre a La cuestion de Dios: Kant, Feuerbach, Heidegger”. Gregorianum, v. 62, n. 2 (1982): 211-272. ALLISON, H. E. Kant’s theory of freedom. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. ASSUMPÇÃO, G. “A recepção em duas vias da teologia em Schelling na década de 1790”. Revista

Cogitationes,

v.

IV,



11

(2013):

4-18.

Disponível

em:

http://www.cogitationes.org/index.php/article/schelling-recepcao-assumpcao. Acesso em: 14 Jan 2015. ___________. “Liberdade e Ideia: a herança kantiana no jovem Schelling”. Outramargem: Revista

de

Filosofia,

Belo

Horizonte,

v.

1

(2014):

55-66.

Disponível

em:

https://revistaoutramargem.files.wordpress.com/2014/09/7-n1-assumpc3a7c3a3o.pdf. Acesso em: 16 Dez. 2014.

135

___________.“O sumo Bem de Kant e o Reino da Graça de Leibniz: Gênese e divergências em torno a um conceito”. Revista Cogitationes, vol. III, n. 9 (2013): 4-12. Disponível em: http://www.sophiaweb.net/repositorio/cogitationes/cogitationes09/kant-leibnizassumpcao.pdf. Acesso em: 16 Dez. 2014. ___________. “Sobre a Fé: Confrontando Kant e Feuerbach”. Kínesis, Vol. VI, n° 11 (2014) : 88-96.

Disponível

em:

http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/kinesis/article/view/4558. Acesso em: 16 Dez 2014. ___________. “The Highest Good as the Kingdom of God: the role of Christianity in the Critique of Practical Reason.” Trilhas Filosóficas – Revista Acadêmica de Filosofia, v. 6, n. 1 (2013):

47-60.

Disponível

em:

http://periodicos.uern.br/index.php/trilhasfilosoficas/article/view/997. Acesso em: 16 Dez 2014. BEACH, E. A. “The Postulate of Immortality in Kant: To What Extent Is It Culturally Conditioned?” Philosophy East and West, Vol. 58, No. 4 (2008): 492-523. BECK, L. W. A commentary on Kant´s Critique of Practical Reason. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1963. BEISER, F. C. “Moral faith and the highest good”. In. GUYER, P. The Cambridge companion to Kant and modern philosophy. Cambridge; New York: Cambridge University Press, 2006, pp. 588-629. ___________. The Fate of Reason: German Philosophy from Kant to Fichte. Cambridge, Massachussets, London, England: Harvard University Press, 1987.

136

BECKENKAMP, J. O jovem Hegel. Formação de um sistema pós-kantiano. Loyola: São Paulo, 2009. _____________. “O lugar sistemático do conceito de liberdade na filosofia crítica Kantiana.” Kant

e-prints,

série

2,

v.

1,

n.

1

(2006):

31-56.

Disponível

em:

ftp://ftp.cle.unicamp.br/pub/kant_e_prints/Conceito%20de%20liberdade%20na%20filosofia% 20critica%20kantiana.pdf. Acesso em: 15 Jun. 2011. BUENO, V. C. de A. “Kant e o Conceito de Fé Racional”. O que nos faz pensar, n. 19 (2006): 61-76. CAFFARENA, J. G. “Afinidades de la Filosofía Práctica Kantiana con la Tradición Cristiana”. Revista Portuguesa de Filosofia, T. 61, Fasc. 2 (2005): 469-482. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/40314294. Acesso em: 16/01/2013. CASSIRER, E. Kant, Vida y Doctrina. Trad. Wenceslau Roces. México: Fondo de Cultura Económica, 1948. ____________. Rousseau, Kant, Goethe. Two Essays. Trans. J. Gutmann, P. O. Kristeller, J. H. Randall Jr. Princeton: Princeton University Press, 1970. CAYGILL, H. A Kant Dictionary. Hoboken: Blackwell Publishing Ltd., 2000. DÜSING, K. “Das Problem des höchsten Gutes in Kants praktischer Philosophie”. KantStudien, v. 62, (1971): 5-42. ____________. Die Rezeption der Kantischen Postulatenlehre in den frühen philosophischen Entwürfen Schellings und Hegels. In: Das älteste Systemprogramm. Hrsg. von R. Bubner. Bonn 1973 (Hegel-Studien. Beiheft 9). 53-90. EISLER, Rudolf. Kant-Lexikon. France: Bibliothéque de Philosophie: Éditions Gallimard, 1994. 137

ENGSTRÖM, S. “Happiness and the Highest Good in Aristotle and Kant”. In. ENGSTROM, S. WHITING, J. (Eds.) Aristotle, Kant, and the Stoics. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, pp. 102-138. FERRER, S. G. “Die Locke der Antinomie: La sortija de la Antinomia”. Studia Kantiana, n. 13 (2012): 40-55. FICHTE, J. G. “Zweite Einleitung in die Wissenschaftslehre”. In FICHTE, J. G. Fichtes Werke. Hrsg. I. H. Fichte. Band I: Zur theoretischen Philosophie I. Berlin: Walter de Gruyter e Co., 1971, pp. 451-518. FISCHER, N. “Fé e razão: sua relação em Agostinho, Mestre Eckhart e Emanuel Kant”. Síntese – Revista de Filosofia, v. 40, n. 128 (2013): 349-382. Disponível em: http://faje.edu.br/periodicos2/index.php/Sintese/article/view/2867/0. Acesso em: 25 Mai 2015. FORSCHNER, M.: “Immanuel Kant über Vernunftglaube und Handlungsmotivation”. Zeitschrift für philosophische Forschung, Bd. 59, H. 3 (2005): 327-344. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/20484563. Acesso em: 10/01/2013. HABERMAS, J. “Die Grenze zwischen Glauben und Wissen. Zur Wirkungsgeschichte und aktuellen Bedeutung von Kants Religionsphilosophie”. Revue de Métaphysique et de Morale, No. 4, (2004): 460-484. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/40904020. Acesso em: 26/12/2012. HALDAR, H. “Leibniz and German Idealism”. The Philosophical Review, n. 24 v. 26 (1917): 378-394. HAMM, C. “O lugar sistemático do Sumo Bem em Kant”. Studia Kantiana, n. 11, (2011): 41-55. 138

HERRERO, F. X. Religião e história em Kant. Trad. José Ceschin. São Paulo: Loyola, 1991. HÖSLE, V. “Pode-se fazer um relato plausível da história da ética? Uma alternativa a After Virtue, de MacIntyre.” Síntese – Revista de Filosofia, v. 39, n. 125 (2012): 342-378. ____________. “Grandeza e limites da filosofia prática de Kant”. Veritas, v. 48 n. 1 (2003): 99-119. (Trad. Luís M. Sander). ____________. “Why Teleological Principles Are Inevitable for Reason: Natural Theology after Darwin”. In HÖSLE, V. God as Reason: Essays in Philosophical Theology. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2013, pp. 24-49. KEMP SMITH, N. A commentary to Kant’s Critique of Pure Reason. London: MacMillan and Co., 1918. (Reprint). KERN, U. “Natur und Freiheit als die beiden Gegenstände der Philosophie – Eine material Propädeutik in Kants Denken”. In KERN, U. (Hrsg.) Was ist und was sein soll. Natur und Freiheit bei Immanuel Kant. Berlin: Walter de Gruyter, 2007, pp. 93-145. KIENZLE, B. “Macht das Sittengesetz unglücklich?”. In KERN, U. (Hrsg.) Was ist und was sein soll. Natur und Freiheit bei Immanuel Kant. Berlin: Walter de Gruyter, 2007, pp. 267284. KRÖNER, R. Kant’s Weltanschauung. Trans. John Smith. Chicago: The University of Chicago Press, 1956. LEBRUN, G. Kant e o fim da metafísica. Trad. Carlos de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1993. MARIÑA, J. “Making Sense of Kant's Highest Good”. Kant-Studien, v. 91, (2000): 329-355. MARTIN, G. “Kant und Leibniz”. Kant-Studien, v. 47, n. 1-4 (1955): 409-416. 139

MURPHY, J. “The highest good as content for Kant’s ethical formalism. Beck versus Silber”. Kant-Studien, v. 56 n. 1 (1965): 102-110. O’NEILL, O. “Kant on Reason and Religion”. (1997) : 267-308. Disponível em: http://www.tannerlectures.utah.edu/lectures/documents/oneill97.pdf . Acesso em: 03 Mar. 2011. PATON, H. G. The Categorical Imperative: a study in Kant’s moral philosophy. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1971. RALWS, J. “Themes in Kant’s Moral Philosophy”. In _________. Collected Papers. Cambridge: Harvard University Press, 1999, pp. 497-526. REARDON, B, Kant as a Philosophical Theologian. Totowa: Barnes & Noble Books, 1998. ROHDEN, V. “A Crítica da razão prática e o estoicismo.” DoisPontos, n. 2, (2005): 157173. Disponível em: http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/doispontos/article/view/1967/1633. Acesso em: 14 Mar. 2011. SANS, GEORG. “Immortalità dell’anima e sommo bene: Sulla metafisica pratica di Immanuel Kant”. La Civiltà Cattolica, v. 163, n. III (2012): 271-280. SCHELLING, F. W. J. Philosophische Briefe über Dogmatismus und Kriticismus. In. SCHELLING, F. W. J. Friedrich Wilhelm Joseph Schelling Historisch Kritische Ausgabe. Reihe I : Werke 3, pp. 1-112. Stuttgart: Frommann-Holzboog, 1982. SCHNEEWIND, J. B. “Kant and Stoic Ethics”. In. ENGSTROM, S. WHITING, J. (Eds.) Aristotle, Kant, and the Stoics. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, pp. 285-301. SILBER, J. R. “Der Schematismus der praktischen Vernunft”, Kant-Studien, v. 56, n. 3, (1965): pp. 253-273. 140

_______________. “Kant's Conception of the Highest Good as Immanent and Transcendent.” The

Philosophical

Review,

v.

68,

n.

4

(1959):

469-492.

Disponível

em:

http://www.jstor.org/stable/2182492. . Acesso em : 16 Jan. 2011. VIEIRA, L. A. “Filosofia prática e incondicionado”. Síntese – Rev. de Filosofia, v. 26, n. 84 (1999): 13-30. WATKINS, E. “The Antinomy of Practical Reason: reason, the unconditioned and the highest good”. In REATH, A.; TIMMERMAN, J. (eds.) Kant’s Critique of Practical Reason. A critical guide. Cambridge: Cambridge University Press, 2010, pp. 145-167. WIKE, V. Kant’s Antinomies of Reason: Their Origin and their Resolution. Washington, D.C.: University Press of America, 1982. WILSON, C. “The reception of Leibniz in the eighteenth century”. In: JOLLEY, N. The Cambridge Companion to Leibniz. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, pp. 442474. WOOD, A. Kant’s Ethical thought. New York: Cambridge University Press, 1999. _________. Kant’s Moral Religion. Ithaca and London: Cornell University Press. 1970. _________. “Rational theology, moral faith, and religion”. In. GUYER, P. The Cambridge companion to Kant and modern philosophy. Cambridge; New York: Cambridge University Press, 2006, pp. 394-416. YOVEL, Y. Kant and the Philosophy of History. Princeton: Princeton University Press, 1980. ZÖLLER, G. “Credo quia rationale, Kant sobre a Fé Moral”. Studia Kantiana, n. 13 (2012): 56-73.

141

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.