Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector no \"Caderno de Sábado\"

June 28, 2017 | Autor: Bruna Rohleder | Categoria: Linguistics, Jornalismo Cultural
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ENSINO SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING

PROGRAMA DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA (PIC)

BRUNA JACQUELINNE ROHLEDER DE LIMA

Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector no Caderno de Sábado

Porto Alegre 2015

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BRUNA JACQUELINNE ROHLEDER DE LIMA

Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector no Caderno de Sábado

Orientador: Prof. Dra. Joseane Rücker

Porto Alegre 2015

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................06 1.1 JUSTIFICATIVA..................................................................................................06 1.2 PROBLEMA.........................................................................................................09 1.3 HIPÓTESE..........................................................................................................10 2.1 OBJETIVO GERAL..............................................................................................12 2.1.1 OBJETIVOS ESPECÍFICOS...........................................................................13 2.2 MÉTODO.............................................................................................................15

2 A CRÔNICA..........................................................................................................17 2.1 A CRÔNICA E SUAS ORIGENS .................................................................... ....18 2.2

A

CRÔNICA:

"ARROZ

E

FEIJÃO

COM

PICADINHO

E

BATATA"....................................................................................................................21 2.3 PERCURSOS TEXTUAIS DA CRÔNICA E SUAS DIVERSAS FORMAS DE CONTAR HISTÓRIAS................................................................................................24

3 HISTÓRIA DO JORNALISMO CULTURAL NO BRASIL AO RIO GRANDE DO SUL: O CASO DO “CORREIO DO POVO”..............................................................................................33 3.1

CORREIO

DO

POVO:

O

QUERIDINHO

JORNAL

RIO-

GRANDENSE.............................................................................................................34 3.2 UM JORNALISMO PARA “LEVAR A CLUBES E ASSEMBLEIAS, CASAS DE CHÁ E CAFÉS"..........................................................................................................40 3.3 SUPLEMENTO CULTURAL PARA A ELITE GAÚCHA.....................................................46

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4 ESTUDO DE CASO: CLARICE LISPECTOR........................................................51 4.1

TRAJETÓRIA

DA

ESTUDANTE

DE

DIREITO

AO

JORNALISMO

CULTURAL................................................................................................................52 4.2

A

IDENTIDADE

DE

CLARICE

LISPECTOR

NA

LITERATURA

BRASILEIRA......,.......................................................................................................56 4.3 A INTIMIDADE DE LISPECTOR NO SUPLEMENTO DO "CORREIO DO POVO": O CAMINHO DA NARRAÇÃO FIGURATIVA..............................................................60 5 PERSPECTIVAS FEMININAS EM QUATRO CRÔNICAS-CONTO NO “CADERNO DE SÁBADO”............................................................................................................63 5.1 A MULATA...........................................................................................................64 5.2 A "PERSONA" BRAVATA...................................................................................69 5.3 AS ATENIENSES E O GENERAL.......................................................................77 5.4 UMA CRIATURA FEITA PARA AMAR................................................................83

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................89

7 ANEXOS .............................................................................................................. 92

8 REFERÊNCIAS ....................................................................................................130

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RESUMO A pesquisa “Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector no ‘Caderno de Sábado’” visa investigar a forma inventiva de escrita da autora em quatro textos publicados, nesse suplemento, em 1968. A pesquisa, que é qualitativa, exploratória e documental, tem como pergunta central: “como se constrói a expressão da intimidade nas crônicas-conto de Clarice Lispector no ‘Caderno de Sábado’?”. A partir de uma análise, portanto, do recurso estilístico usado pela escritora, a pesquisa discute a importância da sensibilidade, do domínio da língua portuguesa e de um maior conhecimento artístico no trabalho do jornalista cultural do século XXI. Por isso, a investigação identificará os elementos formais do gênero crônica, discutirá as contribuições do suplemento cultural “Caderno de Sábado” no contexto rio-grandense, e problematizará o conceito de autoria na profissão e sua importância no contexto atual. Ainda, a pesquisa discutirá o trabalho desenvolvido por Clarice na imprensa e na literatura, e, por fim, mapeará a marca de autoria, figuras de linguagem, nas crônicas-conto de Clarice que abordam o tema feminino. A investigação, em suma, tem como referências bibliográficas básicas: “Jornalismo Cultural” (2001), de Daniel Piza; “Para Entender o Texto: leitura e redação” (2001), de Platão & Fiorin, “Clarice na Cabeceira” (2012), da Editora Rocco e “Identidades Femininas Múltiplas em Crônicas de Clarice Lispector” (2010), de Alessandra Pajolla.

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1 INTRODUÇÃO 1.1 JUSTIFICATIVA A investigação “Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector no ‘Caderno de Sábado’” tem como tema o jornalismo cultural. Esse trabalho destaca a importância da capacitação desse profissional no domínio dos recursos estilísticos da escrita. Apesar da autora não ser considerada uma jornalista de cultural, ela foi uma escritora que investiu na forma de escrita autoral e inventiva. O jornalista cultural exerce papel relevante na sociedade. A função desse profissional é ser a ponte entre a cultura e o indivíduo. Além de informar o público através de um periódico, de uma revista, através da web, do rádio e da tevê, esse jornalista publica conteúdos que influenciam no crescimento intelectual e na formação de um pensamento crítico do interessado. Entre os textos jornalísticos que o profissional de cultura pode trabalhar, existe um gênero que é influenciado pelo jornalismo e pela literatura que se chama crônica. Essa providencia ao jornalista um espaço de subjetividade, de crítica e de denúncia, onde o profissional tem a liberdade de desenvolver o seu texto em uma linguagem cotidiana e humorística: O gênero crônica tem o intuito de apresentar ao leitor um posicionamento do mundo do jornalista cultural, uma oportunidade que não está presente em outros gêneros jornalísticos, como a reportagem, o boletim e a matéria. Clarice Lispector foi uma escritora renomada no Brasil, a partir de 1940, e, logo que os suplementos culturais surgiram em 1960 no país, a autora se interessou pelo gênero e se tornou, nessa década, uma cronista do “Jornal do Brasil”. Esse periódico paulista fez um acordo com o suplemento cultural gaúcho “Caderno de Sábado” para publicar as crônicas da autora Clarice no jornal. O “Caderno” foi inaugurado em 1967 no Rio Grande do Sul. A pesquisa “Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector no ‘Caderno de Sábado’” tem, portanto, como objeto de estudo, particularmente quatro crônicas-conto da autora Clarice Lispector publicadas no “Caderno de Sábado” no segundo ano de sua inauguração, em 1968. A pergunta norteadora da proposta dessa investigação é: “como se constrói a expressão da intimidade nas crônicas-conto de Clarice Lispector no ‘Caderno de Sábado’?” Para isso, e porque entendemos que a qualidade estilística constrói-se na articulação entre

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tema (conteúdo) e forma (expressão linguística), faremos a exploração das figuras de linguagem associadas à construção do sentidos nos textos selecionados. Essa investigação tornou-se relevante a partir da descoberta da pesquisadora de um suplemento no Rio Grande do Sul cujo conteúdo cultural é vasto e pouco divulgado e do interesse tanto pelo jornalismo cultural quanto literário explorados na disciplina de Linguagem Jornalística II. Esse suplemento, inaugurado há 48 anos, é um objeto de pesquisa de grande potencial para aqueles que se interessam por esses temas. Visto que esse campo jornalístico necessita de trabalhos de pesquisa como essa – pela redução de interesse por parte dos jornalistas pela área cultural –, foi escolhida a autora Clarice Lispector, cuja profissão de cronista ainda é pouco conhecida pela sociedade brasileira. Há muitos trabalhos acadêmicos no país que podem ser encontrados e que problematizam o tema jornalismo cultural. Nesse momento serão destacados o artigo do professor de comunicação, Herom Vargas (2004), no qual ele defende que as produções de notícias culturais seguem a lógica do capitalismo e ressalta a importância da capacitação profissional para oferecer aos leitores “bons textos para pautas e coberturas, bons conhecimentos e boa inteligência” (p. 7). O segundo texto acadêmico destacado são o dos autores Leonardo Cunha, Nísio Teixeira e Luiz Magalhães. Eles associam o trabalho dos cadernos de cultura com a Indústria Cultural na criação de produtos culturais semelhante a produção em série de bens não culturais. Ainda, esses pesquisadores mostram como mudou o conceito de jornalismo cultural a partir da década de 1960. Para contextualizar, o jornalismo cultural, no início do século XXI, no Brasil, está em um período de “esfriamento” profissional. Os textos dessa área se concentram, atualmente, na agenda cultural. Relatar ao leitor, portanto, sobre os próximos eventos não requer um senso crítico apurado e nem uma sensibilidade desse jornalista. Há pouca procura por especialização sobre os temas artísticos e, consequentemente, as pautas dos segundos cadernos não recebem um tratamento criativo e inovador ao interessado. Nessa década, podemos encontrar poucas referências de trabalhos culturais de qualidade, como o suplemento “Ilustríssima”, da “Folha de São Paulo”. No Rio Grande do Sul há também uma demanda por um jornalismo cultural diferenciado.

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Essa investigação, portanto, explora a parte da escrita criativa e autoral através das crônicas-conto de Clarice Lispector publicadas no “Caderno de Sábado” no ano de 1968. A partir da escolha do recurso estilístico, figuras de linguagem, analisaremos de que forma a autora traz, nos textos, uma sensibilidade e um posicionamento sobre as mulheres de 1960. Acreditamos que um jornalista cultural precisa conhecer e ter domínio da língua portuguesa a fim de que ele possa expressar o seu posicionamento de forma clara e inventiva ao leitor. Um escrito que aborda o tema cultural e é sensível, atrativo e que traz informações interessantes, pode ser um caminho para que o jornalismo dessa área possa oferecer um material mais motivador. Como foi escrito anteriormente nesse subcapítulo, a função desse profissional é relevante para aqueles que leem o seu trabalho. Além disso, a pesquisa irá resgatar o trabalho de um suplemento cultural gaúcho que é pouco “reconhecido”, no século XXI, no Estado. Explorar o conteúdo desse periódico significa compreender uma época e analisar os recursos linguísticos que nos interessam para melhorar o nosso trabalho. Por esse motivo, foi escolhido a Clarice Lispector, uma escritora que investiu no domínio de estilos de linguagem. Apesar dela ter pertencido a literatura, e não ao jornalismo, ela é uma fonte de cultura no suplemento “Caderno de Sábado” e que nos interessa para atingir o objetivo dessa investigação. A pesquisa “Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector no ‘Caderno de Sábado’”, em suma, irá explorar a forma inventiva e autoral da escritora no suplemento cultural. A partir da necessidade de um trabalho de qualidade, no século XXI, no jornalismo cultural, a investigação defende que o profissional precisa redigir um texto atrativo e interessante ao leitor. Explorar, então, o recurso estilístico de Clarice, se faz relevante para o interessado.

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1.2 PROBLEMA A investigação tem como pergunta central: “como se constrói a expressão da intimidade nas crônicas-conto de Clarice Lispector no ‘Caderno de Sábado’?”. A partir do recorte de figuras de linguagem nos textos, poderemos entender como o domínio de um recurso estilístico é de suma importância para o jornalista cultural. O profissional, do século XXI, portanto, precisa dominar as estratégias linguísticas. A partir da pergunta central, a pesquisa visa investigar, nos textos clariceanos publicados no suplemento cultural gaúcho, de que forma a escritora investe no seu recurso linguístico. Diante de muitas marcas de autoria que poderíamos estudar, foi escolhido as figuras de linguagem. A partir do recorte dessas palavras no texto e identificar a raiz de sentido delas no dicionário, poderemos, então, discutir como Clarice expõe a sua opinião sobre o feminino no contexto de 1960. Ao apresentar as personagens femininas em cada história, a escritora desenvolve monólogos interiores e descrição de imagens que possibilitam o leitor de conhecer essas mulheres e compreender os questionamentos da autora. Para essa pesquisa, é interessante observar, nas crônicas-conto de Clarice Lispector, como ela usa a marca de autoria, figura de linguagem, para aprofundar a construção dos seus personagens. Esse estilo de escrita oferece, ao interessado, um texto elaborado, atraente e envolvente. Além disso, a autora oferece um tema pertinente. Diante das mudanças no mercado do jornalismo cultural, a investigação defende que o jornalista cultural precisa conhecer e dominar os recursos estilísticos. A fim de poder escrever sobre um objeto cultural, independente da pauta, o profissional deve conhecer sobre os temas artísticos, e saber se expressar para transmitir uma informação clara ao leitor. Por esse motivo, a análise das quatro crônicas-conto escolhidas nessa pesquisa, de Clarice Lispector, é relevante para explorarmos a expressividade da autora e o domínio de seu recurso linguístico. A partir dessa descoberta, o interessado pode escolher a sua própria forma inventiva de escrita. Esse subcapítulo, em suma, mostra que há uma necessidade de domínio de recursos estilísticos para que o trabalho de um jornalista cultural seja diferenciado. Por esse motivo, através da análise de figuras de linguagem nas quatro crônicas-conto

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clariceanas, o leitor poderá compreender como esse conhecimento é importante. O objetivo dessa pesquisa, portanto, é investigar como a forma expressiva é construída nos textos de Clarice Lispector.

1.3 HIPÓTESE A pesquisa “Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector no Caderno de Sábado” tem como hipótese mapear o recurso estilístico, figura de linguagem, a fim de entender de que maneira a autora usou essa marca de autoria para expor a sua opinião. O jornalista cultural precisa, também, oferecer uma forma autoral de escrita sensível e de qualidade ao leitor. A qualidade estilística, a descrição de imagem e a crítica são requisitos para o trabalho de um jornalista cultural. Esse profissional precisar saber se expressar e transmitir, ao leitor, uma mensagem clara e concisa. A partir dos questionamentos de Daniel Piza, no subcapítulo “justificativa”, podemos analisar que o autor compartilha a necessidade do jornalista de desenvolver um texto mais elaborado e interessante, entre outras funções. É de suma importância, portanto, o profissional saber se posicionar no texto e usar uma forma autoral de escrita inventiva para descrever um objeto cultural. O problema da pesquisa “Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector no Caderno de Sábado”, como foi escrito no subcapítulo anterior, visa explorar como é construída a expressão da intimidade nos textos de autora. A palavra “intimidade” refere-se ao posicionamento ou visão de mundo do escritor. A “expressão”, contudo, é a forma de escrita escolhida por ele para transmitir os seus pensamentos e inquietações sobre o assunto que o interessa. Através do uso das figuras de linguagem, que é uma das formas de expressividade da escritora, poderemos compreender que o domínio linguístico para um jornalista cultural é muito importante. A hipótese dessa investigação, portanto, é mapear o recurso estilístico, figuras de linguagem, de Clarice Lispector a fim de entender o seu posicionamento ou a sua forma de ver o mundo no texto. A partir da exploração dessa estratégia de estilo,

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ao final da pesquisa, ficará mais claro ao interessado de que maneiras as figuras podem ser usadas nos textos jornalísticos. “Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector no Caderno de Sábado” tem como hipótese, em suma, mapear as figuras de linguagem da autora para compreender como ela usa esse recurso para se posicionar no texto. Essa investigação possibilita o estudo de textos de Clarice que é referência para o uso da forma de escrita. A partir dessa leitura, o interessado compreenderá como pode usar esses recursos nos textos jornalísticos.

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1.4 OBJETIVO GERAL A investigação “Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector no ‘Caderno de Sábado’” tem como objetivo geral compreender a construção da autoria nas crônicas-conto de Clarice Lispector. Através da identificação das figuras de linguagem no texto, poderemos entender a importância dos recursos estilísticos. O feminino é o tema das quatro crônicas-conto da escritora. A forma autoral da escrita é desenvolvida a partir da intimidade do autor, ou seja, da forma como ele percebe o mundo. Isso se reflete na maneira subjetiva e individual de uma observação da realidade. A partir desse olhar sensível, o jornalista cultural se difere de outros profissionais através de sua expressividade textual. O posicionamento, portanto, do profissional é baseado nas escolhas de recursos linguísticos, como as figuras de linguagem. A pesquisa tem, portanto, como objetivo geral, estudar essa marca autoral nas crônicas-conto de Clarice Lispector para compreender como ela expõe a sua opinião sobre a mulher de 1960. Isso será possível através da escolha de figuras de linguagem como indicadores no texto. Essa será uma estratégia para identificar as palavraschave na história clariceana. Além de compreender quais são as perspectivas femininas que Clarice Lispector relatou nas quatro crônicas-conto, o objetivo é entender a função das figuras de linguagem no texto. A autora usa esse recurso estilístico a partir das intenções que deseja colocar no texto de acordo com os personagens. Desse modo, a mensagem transmitida ao público leitor será mais clara através das histórias. Em suma, compreender a construção da autoria nas crônicas-conto de Clarice Lispector publicadas no “Caderno de Sábado”, em 1968, significa aprender, com a autora, maneiras para nos expressarmos melhor no texto. O jornalista cultural precisa ter domínio da língua portuguesa e aprender a expressar a sua opinião no texto. A clareza das informações da mensagem que o profissional quer transmitir é de suma importância.

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1.4.1

OBJETIVOS ESPECÍFICOS

A partir do objetivo geral dessa investigação, que é estudar a construção da autoria nas crônicas-conto clariceanas publicadas no “Caderno de Sábado”, é preciso explorar assuntos específicos. O primeiro deles é discutir e situar o gênero crônica. Serão discutidos, no capítulo dois dessa pesquisa, que é chamado “A Crônica”, a trajetória, as características e os principais escritores do século XX que aperfeiçoaram a crônica. Esses três destaques serão discutidos, ordenadamente, em três subcapítulos: “A Crônica e Suas Origens”, “A Crônica: Arroz e Feijão com Picadinho e Batata” e “Percursos Textuais da Crônica e Suas Diversas Formas de Contar Histórias”. O capítulo que explora o gênero crônica é relevante para essa investigação porque, além de ser o texto de análise escolhido, ele é o texto mais antigo do país e que define a função do jornalista de ser uma fonte de informação para o leitor. O segundo objetivo específico da pesquisa é problematizar as contribuições do jornalismo cultural, no Rio Grande do Sul, através do “Caderno de Sábado”. Isso será discutido no capítulo três, “História do Jornalismo Cultural no Brasil ao Rio Grande do Sul: O Caso do ‘Correio do Povo’”. O primeiro subcapítulo, “Correio do Povo: O Queridinho Jornal Rio-Grandense”, analisa a trajetória desse suplemento e a sua influência no jornalismo do Estado. O segundo subcapítulo, “Um Jornalismo Para Levar a Clubes e Assembleias, Casas de Chá e Cafés”, investiga a história do jornalismo cultural e a situação atual da profissão no século XXI. O terceiro subcapítulo, por fim, “Suplemento Cultural para a Elite Gaúcha”, concentra-se em mapear as características e a estrutura do periódico “Caderno de Sábado” no contexto do Rio Grande do Sul. O terceiro objetivo é desvelar a marca de autoria, figuras de linguagem, em Clarice Lispector nos textos que abordam o tema a mulher. Essa parte da investigação se inicia no capítulo quatro, “Estudo de Caso: Clarice Lispector”. Antes de investigar o trabalho da autora, é importante analisar os seus escritos publicados na imprensa e nos seus livros. O primeiro subcapítulo, “Trajetória da Estudante de Direito ao Jornalismo Cultural”, traça as funções desenvolvidas por Clarice nos periódicos brasileiros. O segundo subcapítulo, “A Identidade de Clarice Lispector na Literatura”, por outro lado, analisa a autora no contexto da literatura. O terceiro subcapítulo, “A

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Intimidade de Clarice Lispector No Suplemento Cultural do ‘Correio do Povo’: O Caminho da Narração Figurativa”, por fim, prepara o leitor para o próximo capítulo, em que discute sobre a função das figuras de linguagem no texto de Clarice. O último capítulo, “Perspectivas Femininas em Quatro Crônicas-Conto No ‘Caderno de Sábado’”, dá continuidade ao terceiro objetivo específico que é identificar as figuras de linguagem, a marca de autoria escolhida nessa investigação. Os quatro subcapítulos que se dividem no capítulo são, em cada uma delas, analisadas e discutidas como Clarice Lispector explora essas figuras para apresentar, ao leitor, a mulher de 1960. Ordenadamente, os títulos das investigações são: “A Mulata”, “A ‘Persona’ Bravata”, “As Atenienses e o General” e “Uma Criatura Feita para Amar”. Os objetivos específicos dessa pesquisa, em suma, são definir o gênero crônica, problematizar o jornalismo cultural no Rio Grande do Sul e desvelar a marca de autoria, figuras de linguagem, nos quatro textos de Clarice Lispector. Essas crônicas-conto abordam o tema feminino no contexto de 1960. A partir desses capítulos, poderemos descobrir como a autora constrói a expressão da intimidade nas suas obras publicadas no “Caderno de Sábado”.

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1.5 MÉTODO “Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector no Caderno de Sábado” é uma investigação qualitativa, exploratória e documental. As quatro crônicas-conto de Clarice Lispector no “Caderno de Sábado” serão analisadas a partir do uso das figuras de linguagem. As referências bibliográficas dessa pesquisa estão entre artigos científicos e livros de linguística e de jornalismo. A partir da coleta de 34 crônicas do “Caderno de Sábado”, documento disponível no “Museu Hipólito José da Costa”, de Porto Alegre, foi escolhido quatro textos publicados, durante o ano de 1968, por Clarice Lispector. O critério de escolha foi os escritos serem crônicas-conto e, por coincidência, os únicos escritos que se enquadravam nessa categoria tinham, como tema, o feminino. O objetivo dessa investigação é explorar o uso do recurso linguístico, figuras de linguagem, a fim de encontrar, nas quatro crônicas-conto de Clarice, como a autora aplica esse recurso para expor a sua intimidade com o leitor. Em outras palavras, descobriremos de que forma a escritora coloca a sua “voz”, o seu posicionamento, em um texto que é redigido na terceira pessoa do singular. Uma pesquisa, portanto, que associa o conteúdo (feminino) e a forma (figuras de linguagem) das crônicas-conto clariceanas para encontrar o uso da subjetividade de autora, auxiliará o interessado a encontrar sua própria forma inventiva e autoral de escrita. A pesquisa “Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector no Caderno de Sábado” defende, em suma, que o jornalista cultural precisa dominar os recursos linguísticos para levar um trabalho de mais qualidade ao leitor. Para isso, o profissional precisa encontrar a sua própria forma inventiva de escrita. As crônicas-conto de Clarice Lispector são, portanto, objetivo de estudo que possibilita investigar o estilo de escrita de uma autora brasileira renomada do século XX. No segundo capítulo da investigação, “A Crônica”, a fim de explorar as características e as particularidades do gênero, foi escolhido o livro “A Crônica” (2005), de Jorge de Sá. Para traçar, no entanto, a trajetória do desenvolvimento do texto no Brasil e mapear as classificações da crônica, as referências foram a tese, “Crônica: uma intersecção entre o Jornalismo e Literatura” (2009), de Yolanda Maria Muniz Tunizo; e a literatura, “História da imprensa no Brasil” (1999), de Nelson Werneck Sodré.

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No terceiro capítulo da pesquisa, “História do Jornalismo Cultural no Brasil ao Rio Grande do Sul: O Caso do ‘Correio do Povo’”, no entanto, para explorar a história e as características desse periódico, foi escolhido a tese, “Breno Caldas: Poder e declínio de um dos mais influentes jornalistas gaúchos” (2010), de Aline Strelow. A fim de traçar, também, a trajetória do jornalismo cultural, a referência foi o livro, “Jornalismo Cultural” (2013), de Daniel Piza; e o artigo, “Jornalismo Cultural: Pelo encontro da clareza do jornalismo com a densidade e complexidade da cultura”, de Isabelle Anchieta de Melo. O capítulo quatro, “Estudo de Caso: Clarice Lispector”, para explorar os trabalhos da autora na literatura e na imprensa, as referências escolhidas foram “Clarice Lispector na Cabeceira” (2012), da Editora Rocco, que seleciona alguns textos da autora; o livro, “A Educação Pela Noite & Outros Ensaios” (1989), de Antônio Cândido. Além disso, para investigar as funções das figuras de linguagem nos texto de Clarice Lispector, foi consultada a literatura de Luiz Beltrão, Jornalismo Opinativo (1980). No capítulo cinco, “Perspectivas Femininas em Quatro Crônicas-Conto no ‘Caderno de Sábado’” por fim, para analisar e discutir os textos, foram escolhidas as referências: “Elementos da Análise do Discurso” (2001), de José Luiz Fiorin; “Lições de texto: leitura e redação” (2006), de Platão & Fiorin; o Minidicionário Soares Amora (2008); “Casa Grande & Sensala” (1913,) de Gilberto Freyre; a Bíblia da Mulher que Ora (2009), de Stormie Omartian. Ainda, foi consultado, para o desenvolvimento desse capítulo, a tese de Alessandra Dalva de Souza Pajolla, “Identidades Femininas Múltiplas em Crônicas de Clarice Lispector” (2010); e o livro de Nícea Nogueira, “A Crônica de Clarice Lispector em diálogo com sua obra literária” (2007). Em suma, a investigação “Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector no Caderno de Sábado” é qualitativa, exploratória e documental. O trabalho visa explorar o uso das figuras de linguagem nas quatro crônicas-conto de Clarice Lispector. A pesquisa, ainda, defende que o jornalista cultural precisa dominar os recursos estilísticos, por isso, essa investigação é relevante para que o leitor conheça a forma inventiva de escrita da escritora do século XX.

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2 A CRÔNICA

Esse capítulo visa discutir as características do gênero crônica e mapear os autores brasileiros que escrevem esse texto no século XX. Ainda, essa parte da investigação apresentará a escritora Clarice Lispector no contexto da crônica. O primeiro subcapítulo “A Crônica e Suas Origens” concentra-se na trajetória histórica do gênero, no qual apresenta ao leitor duas vertentes de origens do texto e suas características iniciais. “A Crônica: ‘Arroz e Feijão com Picadinho e Batata’” é o segundo subcapítulo que investiga a influência da literatura nesse gênero jornalísticos, e os aspectos que o diferencia das crônicas de outros países. O último subcapítulo, “Percursos Textuais da Crônica e Suas Diversas Formas de Contar Histórias”, por fim, visa explorar as classificações do texto e mapear os principais autores que desenvolveram o gênero no século XX, além de Clarice Lispector.

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2.1 A CRÔNICA E SUAS ORIGENS

O capítulo tem o objetivo de apresentar o gênero crônica quanto as suas características textuais iniciais. Irá ser apresentado as diferenças desse texto com outros gêneros jornalísticos. Além disso, será destacado duas possibilidades de origem da crônica que indicam a necessidade do homem de compartilhar com o outro o cotidiano. A crônica é um gênero textual que tem como características elementos do jornalismo e da literatura. Assim como a notícia e a reportagem, a crônica tem um caráter informativo, mas com algumas particularidades: é um texto posicionado, subjetivo, ficcional e literário. Os cronistas têm liberdade para se expressar através da forma e do estilo textual próprios. Como afirma Melo (1985, p.111 apud TUZINO, 2009, p. 3), a crônica tem “a feição de relato poético do real, situado na fronteira entre a informação de atualidade e a narração literária”. Esse gênero jornalístico dá relevância à sensibilidade, ao lado mais humano ou sensível de fazer notícia. As quatro crônicasconto de Clarice Lispector, os objetos de estudo dessa investigação, são referências de textos subjetivos onde são compartilhados com o leitor do Caderno de Sábado as inquietações da autora. Para entendermos mais sobre o gênero jornalístico em destaque, estudaremos primeiramente a sua história. A crônica origina-se do Humanismo, corrente de pensamento que surge nos séculos XIV e XV. Principalmente neste século, o texto opinativo, com características literárias, é criado a fim de produzir textos para a nobreza, como aconteceu com Pero Vaz de Caminha, um escrivão que fez parte da esquadra portuguesa comandada por Pedro Álvares Cabral, em 1500. Ele descreveu, em uma carta para “el-rei” D. Manuel, a nova terra que Portugal encontrara: o Brasil. Entusiasmado, Caminha recria em texto a paisagem, o povo nativo, os costumes desses homens, os rituais, e conta também sobre a integração dos portugueses com os índios ao longo do tempo em que ficaram naquela terra. Pero Vaz de Caminha estabeleceu o princípio básico da crônica: registrar o circunstancial e descrever imagens. Muitos estudiosos acreditam que esse “cronista-mor” criou a primeira manifestação literária do Brasil: “a história de nossa literatura se inicia, pois, com a circunstância de um descobrimento: oficialmente, a Literatura Brasileira nasceu

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da crônica” (SÁ, 1985, p. 7). Esse gênero, portanto, é o texto mais antigo do país brasileiro, e foi criado com características literárias. Esse acontecimento é uma das referências históricas que indica a origem da crônica na nação. A segunda teoria do surgimento da crônica está nos chamados folhetins, escritos produzidos por intelectuais no século XIX. O primeiro jornal que deu espaço para esses textos foi o “Jornal do Comércio”, inaugurado em 2 de dezembro de 1852 no Rio de Janeiro. Esse criou “A Semana”, uma seção em que se publicava ensaios e críticas literárias influenciados pelo Romantismo. Os principais leitores eram os burgueses, que usavam o folhetim para criticar a cultura aristocrática da época. Esses escritos se localizavam no rodapé da página do jornal e eram publicados, por exemplo, contos, romances, novelas e crônicas. Os jornalistas que escreviam nesse espaço recebiam notoriedade, status, dinheiro e possíveis publicações de seus escritos por editoras. No século XX, no entanto, a história jornalística mudou profundamente. Com o surgimento da segunda fase da Revolução Industrial no final do século XIX e começo do século XX, o estilo de vida da sociedade no mundo se transformou radicalmente. O capitalismo crescia e se popularizava ao mesmo tempo que os jornais da imprensa no Brasil lutavam pela rapidez e difusão de informações. Por isso, os periódicos eram produzidos através da máquina estilo linotipo criada na Alemanha, em 1886, por Ottmar Mergenthaler. A luta pela rapidez e difusão exigiu da imprensa sucessivos inventos, conduzindo à velocidade na impressão, acompanhando o enorme e crescente fluxo de informações, devido ao telégrafo, ao cabo submarino e, depois ao telefone e ao rádio (SODRÉ, 1998, p.3)

A partir do avanço da tecnologia, houve uma maior necessidade da sociedade em receber as notícias mais rapidamente. Além disso, no início do século XX, a economia aumentou. Nesse período, segundo o economista Robert Lucas Júnior, o Brasil apresentava novas oportunidades parar lucrar. Pela primeira vez na história o padrão de vida das pessoas comuns começou a se submeter a um crescimento sustentado...nada remotamente parecido com este comportamento econômico é mencionado por economistas clássicos, até mesmo como uma possibilidade teórica. (JÚNIOR, 2002, p. 109).

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Consequentemente, as empresas jornalísticas, sobretudo os grandes jornais, transformaram-se em “grandes negócios”, deixando de ser propriedade privada com motivações individuais para reconhecer o coletivo, com foco em grupos dominantes e econômicos do Brasil. O objetivo dos meios de comunicação era lucrar e, por isso, a inspiração intimista e pessoal dos jornalistas foi substituída pela objetividade de fazer notícias. Essas se tornaram um “bem de consumo”, e o objetivo não era mais produzir um conteúdo diferente e importante para a sociedade, mas sim escrever conforme a exigência do público. O foco, portanto, era agradar o leitor e então a empresa lucraria mais. Com a modificação da estrutura dos jornais, a crônica foi inovada. Ela normalmente está atrelada a características como brevidade e simplicidade. Mesmo entre notícias objetivas, o texto opinativo fez sucesso em meio aos leitores. Esses se atraíam pelos temas do cotidiano, pela forma descontraída de noticiar e também pela “leveza” que os cronistas construíam o seu texto. Conforme a procura pelas crônicas aumentava, os escritores do início do século XX, como Machado de Assis e José Veríssimo, voltavam após um longo período de recesso. O subcapítulo “A Crônica e Suas Origens”, em suma, concentra-se na história do gênero. Esse é considerado como o texto mais antigo do Brasil, no qual tinha o objetivo de relatar sobre o cotidiano. A crônica tem, portanto, características literárias. A partir da ascensão do capitalismo, a necessidade de maiores e rápidas informações na sociedade contribuíram para o gênero ser breve e simples.

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2.2 A CRÔNICA: “ARROZ E FEIJÃO COM PICADINHO E BATATA”

O subcapítulo “A Crônica: ’Arroz, Feijão com Picadinho e Batata’” discute a função do cronista de um periódico. Além de investigar a estrutura que compõe o texto, essa parte da investigação irá analisar os requisitos que o profissional precisa ter para produzir um trabalho diferencial. A pesquisa irá mapear, também, o que diferencia a crônica de outros países. Ao mesmo tempo em que noticia e informa sobre os acontecimentos e as novidades da semana, o cronista escreve de forma literária, na maioria das vezes, poética. Ele fala de guerras, política, economia, falecimento de entes queridos, manifestações, arte, entre outros temas, mas ele sempre critica ou discute sobre os hábitos da sociedade atual. O cronista tem mais liberdade para escrever por que ele não está preso à objetividade, imparcialidade e linguagem denotativa. Uma das características principais da crônica é a posição explícita do profissional: com um olhar crítico e detalhista, ele vê o mundo e escreve com confiança e autoridade sobre os acontecimentos da semana no seu país de origem, no mundo ou dentro de seu dia a dia, a fim de registrar algo relevante para os seus leitores. Através da crônica o leitor dos jornais impressos pode tomar conhecimento dos fatos, informar-se do que acontece na atualidade e, ao mesmo tempo, receber uma leitura de mundo; um posicionamento explícito de como o autor da crônica compreende e relata tais fatos. A opinião presente no ato de informar, somada às possibilidades criativas próprias da literatura, fazem da crônica uma simbiose entre duas importantes esferas do conhecimento (TUZINO, 2009, p.15).

A crônica se torna única quando é narrada por um jornalista ou escritor que entra na história e associa elementos ficcionais e fantasiosos. O profissional precisa ter talento para olhar além do que o cidadão comum pode enxergar no dia a dia e, com sensibilidade, transpor para o papel o que viu e, no final, expor o seu ponto de vista. Após a reformulação da crônica na segunda fase da Revolução Industrial, ela inicia com um título, que indica o tema que será abordado, a introdução, a argumentação e a conclusão. Esse tipo de texto não é mais considerado como sendo fora do campo jornalístico; pelo contrário, considera-se a ética e a verdade como essência da crônica. A narração de um fato do cotidiano é, na maioria das vezes, escrita na primeira pessoa do singular e deixa a terceira pessoa em segundo plano.

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Mas isso não significa que seja uma regra, pois os quatro objetos de estudo dessa investigação, que serão investigadas no capítulo cinco, são escritas por Clarice Lispector na terceira pessoa do singular. Podemos facilmente confundir o trabalho de um cronista com o de escritores que elaboram contos por causa do semelhante tamanho textual e pela rapidez com que é redigida. Mas o que diferencia o gênero crônica é que o texto tem o objetivo de informar e noticiar, em que é registrado a realidade de forma crítica através da narração humorística ou poética. O conto, no entanto, é produzido para fins literários, em que a ficção prevalece sobre o real. Outra particularidade é que esse texto exige, também, uma construção maior de personagens, do tempo e do espaço. Portanto, na crônica, não há a exigência de explicar onde a história é iniciada e o informações detalhadas dos personagens nela envolvidos. – À pressa de escrever, junta-se a de viver. Os acontecimentos são extremamente rápidos, e o cronista precisa de um ritmo ágil para poder acompanhá-los. Por isso a sintaxe lembra alguma coisa desestruturada, solta, mais próxima da conversa entre dois amigos do que propriamente do texto escrito – (SÁ, 2005, p. 11).

Embora a crônica é originada em terras francesas, o gênero é considerado tipicamente brasileiro e faz parte da literatura da nação. Poucos países do mundo conseguem escrever esse gênero textual semelhante aos profissionais do Brasil. A crônica, nesse país, tem um caráter bem definido e único. Enquanto que no exterior a crônica é relatada de forma cronológica e narrada historicamente, no Brasil, porém, o texto é baseado em fatos e narrada, em sua maioria, de forma poética. A nação que chega perto do estilo brasileiro de redigir é Portugal, porque, com frequência, usa os fatos cotidianos como pretexto para escrever. Os textos internacionais que mais se aproximam da crônica brasileira são “histórias de ação”, na Inglaterra; “texto crítico”, na Alemanha; e “característica”, nos Estados Unidos, que tem um estilo pitoresco de contar histórias (LIMA; TUNIZO, 2009, p. 9, tradução do autor). Por mais que a crônica tenha nascido na França, ela encontrou na América Latina, sobretudo no Brasil, o seu “habitat natural”. Segundo Carlos Heitor Cony (REVISTA CULT. São Paulo: Bregantini, 2006, p.8) “a crônica é um gênero tipicamente brasileiro. Em outros países, ela também existe, mas não tem as nossas características”. A forma poética da escrita, a “conversa miudinha” (TUNIZO, 2009, p.

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10) do cronista, a forma leve e descontraída de narrar uma situação do cotidiano e o humor são algumas das particularidades do texto opinativo brasileiro. Segundo Cândido (1986, p. 6-7), a crônica brasileira tem uma boa história, e até se poderia dizer que, sob vários aspectos, é um gênero do Brasil “pela naturalidade com que se aclimatou aqui e a originalidade com que aqui se desenvolveu”. No entanto, Flora Bender e Ilka Laurito foram mais ilustrativas quando comparam a crônica do Brasil com os países no exterior: Se fossemos comparar o gênero a um prato de comida, não seria, certamente, uma sofisticada iguaria da culinária francesa e sim a comidinha trivial, o arroz e feijão com picadinho e batata. Embora de origem estrangeira, aclimatou-se bem à nossa terra, assim como a cana-de-açúcar e o café. Não se pode dizer que seja um gênero exclusivamente brasileiro, mas tem o nosso sotaque e encontrou, aqui, nos nossos leitores e jornais, seu habitat ideal (BENDER; LAURITO 1999 apud Tunizo 2010, p. 10).

A pesquisa, “A Crônica: ’Arroz, Feijão com Picadinho e Batata’”, em suma, investiga as características desse gênero. A sensibilidade e a observação diferencial do cotidiano são um dos requisitos para que o cronista desenvolva o seu trabalho de forma concisa. Ainda, a crônica no Brasil se difere de outros países, pois ela se concentra na narração leve, humorada e cotidiana.

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2.3 PERCURSOS TEXTUAIS DA CRÔNICA E SUAS DIVERSAS FORMAS DE CONTAR HISTÓRIAS

O subcapítulo irá mostrar como a crônica tem uma rica classificação textual e uma potencialidade de contar histórias. Através dessa parte da investigação, conheceremos cronistas do século XX que influenciaram gerações de leitores dos periódicos. Ainda, entre muitas classificações, a crônica-conto será definida e apresentada, pois tem uma função relevante para essa pesquisa através dos textos clariceanos publicados, no “Caderno de Sábado”, em 1968. A autora Clarice Lispector desenvolveu crônicas na metade do século XX para o “Jornal do Brasil” e o seu trabalho foi reconhecido no Rio Grande do Sul através do suplemento cultural “Caderno de Sábado” do “Correio do Povo”. Ela foi uma escritora como muitos outros que incentivaram o público leitor a se interessarem pelos cadernos culturais. Nesse mesmo século, houve críticos que definiram e interpretaram o gênero crônica, e um deles foi Afrânio Coutinho: A crônica é filha do jornal e da era da máquina, onde tudo acaba tão depressa. Ela não foi feita originalmente para o livro, mas para essa publicação efêmera que se compra num dia e no seguinte é usada para embrulhar um par de sapatos ou forrar o chão de cozinha (COUTINHO, 1989, p. 6).

A teoria de Coutinho e de outros três estudiosos serão discutidos nessa parte da investigação, e esses são Luiz Beltrão, Antônio Cândido e Massaud Moisés, a partir de seus trabalhos reconhecidos pelo mercado da comunicação. Esse subcapítulo irá mostrar as diversas classificações do gênero crônica para mapear, além da crônicaconto que será investigada no capítulo cinco, as múltiplas formas de escrever textos sobre o cotidiano publicados em periódicos. A partir disso, será coletado diversos trechos de crônicas para exemplificar as classificações. Luiz Beltrão1, em sua obra “Jornalismo Opinativo” (1980), classifica a crônica de duas formas: quanto à natureza do tema e ao tratamento dado ao tema. Na primeira teoria, ele reparte a crônica em geral, local e especializada. Quando o texto é 1

Luiz Beltrão marcou a sua geração pela sua engenhosa pesquisa científica sobre os fenômenos da comunicação nas universidades brasileiras. Ele fundou o Instituto de Ciências da Informação, a ICIFORM, que foi o primeiro centro acadêmico nacional de estudos da mídia. Ainda, Beltrão se tornou o primeiro doutor em Comunicação na nação brasileira. Ele criou o livro “Teoria e Pesquisa do Jornalismo”.

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publicado em um espaço fixo no jornal e comenta assuntos variados, é chamado de “crônica geral”. Ainda, o texto com características locais, também chamada “crônica urbana”, dedica-se a temas cotidianos de uma cidade. O escritor que cria, também, a “crônica especializada” tem a função de comentar ou discutir um assunto específico do qual tem conhecimento. A segunda classificação da crônica, que é o tratamento dado ao tema, é, por exemplo, “analítica”, que narra os fatos de forma breve e objetiva; a “sentimental”, que se concentra na sensibilidade do cronista frente ao tema do cotidiano. A satíricohumorística, por fim, tem como objetivo criticar, ironizar, e até mesmo ridicularizar certos acontecimentos ou pessoas a fim de divertir ou alertar o leitor. Todas essas classificações ajudam o interessado a compreender a riqueza de conteúdo e a escrita do gênero crônica. Para exemplificar a classificação do gênero feito por Luiz Beltrão, houve escritores no século XX que redigiam, principalmente, crônicas sentimentais e satíricohumorísticas. Rubem Braga, por exemplo, era um profissional afeito à sensibilidade, a textos que falavam de cenas cotidianas que o intrigavam, como a “crônica sentimental” chamada “O Desaparecido” (1969), que foi publicada no Rio de Janeiro: Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo, pensando em ti, pensando teimosamente, docemente em ti, meu amor (BRAGA, 1969, p. 112).

Braga relata nesse texto a sua solidão e a saudade de “sua amada” em linhas poéticas e detalhistas, que pode ser evidenciado na frase: “pensando em ti, pensando teimosamente, docemente em ti, meu amor” (BRAGA, 1969, P. 112). A repetição de palavras no trecho acima, por exemplo, é uma característica da “crônica sentimental”. O texto satírico-humorístico pode ser exemplificado na crônica, “Em Matéria de Automóveis”, de Fernando Sabino. O autor compara o pouco conhecimento que ele tem do seu carro novo com a mínima experiência das mulheres na “direção”: “– No mais – arremata ele – tirante o giguelê, em matéria de automóveis, estou com as mulheres. Para elas como para mim um carro se compõe apenas de duas coisas: buzina e volante” (SABINO, 1963, p.110).

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Afrânio Coutinho2, outro profissional que estudou o gênero crônica, destaca quatro classificações do gênero quanto a sua natureza ou movimento interno. Elas são a “crônica narrativa”, que é escrita como uma história, semelhante a um conto; a “crônica metafísica”, que tem como tema a filosofia de vida, em que os autores refletem sobre os acontecimentos do cotidiano ou da sociedade que possam ser objetos de discussão. Ainda Coutinho destaca a “crônica-poema em prosa”, que é de conteúdo lírico, ou seja, um texto em que o jornalista exalta suas emoções e seus sentimentos pessoais. Esse profissional se dedica em registrar comentários sobre a natureza ou um fato específico. A “crônica-comentário”, por fim, é um texto que o profissional discute uma situação cotidiana. A história de “Cena Amarga”3, de Paulo Mendes Campos, e “O carro, a jardineira, a calçada”4, de Carlos Drummond de Andrade são exemplos de “crônica narrativa”. A “crônica metafísica” tem como referência o texto “O suor e a lágrima”5, de Carlos Heitor Cony, que faz uma discussão social. Narrada em primeira pessoa, o cronista conta sobre o rápido momento que engraxou os seus sapatos com um profissional no aeroporto. O texto é uma denúncia da diferença de classes sociais. Saí daquela cadeira com um baita sentimento de culpa. Que diabo, meus sapatos não estavam tão sujos assim, por míseros tostões, fizera um filho do povo suar para ganhar seu pão. Olhei meus sapatos e tive vergonha daquele brilho humano, salgado como lágrima (CONY, 2001, p. 319).

A explicação do estudo da classificação do gênero crônica bem como suas exemplificações servem para o leitor conhecer as diversas formas que esse texto subjetivo pode ser desenvolvido por um autor. Além da crônica-conto de Clarice Lispector, os objetos de estudo dessa investigação, é relevante conhecer a forma Afrânio Coutinho elaborou diversos projetos no campo literário, como a seção “Correntes Cruzadas”, no Suplemento Literário “Diário de Notícias”. Ele escreveu, também, a “Teoria e Técnica Literária”, na Faculdade de Filosofia do “Instituto Lafayette”, e fez parte da inauguração da Faculdade de Letras na Universidade do Rio de Janeiro. 2

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A obra narra uma confusa conversa entre o autor e um interlocutor imaginário na beira de um campo ao lado de uma estrada na zona rural de Pernambuco. Campos discute sobre o urbano e o rural, para produzir uma crônica descontraída. 4

Com a narração em terceira pessoa, o jornalista retrata a situação das calçadas de Copacabana, em que se discute o que poderá estar presente lá, se é carro ou os jardins. No texto, existem dois personagens que não foram identificados, mas que representam dois pontos de vista dos cariocas frente à reforma da calçada de Copacabana.

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expressiva da escrita de outros cronistas e seus respectivos temas. Para isso, é necessário apresentar as outras classificações e exemplos que podem esclarecer melhor o seu significado para o interessado. Quanto à “crônica-poema”, o texto “Atenção ao Sábado”, de Clarice Lispector pode ser um exemplo para essa classificação. A autora afirma, em seu texto, que sábado é a rosa da semana, em que a palavra “rosa” pode significar alegria. É possível essa interpretação a partir da pigmentação da cor rosa e o seu significado no contexto da crônica. A escritora destaca diversas comparações cotidianas que acontecem no sábado, como “cortinas ao vento, balde de água no terraço e abelha no quintal” (LISPECTOR, 1992), que são cenas do cotidiano que representam a alegria do sábado. Logo ela relata: “uma picada, o rosto inchado, sangue e mel [...]”. Em uma releitura, as palavras “sangue” e “mel” podem significar a mistura de morte com vida: Acho que sábado é a rosa da semana; sábado de tarde a casa é feita de cortinas ao vento, e alguém despeja um balde de água no terraço; sábado ao vento é a rosa da semana; sábado de manhã, a abelha no quintal, e o vento: uma picada, o rosto inchado, sangue e mel, aguilhão em mim perdido: outras abelhas farejarão e no outro sábado de manhã vou ver se o quintal vai estar cheio de abelhas (LISPECTOR, 1992).

Clarice Lispector é a autora escolhida nessa investigação cuja análise de quatro textos será feito no capítulo cinco. A forma textual da autora, ou seja, o estilo de escrita que ela escolhe desenvolver em suas crônicas são considerados referência para um jornalista cultural. É necessário saber se expressar, e o trecho acima de “Atenção ao Sábado” destaca as figuras de linguagem que trazem um significado além do sentido original, como “sangue” e “mel”. A construção das orações e a seleção das palavras, nesse caso, contribuem para dar a crônica uma visão poética, como requer a classificação. Outro caso de “crônica-poema” está na obra de Sérgio Porto chamada “A casa demolida”6. Como o próprio título mostra, o cronista se depara com um objeto pessoal que fora abandonado há muitos anos pela sua família, e pelo qual viveu até os vinte e cinco anos de idade. O cronista encontra fotos antigas do imóvel mobilado, e isso provoca uma nostalgia e, ao mesmo tempo, uma emoção em ter visto aquelas “Nas paredes, além dos pratos chineses – orgulho do velho – a indefectível ‘Ceia do Senhor’, em reprodução pequena e discreta, e um quadro de autor desconhecido. Tão desconhecido que sua obra desde o dia da mudança está enrolada num lençol velho, guardada num armário, túmulo do pintor desconhecido” (PORTO,1963, p. 09). 6

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fotografias. Ao longo da “crônica-poema”, o autor escreve quatro parágrafos dedicados a um lugar da casa que foi retratado através da descrição de imagens. No final do texto, Porto confessa que nunca esquecerá daquela casa na qual viveu a sua infância e juventude. Ainda, O texto “Desculpai-me!”, de José de Alencar, é uma exemplificação clara sobre o conceito da “crônica-comentário”, outra classificação do estudioso Afrânio Coutinho. O cronista compartilhou um fato engraçado do seu dia sobre a hora que sua pena de tinta não funcionou. Ele ficou desapontado com a situação do instrumento e, irritado, fez um debate com os seus amigos sobre o ocorrido. No final desse dia, Alencar joga a pena pela janela e, convencido de que não poderia voltar a escrever até o próximo dia, começa a observar os quadros da parede de sua casa ao som de uma tempestade. Tomei a pena e levei-a ao tinteiro; mas ela estremeceu toda, coitadinha, e saiu intacta e pura. Não trazia nem uma nulidade de tinta. Fiz nova experiência, e foi debalde. [...]. Tinha uma pena oradora, tinha discussões parlamentares, discursos de cinco e seis horas. Que elementos para não trabalhar! (ALENCAR, p. 227)

Antônio Cândido de Melo e Souza7 é o terceiro profissional que estudou a crônica. Ele, em seu livro, “A vida ao Rés-do-chão” (1989), estudou o gênero a fim de destacar as diferenças entre os cronistas modernos brasileiros.

Antônio,

primeiramente, nomeou a “crônica-diálogo” como um texto narrado pelo cronista e por um interlocutor imaginário com quem ele conversa, onde ambos defendem os seus pontos de vista e trocam informações; a “crônica narrativa”, no entanto, é um texto semelhante ao conto. Ainda, a “crônica exposição-poética” é a discussão livre sobre o cotidiano, e a “crônica biografia lírica”, por fim, conta, em forma poética, a vida de um indivíduo. A “crônica-diálogo” tem, como exemplo, o texto “Conversinha Mineira”, de Fernando Sabino. Escrita em terceira pessoa, a história acontece em um café, onde conversam o cliente e o dono do local. Aquele faz um pedido para o proprietário:

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Ele é considerado o maior crítico literário do Brasil, além de ser professor universitário, escritor e ensaísta. Após dois anos de sua formação em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, Cândido, em 1943, é contratado pela Folha da Manhã para escrever artigos e críticas literárias. Ele teve a oportunidade de criticar os primeiros livros de Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto.

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“Então me dá café com leite, pão e manteiga. — Café com leite só se for sem leite. — Não tem leite? — Hoje, não senhor. — Por que hoje não? — Porque hoje o leiteiro não veio” (SABINO, 1962, p. 144). Essa “crônica-diálogo” se desenvolve nas perguntas inquietas do cliente com as respostas vagas do proprietário que dá humor ao texto. A “crônica-narrativa”, no entanto, tem como referência o texto, “Depois do Jantar”, de Carlos Drummond de Andrade. Em uma narrativa ficcional, um homem é surpreendido por um ladrão no meio da noite na “Lagoa Rodrigo de Freitas”, no Rio de Janeiro. O texto é uma conversa entre o ladrão e uma pessoa, no qual essa negocia o que o ladrão irá roubar dela. — Não estou querendo saber quantas horas são. Prefiro o relógio. — Como? — Já disse. Vai passando o relógio. — Mas ... — Quer que eu mesmo tire? Pode machucar. — Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa fivelinha enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude. O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio mudou de dono (ANDRADE, 1977, pág. 54).

O texto “Mila”8, de Carlos Heitor Cony, e “Uma galinha”, de Clarice Lispector é um exemplo de crônica “expositivo-poético”. O segundo traz um contexto familiar em um ambiente rural. A autora define a galinha como a personagem principal da história que, através de uma fuga da casa de seus donos, o animal pôde correr desesperado durante um quarteirão e meio e, depois, ser pega: Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto voo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro voo desajeitado, alcançou um telhado (LISPECTOR, 1998, p. 30).

Naquele dia, a galinha iria para a panela, mas, no meio da cozinha, pôs um ovo. Esse acontecimento emocionou a criança da casa que, insistentemente, adotoua como um animal de estimação, como na crônica-conto “Uma História de Tanto Amor”

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O texto gira em torno de Mila, uma cachorrinha do cronista que se tornou a melhor companhia de sua vida. Cony conta como foi o primeiro contato dele com a cachorra, em como era pequena diante de suas mãos: “Era pouco maior do que minha mão: por isso eu precisei das duas para segurá-la, 13 anos atrás. E, como eu não tinha muito jeito, encostei-a ao peito para que ela não caísse, simples apoio nessa primeira vez” (CONY, 2001, p. 318).

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que será investigada no capítulo cinco dessa pesquisa. Após um determinado tempo, porém, a galinha virou comida da casa de campo. A crônica “biográfica lírica”, no entanto, pode ser exemplificada no texto “Viúva na praia”, de Rubem Braga. O cronista, ao ver uma mulher conhecida de vista que acabara de ficar viúva, fica surpreso por ela estar na praia. Em uma narração poética, Braga cria imagens para que o leitor possa visualizar a cena da praia, a mulher com o seu filho e o cronista deitado na areia no qual observa o acontecimento cotidiano. É bem bonita, a viúva. Não é dessas que chamam a atenção; é discreta, de curvas discretas, mas certas. Imagino que deve ter 27 anos; talvez menos, talvez mais, até 30. Os cabelos são bem negros; os olhos são um pouco amendoados, o nariz direito, a boca um pouco dentucinha, só um pouco; a linha do queixo muito nítida (BRAGA, 1960, p. 129).

O cronista tem a oportunidade de escrever textos diferentes que relatam o tema circunstancial. Estudar as diversas classificações do gênero e suas exemplificações amplia o conhecimento do leitor. Os escritores do século XX citados nesse subcapítulo tem uma forma inventiva de escrita autoral, assim como Clarice Lispector, que participa desse grupo de profissionais que aperfeiçoaram a crônica. A última classificação a ser estudada nesse trabalho é a de Massaud Moisés9. Para ele, o gênero crônica se direciona para o conto ou para a poesia, em que o cronista produz uma “poetização do cotidiano”. O professor, portanto, desenvolveu duas classificações para esse texto: a “crônica-poema” e a “crônica-conto”. A primeira se concentra nas emoções do autor, nos seus sentimentos e nas suas opiniões sobre determinado assunto. Segundo Moisés (2003, p. 111), o cronista transforma o seu escrito em uma “página de confissão, de diário íntimo ou de memórias”. Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, escreveu “A Máquina do Mundo”, uma “crônicapoema” conhecida como uma das melhores já escritas no século XX. Nesse texto há uma relação com a Divina Comédia de Dante e o eu-lírico que busca a explicação de sua existência.

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Professor titular da Universidade de São Paulo, Moisés escreveu grandes trabalhos de pesquisa na área de filosofia, letras e ciências humanas. Durante um período de sua vida, ele foi um “professor visitante” em diversas universidades americanas em locais, como “Wisconsin”, “Indiana”, “Vanderbilt”, “Texas”, “Califórnia” e “Santiago de Compostela”. Ainda, Massaud escreveu o livro “A Literatura Portuguesa e a História da Literatura Brasileira”, além de produzir a seleção, a introdução e as notas de contos do Machado de Assis.

31 Abriu-se majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem um clarão maior que o tolerável pelas pupilas gastas na inspeção contínua e dolorosa do deserto, e pela mente exausta de mentar toda uma realidade que transcende a própria imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos abismos (ANDRADE, 1985, p. 300).

A “crônica-conto”, no entanto, é a classificação do gênero feita por Moisés através do livro “A Criação Literária – Prosa” (1978). Essa crônica é relevante para essa investigação, pois os quatro textos produzido por Clarice Lispector no “Caderno de Sábado” fazem parte dessa classificação. Para o estudioso, portanto, a “crônicaconto” não é um espaço que visa expressar os sentimentos e as emoções do cronista, mas descrever um fato que o interesse. Segundo Michelline (2005, p. 112), a “crônica-conto” dá ênfase ao “não-eu” diante do acontecimento que provocou a atenção do escritor. O cronista torna-se, então, o narrador de uma história e passa a sair do foco central da narrativa10. Ele tem a oportunidade de registrar o circunstancial em outra perspectiva de olhar. Essa classificação, em suma, é o foco dessa investigação que tem o objetivo de descrever um acontecimento, com a narrativa semelhante ao conto, envolvendo personagens em um contexto social e histórico. A crônica “Dois Entendidos”, de Fernando Sabino, é um exemplo de “crônicaconto”. O jornalista escreveu em terceira pessoa e criou um diálogo entre dois homens conhecedores de futebol. Eles estavam competindo quem sabia mais detalhes sobre os jogos desde 1929. A conversa chegou em uma partida futebolística decisiva, em que o juiz havia dado impedimento em um momento determinante. Um deles disse que era o juiz do jogo, mas o outro não acreditou. No final, o aquele confessou que era o bandeirinha: Calaram-se um instante, medindo forças. Mas o outro teve a infelicidade de acrescentar: — Mesmo que o bandeirinha tivesse assinalado...Ele saltou de súbito, brandindo o dedo no ar: — Já sei! Isso mesmo! Você não foi juiz coisa nenhuma! Você era o bandeirinha! Me lembro muito bem de você: era mais gordo mesmo, todo agitadinho, corria se requebrando...Tinha o apelido de Zuzú. (SABINO, 1965, pg. 60)

A partir das classificações de Luiz Beltrão, Afrânio Coutinho, Antônio Cândido e Massaud Moisés, portanto, podemos analisar que a crônica pode ser escrita de 10

O “eu” do jornalista está em oculto através da narrativa em 3ª pessoa do singular.

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diversas maneiras. Esse gênero é particular, pois tem um caráter livre e dinâmico, que se torna um instrumento prazeroso para o escritor expressar a sua opinião e, muitas vezes, sentimentos. A crônica foi escrita no século XX por muitos autores de renome, como Clarice Lispector, Rubem Braga e Carlos Heitor Cony. O gênero, nesse século, foi aperfeiçoado por esses e outros autores que atraíam cada vez mais o número de leitores de periódicos. A crônica, além de jornais, pode ser publicada em livros. Esse é um texto jornalístico versátil e rico, que era desenvolvida por muitos escritores. O subcapítulo “Percursos Textuais da Crônica e Suas Diversas Formas de Contar Histórias”, em suma, é relevante para essa investigação, pois mostra que esse gênero tem muitas formas criativas de ser escrito. A partir da apresentação de classificações e exemplificações do texto, podemos perceber que, além de Clarice Lispector, há outros profissionais que escreveram crônica e que tinha sua forma inventiva de escrita. Os textos clariceanos, portanto, fizeram parte de um grupo de crônicas reconhecidas no século XX.

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3 HISTÓRIA DO JORNALISMO CULTURAL NO BRASIL AO RIO GRANDE DO SUL: O CASO DO “CORREIO DO POVO”

O capítulo “História do Jornalismo Cultural no Brasil ao Rio Grande do Sul: o Caso do ‘Correio do Povo’” visa analisar o jornalismo e o contexto cultural do Estado no século XX. O subcapítulo “O ‘Correio do Povo’: o Queridinho Jornal RioGrandense” visa traçar a trajetória desse periódico e de seu trabalho no jornalismo do Estado no século XX, como a criação do periódico cultural ‘Caderno de Sábado’. O segundo subcapítulo “Um Jornalismo Para ‘Levar a Clubes e Assembleias, Casas de Chá e Cafés’” irá explorar a história do jornalismo cultural no Brasil, e as características definitivas após a segunda fase da Revolução Industrial. Ainda, essa parte da investigação discutirá o exercício dessa área no século XXI.O último subcapítulo, “Suplemento Cultural Para a Elite Gaúcha” ir discutir os objetivos e os conteúdos do periódico “Caderno de Sábado” no contexto de 1960. Além disso, irá mapear os profissionais que eram responsáveis por produzir os textos do suplemento, como Clarice Lispector.

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3.1 CORREIO DO POVO: O QUERIDINHO JORNAL RIO-GRANDENSE

O subcapítulo “Correio do Povo: o Queridinho Jornal Rio-Grandense” visa investigar a trajetória do periódico, e destacar as suas características que contribuíram para o jornalismo do Estado. Será analisado, também, os acontecimentos políticos que marcaram o rumo do jornal. Ainda, essa parte da pesquisa irá explorar os trabalhos desenvolvidos pelo “Correio”, como os suplementos e os veículos de comunicação. O Correio do Povo foi fundado no primeiro dia de outubro de 1895 pelo jornalista Francisco Antônio Vieira Caldas Júnior – mais conhecido como Caldas Júnior –, além dos colaboradores Mário Totta e José Paulino Azurenha. Em meio a uma imprensa político-partidária ou literária, com o foco principal na livre opinião do profissional, Caldas Júnior foi motivado a trazer ao mercado uma novidade: “um jornal que não fosse escravo de políticos, nem de politiqueiros. Um jornal no bom sentido” (GALVANI, 1994). No Rio Grande do Sul, esses jornais particularmente políticos eram divididos entre os pró-maragatos e pró-pica-paus. Os primeiros usavam um lenço vermelho em volta do pescoço que identificava a oposição ao governo central que atuava durante a Revolução Federalista, em 1893, enquanto que os segundos usavam um lenço branco e defendiam o atual governo. Existia uma guerra entre esses dois grupos e, através dos jornais, havia propagandas políticas de cada ideologia. Caldas Júnior possivelmente não concordava com a postura dos jornalistas e teve a ambição de criar um jornal com uma linha editorial completamente diferente. Entender a trajetória do veículo “Correio do Povo” é relevante para contextualizar ao leitor o perfil de jornal que publicava as crônicas de Clarice Lispector em 1968. Na primeira edição do “Correio do Povo”, dois anos após o início da Revolução Federalista, Caldas Júnior escreveu: “Este jornal vai ser feito para toda a massa, não para determinados indivíduos de uma facção” (GALVANI, 1994, p. 27,). Caldas trouxe uma nova proposta para a imprensa gaúcha. No primeiro dia de outubro, então, foram distribuídos dois mil exemplares do periódico com quatro páginas de conteúdo noticioso. As características dessas primeiras páginas do “Correio” durariam, sem interrupção, oitenta e nove anos, até 1984.

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Além do “Correio do Povo” ser novidade na linha editorial, a postura firme e moderna da empresa de Caldas Júnior se sobressaía a outros jornais do Rio Grande do Sul. O fundador investiu na infraestrutura, na tecnologia e nos assuntos pessoais do jornal, como o aumento da produtividade do “Correio”, a busca para equipar os padrões gráficos ao nível dos mais modernos do Brasil. Ainda, Júnior acrescentou o número de páginas, modificou o formato da folha do jornal, e, mesmo assim, não mudou o preço diário do periódico. Só em 1910, Caldas montou a primeira impressora rotativa no Estado e, nos anos seguintes, os primeiros quatro linotipos. Esta inauguração contribuiu para aumentar a tiragem do “Correio” de mil para dez mil exemplares naquele ano, e a frase que acabou de ocupar o cabeçalho do jornal indicava a conquista de Júnior: “o jornal de maior circulação e tiragem do Rio Grande do Sul” (STRELOW, 2010, p. 2). Isso é reflexo da ascensão do capitalismo, como vimos no subcapítulo “A Crônica e Suas Origens”. O “Correio do Povo” conquistou o sul do Brasil. Em poucos anos, o periódico passou a ser o principal veículo impresso do Estado. Os custos eram reduzidos, então Porto Alegre e outras cidades podiam desfrutar e entender o novo significado do jornalismo. Era algo incomum, mas consideravelmente atraente para os leitores. Com esse novo público se formando, os grandes anunciantes viram a oportunidade de serem conhecidos por mais pessoas através de anúncios no “Correio”. Tudo estava indo tão bem quando, em uma morte prematura, Francisco Antônio Vieira Caldas Júnior deixou o seu querido jornal para a sua esposa – então, viúva – em 1913. O seu nome era Dolores Alcaraz Caldas, e ela tinha dois filhos com o falecido marido: Fernando Caldas e Breno Alcaraz Caldas – esse com três anos de idade. A direção do jornal, contudo, passou a ser controlada por familiares e homens da imprensa da época e, depois, Fernando assumiu o posto. Em 1927, Breno Caldas, já com dezessete anos, começou a trabalhar no “Correio do Povo” junto com as responsabilidades da escola. Dois anos depois, no entanto, com a saída de Fernando Caldas da direção do periódico, o jovem adulto se tornou redator-chefe. Ele foi considerado, a partir de 1929, em uma das principais personalidades públicas do Rio Grande do Sul. Ainda que o “Correio do Povo” tenha como característica a imparcialidade, ao longo dos anos, a linha editorial passou a se inclinar a ideologia da Aliança Liberal, que tinha como ideais a mesma da Revolução de 1930. Breno autorizou, no dia 5 de

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outubro de 1930, a publicação do manifesto de Getúlio Vargas, que tinha como título: “Rio Grande, de pé pelo Brasil, não poderás falhar ao teu destino” (STRELOW, 2010, p. 3)11. Para confirmar que o “Correio” cedeu às ideias políticas, novamente, em 1932, o jornal se posicionava a favor da Revolução Constitucionalista. Essa situação ficou mais séria quando o atual diretor do periódico, André Carrazzoni, foi demitido por escrever um artigo contra a Revolução. Breno Caldas chegou a afirmar, em uma entrevista, que o “Correio do Povo” “procurava ter uma posição de neutralidade, mas, para ser bem franco, era, sem dúvida, uma neutralidade simpática aos revoltosos de 32” (CALDAS, 1987, p.110). O ex-presidente do Rio Grande do Sul, Borges de Medeiros, fazia oposição a Getúlio Vargas na época, e o jornal teve que parar de publicar notícias sobre a situação política do país a fim de permanecer no mercado. Em 1935, Breno Caldas assume a diretoria do “Correio do Povo” com a saída de Alexandre Alcaraz. Sem manter a promessa de completa neutralidade, o jornal continuou a apoiar Getúlio Vargas, que já tinha se tornado presidente. Por esse motivo, Caldas tinha enfrentamentos12 com o interventor do Estado, o chamado Flores da Cunha, o qual se tornou o maior adversário político da folha. Foi um momento difícil na vida do atual diretor do Correio. Por causa de Cunha, Alexandre saiu do periódico, forçando este a sair do Rio Grande do Sul. A partir desse acontecimento, o jornal atacava Flores da Cunha, fazendo com que Getúlio o pressionasse em seu trabalho. A influência e o posicionamento do “Correio” causavam conflitos políticos – o que ocorreu na década de 30 foi um deles. Com a sugestão de Alcides Gonzaga, um colega recém-chegado de Buenos Aires, Breno Caldas tomou a decisão de criar um tabloide, que foi nomeado “Folha da Tarde”. Em 27 de abril de 1936, foi a primeira edição do jornal. A “Folha”, porém, acabou não circulando às 16h, que era o horário oficial, mas sim às 23h do mesmo dia. Isso ocorreu porque os redatores não sabiam quantas matérias cabia naquele

“Os adversários, porém, não queriam apenas a vitória eleitoral, obtida embora à custa de todas as artimanhas e à sombra dos mais impressionantes e condenáveis abusos do poder. Foram ainda mais longe os nossos opositores, no seu intuito de triunfar. Vencida a minha candidatura, pretenderam subjugar a própria liberdade de consciência, a dignidade do cidadão brasileiro e o direito de pensar e agir dentro da lei” (STRELOW, 2010, p.3). 11

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A Assembleia Nacional Constituinte, agendada para maio de 1934, estava sendo pauta frequente no jornal Correio do Povo. Como este veículo tinha influência política, o interventor do Estado, Flores da Cunha, esperava que o periódico se posicionasse positivamente a seu posto, mas isso não aconteceu. A partir desse fato, Cunha declarou “guerra” contra o Correio do Povo, consequentemente, contra Breno Caldas.

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novo formato e tamanho de página. Mesmo com uma estreia nada profissional, a “Folha da Tarde” foi um sucesso entre os leitores gaúchos. Nesse ano, segundo Caldas, a redação contava com os melhores jornalistas do “Correio do Povo”. Durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, a população do Rio Grande do Sul recebia as últimas notícias da guerra através da “Folha da Tarde” porque essa circulava ao meio dia. E, como não podia faltar um conflito político, o tabloide foi batizado pela audácia do colunista Vianna Moog pseudônimo de Usbek – em escrever textos favoráveis a Flores da Cunha. Ademais avisado pelo diretor do Correio, Moog continuava publicando artigos com a mesma linha política e, consequentemente, foi demitido logo depois. A “Folha da Tarde” encerrou a sua atividade só em 1964. Já em 1957, Breno Caldas foi influenciado pelo campo da radiodifusão e criou a Rádio Guaíba. A emissora investiu demasiadamente em coberturas esportivas e em programas noticiosos regulares. Foi o próprio Caldas que desenhou toda a programação da Rádio de acordo com o seu gosto pessoal: Queríamos, com o advento da Rádio Guaíba, fazer algo com um pouco mais de nível intelectual (...) o mais impessoal possível. Desde o início de seu trabalho, a emissora buscou um padrão sóbrio, sem jingles, procurando respeitar a inteligência, a seriedade do ouvinte (CALDAS, 1998, p.68).

Contudo, em 1961, com a renúncia de Jânio Quadros, o vice-presidente, João Goulart, não estava conseguindo assumir, por lei, a presidência. Então, Leonel Brizola, no Rio Grande do Sul, criou a Rede da Legalidade e usou a Rádio Guaíba – sem a vontade de Caldas – para garantir a posse de Goulart. Ironicamente, três anos depois, a Guaíba se posicionou a favor do golpe militar de 1964 por causa da boa relação que Breno tinha com os presidentes militares. A “Folha da Manhã” foi outra criação da família Caldas feita em 1969. Porém, desta vez, o filho de Breno, Francisco Antônio Caldas, foi quem teve a ideia do jornal e, posteriormente, o dirigiu. O novo trabalho foi inspirado pela “Folha Esportiva” que havia circulado de 1949 a 1963; porém, ao longo do tempo, foi se transformando em “um grande jornal alternativo numa empresa tradicionalmente conservadora” (GALVANI, 1993). O novo periódico fazia oposição ao regime militar e foi apelidada como “folhinha” pelo pai de Francisco – Caldas repudiava o jornal. Junto com o “Correio do Povo”, a “Folha da Tarde” foi censurada previamente pela ditadura militar.

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O periódico, porém, sobreviveu até 1980, quando foi enfraquecida por disputas internas e denunciada por haver comunistas em sua redação. A TV Guaíba, dirigida pelo Breno Caldas, entrou muito tarde no mercado televisivo. A febre das televisões começou em 1959, no entanto Caldas inaugurou a emissora em 1978. Ele, na verdade, tinha dúvidas se ia ter sucesso nesse tipo de meio comunicacional. Contudo, motivado pelo presidente Médici que lançou a frase animadora “Vai em frente!” (STRELOW, 2010, p.9), desequilibrou toda a empresa de Breno. A plataforma do canal de TV foi feita pela Suzana Kilpp, que tinha como característica “uma programação regional intensa e de caráter cultural (BRAGA, 2001, p.38). Quando Caldas percebeu que fez investimentos desnecessários que estavam desestabilizando a sua empresa, mandou o seu filho Francisco Antônio a Brasília para pedir auxílio ao general Geisel. E deu certo: no Ministério de Comunicações arrumouse uma interpretação da lei para que fosse possível recuperar a concessão da TV. Um fato curioso é que Roberto Marinho, antes da TV Guaíba ser criada, propôs um acordo para investir 60 mil dólares em uma estação de TV no Rio Grande do Sul que iria pertencer a Caldas. No entanto, este não aceitou porque queria uma emissora sua, que somente ele pudesse controlar. Houve programas da Guaíba de grande qualidade no telejornalismo e na cobertura cultural jornalística 13, mas, diante do mercado monopolizado, Caldas teve que deixar o orgulho de lado e fechar a empresa em 1984. Por ter entrado no mercado televisivo muito tarde, Breno Caldas encontrouse, na década de 1980, com dificuldades financeiras graves. Ele abriu mão da relação que tinha com os políticos e empresários para salvar a sua empresa, mas isso funcionou: sua dívida chegava à casa dos milhões de dólares. Perdendo 90% do seu patrimônio pessoal para salvar o “Correio do Povo”, Caldas corre atrás de possíveis investimentos. Ele apresentava essa proposta: “ou ficava com tudo, através de empréstimos legais, ou vendia tudo, como acabou acontecendo em 1984” (STRELOW, 2010, p. 10). Nesse ano, o “Correio” e a “Folha da Tarde” pararam com as suas atividades. Dois anos depois do ocorrido, em 1986, a empresa Caldas Júnior foi vendida para o empresário Renato Bastos Ribeiro e foi produzida com outro formato. A segunda venda foi em 2007 para a Rede Record, do bispo Edir Macedo. Breno Caldas, depois 13

Guaíba ao Vivo, Cadeira Cativa, Espaço Aberto e Pergunte a Guaíba.

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de entregar o “Correio do Povo” para Ribeiro, escolheu para o tempo novo um estilo de vida calmo, longe da movimentação da cidade. Breno se mudou para Belém Novo, na zona sul de Porto Alegre, em uma fazenda onde criava touros. Ele morreu em 10 de setembro de 1989, três anos após a venda do Correio. O subcapítulo “Correio do Povo: o Queridinho Jornal Rio-Grandense” visa trazer aspectos históricos importantes que marcaram a trajetória do periódico. Para essa investigação, é importante contextualizar o “Correio” na sua época. O jornal criou, em 1967, o suplemento “Caderno de Sábado”, documento relevante para essa investigação, a fim de criar um jornalismo cultural para os leitores do Estado.

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3.2 UM JORNALISMO PARA “LEVAR A CLUBES E ASSEMBLEIAS, CASAS DE CHÁ E CAFÉS” O subcapítulo “Um Jornalismo ‘Para Levar a Clubes e Assembleias, Casas de Chá e Cafés’” apresenta a trajetória do jornalismo cultural e a motivação inicial do século XVIII em trazer a cultura para o povo menos elitizado. No segundo momento, será discutido sobre os requisitos e as funções desse profissional e a realidade do trabalho no século XXI. Conhecer a história do jornalismo cultural e a atual situação da profissão é primordial para essa investigação. O jornalismo cultural é uma especialidade da área jornalística que se dedica à cultura local, nacional e internacional e que aborda temas, como artes visuais, música, literatura, teatro, televisão, cinema, poesia, entre outros. Conheceremos mais sobre essa profissão especializada em cultura, sua história e sua relevância no campo jornalístico que, posteriormente, atraiu Clarice Lispector a desempenhar um papel relevante como escritora através de suas crônicas publicadas no suplemento “Caderno de Sábado” em 1968. Os jornalistas de cultura têm a função de criticar e refletir sobre os movimentos culturais de sua época. O trabalho do profissional visa, por exemplo, informar os leitores sobre as novas formas de trabalho de artistas e do interesse do público, escrever sobre as obras ou autores específicos, informar sobre futuros eventos de cultura, além de praticar um jornalismo opinativo sobre a sociedade e cobrir eventos culturais, como festivais e exposições. Esse jornalismo está presente nos Segundos Cadernos dos jornais impressos e em revistas especializadas em cultura. Ainda, o profissional pode exercer o seu trabalho em sites virtuais, como blogs na internet. Quanto às possibilidades de origem do jornalismo cultural, segundo o historiador Peter Burke (2004), a profissão surgiu no final do século XVIII. Nessa época, os periódicos estavam se tornando um canal de transmissão de informações com formato jornalístico mais definido, “deixando de ser uma aparição periódica para tornar-se uma narrativa institucionalizada socialmente, ganhando ampla difusão, periodicidade e mercado” (MELO, 2010, p. 1). O jornalismo cultural tinha o objetivo inicial de levar informações, antes exclusiva aos eruditos, para aqueles que pertenciam a uma classe social mais baixa. Segundo Pizza (2003, p. 11) essa profissão visava “tirar a filosofia dos gabinetes e bibliotecas, escolas e faculdades, e levar para clubes e assembleias, casas de chá e

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cafés”. Através dos fundadores da revista inglesa “The Spactator”, Richard Steele e Joseph Addison tinha como alvo deixar o seu trabalho mais conhecido pelo seu povo. Os conteúdos desse suplemento transmitiam o padrão do “homem da cidade” como um ser moderno, preocupado com modas, com a saúde do corpo e da mente, além de ele ter superioridade no que diz respeito ao seu comportamento e à política. Surgia, então, um jornalismo voltado às artes, à literatura, ao teatro, à música e à moda14. Ainda, o início do século XVIII foi marcado pelo crescimento da atuação das máquinas, em que essas contribuíram para avançar a economia através do aumento da produção em série de produtos. A corrente de pensamento humanismo, também, começava a se popularizar ao redor da Europa. Por esse motivo, os jornais e as revistas começaram a se deixar influenciar pelas ideias iluministas e a aumentar a produção de seus trabalhos por causa da criação de máquinas. Em todos os aspectos, o mundo estava sendo transformado na economia e na cultura. Como declara Daniel Piza (2003. p. 12), a revista “The Spactator”, de certo modo, o jornalismo cultural, “nasceu na cidade e com a cidade”. No século XIX, a industrialização estava presente em toda a parte da Europa e no resto do mundo, e a influência do jornalismo cultural se tornava maior através dos textos ensaísmo e crítica. Os profissionais eram considerados celebridades, como o crítico de arte John Ruskin (1810 – 1900). Ele era idolatrado pelos seus leitores – ou melhor, seguidores – cujo trabalho se concentrava em temas espirituais, artísticos e reflexivos. Foi a partir desse século que o jornalismo cultural atravessou o Atlântico para ser desenvolvido, sobretudo, nos Estados Unidos e no Brasil. Enquanto que no país norte-americano havia uma multiplicação na produção de jornais e revistas na segunda metade do século, a nação sul-americana iniciou um jornalismo cultural consolidado no final dos anos 1800. Os profissionais que produziam um conteúdo cultural nos jornais no Brasil eram, na sua maioria, escritores conhecidos. Machado de Assis (1839 – 1908) fazia parte desses profissionais. No início de sua carreira, o autor trabalhava como crítico de teatro, era polemista literário, e escrevia resenhas e ensaios seminais. José Veríssimo (1857 – 1916) também pertencia ao grupo de profissionais e era considerado, na época, um grande crítico, ensaísta e historiador de literatura.

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“O jornal cobria desde questões morais e estéticas até a última moda das luvas” (BURKE, 2004 p.78).

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Posteriormente, outros autores contribuíram para produzir um conteúdo cultural como Oswald e Mário de Andrade. Ainda, um momento que marcou o jornalismo nessa época foi a criação da Revista “O Cruzeiro”, no qual trabalharam José Lins do Rego, Vinícius de Morais, Manuel Bandeira, Raquel Queiroz e Mario de Andrade. No final dos anos 1800, os jornalistas ou escritores eram vistos como celebridades entre os leitores brasileiros de periódicos. Os autores faziam debates sobre livros e artes, escreviam sobre política e, com grande frequência, publicavam notícias. Ainda na virada do século XX, essa profissão se concentrava, com mais frequência, no texto como reportagem, entrevista e texto crítico. Nas próximas três décadas, no entanto, o conteúdo cultural começou a ter mais espaço nos jornais e nas revistas. Havia, então, um maior campo de atuação para esse escritor em comparação ao século anterior, sempre aberto às modernizações culturais e jornalísticas. A sociedade, e, portanto, os profissionais de jornais, estavam cada vez mais próximos com o estilo de vida moderno, com as máquinas, os telégrafos, os cinemas e os telefones. Os jornalistas de cultura, na segunda metade do século XX, tinha papel relevante como críticos nos periódicos e nas revistas. Os profissionais tinham como maior objetivo trazer, para o cotidiano dos leitores, o tema cultura. A partir de 1956, foi criado o suplemento cultural chamado o “Caderno B” do “Jornal do Brasil”. Segundo Piza (2003, p. 37), esse periódico se tornou o “precursor do moderno jornalismo cultural brasileiro”. Nesse caderno de cultura eram publicados textos de escritores como Clarice Lispector, Ferreira Gullar, Bárbara Heliodora e Décio Pignatari. No mesmo ano surgiu o “Suplemento Literário” de “O Estado de São Paulo”. Houve uma grande repercussão. A partir do final da década de 1960, vários outros jornais aderiram à ideia jornalística, inclusive o “Correio do Povo”, na criação do “Caderno de Sábado”, em 1967. Na década de 1990, quarenta anos após o surgimento do primeiro suplemento cultural em um jornal brasileiro, os periódicos deram espaço para novos campos culturais. Além das sete artes (literatura, música, teatro, arquitetura, cinema e pintura), a moda, a gastronomia e o design também passaram a ser temas de notícias culturais. Ainda, a agenda trouxe para o jornalismo uma nova maneira de fazer notícias com o intuito mercadológico. Por esse motivo, o jornalismo cultural perdeu o peso crítico e opinativo e se concentrou em produzir textos de informações superficiais. Isso

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significa que o profissional começou a se preocupar em publicar sobre próximos eventos culturais ligados a agenda, e deixou de escrever, nos periódicos, críticas bem desenvolvidas e trabalhadas para o leitor. O jornalismo cultural, no início do século XXI, é o resultado de um “esfriamento” profissional após a ambição de trazer ao povo o mundo intelectual e cultural, saindo das mentes de Richard Steele e Joseph Addison, em 1711, com a revista “The Spactator”. O objetivo desses ensaístas ingleses era tirar do pedestal e simplificar para a sociedade um estudo e material rico e empolgante para a melhor formação cultural e intelectual. Porém, no início desse século, o jornalista de cultura reduziu o interesse15 pela busca de repertórios culturais novos, limitando o seu trabalho, na maioria das vezes, na notícia sobre os produtos da Indústria Cultural, obras que agradam o público leitor, como “novelas, programas de realidade, programas de auditório e músicas populares” (LIMA, MELO, 2010. p. 3, tradução do autor). Atualmente, segundo Piza (2003, p. 67) “há excesso das entrevistas em que não se contesta o entrevistado, das resenhas que desperdiçam o pouco espaço com pouca incisividade e sutileza, das colunas que narram o dia a dia do colunista”. Tanto os jornais quanto as revistas estão passando por essa fase profissional. Essa atitude dos jornalistas, tão comum no início do século XXI, é uma consequência da falta de identidade do conceito cultural diante da classificação da alta e baixa cultura. Em 1982, aconteceu a “Conferência Mundial sobre Políticas Culturais”, realizado no México. Houve um consenso entre os profissionais de comunicação sobre a redefinição do conceito de cultura: Conjunto dos traços distintivos – sejam materiais, espirituais, intelectuais ou afetivos – que caracterizam um determinado grupo social. Além das artes, da literatura, contempla, também, os modos de vida, os direitos fundamentais do homem, os sistemas de valores e símbolos, as tradições, as crenças e o imaginário popular. (MELO, 2010, p. 4)

A partir desse conceito, conclui-se que o jornalista cultural tem um grande campo de atuação baseado nas sete artes, que hoje incluem a literatura, a música, o teatro, a arquitetura, o cinema, a pintura e, também, a moda, a gastronomia e o design.

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Há pouca referência de um trabalho de qualidade no jornalismo cultural, no Brasil, no entanto, podemos citar o suplemento “Ilustríssima”, da “Folha de São Paulo”. Ainda, referente a uma forma de escrita inventiva autoral, que pode ser considerada um exemplo, está o trabalho jornalístico da profissional, do Rio Grande do Sul, Eliane Brum.

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Não se pode limitar a informação em lançamentos de livros, CDs e exposições de artistas consagrados, reduzindo a profissão em uma agenda de eventos. Além disso, há uma ausência no trabalho do profissional em estabelecer relações múltiplas e complexas, com mais análise e interpretação do que hoje podemos ler. O que implica abandonar o lugar comum das análises de viés teórico frankfurtiano, evitando uma distinção maniqueísta entre alta e baixa cultura; entre Indústria Cultural e cultura erudita; ou mercado e arte. Demanda-se, para isso, uma postura mais reflexiva, democrática e menos preconceituosa que são importantes fundamentos para definir o que é jornalismo cultural (MELO, 2010, p. 4).

Percebemos, no jornalismo cultural do século XXI, a falta de especialização cultural do profissional, o qual escrever uma matéria sobre agenda é simples e objetiva, pois não exige o conhecimento teórico dessa arte. “As equipes de redação têm menos repertório e ambição e trocam a exigência pela complacência e o charme pela previsibilidade” (PIZA, 2003, p. 65). E o resultado disso é evidente: diminuição sensível na pluralidade e criatividade do profissional. A crítica jornalística, que, no século passado, era uma prioridade, nos dias atuais, baseia-se em classificar superficialmente uma obra em “bom, muito bom, excelente ou ruim” (PIZA, 2003). Uma redação como esta não é atraente ao leitor. O ideal, no entanto, seria uma crítica cultural que traz referências, uma contextualização histórica, que identifica os elementos da obra, as características de linguagem e o conhecimento do assunto. Além da crítica cultural, é necessário um aprimoramento e equilíbrio no que diz respeito às pautas do jornalismo cultural. Os assuntos podem ser nacionais e internacionais, populares e eruditos, variedades e erudições. “O jornalismo cultural deve nutrir da expansão de horizontes do conhecimento, conhecer as diferentes culturas estrangeiras, sem esquecer, da nacional” (PIZA, 2003). É importante ressaltar, também, que a crônica, o perfil, a entrevista e, principalmente, a reportagem atuam nos cadernos culturais como papéis secundários. Dá-se maior foco, novamente, para a agenda e celebridades. Por esse motivo, há pouco espaço para o jornalista motivar e atrair o leitor à reflexão de temas, à leitura de uma obra literária com linguagem mais complexa; informar, com detalhes relevantes, uma cobertura mais elitista ao público interessado, como ópera e ballet. Além disso, o profissional tem pouca oportunidade de

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compartilhar com o público um estilo ou uma banda de música popular, que oferece uma satisfação e admiração sonora diferenciada do mercado atual. Contudo, com a era digital no século XXI, o jornalismo cultural tem maior oportunidade de trabalho através dos meios virtuais, como blogs, sites e redes sociais a fim de criar matérias e críticas sérias. Ainda, o profissional tem a oportunidade de descontrair os seus visitantes virtuais com as músicas e os vídeos no canal “Youtube”. É muito comum, também, esse jornalismo ter um “weblogger” do seu jornal, como o jornalista Fabrício Carpinejar, no Donna, caderno ZH de Porto Alegre. As revistas, no entanto, participam de um mercado mais amplo. Esses veículos são mais especializados, direcionados a algumas áreas culturais. Virtualmente, os periódicos proporcionam para os leitores versões digitais. Algumas revistas brasileiras são “Piauí”, “Rolling Stone”, “Bravo!”, “Revista da Cultura”, “Revista Living”, entre outros. O subcapítulo “Um Jornalismo ‘Para Levar a Clubes e Assembleias, Casas de Chá e Cafés’”, em suma, discute sobre qual é o verdadeiro papel de um jornalista cultural e defende uma maior capacitação no conhecimento de cultura no século XXI. A especialização da profissão é primordial para que a informação que ele quer passar seja clara para o leitor. Através dessa pesquisa, conheceremos mais sobre a forma de expressividade linguística, usada por Clarice Lispector, no “Caderno de Sábado”, o que é benéfico para o trabalho de um jornalista de cultura.

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3.3 SUPLEMENTO CULTURAL PARA A ELITE GAÚCHA O subcapítulo “Suplemento Cultural Para a Elite Gaúcha apresenta o jornal de cultura “Caderno de Sábado’” quanto a sua trajetória, principais autores e a estrutura do periódico. Será contextualizado o conhecimento cultural do Rio Grande do Sul no século XX, e será discutido sobre o material oferecido pelo suplemento cultural gaúcho. Essa parte da investigação é importante para que o leitor compreenda o contexto histórico e cultural em que o “Caderno de Sábado” estava inserido em 1960. Por ser o jornal mais prestigiado do Rio Grande do Sul nos anos 1960 e 1970, o “Correio do Povo” aderiu à moda das folhas da última década: a criação de um suplemento cultural – iniciada pelo “Jornal do Brasil” em 1956 com o “Caderno B”, como vimos no subcapítulo anterior. O periódico gaúcho, porém, deu o nome para o seu jornal cultural de “Caderno de Sábado”. Semanalmente, jornalistas e escritores produziam um conteúdo jornalístico, cultural e intelectual. O “Caderno” começou a circular nas ruas de Porto Alegre e, em outras cidades do Estado, em 30 de setembro de 1967. O periódico tinha o formato tabloide, assim como foi adotado na “Folha da Tarde”, com 16 páginas. A partir desse ano, os leitores do suplemento tiveram a oportunidade de buscar maior conhecimento cultural e intelectual. O “Caderno de Sábado” tinha o intuito de formar leitores que apreciassem a cultura e oferecia, portanto, matérias longas e elaboradas, determinava um espaço mínimo para imagens e priorizava um conteúdo jornalístico cultural. Esse periódico estava separado do próprio “Correio do Povo” que era uma estratégia de Breno Caldas para alcançar um público mais elitizado. O novo espaço fixo e ampliado que acompanha o periódico é que passa a conferir-lhe distinção ante as camadas mais educadas, eruditas e intelectualizadas da sociedade local e mesmo nacional (CARDOSO, 2009).

Apesar de o “Caderno de Sábado” produzir um conteúdo para leitores elitizados, a oportunidade de compra do periódico também era oferecida para o público menos favorecido. Esse suplemento gaúcho determinou que suas pautas fossem sobre as sete artes, porém o conteúdo literário teve prioridade. Além disso, o material do periódico tinha como textos poemas, contos, crônicas, ensaios, artigos, entre outros.

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Formação histórica do rio Grande do sul; a história mundial; as músicas erudita e popular; os patrimônios arquitetônico e artístico sul-rio-grandense; o circuito local de artes plásticas; a filosofia; o folclore regional; o teatro política e esteticamente engajado; as memórias de viagens de personalidades locais; a política internacional daquele momento; o cinema autoral; as ciências humanas e naturais; e a astronomia (CARDOSO, 2009).

Como já foi dito anteriormente, o objetivo do “Caderno de Sábado” era de oferecer um conteúdo para o público mais elitizado pela razão de terem, possivelmente, mais conhecimento sobre cultura. Além desse periódico, os outros suplementos culturais brasileiros de 1960 também seguiam esse “pensamento” de que era necessário produzir um jornalismo autoral de qualidade e de exigência superior à média da sociedade, como o “Jornal do Brasil” e o “Estadão”. Não exigiremos que ninguém desça até se pôr à altura do chamado leitor comum, eufemismo que esconde geralmente a pessoa sem interesse real pela arte e pelo pensamento. (...). Uma publicação que se intitula literária nunca poderia transigir com a preguiça mental, com a incapacidade de pensar, devendo partir, ao contrário, do princípio de que não há vida intelectual sem um mínimo de esforço e disciplina (PIZA, 2003, p. 37).

Por esse motivo, o “Caderno de Sábado” era considerado um fórum de discussões, em que se debatia sobre o mundo e a literatura. O suplemento tinha como equipe escritores renomados locais, nacionais e internacionais para que o conteúdo oferecido pudesse ser considerado sólido. Reunia-se, então, profissionais do mercado jornalístico e literário para desenvolverem críticas sobre o quadro literário da época. O Caderno foi um fórum de discussões das questões literárias do Estado e um espaço de lançamento de novos autores. Também foi o representante da cultura letrada da época, baseado em pilares como a divulgação e análise da literatura local, nacional e internacional (KELLER, 2012).

Apesar de ser um jornal cultural, repleto de conteúdos jornalísticos e literários, o “Caderno de Sábado” recusou-se em dar espaço para publicidade. A justificativa foi a de que o periódico valorizava a cultura não comercial, pois o objetivo do suplemento era publicar matérias que exploravam a essência da arte, da cultura e da literatura. Sem os anúncios, o suplemento teria um espaço maior para publicar textos que edificassem o conhecimento do público. Todo esse tratamento em relação à cultura do suplemento gaúcho era uma estratégia para atrair o público mais erudito.

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Como o “Caderno de Sábado” queria ser reconhecido como um periódico cultural que proporcionava um conteúdo de qualidade, o jornal contou, como já foi dito, com a participação de autores locais, nacionais e internacionais. No final dos anos 1960, era uma grande oportunidade trabalhar para o “Correio do Povo”, que era reconhecido em conta do número de leitores devotos e de uma reputação jornalística positiva no Estado. Novamente, o objetivo maior do “Caderno de Sábado” era proporcionar um espaço para debater, refletir e filosofar sobre as notícias culturais do mundo, bem como divulgar o pensamento intelectual e atualizar o Rio Grande do Sul com a produção acadêmica, literária e artística de outros lugares do país e do mundo. Na capa da primeira edição do “Caderno”, em 1967, foi publicado uma crônica de Clarice Lispector. Nessa época, a escritora trabalhava como cronista no “Jornal do Brasil” e, no entanto, a partir de uma parceria desse jornal com o suplemento gaúcho, os textos dela passaram a ser publicadas também no “Caderno de Sábado”. Além da autora Clarice, havia outros jornalistas e escritores que compartilhavam o seu trabalho com os leitores gaúchos. Entre os colaboradores locais, do Rio Grande do Sul, destacaram-se Armindo Trevisan, José Hildebrando Dacanal, Antônio Hohlfeldt, Paixão Côrtes, Guilhermino Cesar e Manoelito de Ornellas. Além de Moysés Vellinho, Alcides Maya, Augusto Meyer, Raul Bopp, Viana Moog, Mario Quintana e Érico Veríssimo. No campo nacional, os selecionados foram Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade, e internacionalmente foram Louis Althuser, Julio Cortázar, Kostas Axelos, entre outros. O “Caderno de Sábado”, portanto, queria ganhar o respeito dos leitores e, por isso, contratou profissionais qualificados nas áreas de literatura e de outros campos das artes e erudição a fim de oferecer ao público um material diferenciado de jornalismo cultural no sul do Estado. Essa motivação era percebida, por exemplo, por causa da criação de uma galeria de arte no saguão principal da sede do “Correio do Povo” no centro de Porto Alegre. Era a representação de um prestígio cultural. Mais especificamente, o poeta Mário Quintana, por exemplo, trabalhava no “Caderno de Sábado” e tinha a sua própria coluna chamada “Caderno H” que se localizava, na página do periódico, ao lado das publicações de Clarice Lispector. Quintana publicava diversos textos através de uma linguagem breve e direta, e eles eram, por exemplo, “anotações líricas, pequenas narrativas, poemas, prosas poéticas,

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poema em prosa, crítica, epigrama, anedota e citações” (TELES, 1997, p.30). Isso mostra a riqueza do conteúdo oferecido pelo suplemento cultural. Saindo da área literária, pode-se encontrar críticas e crônicas escritas por Herbert Caro na seção chamada “Os melhores discos clássicos”. Esse jornalista cultural escrevia claramente a sua coluna para formar apreciadores de música erudita. O seu objetivo era falar o que ouvir, por que ouvir, como ouvir e como comprar as obras clássicas. Herbert Caro cria um ambiente de proximidade com o leitor através de uma linguagem coloquial que trazia conselhos e dicas sobre esse estilo musical. Além disso, o periódico gaúcho contava com resenhas e críticas sobre produções cinematográficas. O “Caderno de Sábado”, portanto, contava com uma equipe de intelectuais reconhecidos no Brasil e no mundo. Isso aconteceu em todo o período de circulação do suplemento, até 10 de janeiro de 1981. O “Caderno”, em suma, era um jornal cultural diferenciado no Estado e um lugar de trabalho concorrido por escritores e artistas. Para contextualizar para o leitor, a história cultural do Rio Grande do Sul cresceu a partir do início do século XX. O primeiro evento cultural considerado influente nas terras do sul do Estado foi a fundação da “Academia Rio-Grandense de Letras”, em 1901, onde participou jornalistas, poetas e escritores, como Caldas Júnior, Marcelo Gama e Alcides Maia. Houve uma exposição de três mil intelectuais, em Porto Alegre, que mostrava produtos da mais alta tecnologia do período. Em 1903, foi inaugurado o museu do estado, o Museu Júlio de Castilhos, e, no mesmo ano, ocorreu o primeiro evento dedicado exclusivamente às artes: o “Salão”. Para Porto Alegre, foi um marco também a fundação do “Instituto Livre de Belas Artes”, que agregava cursos de música e artes plásticas, em que se tornou referência institucional do Estado até os anos de 1950. A arte no Rio Grande do Sul começou, então, a se manifestar verdadeiramente no início do século XX e foi importante para que os gaúchos conhecessem a cultura como necessidade para as suas vidas na formação intelectual. Em 1967, o ano da inauguração do “Caderno de Sábado” do “Correio do Povo”, a cultura no sul do Brasil já estava muito mais solidificada que os primeiros anos do século, mas a sociedade reconheceu, que esse suplemento cultural, oferecia informações sobre cultura de qualidade.

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O “Caderno de Sábado”, portanto, foi um suplemento cultural do Rio Grande do Sul criado, pelo “Correio do Povo”, em 1967. Esse era considerado um jornal de cultura para leitores elitizados, mas que também, poderia ser lido pelo público de classes sociais menos favorecidas. O periódico tinha uma equipe de escritores e jornalistas locais, nacionais e internacionais, sendo importante destacar, para essa investigação, a cronista Clarice Lispector. Mário Quintana e Helbert Caro faziam parte também do “Caderno”, no qual o primeiro era poeta e o segundo um crítico de música clássica. A cultura começou a se popularizar no Rio Grande do Sul a partir do início do século XX. O subcapítulo “Suplemento Cultural para Elite Gaúcha”, em suma, apresenta o “Caderno de Sábado” como um periódico que tinha o compromisso de oferecer um conteúdo jornalístico e cultural de qualidade. A cronista Clarice Lispector fez parte da equipe de profissionais que contribuíram para atingir o objetivo do jornal. O suplemento era um fórum de discussões e os temas das pautas eram próximas da cultura gaúcha.

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ESTUDO DE CASO: CLARICE LISPECTOR

O subcapítulo “Estudo de Caso: Clarice Lispector” explorará os trabalhos da autora na imprensa, na literatura, e investigará o uso das figuras de linguagem que beneficiam a forma inventiva da escritora. O primeiro subcapítulo, “Trajetória da Estudante de Direito ao Jornalismo Cultural”, discutirá e associará a forma expressiva e autoral de Clarice com os textos publicados na imprensa. Ainda, essa parte da pesquisa irá destacar os principais trabalhos da autora em periódicos e revistas. O segundo subcapítulo, “A identidade de Clarice Lispector na Literatura Brasileira”, irá contextualizar a escritora na terceira fase modernista do país e, também, irá mapear as características estilísticas da autora nos seus livros. O último subcapítulo, por fim, “A Intimidade de Clarice Lispector no Suplemento Cultural do ‘Correio do Povo’: o Caminho da Narração Figurativa”, visa explorar a função da marca de autoria, figura de linguagem, no texto. Esse recurso estilístico será analisado nas quatro crônicasconto do capítulo cinco.

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4.1 TRAJETÓRIA DA ESTUDANTE DE DIREITO AO JORNALISMO CULTURAL

O subcapítulo “Trajetória da Estudante de Direito ao Jornalismo Cultural” apresenta o trabalho de Clarice Lispector na imprensa. Será discutido a forma diferenciada que a escritora desenvolvia os seus textos em jornais e revistas. Essa investigação se concentra no estudo dos textos de Lispector como produto do jornalismo cultural no suplemento do “Correio do Povo”. Clarice Lispector, que tinha quase vinte anos de idade, procurou a imprensa com o intuito de publicar os seus escritos literários. Na época, em 1940, ela era estudante na “Faculdade Nacional de Direito” e, então, a autora conciliava o trabalho no periódico “Pan” com as suas aulas. A novela “Triunfo” foi o primeiro trabalho de Clarice publicado nesse jornal, portanto na imprensa, e esse texto já apresentava a forma autoral de sua linguagem e a construção de personagens femininas na busca do amor e por respostas existenciais. A novela Triunfo, que estreia em Pan, não somente é importante por já esboçar o tom intimista e o perfil psicológico das personagens clariceanas, mas também por estabelecer vínculo com a imprensa. Nesse texto estão presentes o fluxo de consciência, a exposição de conflitos íntimos sobre os diferentes modos de amar e as tais sensações vivenciadas pelas personagens femininas (LISPECTOR, 2012, p. 23-24).

Ainda no mesmo ano, Clarice Lispector atua como repórter e entrevistadora na revista nacional “Vamos Ler!” Nesse periódico, ela tem a oportunidade, também, de publicar outros gêneros literários, como o conto. A escritora usa a sensibilidade na função de repórter, e isso estabeleceu a sua forma autoral de expressão linguística na imprensa. Quando Clarice entrevistava personalidades, ela se posicionava e protagonizava as reportagens. Clarice se coloca no texto, divide suas impressões com o leitor e aborda assuntos de seu interesse. Não se preocupa com a linha editorial da publicação nem se neutraliza perante o entrevistado. Incrível constatar que a técnica que utilizou para esta entrevista inaugural de sua vida de jornalista, na estrutura de perguntas e respostas com apresentação breve e subjetiva, permitindo que o leitor se informe sobre ela, Clarice, e sobre o entrevistado, será a mesma nas duas séries de entrevista para a Bloch Editores nas décadas de 1960 e 1970 (LISPECTOR, 2012, p. 24-25).

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A primeira entrevista inaugural de Clarice Lispector, publicada na revista “Vamos Ler!”, teve como convidado o poeta Tasso da Silveira. A autora escreveu um pequeno resumo no início do texto sobre como ocorreu a entrevista, se foi presencial ou por carta, e ela expõe quais foram as suas percepções sobre esse poeta. Uma característica que é evidenciada nos textos é Clarice falar de si mesma ao invés de se concentrar no entrevistado. Ela conversa, por exemplo, com o indivíduo sobre os assuntos do interesse dela e expõe a sua opinião durante toda a entrevista. A não neutralidade nos textos de Clarice está presente não só nas entrevistas dela, mas também nas quatro crônicas-conto escolhidas nessa investigação que serão discutidas no capítulo cinco. Além da forma autoral de expressão da Clarice que envolvia o tema existencial e a presença da não neutralidade nos seus textos, pode-se perceber, no início da carreira da escritora, a necessidade de dar voz a classes menos favorecidas. Com a possiblidade da influência das aulas de direito, a autora escreveu, em 1941, na revista “A Época”, o artigo “Observações sobre o fundamento do direito de punir”. Ainda, no mesmo ano, Clarice Lispector também criou textos de cunho social que foram publicados no jornal “Diário do Povo”. Duas reportagens, por exemplo, são “Onde se ensinará a ser feliz” e “Deve a mulher trabalhar”. No primeiro texto, a escritora fala sobre um projeto social chamado a “Cidade das Meninas” que foi criado por Darcy Vargas. Esse trabalho tinha como objetivo abrigar cinco mil crianças desamparadas. Na segunda reportagem, porém, Clarice discute sobre o mercado feminino de 1940 no qual procura ouvir a opinião de alunos universitários. Em 1952, no entanto, Clarice Lispector começou a escrever na coluna feminina “Entre Mulheres” no jornal “Comício”, a pedido de Rubem Braga. Esse sugeriu que ela usasse o pseudônimo Tereza Quadros pela razão do periódico ser de oposição ao atual governo Getúlio Vargas (segundo mandato). Sete anos depois, porém, a autora aceitou trabalhar no jornal “Correio da Manhã” no qual usou o pseudônimo Helen Palmer. Logo em seguida, também, foi colunista do periódico “Diário da Noite”, no qual usou o nome de Ilka Soares. Nesses três jornais, Clarice Lispector escreveu crônicas, contos e críticas para o público feminino. As pautas dos textos foram, por exemplo, dicas de etiqueta e comportamento feminino segundo o padrão da década de 1950, no qual a autora

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criticou sobre a preocupação das mulheres brasileiras de copiarem as roupas e o comportamento das atrizes do cinema de “Hollywood” na época. A crônica-conto, “A Bravata”, que será analisada no capítulo cinco, é um texto que Clarice também critica sobre a falta de originalidade das mulheres. Essa crônica-conto foi publicada em 1968, ou seja, mais de uma década após a escritora começar a trabalhar em colunas femininas. Mesmo depois desse período de dez anos, a autora ainda permanecia com essa inquietação sobre as mulheres de sua época. Em suma, Clarice Lispector usou os pseudônimos Tereza Quadros, Helen Palmer e Ilka Soares nos jornais “Comício”, “Correio da Manhã” e “Diário da Noite” na década de 1950. Em 1964, Clarice Lispector escreve sobre o universo infantil na coluna “Cantinho das crianças” (LIMA, tradução do autor) na revista “Senhor”. Nesse período, a autora começa a ser mais reconhecida na imprensa, época em que ela não usa mais pseudônimos em veículos de comunicação. Em 1967, no entanto, a escritora começa a criar crônicas para o renomado “Jornal do Brasil”. Clarice escreve 300 textos ao longo dos anos em que trabalhou nesse periódico. Em um dos escritos publicados em abril de 1968, a autora afirma: Escrever para um jornal é uma grande experiência que agora renovo, e ser jornalista, como fui, e como sou hoje, é uma grande profissão. O contato com o outro ser através da palavra escrita é uma glória (LISPECTOR, 2012, p. 11).

Logo após entrar no “Jornal do Brasil”, as crônicas da autora também começaram a serem publicadas no suplemento cultural gaúcho “Caderno de Sábado”, que contribui para a discussão dessa investigação. A intimidade dos textos de Clarice Lispector, na forma autoral de sua escrita, foi desenvolvida pela autora com o intuito de estabelecer uma comunicação próxima com o leitor. Portanto, Clarice precisou criar uma forma linguística que atraísse os leitores para as crônicas do qual produzia, e é isso que o capítulo cinco dessa pesquisa irá analisar. Clarice Lispector, entre os anos de 1968 e 1969, trabalhou na revista “Manchete” na produção de entrevistas. No final da carreira na imprensa, a escritora também entrevistou personalidades na revista “Fatos e Fotos/Gente”, em 1976 até 1977. Como já foi escrito anteriormente, Clarice expõe a sua opinião e o seu posicionamento em suas entrevistas, no qual a vida da pessoa que ela se dirige ficava

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em segundo plano: “Fala de si com muita facilidade, antecipando, muitas vezes, a resposta dos entrevistados. Contrasta opiniões” (LISPECTOR, 2012, p. 165). As personalidades que Clarice Lispector entrevistou são, por exemplo, Nelson Rodrigues, Pongetti, José Carlos de Oliveira, Dona Sara, Maísa, Elke Maravilha, Alzira Vargas, Darcy Ribeiro e Rubem Braga. O subcapítulo “Trajetória da Estudante de Direito ao Jornalismo Cultural” mostra como Clarice Lispector não usava a neutralidade em seus textos, mas procurava expor a sua opinião. Ela teve uma carreira na imprensa e escreveu crônicas, contos, críticas, entrevistas e reportagens. O tema existencial era muito presente em seus textos, e, a partir disso, a escritora estabeleceu uma forma expressiva e autoral de escrita nos periódicos e revistas que pudessem aproximar ela do leitor e transmitir, de forma clara, os seus pensamentos e posicionamentos.

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4.2 A IDENTIDADE DE CLARICE LISPECTOR NA LITERATURA BRASILEIRA

O subcapítulo “A Identidade de Clarice Lispector na Literatura Brasileira” visa contextualizar e discutir o trabalho literário da autora no século XX. A partir disso, descobriremos as características da forma autoral da escrita clariceana na literatura. Apresentar o trabalho da escritora no contexto de sua época é relevante para essa investigação. Clarice Lispector fez parte da terceira geração modernista a partir do lançamento de seu primeiro livro, “Perto do Coração Selvagem”, em 1943. A autora surpreendeu os leitores e críticos da época por ter escrito uma história que não dá importância aos acontecimentos em si, mas aos conflitos internos dos personagens. Clarice havia criado um estilo diferenciado no Brasil. Pode-se ver claramente a preocupação da escritora em relatar a complexidade humana na novela, “A Hora da Estrela”, através do “fluxo de consciência”, que servirá de exemplo no final desse subcapítulo. Ela, junto com João Cabral de Melo Neto, Lygia Fagundes Telles, Mario Quintana, e entre outros autores fizeram parte da geração de 1945 do Modernismo. Após o final da Segunda Guerra Mundial e da ditatura do governo Getúlio Vargas, o Brasil vivenciou um período democrático e desenvolvimentista no governo de Juscelino Kubitschek. O contexto político estava relativamente tranquilo comparado aos anos conturbados das duas décadas passadas. Por esse motivo, a partir de 1945, os escritores se concentraram na estética da linguagem, deixando, como segundo plano, a preocupação em denunciar e criticar a sociedade atual, que foi o objetivo da segunda fase modernista. Foi com essa motivação que surgiu a terceira fase do modernismo ou a geração de 1945: um rompimento com a mentalidade de recriar a Literatura Nacional. Em suma, o foco dos autores era encontrar novas formas de expressão e de pesquisa estética. Clarice Lispector, juntamente com Guimarães Rosa, trouxe literaturas que quebravam a estrutura da narrativa padrão de início, meio e fim. Em 1943, Clarice Lispector publica o seu primeiro livro, “Perto do Coração Selvagem”, com vinte e três anos de idade. Essa obra surpreendeu os críticos e os leitores em razão da autora enfatizar os conflitos internos e psicológicos dos personagens ao invés de se concentrar nos acontecimentos e nas sequências de cenas da narrativa. O conteúdo literário clariceano recebeu o apelido de “livro sem

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história”. Até esse período histórico, portanto, não havia sido lido uma obra literária como a de Clarice, e o trabalho dela foi considerado diferencial na literatura. Como foi escrito anteriormente, os escritores, de outras fases modernistas, davam importância ao conteúdo da obra e não a estética ou a forma de escrita. O romance Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector (1943), foi quase tão importante quanto, para a poesia, Pedra de sono, de João Cabral de Melo Neto (1942). Nele, de certo modo, o tema passava a segundo plano e a escrita a primeiro, fazendo ver que a elaboração do texto era elemento decisivo para a ficção atingir o seu pleno efeito. Por outras palavras, Clarice mostrava que a realidade social ou pessoal (que fornece o tema), e o instrumento verbal (que institui a linguagem) se justificam antes de mais nada pelo fato de produzirem uma realidade própria, com a sua inteligibilidade específica. Não se trata mais de ver o texto como algo que se esgota ao conduzir a este ou àquele aspecto do mundo e do ser; mas de lhe pedir que crie para nós o mundo, ou um mundo que existe e atua na medida em que é discurso literário (CANDIDO, 1989, p. 9).

A obra “Perto do Coração Selvagem”, de Clarice Lispector, contribuiu, portanto, com o rompimento da segunda fase modernista do Brasil, no qual tinha como objetivo criticar e denunciar o país. A autora se preocupou em trazer à sua obra os contornos psicológicos de seus personagens, e, mais do que isso, Clarice usou o “fluxo de consciência” que quebra os limites espaço-temporais que tornam a obra verossímil. A autora também usou a epifania na vida dos personagens de suas histórias. Isso significa o momento da narração em que há um mistério ou um segredo revelado para o indivíduo. A partir dessa revelação ou acontecimento, o protagonista começa a ver a sua vida através de uma nova perspectiva. Clarice Lispector aproveitou essa “transformação do eu” para criar o “fluxo de consciência” desse personagem a partir da criação de um acontecimento decisório no seu cotidiano. Os enredos literários profundos e complexos que envolvem o tema existencial é a característica dos textos clariceanos. Isso chamou a atenção da sociedade leitora e crítica em 1940. A escritora se determinou em evidenciar as inquietações e dúvidas dos personagens através do desenvolvimento de monólogos interiores16. Essas

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Monólogo interior: longa sequência de pensamentos. Na Literatura: transcrição em primeira pessoa de uma sequência de estados de consciência que se supõe que a personagem experimenta (SALLENAVE, 1976, p. 63).

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particularidades de escrita fizeram com que as obras de Clarice Lispector fossem destaque, na geração de 1945, no Brasil. Para facilitar a compreensão dos aspectos linguísticos da autora que foram evidenciados nesse subcapítulo, será analisada a última obra dela, “A Hora da Estrela”, escrita em 1977. A personagem principal da narrativa se chama Macabéa e, na visão do narrador Rodrigo S.M., é uma mulher sem objetivos de vida, sem nenhuma atratividade e não teve a sua hora de brilhar. Dormia de combinação de brim, com manchas bastante suspeitas de sangue pálido (...). Dormia de boca aberta por causa do nariz entupido. Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha de não-sei-o-quê com ar de se desculpar por ocupar espaço. No espelho distraidamente examinou as manchas do rosto. Em Alagoas chamavam-se panos, diziam que vinham do fígado. Disfarçava os panos com grossa camada de pó branco e se ficava meio caiada era melhor que o pardacento (LISPECTOR, 1977, p 34).

Rodrigo S.M, o narrador da história, é um homem que gostaria de saber de todas as respostas sobre o princípio das coisas do mundo. Como desconhecia isso, concentrou-se, então, em contar a inquietações de uma mulher chamada Macabéa. Essa, segundo ele, um dia recebeu um sim para nascer e estar na terra. Rodrigo conta que a hora de brilhar da protagonista é exatamente a hora de sua morte. A “Hora da Estrela” é considerado um livro de crítica social. O enredo se concentra no momento da entrada dos nordestinos ao Rio de Janeiro, Macabéa é uma nordestina recém-chegada na cidade carioca. A história mostra a falta de esperança e de oportunidades que os nordestinos tinham na “Cidade Maravilhosa”. O enredo é desenvolvido através do “fluxo de consciência” de Macabéa. Ela tinha o compromisso somente de existir, ela, então, não tinha a necessidade de estar sempre explicando o que fazia e por que fazia o que queria. No final do livro, a personagem vive o momento mais feliz de sua vida: o momento em que é explicado as dúvidas sobre a existência humana e de quem somos e por que estamos no mundo. “A Hora da Estrela”, trouxe para a literatura brasileira, uma nova forma de contar uma história através do uso da construção de monólogos interiores. O subcapítulo “A Identidade de Clarice Lispector na Literatura Brasileira”, em suma, mostra que a forma expressiva e autoral de escrita clariceana foi criada na terceira fase do modernismo. A autora foi uma referência no período da construção da estética textual. Clarice evidencia os aspectos psicológicos dos personagens através do monólogo interior, e isso caracteriza a sua invenção formal. Essa marca

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de autoria está presente, também, nas quatro crônicas-conto que serão analisadas no capítulo cinco dessa investigação.

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4.3 A INTIMIDADE DE LISPECTOR NO SUPLEMENTO DO “CORREIO DO POVO”: O CAMINHO DA NARRAÇÃO FIGURATIVA

O subcapítulo “A Intimidade de Lispector no Suplemento do ‘Correio do Povo’: o Caminho da Narração Figurativa” prepara o leitor para as discussões que serão apresentadas no capítulo cinco. Nessa parte da investigação, descobriremos que a marca de autoria, figura de linguagem, é uma forma de trazer a intimidade da autora no texto. O papel de um cronista, para retomar o capítulo dois dessa pesquisa, é desenvolver o seu texto a partir de um fato do cotidiano, e interpretá-lo e transcrevêlo a partir de inspirações subjetivas. Segundo Beltrão (1980), a crônica é definida como: Forma de expressão do jornalista/escritor para transmitir ao leitor o seu juízo sobre os fatos, ideias e estados psicológicos pessoais e coletivos. [...] O comentário é leve, concreto, incisivo; as conclusões oferecem normas e julgamentos específicos e diretos (BELTRÃO, 1980, p. 66).

Clarice Lispector, no final da década de 1960, trabalhava como escritora no “Jornal do Brasil”, e esse tinha uma parceria com o suplemento gaúcho “Caderno de Sábado”. Isso significava, na época, que todos os textos da autora publicados em São Paulo eram enviados por carta a Porto Alegre. Esse periódico tinha como objetivo criar um espaço jornalístico cultural que abrigasse autores gaúchos, nacionais e internacionais, e Clarice foi uma profissional escolhida pelo seu reconhecido trabalho como escritora. Ela, a partir da definição de Sá (1985), enquadrava-se na categoria de “narradora-repórter”: Clarice registra o mundo superficial e o circunstancial de forma simples, discorrendo sobre temas urbanos combinados com elementos da natureza como bichos e flores. Misturando jornalismo e literatura, suas crônicas – muitas vezes assumindo a forma de conto – resultam numa poetização do cotidiano, aliando a linguagem direta com as metáforas, de forma espontânea (ARAÚJO, 2011, p. 31, grifo do autor).

Com a “tendência intimista” enraizada em suas narrativas literárias, Clarice Lispector era uma escritora conhecida, como vimos no subcapítulo anterior, por desenvolver uma profunda intimidade com o leitor através do “fluxo de consciência”,

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“monólogo interior”, “epifania” e “neologismos”. Apesar da autora usar essas mesmas estratégias linguísticas nas crônicas, o que diferenciava o trabalho na imprensa com a publicação de seus livros era o acesso a um público mais diversificado e que exigia, por ser um periódico, que a autora tivesse uma comunicação mais próxima com os leitores. Escrever para um jornal era invadir um meio excessivamente exposto, efêmero e demasiadamente próximo de um interlocutor desconhecido. Envolvia uma intimidade que desagradava, até certo ponto, a escritora, mas que, por isso mesmo, oferecia-lhe a oportunidade de vivenciar uma abertura para o mundo vulgar que ela talvez não obtivesse por outros meios. Era uma escrita diferente do livro, esse espaço mais intimista e seletivo, no qual se sentia mais à vontade, mas que também a segregava de um contato que necessariamente precisaria estabelecer com o público, se desejasse ser lida.

A partir dessa necessidade de adequação, a autora soube se comunicar bem com o seu leitor. É a intimidade de seus textos que faz de Clarice Lispector uma profissional sensível que tem uma percepção de mundo única e feminina. Essa inquietação da escritora é expressa através da forma expressiva e autoral da escrita em que estabelece uma ligação entre o “eu” e o sujeito. A autora escolhe descrever imagens em uma narração figurativa, caminho linguístico para expressar-se como profissional em meio a um público leitor de jornal e, como vimos anteriormente, também, na literatura. Para entendermos o que é uma narrativa figurativa, Fiorin (p.72, 2001) explica: Figuras são palavras ou expressões que correspondem a algo existente no mundo natural: substantivos concretos, verbos que indicam atividades físicas, adjetivos que expressam qualidades físicas. [...]. Estes criam um efeito da realidade, pois constroem uma cena real com gente, bichos, cores, etc. Por isso representam o mundo no texto. Aqueles procuram explicar os fatos e as coisas do mundo, buscam classificar, ordenar e interpretar a realidade (FIORIN, 2001, p. 72).

O escritor escolhe palavras que indicam os elementos do mundo natural para representar uma realidade a partir da sua visão de mundo. Estudar as figuras dentro da narrativa das quatro crônicas-conto escolhidas de Clarice Lispector significa identificar essas palavras-chave e buscar esclarecer a visão da autora no contexto em que está inserida, pois a característica dessa narração é levar o leitor a um profundo nível de compreensão do que o escritor está querendo dizer. A capacidade, portanto, do jornalista cultural em saber se expressar é fundamental para que o interessado consiga captar a mensagem com mais facilidade

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e possa usar esse conhecimento ou esse dado para o seu dia-a-dia. O papel desse profissional é interessar, envolver e atrair o leitor de uma forma específica com uma intenção determinada. As quatro crônicas-conto de Clarice Lispector, que serão investigadas no próximo capítulo, tem como tema o feminino no contexto de 1960. A partir do recorte das figuras de linguagem, conheceremos as perspectivas das mulheres sob o olhar da escritora. O subcapítulo “A Intimidade de Lispector no Suplemento Cultural do ‘Correio do Povo’: o Caminho da Narração Figurativa” visa discutir o conceito de intimidade através do uso da marca autoral escolhida nessa investigação. Além disso, vimos a importância da autoria através da forma expressiva da escrita. Essa parte da pesquisa prepara o leitor para o próximo capítulo.

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5 PERSPECTIVAS FEMININAS EM QUATRO CRÔNICAS-CONTO NO “CADERNO DE SÁBADO”

O capítulo “Perspectivas Femininas em Quatro Crônicas-Conto no Caderno de Sábado” tem o objetivo de investigar o uso das figuras de linguagem nos textos escolhidos. A partir disso, poderemos então, identificar as perspectivas femininas exploradas pela autora em cada crônica-conto. Essa parte da pesquisa, também, analisará a maneira como Clarice traz a sua sensibilidade para criticar e construir imagens das mulheres de 1960. Cada texto, portanto, irá ser discutido individualmente no total de quatro subcapítulos, que são, ordenadamente, “A Mulata”, “A ‘Persona’ Bravata”, “As Atenienses e o General” e “Uma Criatura Feita Para Amar”. Para que entendamos, em suma, como se constrói a expressão da intimidade nos textos escolhidos de Clarice Lispector, é preciso partir de uma marca de autoria, como as figuras de linguagem, para que seja esclarecido como a autora usa desse recurso estilístico para compartilhar a sua visão de mundo, portanto, a sua intimidade, com os leitores do suplemento “Caderno de Sábado” em 1968.

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5.1 A MULATA O Arranjo é uma crônica-conto que foi publicada no “Caderno de Sábado” no dia 13 de julho de 1968. Clarice Lispector torna-se a narradora onisciente da história, cujas inquietações descrevem o ambiente de uma escrava mulata que serve uma família de brancos. O tema desse texto é o preconceito racial e social de uma personagem feminina injuriada pelos senhores do qual serve. O significado de um “narrador onisciente”, que tem o papel de contar ao interessado a história, é aquele que “sabe mais que as personagens, conhece os sentimentos e os pensamentos de cada uma delas. É como se pairasse acima dos acontecimentos, tudo visse e tudo mostrasse ao leitor” (FIORIN, 2006, p. 179-180). Essa é uma forma de trazer ao texto a interiorização do personagem, como o monólogo interior, que era uma característica narrativa bastante usada por Clarice Lispector. Essa técnica linguística dá destaque à intimidade do protagonista mais do que a situação externa, como a linha cronológica e temporal. Antes de começar a análise, identificar o tema do texto é primordial para encontrar as figuras que constroem a personagem feminina: É preciso ter bem presente que uma figura não tem significado em si mesma. Isoladamente, ela pode sugerir ideias muito variadas e noções muito imprecisas. Seu sentido nasce do encadeamento com outras figuras. Como se sabe, num texto, tudo é relação. O que dá sentido às figuras é um tema. Por isso encontrar o sentido de um conjunto de figuras encadeadas é achar o tema que está subjacente a elas (FIORIN, 2001, p. 79).

Como já foi indicado na introdução desse subcapítulo, o tema da crônicaconto “O Arranjo” é preconceito racial e social de uma escrava mulata que serve uma família de brancos. O texto inicia-se com essa frase: “Ela era cria da casa grande, desde menina” (SÁBADO, 1968, p.2). O substantivo concreto “cria” é o primeiro que aparece na obra e inaugura as características que constroem a identidade final da personagem feminina. Segundo o dicionário Soares Amora (2008, p.184), “cria” é definida como “2. pessoa criada em casa de outrem”. As palavras “casa grande”, escrita logo em seguida, é uma descrição de imagem e uma figura que dá continuidade à informação de que essa mulher está vivendo em uma casa que não pertence a ela e, segundo a sua concepção, é um lugar no qual vivem pessoas de alto

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poderio econômico, pois é demasiadamente grande, e, ao mesmo tempo, é uma casa em que ela se sente “pequena”. Injuriada, a “cria da casa grande”, segundo o narrador, não é alegre. Clarice Lispector usou a figura de linguagem paradoxo 17 para mostrar que a mulher escrava tinha comportamento e atitudes contraditórias: “Distraía-se e divertia-se com qualquer coisa, sem sorrir: não era alegre” (SÁBADO, 1968, p. 2). Os verbos “distrair” e “divertir” estão juntos em uma mesma oração com a afirmação de que essa mulher não era feliz. Isso significa, em suma, que a autora usou essa figura de linguagem para mostrar que a protagonista da história é controversa. O comportamento dessa mulher é apresentado através de uma descrição de seu andar: “corpo solto, boca aberta, olhos redondos”. Essas figuras mostram ao leitor que a personagem não é confiante, ousada e nem entusiasmante, pois ela é apelidada pela sua senhora, a seguir na crônica-conto, é de “débil mental”: “Quando a dona da casa estava irada, chamava-a de débil mental”. Essas palavras, no contexto, são adjetivos que a senhora usou para comparar o comportamento e a forma de andar da escrava com as características físicas evidenciadas de um deficiente intelectual. Em suma, a personagem principal da crônica-conto “O Arranjo” é vista com maus olhos, desvalorizada e alvo de ofensas. Como o narrador afirma, a mulher é “cria da casa grande” desde menina, e, se exerce a função de escrava desde a pequena idade e ouve palavras ofensivas dos seus senhores, isso, consequentemente, transformou-a em uma mulher triste e que desconhece o seu valor como indivíduo. A personagem principal tinha relacionamentos com vários homens e frequentemente ficava grávida: “Ela não ficava contente, mas grávida” (SÁBADO, 1968, p. 2). Isso significa que, ao invés de ficar alegre, a mulher engravidava. Clarice Lispector novamente usa a figura de linguagem paradoxo para indicar a contradição da personalidade da escrava. Os seus patrões estavam já cansados de “distribuir por famílias os seus filhos”. As ofensas dos seus patrões eram contínuas enquanto que o seu “corpo crescia, e ela ficava cada vez mais amarela sob a cor de mulata quase branca”. A cor “amarela” pode estar associada a doença amarelão de Jeca Tatu, personagem do conto “Urupês” (1918) criado pelo escritor Monteiro Lobato. Essa

“Oxímoro ou paradoxo é, pois, o procedimento de construção textual que consiste em agrupar significados contrários ou contraditórios numa mesma unidade de sentido. [...]. O oximoro se presta a ressaltar aspectos opostos que convivem dentro de uma única realidade complexa” (p. 130). 17

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história ficou conhecida no Brasil por apresentar um protagonista que vivia na área rural de São Paulo, que era miserável, desleixado e sem cultura. Queixando-se de ter dores corporais, Jeca descobre, quando vai ao médico, que está com “ancilostomose”, o famoso amarelão. O personagem fictício tornou-se um símbolo do brasileiro rural que mostra em sua vida a condição precária do país, o baixo poderio econômico e a falta de investimento em saneamento básico. Pode-se inferir, no contexto da crônica “O Arranjo”, que a cor amarela indica doença, baixa instrução e pobreza. A personagem mulata e escrava construída pela cronista Clarice Lispector pode ser relacionada também às questões discutidas no livro “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre. Essa literatura foi escrita em 1933 e é conhecida por estudar a miscigenação brasileira. Um dos assuntos tratados é a relação do negro e do branco durante a época da colonização no país. O autor ainda defende a democracia racial, uma interpretação que é criticada pelos intelectuais, como sociólogos e historiadores. Mesmo que o livro de Freyre não seja considerado científico, a sua leitura é relevante para entender a história do Brasil. Assim, tendo em vista as virtudes e ambiguidades, Cardoso conclui que a importância de se ler Casa-grande & senzala no século 21 é que esta obra ensina muito do que fomos e ainda somos em parte. Mas jamais o que queremos ser no futuro (CARDOSO, in: FREYRE, 2003, p. 27).

A mulata e a negra são representadas no capítulo IV do livro, “O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro”. Gilberto Freyre afirma que todo o brasileiro no seu comportamento, na sua cultura e “em tudo que é expressão sincera da vida” traz a marca da influência negra: Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama de vento, a primeira sensação completa de homem. Do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo (FREYRE, 2006, p. 367).

A mulher negra e a mulata, segundo “Casa Grande & Senzala”, exerciam o papel de escravas no qual serviam seus senhores brancos e dormiam em senzalas. Desde a colonização do Brasil, a discriminação racial é presente, por mais que o autor

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defenda a democracia das raças. Consequentemente, a escrava apresentada nessa literatura pode ser associada com a personagem de “O Arranjo” de Clarice Lispector. Ao passo que a história se desenvolve, mais o narrador quer mostrar ao leitor que aquela família que tinha como escrava a personagem principal da crônica-conto eram preconceituosos com a cor negra e a classe social desfavorecida. Isso é evidenciado mais claramente na frase: “O que os patrões não perdoavam é que dessa vez tivesse acontecido com um negro sujo, como se eles tivessem para ela planos de um homem menos negro e mais limpo”. Palavras fortes e ofensivas que representam uma realidade que Clarice Lispector quer retratar e compartilhar com os interessados nos jornais. A figura “negro sujo” tem primeiro o substantivo concreto que representa a raça negra, e o adjetivo “sujo” cujo sentido é: “adj 1. Que não está limpo; emporcalhado; 2. Sórdido, indecoroso, desonesto; 3. Que não goza de crédito; em quem não se pode confiar; desmoralizado” (AMORA, 2008, p. 698). Isso significa que os senhores da escrava associavam a cor negra como algo a ser rejeitado e sem valor. Apesar de ser escrava desde menina, a personagem principal sentia-se livre: “Mas ela não era escrava: vivia independente deles e dava à luz os seus próprios filhos, distribuídos depois como gatos, amarelados como a mãe” (SÁBADO, 1968, p.2). A mulher negra relacionava liberdade com a maternidade, apesar de, contrariamente, distribuí-los depois como fazem com os “gatos”, como um animal, para serem criados e cuidados por outras pessoas. A figura “gatos”, portanto, representa o tratamento que as pessoas têm com um ser sem dono. “Amarelados” é outra palavra que aparece no texto com sentido figurativo de “mulata”, a cor de pele da personagem principal. Como vimos, a figura “amarelado” pode significar pobreza, doença e pessoa sem instrução, como o personagem Jeca Tatu, de Monteiro Lobato. O sentimento de liberdade da mulher a levou a uma nova vida, longe da grande casa e de seus senhores brancos. O narrador onisciente, no final da crônicaconto “O Arranjo”, encontra a personagem principal na rua e descobre que ela está morando com um “português”, o qual este foi visto por ela na rua e foi descrito como: “velho, gordo e trôpego”. A figura “português”, além da nacionalidade, pode ser entendida como um homem que tem a cor de pele branca, pois faz parte das características físicas de um cidadão de Portugal. As palavras “velho, gordo e trôpego”, escritas, em seguida, mostram ao leitor que aquele do qual a personagem mulata estava se relacionando não era atraente e interessante, e, mesmo não

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havendo motivos para estar com ele, a mulher esclarece para o narrador: “Ele é muito bom pra mim” (SÁBADO, 1968, p. 2). Pelo seu parceiro ter idade avançada, era esse o motivo da ex-escrava não estar grávida, conclui o narrador. Quando o homem de Portugal ouve que a sua parceira justificou estar com ele por a tratar bem, o narrador observa que, a curta distância, ele abaixou os olhos a fim de esconder “nunca se saberá o quê” (p.2). A mulata e escrava da crônica-conto “O Arranjo” de Clarice Lispector é representada como cria, de comportamento desajeitado, uma mulher “fácil” aos homens e sem instrução. Embora no exercício de escrava, ela sentia-se independente e livre. A história teve um final feliz quando encontrou um homem que a fazia se sentir bem. Esse texto reflete uma realidade de preconceito racial e social ainda presente no século XXI.

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5.2 A “PERSONA” BRAVATA

“A Bravata” é uma crônica-conto que foi publicada no suplemento cultural “Caderno de Sábado” no dia 30 de novembro de 1968. O tema central da história é identidade feminina que tem como personagem principal uma mulher com o nome de Z.M. Clarice Lispector expõe as inquietações internas de uma pessoa insegura, e discute sobre a importância da originalidade. A análise do texto nesse subcapítulo irá se concentrar na classificação de figuras de linguagem que evidenciam a personalidade de Z.M, e na definição do sentido real de palavras através do dicionário Soares Amora (2008). A partir dessa coleta, poderemos discutir como a protagonista da história foi retratada por Clarice ao leitor do “Caderno de Sábado”, e o que isso significa no contexto da década de 1960. “A Bravata” dá nome a essa crônica-conto de Clarice Lispector. O substantivo já cria ao leitor uma imagem de Z.M., a personagem principal. No sentido da palavra, de acordo com o dicionário (AMORA, 2008, p. 103), significa “sf 1. Fanfarrona; 2. ameaça arrogante; quanto ao sinônimo: intimidação, ameaça e advertência”. Enquadrando-se ao contexto da história, o substantivo “bravata” está dentro do domínio conceitual jactância, cujo significado é o comportamento de alguém que revela arrogância, vaidade e orgulho. Uma mulher que demonstra ser uma ameaça através de uma forte personalidade e segurança é o que Z.M. gostaria de ser ou de, pelo menos, transparecer aos outros. Em contraponto com o significado de “bravata”, há, no texto, a evidência da baixa autoestima e a falta de entendimento da identidade da personagem principal. Isso se mostra na primeira frase do texto: “Z.M. sentia que a vida lhe fugia por entre os dedos”. Nessa oração há três figuras de linguagem chamadas personificações: “vida”, “fugia” e “dedos”. “Vida” é uma figura, segundo o dicionário Soares Amora (p. 767), que significa: “2.existência; 4. Maneira de viver”. A flexão do verbo “fugir” pertence a primeira pessoa do singular do Pretérito Imperfeito do Indicativo, cujo significado (p. 331) é “1. Desviar-se rapidamente, 2. Retirar-se para escapar a alguém ou a algum perigo, 4. Afastar-se de; evitar”. Ainda, a palavra “dedos”, no contexto da crônica-conto, é “5. habilidade” (p. 194). Em suma, a autora Clarice estava querendo dizer que o dom da vida, que é do direito do ser humano, estava se esquivando ou

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escapando do controle dessa mulher: ela é uma vítima das circunstâncias porque é incapaz de refletir sobre suas escolhas. Em seguida, na apresentação de Z.M., a cronista destaca a “humildade” como uma característica da personagem, que, na percepção dessa, não era uma mulher que chamava a atenção de um homem: “Na sua humildade, esquecia que ela mesma era fonte de vida e de criação” (SÁBADO, 1968, p. 2). A figura “humildade”, segundo o olhar da autora, aponta para a insegurança que, consequentemente, faz Z.M ser uma pessoa pouco sociável e disponível a relacionamentos amorosos. Por causa dessa característica, essa não se via como um ser humano digno da vida e de tudo que a envolve, que é compreendido através das figuras “fonte de vida” e “criação”. Clarice Lispector resgatou, em seu texto, palavras que pertencem ao léxico da linguagem bíblica. Estas podem ser associadas ao momento da história da criação do homem no livro de “Gênesis” no Antigo Testamento. Esse é o momento em que Deus cria Adão e Eva no Jardim do Éden: Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. (...). Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente (OMARTIAN, p. 4-5, 2009, grifo do autor).

Esses versículos do primeiro livro da Bíblia resgatam a relevância do ser humano e a valorização que o seu Criador deu a ele. Por não acreditar ter essa grandeza em si mesma, Z.M. não se via como uma mulher confiante, atraente e interessante e tinha dificuldade de até mesmo de se socializar. Portanto, interiormente, a personagem não se considerava como uma “fonte de vida” e de “criação”. Nelson Vieira, no seu artigo nomeado “A Linguagem Espiritual de Clarice Lispector”, estuda as relações da linguagem bíblica do Antigo Testamento com a escrita de Clarice. Umas das semelhanças que ele destaca, que são relevantes a essa pesquisa, é o uso frequente de palavras concretas, que caracterizam a narração figurativa, e o tema de identidade nas obras da autora: “como já foi mencionado, muitos dos temas na prosa de Clarice Lispector abordam assuntos de linguagem ou de escrita junto com a questão da identidade humana” (VIEIRA, 1987, p. 84).

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É isso que a cronista faz em “A Bravata”: o uso de algumas figuras que pertencem ao léxico da linguagem bíblica traz à história a questão existencial da personagem e fica claro, logo no início da crônica, que ela estava em busca de aceitação da sociedade por não se ver socialmente incluída: Então saía pouco, não aceitava convites. Não era uma mulher de perceber quando um homem estava interessado nela a menos que ele o dissesse – então se surpreenderia e a aceitava (SÁBADO, 1968, p. 2).

Após visitar uma amiga que a fez pensar sobre essa “humildade” que a atrapalhava de se socializar, Z.M. decidiu ir sozinha a um coquetel do trabalho no final de tarde daquele dia. Encheu-se de coragem após vestir um vestido mais ou menos novo e empolgou-se no momento de maquiar-se. Isso fez com que ela ficasse mais maquiada que o normal, pois Z.M. queria ter uma atitude nova em relação a si mesma. Valorizar-se era a palavra-chave daquela noite. Esse novo jeito de se arrumar, porém, fez a personagem aparentar ser outra pessoa: Então só o entendeu depois – pintou demais os olhos e demais a boca até que seu rosto parecia uma máscara: ela estava ponto sobre si mesma alguém outro: esse alguém era fantasticamente desinibido, era vaidoso, tinha orgulho de si mesmo. Esse alguém era exatamente o que ela não era (SÁBADO, 1968, p. 2, grifo do autor).

A pessoa que Z.M. desejava ser era a “bravata”. Nesse trecho, as figuras que se destacam são “rosto” e “máscara”. “Rosto”, no sentido da palavra (AMORA, 2008, p. 649), remete a “individualidade, a identidade: 2. Semblante, fisionomia; 3. Aparência, aspecto”. “Máscara”, em contrapartida, significa (AMORA, 2008, p. 449): “2. Qualquer coisa usada para resguardar ou ocultar o rosto; 3. fig disfarce, dissimulação”. Esses dois substantivos interiorizam Z.M., pois mostram o desejo dela de projetar em seu rosto e roupas uma personagem feminina, ou seja, uma imagem que supostamente os seus colegas de trabalho aceitariam. Isso aconteceu pelo motivo da mulher achar que não era interessante e nem boa o suficiente para os outros. A temática, já indicada na introdução desse subcapítulo, é construída através dessas figuras, que trazem à história o sentido de identidade feminina. Isso remete a discussão, a partir dos questionamentos de Lispector, sobre o desejo da mulher de 1960 de seguir um estereótipo, um perfil, que supostamente a sociedade afirmaria ser o padrão de beleza feminino.

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Clarice Lispector já refletia sobre a busca feminina por adequação na sociedade quando trabalhou como colunista no jornal “Correio da Manhã” e usou o pseudônimo Helen Palmer, a onze anos atrás, a partir de 1959. A temática de seus textos

na

coluna

“Correio

Feminino”

era,

obviamente,

feminilidade.

Ela

frequentemente escrevia, nessa época, sobre a sua opinião contra a “beleza de catálogo” ou a “cópia carbono”, nomes que ela mesma nomeou: A colunista condenava a cópia de aparência ou comportamento de atrizes famosas do cinema, difundidas como divas pelos meios de comunicação de massa; Era preciso, insistia, descobrir o próprio rosto (LISPECTOR, 2012, p. 79, grifo do autor).

Na inauguração da coluna no periódico “Correio da Manhã” em 21 de agosto de 1959, Clarice Lispector, com o nome de Helen Palmer, publica para as suas leitoras o perfil da mulher ideal de acordo com suas perspectivas. Ela chamou-a de a “mulher esclarecida”: Digo-lhes que esclarecida é a mulher que se instrui, que procura acompanhar o ritmo da vida atual, sendo útil dentro do seu campo de ação, fazendo-se respeitar pelo seu valor próprio, que é companheira do homem e não sua escrava (...). Você, minha leitora, não limite o seu interesse apenas à arte de embelezar-se, de ser elegante, de atrair os olhares masculinos. A futilidade é fraqueza superada pela mulher esclarecida (LISPECTOR, 2012, p. 92).

Já no primeiro dia de abril de 1960, a colunista Clarice Lispector escreve o texto “Beleza em Série”. Ela destaca para as leitoras do “Correio Feminino” que a originalidade as faz serem bonitas e interessantes. Com o pseudônimo Helen Palmer, Clarice critica negativamente o esforço das mulheres de 1960 de serem imitadoras das atrizes de “Hollywood”, como Debra Paget, Marisa Allasio e Pier Angeli. Sejam vocês mesmas! Estudem cuidadosamente o que há de positivo ou negativo na sua pessoa e tirem partido disso. A mulher inteligente tira partido até dos pontos negativos. Uma boca demasiadamente rasgada, uns olhos pequenos, um nariz não muito correto podem servir para marcar o seu tipo e torná-lo mais atraente. Desde que seja seu mesmo. (...). Os homens não gostam das mulheres em série. Se gostam daquelas estrelas é porque as acharam diferentes. Vocês, imitando-as, apenas serão consideradas ridículas. Por favor, meninas, sejam vocês mesmas (LISPECTOR, 2012, p. 94-95)!

Na crônica “A Bravata”, publicada no periódico “Caderno de Sábado” em 1968, a escritora Clarice Lispector continua, mesmo em outro veículo de

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comunicação, a discussão sobre as questões de identidade feminina e o descobrimento do amor no contexto de 1960. A personagem principal estava se esforçando para transformar-se ou aparentar-se em outra pessoa que apostava ser mais atrativa. Na continuação da história, Z.M. perdeu a coragem e ousadia quando estava pronta para sair de sua casa para ir ao coquetel. Mas na hora de sair de casa, fraquejou: não estaria exigindo demais de si mesma? Toda vestida, com uma máscara de pintura no rosto – ah persona, como não te usar e enfim ser! – sem coragem, sentou-se na poltrona de sua sala tão conhecida e seu coração pedia para ela não ir. Parecia que previa que ia se machucar muito e ela não era masoquista. Enfim apagou o cigarrode-coragem, levantou-se e foi (SÁBADO, 1968, p. 2).

Com o objetivo de mostrar que a personagem principal da história estava desconfortável com o resultado de sua maquiagem e vestimenta, mesmo que essa desejasse ser uma pessoa confiante e segura, Clarice Lispector usou uma coerência figurativa18. As palavras que dão sentido a cena são “máscara de pintura”, “persona”, “coração” e “masoquista”. A figura “máscara”, como vimos, remete a disfarce, enquanto que “pintura”, no sentido figurativo da palavra (AMORA, 2008, p. 546), significa “9. Imagem, representação”. A palavra “persona”, contudo, remete a comportamento, sinônimo da figura “máscara”. Isso significa que, de acordo com o contexto social em que está inserida, a atitude e comportamento do indivíduo muda. No caso de Z.M., a “bravata” era a “persona” para ir ao coquetel. Quando sentou no sofá de sua sala de estar, porém, a personagem principal ouviu o pedido de seu coração para não sair de casa. Essa figura de linguagem assemelha-se à própria consciência da mulher que, na raiz da palavra, significa (AMORA, 2008, p. 176) “3. Sede de sensibilidade moral, das paixões, do amor”. Nesse momento, a personagem não acreditou que conseguiria enfrentar o evento de trabalho sem companhia. A insegurança e as experiências do passado podem ser indicações de que a personagem iria se machucar. Ela mesma se intitulava como uma mulher tímida: “pareceu-lhe que as torturas de uma pessoa tímida jamais foram completamente descritas. No táxi que rolava ela morria um pouco” (SÁBADO, 1968, p. 2). Por esse motivo, Z.M. associou a palavra tortura com a figura masoquista,

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Coerência figurativa: Por coerência figurativa entende-se a articulação harmônica das figuras do texto, com base na relação de significado que mantêm entre si. As várias figuras que ocorrem num texto devem articular-se de maneira coerente para constituir um único bloco temático (SGARBI, p. 71).

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escrita no final do texto. Esses conflitos internos de identidade da personagem, presentes enquanto estava no táxi a caminho do coquetel, dava a sensação de que o carro “rolava” até o evento enquanto que ela “morria um pouco”. A figura “rolar” descreveu a sensação de Z.M, cujo sentido é: “vtd 1. Fazer girar ou andar em roda; 3. Avançar girando sobre si mesmo” (p. 646). O coquetel do seu trabalho era em um “salão enorme” (SÁBADO, 1968, p. 2), e logo que chegou ao evento, Z.M. sentiu-se incomodada com a máscara de pintura. Ela tentou conversar com várias pessoas, mas, no fim, permanecia sozinha. Ainda, a personagem principal encontrou o seu antigo amante. Ver ele, porém, fez com que ela lembrasse de momentos desse relacionamento amoroso: “E ela pensou: por mais amor que este homem tenha recebido, fui eu que lhe dei toda a minha “alma” e todo o meu corpo” (SÁBADO, 1968, p. 2, grifo do autor). Para entendermos qual o sentido que Clarice Lispector queria transmitir através dessa oração, nesse momento da história, é importante classificar a figura de linguagem “alma”. Essa é definida como metáfora que acontece quando o sentido original de uma palavra não é considerado adequado ao sentido geral da frase, por isso, esse é substituído por outro. O critério dessa substituição é a intersecção, em que ambas as figuras têm traços em comum. Fiorin (2001), explica: “Metáfora é, então, a alteração do sentido de uma palavra ou expressão quando entre o sentido que o termo tem e o que ele adquire existe uma intersecção” (p. 122). Na frase destacada, a palavra “alma” significa “sf 1. Essência imaterial do ser humano, espírito; 4. vida” (AMORA, 2008, p. 30). Logo, é impossível Z.M. dar a sua alma ao homem, por isso essa figura é substituída por “coração”, que tem o sentido de “3. amor” (p. 176). Em suma, a entrega da personagem principal a um antigo relacionamento amoroso remete a figura “coração”. Quando Z.M., porém, não suportava mais ficar com a cabeça em pé, ela pediu ajuda a uma colega de trabalho para ir com ela até a porta. À espera do táxi, Z.M. concluiu que era uma mulher infeliz: “Sim, era diferente. Mas sim, era tímida. Sim, era supersensível. Sim, vira um amor passado” (CADERNO, 1968, p. 2). A necessidade da mulher de afirmar as suas próprias características reflete a figura de linguagem pleonasmo: “É a repetição de um termo já expresso ou de uma ideia já sugerida, para fins de clareza ou ênfase. O grande juiz entre os pleonasmos de valor expressivo (...) é o uso, e não a lógica” (BECHARA, 2003, p. 594). Em suma, a palavra “sim”, escrita

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quatro vezes na oração, foi preciso para encadear o momento-chave da história quando Z.M. reafirma suas qualidades e defeitos e desiste de usar a “máscara”. Logo que a protagonista tira a “persona” de seu rosto, Clarice Lispector escreve a frase: “o escuro e o perfume da primavera” (SÁBADO, 1968, p. 2). O “escuro” e o “perfume” refletem o atual sentimento da personagem principal, em que a primeira é uma sensação visual e a segunda é olfativa. Não é propriamente o significado real dessas palavras, mas o sombrio da noite e o cheiro que essa estação traz para o interior da mulher. A figura de linguagem característica dessas sensações é sinestesia que, segundo Fiorin (2001, p. 132), é “o mecanismo de construção textual que consiste em reunir, numa só unidade, elementos designativos de sensações relativas a diferentes órgãos dos sentidos”. Esse recurso linguístico foi usado, portanto, para expressar os sentimentos de Z.M. que refletem aos seus questionamentos existenciais. Após a exposição das emoções da protagonista, a autora da crônica-conto afirma: “o coração do mundo batia-lhe no peito” (SÁBADO, 1968, p. 2). A figura de linguagem que classifica a frase é hipérbole que indica exagero: Hipérbole que significa do grego hyperbolè, lançar sobre, é uma figura de linguagem também conhecida como intensificação, é a figura de pensamento que consiste na ênfase resultante do exagero deliberado, quer no sentido negativo, quer no positivo. É uma forma de exagerar a verdade, mas com respeito a beleza, seja por amplificação, seja por atenuação. É o que ocorre em expressões cotidianas como “morreu de rir”, “morto de fome”, “já te disse quatrocentas bilhões de vezes...”, ou em construções literárias (LOURES, p. 9-10).

Na última oração destacada, portanto, há a expressão figurativa o “coração do mundo”. O “mundo” é o exagero que está relacionado ao sentimento de “peso”, como se Z.M. estivesse sentindo as dores e sentimentos de todos os habitantes da terra. Essa oração remete a figura “humildade”, uma característica de Z.M., que está relacionada a sensação de inadequação da personagem. Logo após Z.M. chegou em sua casa. Esse lugar significa segurança e conforto, onde a mulher da história pode ser ela mesma. A personagem, quando foi retirar a sua maquiagem, tinha muitas inquietações: Era inútil esconder: a verdade é que não sabia viver. Em casa estava agasalhante, ela se olhou ao espelho quando estava lavando as mãos e viu a persona afivelada no seu rosto; a persona tinha um sorriso parado de

76 palhaço. Então lavou o rosto e com alívio estava de novo de alma nua. Tomou então uma pílula para dormir. Antes que chegasse o sono, ficou alerta e se prometeu que nunca mais se arriscaria sem proteção. A pílula de dormir começava a apaziguá-la. E a noite incomensurável dos sonhos começou (SÁBADO, 1968, p. 2, grifo do autor).

Clarice Lispector finalizou essa crônica com as figuras que correspondem à temática “identidade feminina”, como “agasalhante”, “espelho”, “persona”, “palhaço”, “alívio” e “alma nua”. Com a junção das palavras “agasalhante” e “alívio”, a cronista afirma que Z.M. estava em um momento confortável e íntimo. Após se ver no espelho, essa percebeu que a “persona” que estava em seu rosto tinha um sorriso parado, triste, como a de um “palhaço”, que é feito com maquiagem. Quando a personagem principal retirou aquela máscara, ela voltou a ser ela mesma, e estava de “alma nua”. A crítica Nícea, que estuda sobre as obras clariceanas, afirma que a autora denuncia em seu trabalho o esforço das mulheres de sua época de aparentar serem outras pessoas. Essa busca por aceitação da sociedade, segundo Clarice, é fruto da insegurança. No trecho, Nícea reflete sobre uma história desenvolvida pela escritora com a mesmo tema de “A Bravata”: (...) a autora denuncia entre as convidadas uma naturalidade fingida, comum às mulheres que a todo custo desejam apresentar uma aparência diversa de sua realidade, comportamento que causa insegurança e constrangimento no momento em que algo sai de seu controle. Eis aí uma crítica velada sobre o comportamento pouco natural das mulheres em sociedade (NÍCEA, 2007, p. 93).

A crônica-conto “A Bravata”, em suma, apresenta Z.M.: uma personagem humilde, que não tem o controle das circunstancias de sua vida, é tímida e insatisfeita consigo mesma. Com a “persona bravata” no rosto, ela tenta ir a um evento de trabalho sem companhia e, aquela máscara mostra para ela que fingir ser outra pessoa não valia a pena. Isso significa que, para Clarice Lispector, ser você mesmo é a sua melhor versão.

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5.3 AS ATENIENSES E O GENERAL

“A Perseguida Feliz” é uma crônica-conto de Clarice Lispector publicada no Caderno de Sábado em 21 de setembro de 1968. A história tem como principais personagens três meninas do terceiro ano do ginásio que ficam desnorteadas após a mensagem de um escritor anônimo. O tema da crônica-conto é a sexualidade na adolescência. No início da crônica-conto “A Perseguida Feliz”, Clarice Lispector mostra ao leitor como uma menina do terceiro ano do ginásio olha para o sexo oposto. A classe dela é composta por meninos e meninas de, em média, quatorze anos de idade. De acordo com essa faixa de idade, a inocência e a disputa infantil entre os gêneros imperava nos corredores dessa escola. Durante uma aula, porém, em meio a explicação sobre a guerra do Paraguai, a menina cria em sua mente uma imagem que representa a relação de meninos e meninas: Quando depois lembrava-se deles era como num instantâneo fotográfico batido e depois imediatamente imobilizado. E esse instantâneo apesar de nele todos estarem rígidos e bem comportados, parecia-lhe a súbita imobilidade de uma briga física, onde se enovelavam pernas de menino com braço de mocinha formando um vívido monstro masculino e feminino que ela digeria em devaneios durante as aulas da guerra do Paraguai. Guerra da qual possivelmente nunca se refizera, pois quando pensava no ginásio vinha-lhe de imediato trombetas do Paraguai (SÁBADO, 1968, p. 2).

A cronista usa figuras para construir a ideia de uma briga física, e por isso ela usa expressões, como “pernas de menino com braço de mocinha” e “monstro masculino e feminino”. As palavras “pernas” e “braço” fazem parte dos membros do corpo humano, mas que, na construção da frase, indicam socos e chutes de menina e de menino. Essa briga se intensifica e cresce no qual não se pode ver mais onde estão essas pessoas, e então essa mistura se transforma em um “monstro feminino e masculino”. As trombetas do Paraguai é uma relação que a narradora faz com o conteúdo que estava sendo dado no momento da aula, e que se assemelha com a guerra entre os sexos, uma realidade característica dessa faixa de idade. É como se, no início dessa história, ainda não havia despertado o interesse amoroso de ambas as partes. Essa descrição de imagem era um “devaneio” que, no sentido da palavra

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(AMORA, 2008, p. 225), significa sonho ou fantasia que estava sendo digerido, ou seja, alimentado pela menina. Uma atitude anônima muda todo o quadro de realidade dessa turma e choca principalmente três meninas do terceiro ano do ginásio. Clarice Lispector antecipa esse acontecimento como a frase: “Houve evidentemente a primeira vez” (SÁBADO, 1968, p.2), que está associada à temática sexualismo na adolescência dessa crônicaconto. A menina apresentada no início do texto senta em sua cadeira na sala especial para desenho e, como de costume, olha para a larga prancheta que é usada para praticar o exercício de desenho geométrico. A mensagem de um escritor desconhecido, ao mesmo tempo, assusta e interessa a menina, conteúdo no qual ela apelida como “insultos de amor”. Ao sentar-se em frente à prancheta, descobriu-a, logo ao primeiro olhar, coberta dos mais miúdos hieróglifos: desenhos e palavras, tudo em tipo apertado e nítido, todo com ar organizado. Antes mesmo de entender, soubera com um choque: eram insultos de amor. Antes mesmo de entender os desenhos e as minúcias simbólicas, já empalidecera. Empalidecera de curiosidade, de surpresa? Quanto aos escritos, ela quase não compreendia, tanto a terminologia era técnica e especializada, quase técnica de outro país, copilação laboriosa de um espírito analítico (SÁBADO, 1968, p. 2, grifo do autor).

As palavras “insultos de amor” estão na mesma frase e, portanto, elas se contradizem. A primeira figura significa “1. Injúria, ultraje, afronta” (AMORA, p. 394, 2008) e a segunda “4. Zelo, cuidado” (p. 38). Para mostrar a contrariedade do amor do autor anônimo, Clarice Lispector usa a figura de linguagem paradoxo, a mesma usada no texto “O Arranjo”. Para mostrar ao leitor que nessa mensagem havia, além de palavras, ilustrações, a cronista usou a expressão figurativa “miúdos hieróglifos” que remete a antiga língua do povo egípcio. Esses sinais eram agrupados para construir uma ideia harmoniosa e eram escritos dentro de quadrados imaginários. Logo, eles eram “miúdos”, que significa “1. Muito pequeno (AMORA, 2008, p. 467)”. Esse conteúdo informativo sobre sexo deixou a menina pálida por causa dos desenhos que ali estavam e das “minúcias simbólicas”. A figura “minúcias” também remete a tamanho pequeno: “1. Coisa muito miúda” (AMORA, 2008, p. 464). O que estava escrito na larga prancheta, porém, a personagem compreendia pouco, pela razão de ser

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mostrado por alguém supostamente “laborioso”, ou seja, trabalhador, ativo, diligente (AMORA, 2008, p. 413) e de “espírito analítico”. No momento que essa menina encontrou mais duas colegas que estavam também sendo alvo das mensagens desse escritor anônimo, elas decidiram se unir para encontrar essa pessoa. Clarice Lispector, nessa parte da história traz uma discussão cultural sobre um perfil de mulher específico. As personagens principais da crônica-conto eram duas morenas e uma loira. Para mostrar ao leitor os pensamentos da loira, a cronista desenvolve uma das técnicas linguísticas que ela usava chamada monólogo interior, que já foi explicado no início desse capítulo. Através dessa estratégia na narração, uma crítica ao preconceito com as loiras é evidenciada. A terceira era loura, com o desalento de ser loura, o que lhe parecia significar, como material de capacidades, ser nula nessas capacidades. Loura, pensava, era uma coisa infelizmente para o divino, tanto que as fadas e os anjos eram louros. Que lhe reservava o destino senão suas indecisões? Sua alma bem lhe parecia morena, mas quem o descobria sob aquela aparência o dourado violento? No entanto, uma menina ou uma máfia de meninos (SÁBADO, 1968, p. 2).

Nesse trecho podemos encontrar substantivos concretos que representam culturalmente a pureza e a inocência através da cor loiro: “divino”, “fadas” e “anjos”. Essas figuras, segundo a menina, não representam a sua personalidade, mas sim uma coloração menos suave e sutil, como a classificação “dourado violento”. A palavra “alma”, no texto, associa-se ao sentido de “3. pessoa” (AMORA, 2008, p. 30), e isso significa, apesar de aparentar ser inocente, na realidade ela não era. Portanto, a sua alma é “morena”, como as outras colegas. Ainda, a expressão “máfia de meninos” que a personagem loira os define no trecho, o leitor pode perceber que ela os vê como rivais e possui a mesma concepção de briga física que foi mostrada no início da crônica-conto. Voltando à três meninas, mesmo elas não tendo um plano formado de como descobrir quem era o escritor desconhecido das largas pranchetas, elas desejavam agir. Sentiam-se vítimas e invadidas na sua privacidade por um homem do qual elas não sabiam quem eram. Elas acreditavam ter o direito de protestar. As três pareciam escoteiras ou bandeirantes que tivessem sido interrompidas do Caminho do Bem, e agora se tivessem transformado em três detetives tontos; qual dos meninos, ou rapazes teria sido ousado? Perscrutavam cada um deles, mas esses olhares insistentes não eram provocantes porque elas

80 estavam imbuídas do direito de...de que mesmo? Pois não é que não se lembravam mais de que direito estavam imbuídas (SÁBADO, 1968, p. 2)?

No trecho, as figuras “escoteiras” ou bandeirantes estão associadas ao escotismo, um movimento mundial que visa educar o jovem a ter valores como honra, altruísmo, disciplina, respeito, entre outros. As três meninas do ginásio, no entanto, incentivadas a descobrir o sujeito desconhecido, são corrompidas dos bons costumes para virarem “detetives tontos”. Na última frase do texto, a cronista denuncia a vontade das personagens de ter acesso a direitos, mesmo elas não compreendendo qual desses pertenciam a elas. A necessidade de protestar das três meninas pode estar associada ao movimento feminista, que, no final da década de 1960, era um assunto debatido intensamente. A segunda onda do feminismo se caracterizava pela busca de direitos iguais entre os sexos e o fim da discriminação das mulheres. Essa manifestação passou a criticar o papel da mulher como dona de casa e incentivava a entrada feminina no mercado de trabalho. Esse movimento feminista, nesse momento histórico, afirmava que as mulheres precisavam ter os mesmos direitos sociais que os homens. De acordo com Hall (2006, p. 46): “o que começou com um movimento dirigido à contestação da posição social das mulheres expandiu-se para incluir a formação das identidades sexuais e de gênero”. Segundo Pajolla (2010), as crônicas de Clarice Lispector abordam o tema sobre feminismo através da construção da identidade dos personagens nas suas inquietações existenciais. Esse assunto é tratado indiretamente nos textos clariceanos através do jornal: A transformação porque passa o sujeito, as mulheres em especial, é pano de fundo de muitas crônicas escritas por Clarice no período de efervescência do feminismo. Mas os textos publicados no jornal não tocam diretamente em questões como a entrada das mulheres no mercado de trabalho ou a revolução sexual em curso. Elas refletem a dimensão psíquica das personagens, suas percepções existenciais e íntimas. Essa ideia confirma a análise feita no capítulo anterior sobre a forte carga de interiorização como uma das principais características da crônica clariceana (PAJOLLA, 2010, p. 72).

Movidas pela necessidade de chamar a atenção ou de se sentirem dignas, as duas morenas e a loira contaram aos responsáveis da secretaria da escola sobre o

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ocorrido: “As três graças orgulhosamente desmoralizadas, representantes de um mundo feminil tão amado e vilipendiado” (SÁBADO, 1968, p. 2). Essa oração tem sentido contraditório, pois usa as figuras “desmoralizadas”, “amado” e “vilipendiado”. A palavra “desmoralizado” significa “2. Desacreditado” (AMORA, 2008, p. 218), enquanto que o verbo “vilipendiar” é “3. Desprezar” (p. 769). Quando a autora diz que elas pertencem a uma realidade amada, desacreditada e desprezada, Clarice faz uma crítica sobre a desvalorização da mulher na sociedade. Após a denúncia do ocorrido, as três personagens nunca mais receberam a mensagem na larga prancheta. Elas, porém, vieram a descobrir quem era o escritor anônimo: um repetente de sua turma de nome grego. Para a surpresa das três meninas, o seu colega era atraente e de personalidade forte, e por isso, elas compararam ele a um espartano Ele!? A quem seus pais haviam dado um nome grego. Decerto espartano: pois para ele a mocinha que espartanamente sobrevivesse à severidade e crueza de tal amor, esta seria a única a merecer vivê-lo, ao amor. Nenhuma das três atenienses sobrevivera à prova (SÁBADO, 1968, p. 2).

Nesse trecho fica claro que, até esse momento, as três meninas do ginásio sentiam-se o centro das atenções de um escritor anônimo. Apesar de aparentar-se revoltadas com o ocorrido, elas se interessavam por essa dedicação do até então desconhecido autor. Quando descobriram quem era esse menino, sentiram-se insuficientes para um dia relacionar-se com ele, pois a personalidade dele está associada a força e a crueldade de um espartano. O verbo “sobrevivesse” e os substantivos “severidade” e “crueza”, portanto, são figuras que indicam o grande esforço que as personagens teriam que fazer para merecer os “insultos de amor” do colega. Ainda, elas foram associadas com os atenienses e ele aos espartas. Historicamente, esses dois povos da Grécia Clássica tinham um estilo de vida completamente diferente e, em consequência disso, também as suas mulheres. As atenienses eram educadas para serem donas de casa: A ateniense casada vivia a maior parte do tempo confinada às paredes de sua casa, detendo no máximo o papel de organizadora das funções domésticas, estando de fato submissa a um regime de quase reclusão (TÔRRES, 2001, p. 49).

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As mulheres espartanas, por outro lado, eram independentes, tinham um caráter autoritário e eram insubmissas aos seus maridos. Essas atuavam também nas guerras. A mulher espartana, de acordo com Kennard & Cartet (1994) era audaz e realizadora, autoritária com seus maridos, sendo admirada ou caluniada por sua independência, dependendo daqueles que escreveram sua história. Essa independência era consequência da ausência de seus maridos que permaneciam à disposição do exército até os 30 anos e apenas ocasionalmente tinham contato com suas esposas (RUBIO, 1999, p. 51).

Clarice Lispector afirmou que as três meninas eram as atenienses. De acordo com a citação de TÔRRES (2001), mesmo que não esteja na crônica-conto “A Perseguida Feliz”, algumas figuras e expressões podem ser associadas às características femininas desse povo: confinada, funções domésticas e submissa. Com relação a crítica de Clarice sobre o feminismo, as personagens principais de sua história são consideradas mulheres do sistema tradicional. Além disso, no final da crônica-conto, as meninas do ginásio não se sentem mais a altura do escritor das pranchetas, e consideram não merecedoras desse amor “cruel” e “severo” de um espartano. O quadro reverteu-se. As três personagens arrependeram-se de ter denunciado, e as mensagens nunca mais apareceram em suas pranchetas na sala especial para desenho. Via-se que desprezava todas nós: parecia um homem entre tolos e tolas. Esse não chupava bala. Tinha rosto escanhoado, de olhos finos à flor da pele, olhar curto, cabelos cortados à militar. Como não adorá-lo com horror? (...). O espartano, depois de proibido pela Secretaria, tomou um desdenhoso ar de exilado: fizera o que pudera, mas se nós não passávamos do que éramos, pior para nós, ele lavava as mãos. Grande futuro o esperava, ao general (SÁBADO, 1968, p. 2).

A crônica-conto “A Perseguida Feliz” retratou as três meninas do ginásio através de suas características físicas, como “morena” e “loira”. Essa foi associada como “tola” e “sonsa”. Todas elas tornaram-se “detetives” e protestavam os seus direitos. No fim, tornaram-se “desmoralizadas” e “amadas”, “atenienses” e “desprezadas”. Clarice Lispector, em suma, quis mostrar a vulnerabilidade feminina com as injustiças sociais, mas também destaca a necessidade feminina da atenção do homem.

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5.4 UMA CRIATURA FEITA PARA AMAR

“Uma História de Tanto Amor” é a crônica-conto publicada no “Caderno de Sábado” em 10 de agosto de 1968 produzida por Clarice Lispector. A temática da história é amor infantil e conta sobre o relacionamento de uma criança com as suas galinhas. Essa menina representa a naturalidade e a potencialidade feminina de entregar-se ao amor. No interior de Minas Gerais há uma menina apegada as suas galinhas chamadas Pedrina e Petronilha. Ela lhes conhece tão bem que reconhece os sentimentos e as dores das suas amadas. Logo no início da crônica-conto, Clarice Lispector mostra o relacionamento fora do comum de uma criança com as aves do seu galinheiro: Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes conhecia a alma e os anseios íntimos. A galinha é ansiosa, enquanto o galo tem angústia quase humana: falta-lhe um amor verdadeiro naquele seu harém, e ainda mais tem que vigiar a noite toda para não perder a primeira das mais longínquas claridades e cantar o mais sonoro possível. É o seu dever e a sua arte. (SÁBADO, 1968, p. 2).

Pode-se identificar no primeiro parágrafo do texto que a autora usa a figura de linguagem prosopopeia19 para inserir sentimentos humanos a seres inanimados. Ela usa palavras, como “ansiosa”, “angústia”, “amor verdadeiro”, “cantar”, “dever” e “arte” e essas são inseridas na vida de animais domésticos. Além disso, a criança, protagonista da história, cuida de Pedrina e Petronilha como se estivesse brincando de médica com as suas bonecas. Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela cheirava embaixo das asas dela, com uma simplicidade de enfermeira, o que considerava ser o sintoma máximo de doenças, pois o cheiro de galinha viva não é de se brincar. Então pedia um remédio para a sua tia (SÁBADO, 1968, p. 2, grifo do autor).

Figura de linguagem prosopopeia: “é o expediente de construção textual que consiste em se atribuir qualidades ou acontecimentos próprios do ser humano a personagens não-humanos (animais, plantas ou coisas). Esse mecanismo recebe o nome de prosopopeia ou personificação” (FIORIN, 2001, p. 131). 19

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Para ilustrar ao leitor o modo como a menina buscava enfermidades que as galinhas não tinham e desejava ver-lhes como seres humanos, a cronista usa figuras e expressões que relacionam o universo da medicina: “cheirava”, “asas”, “simplicidade de enfermeira” e “remédio”. A palavra “cheirava” é uma ação que indica a busca por um sintoma em um indivíduo, as “asas” são como os braços de um ser humano, em que a criança busca por um cheiro anormal. Ainda, a “simplicidade de enfermeira” mostra o quanto a menina agia com normalidade e tratava esse cuidado das galinhas com seriedade. Quando descobriu um sintoma, ao seu ver, pediu um remédio para a sua tia, uma parente do qual tinha intimidade. A criança achava que ela iria entender a sua preocupação com as duas aves. A tia, então, deu à personagem “um líquido escuro que a menina desconfiava ser água com uns pingos de café” (SÁBADO, 1968, p. 2). O cheiro embaixo das asas de Pedrina e Petronilha, porém, permanecia forte. Não ocorreu na criança dar um desodorante porque “nas Minas Gerais onde o grupo vivia não eram usados assim como não se usavam roupas íntimas de nylon e sim de cambraia” (SÁBADO, 1968, p. 2). Clarice Lispector, durante a narração da crônica-conto “Uma História de Tanto Amor”, fazia referências culturais e o sotaque característico de pessoas interioranas de Minas Gerais como na oração acima, em destaque: “nas Minas Gerais, não eram usados (desodorantes) e roupas íntimas de cambraia”. Além disso, pela família da criança viver no campo, não havia uma farmácia para ela “consultar” as galinhas. A personagem principal decidiu dar o remédio para as duas galinhas, Pedrina e Petronilha, para garantir que essas não pegassem “contágios misteriosos”. Todo o esforço e cuidado da criança com as aves, segundo o narrador, não surtia efeito, pois para a menina parecia que elas não queriam ser curadas. Clarice Lispector, então, relacionou as galinhas com os homens. Era quase inútil dar o remédio porque Pedrina e Petronilha continuavam a passar o dia ciscando o chão e comendo porcarias que faziam mal ao fígado. (...). A menina ainda não tinha entendido que os homens não podem ser curados de serem homens e as galinhas de serem galinhas: tanto o homem como a galinha têm misérias e grandezas (a da galinha é a de pôr um ovo branco de forma perfeita) inerentes a própria espécie (SÁBADO, 1968, p. 2, grifo do autor).

Nesse momento da crônica-conto, Clarice Lispector iguala os homens e as galinhas, e essa relação é evidenciada através das figuras “curados”, “misérias”,

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“grandezas” e “espécie”. A palavra “cura”, segundo o dicionário Soares Amora, significa “fig regeneração; 5. Emenda, melhora” (p. 188, 2008). A figura “miséria” (p. 466) é “sf 1. Estado de penúria, 2. Estado mesquinho, vergonhoso, indigno”; enquanto que “grandeza” (p. 349) tem o significado de “sf 1. Qualidade de grande; 2. Magnitude, generosidade, bondade”. Esses dois últimos substantivos concretos ressaltam as qualidades e os defeitos dos homens e das aves. A figura “espécie” (p. 281), por fim, significa “sf 1. Qualidade, natureza; 2. Classe, categoria; 3. Conjunto de seres que possuem características em comum”. A cronista, na história, coloca de igual para igual o valor de dois seres do qual a menina interiorana e as mulheres se relacionam: as galinhas para a criança, e os homens para as mulheres. A menina frequentemente olhava para as galinhas e percebia algo que, a ser ver, era necessário ser mudado. Um dia a personagem achou Pedrina e Petronilha magras demais, e decidiu engordá-las. Ela não sabia que, alimentando as aves de maneira exagerada como estava fazendo, essas iriam para o “destino da mesa” (SÁBADO, 1968, p. 2) mais rápido do que o normal. A razão da criança de ser tão atenciosa era porque tinha facilidade para o amor.

A menina tornou-se grande conhecedora intuitiva de galinhas naquele imenso quintal das Minas Gerais. (...). A menina era criatura de grande capacidade de amar: uma galinha não corresponde ao amor que se lhe dá e, no entanto, a menina continuava a amá-las sem esperar reciprocidade (SÁBADO, 1968, p. 2).

A mensagem central da crônica-conto “Uma História de Tanto Amor” é o trecho acima. Clarice Lispector usa uma personagem feminina e infantil para mostrar ao leitor que, através dessa “capacidade de amar” sem esperar reciprocidade é uma ação evidenciada pelas mulheres brasileiras de 1960. As figuras “imenso quintal” descreve ao leitor a percepção do ambiente através de uma criança, no qual é indicado nesse adjetivo e substantivos concretos a média de idade que tem o personagem principal da crônica-conto. Através da “intuição”, a menina conhecia suas galinhas e, mesmo elas não correspondendo a esse amor, ela “continuava”, ou seja, persistia no cuidado e carinho com as aves. A cronista reflete também, em outras crônicas, o que o homem representa para a mulher. No texto “Amor Imorredouro”, publicado no periódico “Jornal do Brasil” em 9 de setembro de 1967, Clarice conta ao leitor uma situação cotidiana referente a

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esse assunto. Na casa de uma amiga, Clarice está conversando por telefone com outro amigo, e ela lhe contou sobre o seu trabalho de cronista no jornal paulista. Logo, ela fez uma pergunta pertinente para ele sobre o interesse das mulheres. E sem mais nem menos perguntei: o que mais interessa às pessoas? Às mulheres, digamos. Antes que ele pudesse responder, ouvimos do fundo da enorme sala a minha amiga respondendo em voz alta e simples: O homem. Rimos, mas a resposta é séria. É como um pouco de pudor que sou obrigada a reconhecer que o que mais interessa à mulher é o homem (LISPECTOR, 2012, p. 125).

No decorrer dessa crônica, a autora afirma que acredita que, para o homem, o maior interesse dele também é a mulher. Com sinceridade, Clarice Lispector reflete sobre como o homem faz as mulheres se sentirem aceitas e felizes. Ela conclui que, por mais que o homem fira a mulher e a mulher ao homem, os dois não podem viver sem o outro.

O homem. Como o homem é simpático. Ainda bem. O homem é a nossa fonte de inspiração? É. O homem é o nosso desafio? É. O homem é o nosso inimigo? É. O homem é o nosso rival estimulante? É. O homem é o nosso igual ao mesmo tempo inteiramente diferente? É. O homem é bonito? É. O homem é engraçado? É. O homem é um menino? É. O homem também é um pai? É. Nós brigamos com o homem? Brigamos. Nós não podemos passar sem o homem com quem brigamos? Não. Nós somos interessantes porque o homem gosta de mulheres interessantes? Somos. O homem é a pessoa com quem temos o diálogo mais importante? É. O homem é um chato? Também. Nós gostamos de ser chateadas pelo homem? Gostamos (LISPECTOR, 2012, p. 126).

A menina da crônica-conto “Uma História de Tanto Amor” teve que lidar com a morte de suas galinhas. Um dia, sua família fê-la visitar a casa de um parente muito longe de sua casa, e eles comeram a Petronilha. Quando a menina soube que os membros de sua casa fizeram isso, a criança ficou braba com todos, principalmente com o seu pai, que era o que mais gostava de comer carne de galinha. A outra ave, amada pela criança, também faleceu. A personagem principal acelerou a morte de Pedrina colocando ela “em cima daqueles grandes fogões de tijolos das fazendas das minas-gerais” (SÁBADO, 1968, p. 2). Logo que viu a galinha tremendo de frio no quintal, embrulhou-a em um pano preto e colocou Pedrina em cima de tijolos quentes. Consequentemente, na manhã seguinte, a ave estava morta. Quando compreendeu

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que apressara a morte de sua galinha de estimação, ficou entre “lágrimas intermináveis” (p. 2). Quando estava mais crescida, a menina teve outra galinha. O relacionamento que ela teve com essa ave foi diferente: “O amor por Eponina: dessa vez um amor mais realista e não romântico: era o amor de quem já sofreu por amor” (SÁBADO, 1968, p. 2). Sentindo-se mais experiente e madura para esse relacionamento com a ave de seu quintal, a personagem entendeu que era o “destino fatal” dessa ser comida: “As galinhas pareciam ter uma pré-ciência de próprio destino e não aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha é sozinha no mundo” (p. 2). Por essa razão, a menina sabia exatamente o que fazer quando Eponina vir a falecer. Lembrou-se que, quando a primeira galinha chamada Petronilha morreu, a sua mãe disse para a criança que era importante comer a carne dessa ave. Era um jeito de seus amados animais ficarem vivos dentro dela. Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente, estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não temos Petronilha dentro de nós. É uma pena. (...). Mas a menina não esquecera o que a sua mãe dissera a respeito de comer bichos amados: comeu Eponina mais do que todo o resto da família, comeu sem fome, mas com um prazer quase físico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se tornaria sua do que em vida (SÁBADO, 1968, p. 2).

Na última parte da crônica-conto, a personagem principal mostra ao leitor que o seu relacionamento com as galinhas era quase doentio, a ponto de, segundo o narrador, ela comer a carne e o sangue do animal. No trecho acima, a primeira frase é a fala da mãe que incentivou a criança a comer a carne de Petronilha, e após isso, vêm a consequência desse conselho materno. A personagem principal, na sua fantasia, realmente acredita que a ave Eponina permanecerá viva e se “incorporará” (SÁBADO, 1968, p. 2) nela. Nessa refeição, a menina teve ciúmes de quem comia a carne de Eponina. A cronista, por fim, termina a história com essa frase: “A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens” (p. 2). “Uma História de Tanto Amor” apresenta uma criança como uma “criatura de grande capacidade de amar”. Ela cuidava de suas galinhas com “simplicidade de enfermeira”, e conhecia a “alma” e “os anseios mais íntimos delas". Na história, a ave é relacionada com o homem. Vemos, na personagem principal, a persistência do amor mesmo sem reciprocidade. Clarice Lispector cria a representação de uma mulher que

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se entrega ao amor mesmo que o cuidado dela trouxe a tragédia naquele que ela estava se relacionando.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector no ‘Caderno de Sábado’” investiga as figuras narrativas que constroem as perspectivas femininas de 1960 sob o olhar da autora. Essa pesquisa tem como tema o jornalismo cultural e discute sobre o papel dessa profissão na sociedade. A investigação tem como pergunta central: “como se constrói a expressão da intimidade nas crônicasconto de Clarice Lispector no ‘Caderno de Sábado’”? Essa investigação é relevante para a área do jornalismo porque defende a importância da capacitação de um profissional de cultura. Como vimos, no século XXI, há poucas referências de um trabalho de qualidade. A escolha de um gênero jornalístico, portanto, como a crônica, abre uma discussão para compreender a verdadeira função desse texto para os leitores brasileiros. A partir disso, explorar a trajetória, as características e os principais autores que escreveram a crônica contribuiu para investigar uma área na imprensa pouco “reconhecida” no mercado no Brasil. Apesar de que, esse texto, é considerado o mais antigo do país e que define a cultura do jornalista de ser o “porta-voz” da informação e, portanto, do cotidiano. Ainda, pensar nos cadernos culturais para se entender uma época, mais especificamente, a década de 1960, é importante porque o jornalista cultural tem o papel de mapear os aspectos relevantes de um período no seu país. Por isso, é possível fazer essa investigação através de periódicos de cultura. O “Caderno de Sábado”, que é o suplemento em destaque nessa pesquisa, é considerado uma referência desse jornalismo no Rio Grande do Sul. Resgatar, em suma, as crônicasconto de Clarice Lispector, que constroem as perspectivas femininas de sua década, é importante para o Estado. Apesar da autora não ser considerada uma jornalista cultural, Clarice era uma escritora que investia em recursos estilísticos. Um profissional de cultura que quer escrever um texto de qualidade, portanto, precisa conhecer e ter domínio de estratégias de estilos da língua portuguesa. Isso é relevante porque, quanto mais o jornalista é capaz de transmitir informações de forma clara e elaborada, maior será a compreensão do leitor no texto. Conhecer, em suma, a forma de escrita inventiva e expressiva que Lispector usa nas quatro crônicas-conto publicadas, em 1968”, no “Caderno de Sábado”, poderá auxiliar o interessado a criar a sua forma de escrita.

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A resposta da pergunta central, “como se constrói a expressão da intimidade nas crônicas-conto de Clarice Lispector no ‘Caderno de Sábado’?”, portanto, está na estratégia de linguagem que a escritora usou para escrever a sua opinião nas quatro crônicas-conto. Entre muitos recursos estilísticos que Clarice Lispector oferece para a investigação, foi escolhido as figuras de linguagem. Essas são palavras concretas que criam um efeito de realidade no texto, pois se referem a elementos do mundo natural. A partir da identificação dessas “palavras-chave” que caracterizam as personagens femininas nos textos, podemos entender a subjetividade da cronista. As figuras narrativas nos permitem compreender além do significado original da palavra, e, por isso, podemos fazer explorar e interpretar as obras clariceanas. Na crônica-conto “O Arranjo”, Clarice Lispector reflete sobre a relação de negros, mulatos e brancos através da personagem escrava e de seus senhores. A personagem principal é tratada durante a história com preconceito, desrespeito e maus tratos. A representação dela é de uma mulher fácil aos homens, sem instrução e controversa. No texto “A Bravata”, no entanto, a cronista discute sobre o esforço feminino em mostrar para a sociedade outra personalidade e outro comportamento, diferente do que a mulher é. A protagonista da história é tímida, insegura, que sente indigna de viver a própria vida e de fazer escolhas. A crônica-conto “A Perseguida Feliz” reflete sobre estereótipos, a falsa inocência feminina e a necessidade da mulher de atenção masculina. As três personagens principais são representadas como vulneráveis, amadas e, ao mesmo tempo, desprezadas, de acordo com o tratamento que o homem dá a elas. O texto “Uma História de Tanto Amor”, por fim, mostra a facilidade e a necessidade da mulher de amar o sexo oposto, em que a autora relaciona a galinha e o homem. A protagonista infantil da crônica-conto é retratada como perigosa, amorosa e, ao mesmo tempo, doentia (de amor). Ainda no capítulo cinco, entendemos que as figuras de linguagem foram usadas pela Clarice Lispector de acordo com a intensão que ela queria dar ao texto. A autora usou a figura paradoxo, por exemplo, para indicar a contradição da escrava mulata, e inseriu, Uma História de Tanto Amor”, a figura prosopopeia a fim de mostrar que a criança associa as suas galinhas com os seres humanos. Além disso, a cronista escolhe diversas figuras de linguagem para retratar as angústias e o vazio de Z.M, como a sinestesia e metáfora, e, também, ela usa novamente o paradoxo para indicar a contrariedade do amor oferecido pelo escritor anônimo pelas três colegas do ginásio.

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A partir desses resultados, podemos concluir que é possível ser subjetivo em textos como as crônicas-conto, além de ser possível em outros gêneros jornalísticos. Escolher, também, recursos estilísticos, como as figuras de linguagem, no seu texto é uma estratégia que possibilita o interesse e a atratividade do seu trabalho. Ainda, aprendemos que a sensibilidade do cronista e, portanto, do jornalista cultural, é uma diferenciação no mercado. Identificar a sua forma de se expressar através da escrita autoral é uma maneira de aproximar o público leitor no seu texto. Além disso, ter as informações que quer transmitir de forma ordenada e clara torna possível uma maior compreensão do receptor. O conhecimento prévio do jornalista sobre o tema cultura é essencial, além de dominar a língua portuguesa e saber refletir sobre as questões sociais é de sua importância. Como foi escrito anteriormente, o mercado de jornalismo cultural está carente de profissionais qualificados. Essa investigação quer destacar que o profissional tem o poder de mudar essa situação através de sua melhor qualificação, como o domínio de recursos estilísticos. Clarice Lispector é uma rica fonte de estudo para aqueles que querem aprender a se expressar melhor e a colocar o aspecto mais humano no texto jornalístico. A sensibilidade, portanto, a intimidade, abre o caminho da proximidade com o público leitor a fim de dar a oportunidade de que ele seja mais informado e capacitado em formular críticas e opiniões sobre a arte e o mundo. Os “Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector no Caderno de Sábado”, em suma, é uma pesquisa que tem como temática o jornalismo cultural. Essa investiga as figuras de linguagem criadas pela cronista que permitem trazer perspectivas da mulher de 1960. A intimidade da cronista é indicada na forma autoral de sua escrita, que a torna uma profissional sensível para registrar o cotidiano.

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7 ANEXOS

ANEXO A – crônica-conto “O Arranjo”, de Clarice Lispector.

Ela era cria da casa grande, desde menina. Distraía-se e divertia-se com qualquer coisa, sem sorrir: não era alegre. Andava de corpo solto, boca aberta, olhos redondos. Quando a dona de casa estava irada, chamava-a de débil mental. Diziam que qualquer homem a teria, se quisesse. Ela não ficava contente mas grávida. Então os patrões, realmente cansados de distribuir por famílias os seus filhos, a injuriavam. Não usavam violência porque por princípio não eram violentos. Mas se ela almoçava, diziam: é claro, a fome duplicou. Se não almoçava, diziam: é claro, perdeu o apetite. Mandavam-na trabalhar com ironia: “mas não vá ter antes do tempo! Já arrumamos com que família esse aí vai ficar!”. Ela não se ofendia. O corpo crescia, e ela ficava cada vez mais amarela sob a cor de mulata quase branca. O que os patrões não perdoavam é que dessa vez tivesse acontecido com um “negro sujo”, como se eles tivessem para ela planos de um homem menos negro e mais limpo. Às vezes, quando ela passava com a bandeja na mão, olhavam-na com curiosidade e diziam em tom velado por causa dos netos presentes: logo um negro sujo. Um dia pareceu compreender melhor e disse muito alto: mas foram só três vezes! As crianças exaltavam felizes, o pai, a mão e os avós caíram em cólera pela pouca vergonha, explulsaram-na da sala – ainda por cima tropeçou no tapete e caiu sobre a bandeja. Mas não era escrava, como a outra cria da casa. A outra cria da casa de Laranjeiras tornara-se uma mulher perfeita para cuidar das roupas e das crianças, uma verdadeira escrava. Mas ela não era escrava: vivia independente deles e dava à luz os seus próprios filhos, distribuídos depois como gatos, amarelados como a mãe. Dois anos depois, encontrei-a na rua e ela me disse com modéstia e recato que vivia com um português. “Estou agora mesmo esperando por ele, marquei encontro”, me disse encostada no poste. Ele afinal apareceu na curva da esquina; velho, e era por isso que ela não estava grávida, gordo, trôpego. “Ele é muito bom para mim”, disse como se explicasse tudo. Ele se manteve a curta distância, ouviu a frase, e abaixou os olhos escondendo nunca se saberá o quê. ANEXO B – crônica-conto “A Bravata”, de Clarice Lispector.

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Z.M, sentia que a vida lhe fugia por entre os dedos. Na sua humildade esquecia que ela mesma era fonte de vida e de criação. Então saía pouco, não aceitava convites. Não era mulher de perceber quando um homem estava interessado nela a menos que ele o dissesse – então se surpreendia e a aceitava. De tarde – era primavera, primeiro dia de primavera – foi visitar uma amiga que a pôs em brios. Como então ela, uma mulher feita, era tão humilde? Como é que não percebia que vários homens a queriam? C

omo não percebia que devia, dentro de

sua própria dignidade, ter um caso de amor? Disse ainda que a vira entrar numa sala onde todos eram conhecidos. E por acaso nenhum dos presentes chegara aos seus pés. E no entanto entrou tímida como ausente, como uma corça de cabeça baixa. “Você precisa andar de cabeça levantada, você tem que sofrer porque é diferente, cosmicamente diferente, então aceite que você não pode ter a vida burguesa, e entre nua sala com a cabeça levantada”. “Mas entrar numa sala cheia de gente?” “Exatamente. Você não precisa de companhia para ir, você mesma é bastante”. Lembrou-se de que no fim da tarde havia uma espécie de coquetel para os professores primários, em férias. Lembrou-se da atitude nova que desejava, não combinou a ida com nenhum professor ou professora – arriscar-se-ia toda só. Vestiu um vestido mais ou menos novo, mas a coragem não vinha. Então – só o entendeu depois – pintou demais os olhos e demais a boca até que seu rosto parecia uma máscara: ela estava pondo sobre si mesma alguém outro: esse alguém era fantasticamente desinibido, era vaidoso, tinha orgulho de si mesmo. Esse alguém era exatamente o que ela não era. Mas na hora de sair de casa, fraquejou: não estaria exigindo demais de si mesma? Toda vestida, com uma máscara de pintura no rosto – ah “persona”, como não te usar e enfim ser! – sem coragem, sentou-se na poltrona de sua sala tão conhecida e seu coração pedia para ela não ir. Parecia que previa que ia se machucar muito e ela não era masoquista. Enfim apagou o cigarro-se-coragem, levantou-se e foi. Pareceu-lhe que as torturas de uma pessoa tímida jamais foram completamente descritas. No táxi que rolava ela morria um pouco. E ei-la de repente diante de um salão enorme com talvez muitas pessoas mas pareciam poucas dentro do descomunal espaço onde se se processava como um ritual moderno o coquetel.

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Quanto tempo suportou de cabeça falsamente erguida? A máscara a incomodava, ela sabia ainda por cima que era mais bonita sem pintura. Mas sem pintura seria a nudez da alma. E ela não podia se arriscar nem se dar esse luxo. Falava sorrindo com um, falava sorrindo com outro. Mas como em todos os coquetéis, nesse era impossível a conversa e quando ela viu estava de novo sozinha. Viu um homem que tinha disso seu amante. E ela pensou: por mais amor que este homem tenha recebido, fui eu que lhe dei toda a minha alma e todo o meu corpo. Os dois se olharam, perscrutaram-se, ele com certeza espantado com a máscara de pintura. Não soube o que fazer senão perguntar-lhe se ele era seu amigo, se podia ser. Ele disse que sim, para sempre. Até que sentiu que não suportava mais manter a cabeça de pé. Mas como atravessar a enorme extensão até à porta? Sozinha, como uma fugida? Então em meias palavras confessou seu drama a uma das professoras e ela levou-a pela enorme extensão da porta. E no escuro da noite primaveril ela era uma mulher infeliz. Sim, era diferente. Mas sim, era tímida. Sim, era super-sensível. Sim, vira um amor passado. O escuro e o perfume da primavera. O coração do mundo batia-lhe no peito. Sempre soubera sentir o cheiro da natureza. Achou finalmente um táxi onde se sentou quase em lágrimas de alívio, lembrando-se que em Paris lhe acontecera o mesmo porém pior ainda. Foi para casa como uma foragida do mundo. Era inútil esconder: a verdade é que não sabia viver. Em casa estava agasalhante, ela se olhou ao espelho quando estava lavando as mãos e viu a “persona” afivelada no seu rosto; a persona tinha um sorriso parado de palhaço. Então lavou o rosto e com alívio estava de novo de alma nua. Tomou então uma pílula para dormir. Antes que chegasse o sono, ficou alerta e se prometeu que nunca mais se arriscaria sem proteção. A pílula de dormir começava a apaziguá-la. E a noite incomensurável dos sonhos começou.

ANEXO C - crônica “Lembrança de Filho Pequeno”, de Clarice Lispector. Mas que sentir de filho? Se de algum modo fico toda sem um único sentimento reconhecível. Que sentir? Vejo sua cara queimada de sol, cara inteiramente

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inconsciente da expressão que tem, toda concentrada que está como um bicho bonito, delicado e feroz – nas lâmpadas de seu sorvete. O sorvete é de chocolate. O filho lambe-o. Às vezes se torna lento demais para o seu prazer, e ele então morde-o, e faz uma careta que é inteiramente inconsciente da felicidade incômoda que dá o pedaço gelado enchendo a boca quente. Essa, a boca, é muito bonita. Olho o filho toda compacta, mas ele está habituado à burrice de meu olhar concentrado de amor. Ele não me olha, e não se incomoda de ser observado nesse seu ato íntimo vital e delicado: e continua a lamber o sorvete com a língua vermelha e atenta. Não sinto nada, senão que sou inteira, pesada de material de primeira, boa madeira. Como mãe, não tenho finura. Sou grossa e silenciosa. Olho com a rudeza de meu silêncio com meu olho vazio aquela cara que também é rude, filho meu. Não sinto nada porque isso deve ser amor pesado e indivisível. Ali estou, recuada. Recuada diante de tanto. O indevassável me deixa com uma espécie de obstinação áspera; impenetrabilidade é o meu nome; estou ali, endomingada pela natureza. Minha cara deve estar com um ar teimoso, com olho de estrangeira que não fala a língua do país. Parece um torpor. Não me comunico com pessoa alguma. Meu coração é pesado, obstinado, inexpressivo, fechado a sugestões. Estou ali, e vejo: o rosto do menino tornou-se por um instante ávido – é que deve ter encontrado algum pedaço de sorvete com mais chocolate que o resto, e que a língua esperta captou. Ninguém diria que sou magra: estou gorda, pesada, grande, com as mãos calejadas não por mim mas pelos meus ancestrais. Sou uma desconfiada que está em trégua. O filho come agora a casca do sorvete. Sou uma imigrante que se enraizou em terra nova. Meu olho é vazio, áspero, olha bem. E vê: um filho de cara concentrada que come. A FOME Meu Deus, até que ponto vou na miséria da necessidade: eu trocaria uma eternidade de depois da morte pela eternidade enquanto estou viva. MISTÉRIOS DE UM SONO Estou dormindo. E embora pareça contradição suavemente de repente o prazer de estar dormindo me acorda num sobressalto também suave. Estou acordada e ainda sinto o gosto daquela zona rural onde subsolarmente eu espalhava de minhas raízes os tentáculos de um sonho. SEGUIR A FORÇA MAIOR

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É determinismo, sim. Mas seguindo o próprio determinismo é que se é livre. Prisão seria seguir um destino que não fosse o próprio. Há uma grande liberdade em se ter um destino. Este é o nosso livre arbítrio. SÓ COMO PROCESSO Julgar de acordo com o bem e o mal é o único método de viver. Mas não esquecer que se trata apenas de uma receita e de um processo. De um modo de não perder na verdade, que esta não tem bem nem mal. O QUE EU QUERIA TER SIDO Um nome para o que eu sou, importa muito pouco. Importa o que eu gostaria de ser. O que eu gostaria de ser era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa que luta pelo bem dos outros. Isso desde pequena eu quis. Por que foi o destino me levando a escrever o que já escrevi, em vez de também desenvolver em mim a qualidade de lutadora que eu tinha? Em pequena, minha família por brincadeira chamava-me de a protetora dos animais. Porque bastava acusarem uma pessoa para eu imediatamente defende-la. E eu sentia o drama social com tanta intimidade que vivia de coração perplexo diante das grandes injustiças a que são submetidas as chamadas classes manos privilegiadas. Em Recife eu ia aos domingos visitar a casa de nossa empregada nos mocambos. E o que eu via me fazia como que me prometer que não deixaria aquilo continuar. Eu queria agir. Em Recife, onde morei até doze anos de idade, havia muitas vezes nas ruas um aglomerado de pessoas diante das quais ninguém discursava ardorosamente sobre a tragédia social. E lembro-me de como eu vibrava e de como eu me prometia que um dia esta seria a minha tarefa: a de defender os direitos dos outros. No entanto, o que terminei sendo e tão cedo? Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima. É pouco, é muito pouco. ANEXO D - crônica “O Desaparecido”, de Rubem Braga Tarde fria, e então eu me sinto um daqueles velhos poetas de antigamente que sentiam frio na alma quando a tarde estava fria, e então eu sinto uma saudade muito grande, uma saudade de noivo, e penso em ti devagar, bem devagar, com um bem-

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querer tão certo e limpo, tão fundo e bom que parece que estou te embalando dentro de mim. Ah, que vontade de escrever bobagens bem meigas, bobagens para todo mundo me achar ridículo e talvez alguém pensar que na verdade estou aproveitando uma crônica muito antiga num dia sem assunto, uma crônica de rapaz; e, entretanto, eu hoje não me sinto rapaz, apenas um menino, com o amor teimoso de um menino, o amor burro e comprido de um menino lírico. Olho-me no espelho e percebo que estou envelhecendo rápida e definitivamente; com esses cabelos brancos parece que não vou morrer, apenas minha imagem vai-se apagando, vou ficando menos nítido, estou parecendo um desses clichês sempre feitos com fotografias antigas que os jornais publicam de um desaparecido que a família procura em vão. Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo, pensando em ti, pensando teimosamente, docemente em ti, meu amor. ANEXO E - crônica Em Matéria de Automóveis de Fernando Sabino. Em matéria de automóveis, seu raciocínio era o seguinte: — Para que ter automóvel, se eu não sei dirigir?

E se alguém lhe sugeria que aprendesse: — Para que aprender, se não tenho automóvel?

Um dia, porém, não se sabe como, escapou de seu sofismático raciocínio e apareceu dirigindo um automóvel. Aprendera a dirigir, só Deus sabe como: — Fazer o carro andar eu faço. Mas não sei como funciona, nem como é lá dentro. Outro dia ameaçou enguiçar e então me perguntaram se não seria o carburador. Só então fiquei sabendo que meu carro dispõe de um carburador.

O que o encanta principalmente é o poder sugestivo de certos nomes: carburador,

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embreagem, chassi. radiador, cárter, diferencial. — Fala-se também numa famosa mola de seguimento, que deve ser muito importante. Para mim não há alternativa: se enguiçar, desço e tomo um táxi. Imagine se eu tiver de ficar dentro do carro indagando: será o dínamo? a bateria, os acumuladores? falta de fôrça no chassi? falta de óleo na bateria?

Tive de adverti-lo de que bateria e acumuladores eram uma coisa só, e que no radiador só se coloca água. — Eu sei, eu sei: aliás, o meu carro, apesar de nôvo deve estar com algum defeito no radiador, não gasta água nunca! Todas as vêzes que mando botar água o homem diz que não é preciso, já tem. Com o óleo é a mesma coisa. Abrem a tampa do carro e retiram lá de dentro, de um lugar que jamais consegui ver direito onde é. um ferrinho comprido, enxugam o ferrinho, tornam a enfiar e retiram de nôvo, me mostram a ponta pingando óleo e dizem que não é preciso. Nunca é preciso. — Você não costuma lubrificar o carro? — Já lubrifiquei uma vez. Isso é fácil: basta levar o carro no posto e dizer: lubrificação geral, trocar o óleo do cárter. Não me esqueço, por causa daquele detetive dos folhetos do meu tempo, o Nick Cárter. — Convém não esquecer também a água da bateria. Tem de ser água distilada.

lsto ele também já sabia. Um dia o carro não quis pegar e alguém lhe disse que devia ser a água da bateria. Foi a um posto e mandou que olhassem se tinha água na bateria. Tinha. Então tirem, pediu. O sujeito ficou a olhá-lo como se êle fôsse doido: tirar a água? Então êle disse apenas a palavra mágica, que resolve tudo: — Verifiquem.

Verificaram, enquanto êle aguardava, meio ressabiado. O homem do pôsto se

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aproximou, misterioso: — Elemento sêco.

Olharam-se mùtuamente, em silêncio, sem que qualquer sombra de compreensão perpassasse entre os dois, esclarecendo os mistérios insondáveis da mecânica dos semoventes. Eis que impenetrável é o desígnio dos motores de explosão e traiçoeira a fôrça dos acumuladores. — Elemento sêco?

Elemento sêco! Secam-se os elementos e esotérico se torna o segrêdo que faz o poderio dos sêres vivos no comando das máquinas inertes. Num repente de inspiração divinatória, com a voz embargada do emoção, êle sugeriu: — Deve ser o giguelê. Giguelê — palavra mágica que êle um dia ouviu alguém pronunciar, denunciando a existência de uma peça pequenina que não sabe para que serve nem onde fica, mas da qual certamente emana a energia que movimenta os automóveis, num fluxo de divina inspiração como o que movimenta a dança religiosa em tôrno à diminuta imagem de Exu e outros deuses pagãos. — No mais — arremata êle — tirante o giguelê, em matéria de automóveis estou com as mulheres. Para elas como para mim um carro se compõe apenas de duas coisas: buzina e volante.

ANEXO E - crônica “O Suor e a Lágrima”, de Carlos Heitor Cony.

Fazia calor no Rio, 40 graus e qualquer coisa, quase 41. No dia seguinte, os jornais diriam que fora o mais quente deste verão que inaugura o século e o milênio.

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Cheguei ao Santos Dumont, o vôo estava atrasado, decidi engraxar os sapatos. Pelo menos aqui no Rio, são raros esses engraxates, só existem nos aeroportos e em poucos lugares avulsos. Sentei-me naquela espécie de cadeira canônica, de coro de abadia pobre, que também pode parecer o trono de um rei desolado de um reino desolante. O engraxate era gordo e estava com calor — o que me pareceu óbvio. Elogiou meus sapatos, cromo italiano, fabricante ilustre, os Rosseti. Uso-o pouco, em parte para poupá-lo, em parte porque quando posso estou sempre de tênis. Ofereceu-me o jornal que eu já havia lido e começou seu ofício. Meio careca, o suor encharcou-lhe a testa e a calva. Pegou aquele paninho que dá brilho final nos sapatos e com ele enxugou o próprio suor, que era abundante. Com o mesmo pano, executou com maestria aqueles movimentos rápidos em torno da biqueira, mas a todo instante o usava para enxugar-se — caso contrário, o suor inundaria o meu cromo italiano. E foi assim que a testa e a calva do valente filho do povo ficaram manchadas de graxa e o meu sapato adquiriu um brilho de espelho à custa do suor alheio. Nunca tive sapatos tão brilhantes, tão dignamente suados. Na hora de pagar, alegando não ter nota menor, deixei-lhe um troco generoso. Ele me olhou espantado, retribuiu a gorjeta me desejando em dobro tudo o que eu viesse a precisar nos restos dos meus dias. Saí daquela cadeira com um baita sentimento de culpa. Que diabo, meus sapatos não estavam tão sujos assim, por míseros tostões, fizera um filho do povo suar para ganhar seu pão. Olhei meus sapatos e tive vergonha daquele brilho humano, salgado como lágrima.

ANEXO F - crônica Atenção ao Sábado”, de Clarice Lispector. Acho que sábado é a rosa da semana; sábado de tarde a casa é feita de cortinas ao vento, e alguém despeja um balde de água no terraço; sábado ao vento é

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a rosa da semana; sábado de manhã, a abelha no quintal, e o vento: uma picada, o rosto inchado, sangue e mel, aguilhão em mim perdido: outras abelhas farejarão e no outro sábado de manhã vou ver se o quintal vai estar cheio de abelhas. No sábado é que as formigas subiam pela pedra. Foi num sábado que vi um homem sentado na sombra da calçada comendo de uma cuia de carne-seca e pirão; nós já tínhamos tomado banho. De tarde a campainha inaugurava ao vento a matinê de cinema: ao vento sábado era a rosa de nossa semana. Se chovia só eu sabia que era sábado; uma rosa molhada, não é? No Rio de Janeiro, quando se pensa que a semana vai morrer, com grande esforço metálico a semana se abre em rosa: o carro freia de súbito e, antes do vento espantado poder recomeçar, vejo que é sábado de tarde. Tem sido sábado, mas já não me perguntam mais. Mas já peguei as minhas coisas e fui para domingo de manhã. Domingo de manhã também é a rosa da semana. Não é propriamente rosa que eu quero dizer. ANEXO G - crônica “A Casa Demolida”, de Sérgio Porto.

Seriam ao todo umas trinta fotografias. Já nem me lembrava mais delas, e talvez que ficassem para sempre ali, perdidas entre papéis inúteis que sabe lá Deus por que guardamos. Encontrá-las foi, sem dúvida, pior e, se algum dia imaginasse que havia de passar pelo momento que passei, não teria batido fotografia nenhuma. Na hora, porém, achara uma boa idéia tirar os retratos, única maneira — pensei — de conservar na lembrança os cantos queridos daquela casa onde nasci e vivi os primeiros vinte e quatro felizes anos de minha vida. Como se precisássemos de máquina fotográfica para guardar na memória as coisas que nos são caras! Foi nas vésperas de sair, antes de retirarem os móveis, que me entregara à tarefa de fotografar tudo aquilo, tal como era até então. Gastei alguns filmes, que, mais tarde revelados, ficaram esquecidos, durante anos, na gaveta cheia de papéis, cartas, recibos e outras inutilidades.

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Esta era a escada, que rangia no quinto degrau, e que era preciso pular para não acordar Mamãe. Precaução, aliás, de pouca valia, porque ela não dormia mesmo, enquanto o último dos filhos a chegar não pulasse o quinto degrau e não se recolhesse, convencido que chegava sem fazer barulho. A ideias de fotografar este canto do jardim deveu-se — é claro — ao banco de madeira, cúmplice de tantos colóquios amorosos, geralmente inocentes, que eram inocentes as meninas daquele tempo. Ao fundo, quase encostado ao muro do vizinho, a acácia que floria todos os anos e que a moça pedante que estudava botânica um dia chamou de "linda árvore leguminosa ornamental". As flores, quando vinham, eram tantas, que não havia motivo de ciúmes, quando alguns galhos amarelos pendiam para o outro lado do muro. Mesmo assim, ao ler pela primeira vez o soneto de Raul de Leoni, lembrei-me da acácia e lamentei o fato de ela também ser ingrata e ir florir na vizinhança. Isto aqui era a sala de jantar. A mesa grande, antiga, ficava bem ao centro, rodeada por seis cadeiras, havendo ainda mais duas sobressalentes, ao lado de cada janela, para o caso de aparecerem visitas. Quando vinham os primos recorria-se à cozinha, suas cadeiras toscas, seus bancos... tantos eram os primos! Nas paredes, além dos pratos chineses — orgulho do velho — a indefectível "Ceia do Senhor", em reprodução pequena e discreta, e um quadro de autor desconhecido. Tão desconhecido que sua obra desde o dia da mudança está enrolada num lençol velho, guardada num armário, túmulo do pintor desconhecido. Além das três fotografias — da escada, do jardim e da sala de jantar — existem ainda uma de cada quarto, duas da cozinha, outra do escritório de Papai. O resto é tudo do quintal. São quinze ao todo e, embora pareçam muitas, não chegam a cumprir sua missão, que, afinal, era retratar os lugares gratos à recordação. O quintal era grande, muito grande, e maior que ele os momentos vividos ali pelo menino que hoje olha estas fotos emocionado. Cada recanto lembrava um brinquedo, um episódio. Ah Poeta, perdoe o plágio, mas resistir quem há-de? Gemia em cada canto uma tristeza, chorava em cada canto uma saudade. Agora, se ainda morasse na casa, talvez que tudo estivesse modificado na aparência, não mais que na aparência, porque, na lembrança do menino, ficou o quintal daquele tempo. Rasgo as fotografias. De que vale sofrer por um passado que demoliram com a casa? Pedra por pedra, tijolo por tijolo, telha por telha, tudo se desmanchou. A

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saudade é inquebrantável, mas as fotografias eu também posso desmanchar. Vou atirando os pedacinhos pela janela, como se lá na rua houvesse uma parada, mas onde apenas há o desfile da minha saudade. E os papeizinhos vão saindo a voejar pela janela deste apartamento de quinto andar, num prédio construído onde um dia foi a casa. Olha, Manuel Bandeira: a casa demoliram, mas o menino ainda existe. ANEXO H - crônica “Desculpai-me”, de José de Alencar.

Vou contar-vos uma coisa que me sucedeu ontem: é um dos episódios mais interessantes de minha vida de escritor. Aposto que nunca vistes escrever sem tinta! Pois lede estas primeiras páginas, compreendereis como aquele milagre é possível no século atual, no século do progresso. Eis o caso. Foi ontem, por volta das dez horas. Estava em casa de um amigo, e aí mesmo dispunha-me a escrever a minha revista. Sentei-me à mesa, e, com todo o desplante de um homem, que não sabe o que tem a dizer, ia dar começo ao meu folhetim, quando... Talvez não acrediteis. Tomei a pena e levei-a ao tinteiro; mas ela estremeceu toda, coitadinha, e saiu intacta e pura. Não trazia nem uma niilidade de tinta. Fiz nova experiência, e foi debalde. O caso tornava-se grave, e já ia saindo do meu sério, quando a pena deu um passo, creio que temperou a garganta, e pediu a palavra. Estava perdido! Tinha uma pena oradora, tinha discussões parlamentares, discursos de cinco e seis horas. Que elementos para não trabalhar! Nada; era preciso por um termo a semelhante abuso, e tomar uma resolução pronta e imediata. Comecei por bater o pé, e passar uma repreensão severa nos meus dois empregados, que assim se esqueciam dos seus deveres. O meio era bom, e sortiu o desejado efeito como sempre.

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Entramos em explicações; e no fim de contas soube a causa dessa dissidência. A pena se tinha declarado em oposição aberta; o tinteiro era ministerial quand même. E ambos tão decididos nas suas opiniões, que não havia meio de fazê-los voltar atrás. Era impossível, pois, evitar uma discussão; resignei-me a ouvir os prós e os contrasdeste meu pequeno parlamento. A pena do meu amigo fez um discurso muito desconchavado, a falar a verdade. Por mais que lho tenha dito, não quer acreditar que a oratória não é o seu forte; tirando-a da mesa e do papel não vale nada. Enquanto, porém, ela falava, o tinteiro voltava-lhe as costas de uma maneira desdenhosa, o que não achei bonito. Estive quase chamando-o à ordem; mas não me animei. Chegou finalmente a vez de falar ele, e defendeu-se dizendo que todas as penas faziam oposição aos tinteiros logo que estes lhes recusavam o elemento para trabalhar, e não lhes davam a tinta necessária para escrever, sem a qual ficavam a seco. — C'est trop fort! gritou a pena do meu amigo, que gosta de falar em francês. Quebro os meus bicos antes do que receber uma só gota de tinta em semelhante tinteiro. E, se o disse, melhor o fez. Não houve forças que a fizessem molhar os bicos no tinteiro e escrever uma só palavra com aquela tinta. Atirei-a de lado, abri a gaveta, e tomei um maço de penas que aí havia de reserva. Mesma coisa: todas elas tinham ouvido, todas se julgavam comprometidas a sustentar a dignidade de sua classe. Por fim, perdi a paciência, zanguei-me, e, como já era mais de meio-dia, larguei-me a toda pressa para a casa, a fim de escrever alguma coisa que pudesse fazer as vezes de um folhetim. Mas uma nova decepção me esperava. A minha pena, de ordinário tão alegre e tão travessa, a minha pena, que é sempre a primeira a lançar-se ao meu encontro, a sorrir-me a dar-me os bons dias,

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estava toda amuada, e quase escondida entre um maço de papéis.

Quanto ao meu tinteiro, o mais pacato e o mais prudente dos tinteiros do mundo, este tinha um certo ar político, um desplante de chefe de maioria, que me gelou de espanto. Alguma coisa se tinha passado na minha ausência, algum fato desconhecido que viera perturbar a harmonia e a feliz inteligência que existia entre amigos de tanto tempo. Ora, é preciso que saibam que há completa disparidade entre esses dois companheiros fiéis das minhas vigílias e dos meus trabalhos. O meu tinteiro é gordo e barrigudo como um capitão-mor de província. A minha pena é esbelta e delicada como uma mocinha de quinze anos. Um é sisudo, merencório e tristonho; a outra é descuidosa, alegre, e às vezes tão travessa que me vejo obrigado a ralhar com ela para fazê-la ter modo. Entretanto, apesar desta diferença de gênios, combinavam-se e viviam perfeitamente. Tinha-os unido o ano passado, e a lua de mel ainda durava. Eram o exemplo dos bem casados. Façam, portanto, idéia do meu desapontamento quando comecei a perceber que havia entre eles o que quer que fosse. Era nada menos do que a repetição da primeira cena. Felizmente não veio acompanhada de discussões parlamentares, mesmo porque na minha mesa de escrever não admito o sistema constitucional. É o governo absoluto puro. Algumas vezes concedo o direito de petição; no mais, é justiça a Salomão, pronta e imediata. A minha pena, como as penas do meu amigo, como todas as penas de brio e pundonor, tinha declarado guerra aos tinteiros do mundo. Não havia, pois, que hesitar. Lembrei-me que ela me tinha sido confiada há coisa de nove meses pura e cândida, e que assim a devia restituir. Lembrei-me de muitas outras coisas, e tomei uma resolução inabalável. Atirei o meu tinteiro pela janela fora. A pena saltou, de tão alegre e contentinha que ficou. Fez-me mil carícias, sorriu, coqueteou, e por fim, fazendo-me um gestozinho de Charton no Barbeiro de

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Sevilha, um gestozinho que me mandava esperar, lançou-se sobre o papel e começou a correr. Escrevia sem tinta. Quero dizer, desenhava; esgrafiava sobre o papel quadros e cenas que eu me recordava ter visto há pouco tempo; debuxava flores, céus, estrelas, nuvens, sorrisos de mulheres, formas de anjos, tudo de envolta e no meio de uma confusão graciosa. E eu nem me lembrei mais de escrever, e fiquei horas esquecidas a olhar esses quadros, que decerto não conseguirei pintar-vos. Recordo-me de um. Passava-se na segunda-feira, na baía de Botafogo. A uma hora o tempo fez umas caretas, como para meter susto aos medrosos. Daí a alguns momentos o sol brilhou, o azul do céu iluminou-se, e uma brisa ligeira correu com os vapores do temporal que ainda toldavam a atmosfera. ANEXO I - crônica “Conversinha Mineira”, de Fernando Sabino.

-- É bom mesmo o cafezinho daqui, meu amigo?

-- Sei dizer não senhor: não tomo café.

-- Você é dono do café, não sabe dizer?

-- Ninguém tem reclamado dele não senhor.

-- Então me dá café com leite, pão e manteiga.

-- Café com leite só se for sem leite.

-- Não tem leite?

-- Hoje, não senhor.

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-- Por que hoje não?

-- Porque hoje o leiteiro não veio.

-- Ontem ele veio?

-- Ontem não.

-- Quando é que ele vem?

-- Tem dia certo não senhor. Às vezes vem, às vezes não vem. Só que no dia que devia vir em geral não vem.

-- Mas ali fora está escrito "Leiteria"!

-- Ah, isso está, sim senhor.

-- Quando é que tem leite?

-- Quando o leiteiro vem.

-- Tem ali um sujeito comendo coalhada. É feita de quê?

-- O quê: coalhada? Então o senhor não sabe de que é feita a coalhada?

-- Está bem, você ganhou. Me traz um café com leite sem leite. Escuta uma coisa: como é que vai indo a política aqui na sua cidade?

-- Sei dizer não senhor: eu não sou daqui.

-- E há quanto tempo o senhor mora aqui?

-- Vai para uns quinze anos. Isto é, não posso agarantir com certeza: um

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pouco mais, um pouco menos.

-- Já dava para saber como vai indo a situação, não acha?

-- Ah, o senhor fala da situação? Dizem que vai bem.

-- Para que Partido?

-- Para todos os Partidos, parece.

-- Eu gostaria de saber quem é que vai ganhar a eleição aqui.

-- Eu também gostaria. Uns falam que é um, outros falam que outro. Nessa mexida...

-- E o Prefeito?

-- Que é que tem o Prefeito?

-- Que tal o Prefeito daqui?

-- O Prefeito? É tal e qual eles falam dele.

-- Que é que falam dele?

-- Dele? Uai, esse trem todo que falam de tudo quanto é Prefeito.

-- Você, certamente, já tem candidato.

-- Quem, eu? Estou esperando as plataformas.

-- Mas tem ali o retrato de um candidato dependurado na parede, que história é essa?

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-- Aonde, ali? Uê, gente: penduraram isso aí... ANEXO J - crônica “Depois do Jantar”, de Carlos Drummond de Andrade.

Também, que ideia a sua: andar a pé, margeando a Lagoa Rodrigo de Freitas, depois do jantar.

O vulto caminhava em sua direção, chegou bem perto, estacou à sua frente. Decerto ia pedir-lhe um auxílio. — Não tenho trocado. Mas tenho cigarros. Quer um? — Não fumo, respondeu o outro.

Então ele queria é saber as horas. Levantou o antebraço esquerdo, consultou o relógio: — 9 e 17... 9 e 20, talvez. Andaram mexendo nele lá em casa. — Não estou querendo saber quantas horas são. Prefiro o relógio. — Como? — Já disse. Vai passando o relógio. — Mas ... — Quer que eu mesmo tire? Pode machucar. — Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa fivelinha enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude.

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O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio mudou de dono. — Agora posso continuar? — Continuar o quê? — O passeio. Eu estava passeando, não viu? — Vi, sim. Espera um pouco. — Esperar o quê? — Passa a carteira. — Mas... — Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada sozinho, nessa idade? — Não é isso. Eu pensava que o relógio fosse bastante. Não é um relógio qualquer, veja bem. Coisa fina. Ainda não acabei de pagar... — E eu com isso? Então vou deixar o serviço pela metade? — Bom, eu tiro a carteira. Mas vamos fazer um trato. — Diga. — Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil. — Engraçadinho, hem? Desde quando o assaltante reparte com o assaltado o produto do assalto?

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— Mas você não se identificou como assaltante. Como é que eu podia saber? — É que eu não gosto de assustar. Sou contra isso de encostar o metal na testa do cara. Sou civilizado, manja? — Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o dinheiro. Ele me faz falta, palavra de honra. — Pera aí. Se você acha que é preciso mostrar revólver, eu mostro. — Não precisa, não precisa. — Essa de rachar o legume... Pensa um pouco, amizade. Você está querendo me assaltar, e diz isso com a maior cara-de-pau. — Eu, assaltar?! Se o dinheiro é meu, então estou assaltando a mim mesmo. — Calma. Não baralha mais as coisas. Sou eu o assaltante, não sou? — Claro. — Você, o assaltado. Certo? — Confere. — Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são só dois mil. — Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos. Veja se tem mais dinheiro na carteira. Se achar uma nota de 10, de cinco cruzeiros, de um, tudo é seu. Quando eu confundi você com um, mendigo (desculpe, não reparei bem) e disse que não tinha trocado, é porque não tinha trocado mesmo.

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— Tá bom, não se discute. — Vamos, procure nos... nos escaninhos. — Sei lá o que é isso. Também não gosto de mexer nos guardados dos outros. Você me passa a carteira, ela fica sendo minha, aí eu mexo nela à vontade. — Deixe ao menos tirar os documentos? — Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas rachar com você, isso de jeito nenhum. É contra as regras. — Nem uma de quinhentos? Uma só. — Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus. Mas nem isso você precisa. Pela pinta se vê que mora perto. — Nem eu ia aceitar dinheiro de você. — Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita gente neste mundo. Bom, tudo legal. Até outra vez. Mas antes, uma lembrancinha.

Sacou da arma e deu-lhe um tiro no pé.

ANEXO L - crônica “Mila”, de Carlos Heitor Cony.

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Era pouco maior do que minha mão: por isso eu precisei das duas para segurála, 13 anos atrás. E, como eu não tinha muito jeito, encostei-a ao peito para que ela não caísse, simples apoio nessa primeira vez. Gostei desse calor e acredito que ela também. Dias depois, quando abriu os olhinhos, olhou-me fundamente: escolheu-me para dono. Pior: me aceitou. Foram 13 anos de chamego e encanto. Dormimos muitas noites juntos, a patinha dela em cima do meu ombro. Tinha medo de vento. O que fazer contra o vento? Amá-la — foi a resposta e também acredito que ela entendeu isso. Formamos, ela e eu, uma dupla dinâmica contra as ciladas que se armam. E também contra aqueles que não aceitam os que se amam. Quando meu pai morreu, ela se chegou, solidária, encostou sua cabeça em meus joelhos, não exigiu a minha festa, não queria disputar espaço, ser maior do que a minha tristeza. Tendo-a ao meu lado, eu perdi o medo do mundo e do vento. E ela teve uma ninhada de nove filhotes, escolhi uma de suas filhinhas e nossa dupla ficou mais dupla porque passamos a ser três. E passeávamos pela Lagoa, com a idade ela adquiriu "fumos fidalgos'; como o Dom Casmurro, de Machado de Assis. Era umalady, uma rainha de Sabá numa liteira inundada de sol e transportada por súditos imaginários. No sábado, olhando-me nos olhos, com seus olhinhos cor de mel, bonita como nunca, mais que amada de todas, deixou que eu a beijasse chorando. Talvez ela tenha compreendido. Bem maior do que minha mão, bem maior do que o meu peito, levei-a até o fim. Eu me considerava um profissional decente. Até semana passada, houvesse o que houvesse, procurava cumprir o dever dentro de minhas limitações. Não foi possível chegar ao gabinete onde, quietinha, deitada a meus pés, esperava que eu acabasse a crônica para ficar com ela. Até o último momento, olhou para mim, me escolhendo e me aceitando. Leveia, em meus braços, apoiada em meu peito. Apertei-a com força, sabendo que ela seria maior do que a saudade. ANEXO M - crônica “Uma Galinha”, de Clarice Lispector.

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Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã. Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio. Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado. Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre. Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma. Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançoua. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De

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pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos: — Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem! Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão: — Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida! — Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros. Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto. Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado. Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão

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de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos. Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos. ANEXO N - crônica “Viúva na Praia”, de Rubem Braga.

Ivo viu a uva; eu vi a viúva. Ia passando na praia, vi a viúva, a viúva na praia me fascinou. Deitei-me na areia, fiquei a contemplar a viúva. O enterro passara sob a minha janela; o morto eu o conhecera vagamente; no café da esquina. a gente se cumprimentava às vezes, murmurando "bom dia"; era um homem forte, de cara vermelha; as poucas vezes que o encontrei com a mulher ele não me cumprimentou, fazia que não me via; e eu também. Lembro-me de que uma vez perguntei os horas ao garçom, e foi aquele homem que respondeu; agradeci; este foi nosso maior diálogo. Só ia à praia aos domingos, mas ia de carro, um "Citroen", com a mulher, o filho e a barraca, para outra praia mais longe. A mulher ia às vezes à praia com o menino, em frente à minha esquina, mas só no verão. Eu passava de longe; sabia quem era, que era casada, que talvez me conhecesse de vista; eu não a olhava de frente. A morte do homem foi comentada no café; eu soube, assim, que ele passara muitos meses doente, sofrera muito, morrera muito magro e sem cor. Eu não dera por sua falta, nem soubera de sua doença. E agora estou deitado na areia, vendo a sua viúva. Deve uma viúva vir à praia? Nossa praia não é nenhuma festa; tem pouca gente; além disso, vamos supor que ela precise trazer o menino, pois nunca a vi sozinha na praia. E seu maiô é preto. Não que o tenha comprado por luto; já era preto. E ela tem, como sempre, um ar decente; não olha para ninguém, a não ser para o menino, que deve ter uns dois anos. Se eu fosse casado, e morresse, gostaria de saber que alguns dias depois minha viúva iria à praia com meu filho — foi isso o que pensei, vendo a viúva. É bem bonita, a viúva. Não é dessas que chamam a atenção; é discreta, de curvas discretas, mas certas. Imagino que deve ter 27 anos; talvez menos, talvez mais, até 30. Os cabelos são bem negros; os olhos são um pouco amendoados, o nariz direito, a boca um pouco dentucinha, só um pouco; a linha do queixo muito nítida.

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Ergueu-se, porque, contra suas ordens, o garoto voltou a entrar n'água. Se eu fosse casado, e morresse, talvez ficasse um pouco ressentido ao pensar que, alguns dias depois, um homem — um estranho, que mal conheço de vista, do café — estaria olhando o corpo de minha mulher na praia. Mesmo que olhasse sem impertinência, antes de maneira discreta, como que distraído. Mas eu não morri; e eu sou o outro homem. E a ideia de que o defunto ficaria ressentido se acaso imaginasse que eu estaria aqui a reparar no corpo de sua viúva, essa ideia me faz achá-lo um tolo, embora, a rigor, eu não possa lhe imputar essa ideia, que é minha. Eu estou vivo, e isso me dá uma grande superioridade sobre ele. Vivo! Vivo como esse menino que ri, jogando água no corpo da mãe que vai buscá-lo. Vivo como essa mulher que pisa a espuma e agora traz ao colo o garoto já bem crescido. O esforço faz-lhe tensos os músculos dos braços e das coxas; é bela assim, marchando com a sua carga querida. Agora o garoto fica brincando junto à barraca e é ela que vai dar um mergulho rápido, para se limpar da areia. Volta. Não, a viúva não está de luto, a viúva está brilhando de sol, está vestida de água e de luz. Respira fundo o vento do mar, tão diferente daquele ar triste do quarto fechado do doente, em que viveu meses. Vendo seu homem se finar; vendo-o decair de sua glória de homem fortão de cara vermelha e de seu império de homem da mulher e pai do filho, vendo-o fraco e lamentável, impertinente e lamurioso como um menino, às vezes até ridículo, às vezes até nojento... Ah, não quero pensar nisso. Respiro também profundamente o ar limpo e livre. Ondas espoucam ao sol. O sol brilha nos cabelos e na curva de ombro da viúva. Ela está sentada, quieta, séria, uma perna estendida, outra em ângulo. 0 sol brilha também em seu joelho. O sol ama a viúva. Eu vejo a viúva.

ANEXO O - crônica “A Máquina do Mundo”, de Carlos Drummond de Andrade.

E como eu palmilhasse vagamente uma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino rouco

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se misturasse ao som de meus sapatos que era pausado e seco; e aves pairassem no céu de chumbo, e suas formas pretas lentamente se fossem diluindo na escuridão maior, vinda dos montes e de meu próprio ser desenganado, a máquina do mundo se entreabriu para quem de a romper já se esquivava e só de o ter pensado se carpia. Abriu-se majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem um clarão maior que o tolerável pelas pupilas gastas na inspeção contínua e dolorosa do deserto, e pela mente exausta de mentar toda uma realidade que transcende a própria imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos abismos. Abriu-se em calma pura, e convidando quantos sentidos e intuições restavam a quem de os ter usado os já perdera e nem desejaria recobrá-los, se em vão e para sempre repetimos os mesmos sem roteiro tristes périplos, convidando-os a todos, em coorte, a se aplicarem sobre o pasto inédito da natureza mítica das coisas, assim me disse, embora voz alguma ou sopro ou eco ou simples percussão atestasse que alguém, sobre a montanha, a outro alguém, noturno e miserável, em colóquio se estava dirigindo: "O que procuraste em ti ou fora de

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teu ser restrito e nunca se mostrou, mesmo afetando dar-se ou se rendendo, e a cada instante mais se retraindo, olha, repara, ausculta: essa riqueza sobrante a toda pérola, essa ciência sublime e formidável, mas hermética, essa total explicação da vida, esse nexo primeiro e singular, que nem concebes mais, pois tão esquivo se revelou ante a pesquisa ardente em que te consumiste... vê, contempla, abre teu peito para agasalhá-lo.” As mais soberbas pontes e edifícios, o que nas oficinas se elabora, o que pensado foi e logo atinge distância superior ao pensamento, os recursos da terra dominados, e as paixões e os impulsos e os tormentos e tudo que define o ser terrestre ou se prolonga até nos animais e chega às plantas para se embeber no sono rancoroso dos minérios, dá volta ao mundo e torna a se engolfar, na estranha ordem geométrica de tudo, e o absurdo original e seus enigmas, suas verdades altas mais que todos monumentos erguidos à verdade: e a memória dos deuses, e o solene sentimento de morte, que floresce no caule da existência mais gloriosa, tudo se apresentou nesse relance e me chamou para seu reino augusto, afinal submetido à vista humana.

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Mas, como eu relutasse em responder a tal apelo assim maravilhoso, pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio, a esperança mais mínima — esse anelo de ver desvanecida a treva espessa que entre os raios do sol inda se filtra; como defuntas crenças convocadas presto e fremente não se produzissem a de novo tingir a neutra face que vou pelos caminhos demonstrando, e como se outro ser, não mais aquele habitante de mim há tantos anos, passasse a comandar minha vontade que, já de si volúvel, se cerrava semelhante a essas flores reticentes em si mesmas abertas e fechadas; como se um dom tardio já não fora apetecível, antes despiciendo, baixei os olhos, incurioso, lasso, desdenhando colher a coisa oferta que se abria gratuita a meu engenho. A treva mais estrita já pousara sobre a estrada de Minas, pedregosa, e a máquina do mundo, repelida, se foi miudamente recompondo, enquanto eu, avaliando o que perdera, seguia vagaroso, de mãos pensas. ANEXO P - crônica “Dois Entendidos”, de Fernando Sabino.

Dizem que tem uma memória extraordinária e sabe tudo sobre futebol. Suas lembranças desafiam contestação.}

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Um dia, porém, viu-se numa reunião em que se achava outro com igual prestígio. E os dois acabaram se defrontando: — Você se lembra da primeira Copa Roca disputada no Brasil? - perguntoulhe o outro. — Se me lembro. E disse o dia, o mês e o ano. — Fazia um calor danado. — Isso mesmo: um calor danado. Lembra-se da formação do time brasileiro? — Quem é que não se lembra? Cantou para o outro o time todo. O outro ia confirmando com a cabeça. Fez apenas uma ressalva quanto ao extrema-esquerda. — Eu sei: mas estou falando o time titular. Agora vou lhe dizer os reservas. Declamou a lista dos reservas, e sugeriu, por sua vez: — Você naturalmente se lembra da formação do time argentino. O outro embatucou: o time argentino? Não, isso ninguém era capaz de dizer. — Pois então tome lá. E recitou o time argentino. O outro, meio ressabiado, procurou recuperar o terreno perdido: — Para nomes não sou muito bom. Mas me lembro que o goleiro argentino segurou um pênalti. - Um pênalti mal cobrado, foi por isso: faltavam sete minutos para acabar o jogo. O outro, como que ocasionalmente, disse quem cobrara o pênalti, fazendo nova investida: — E lhe digo mais: o juiz apitou quinze "fouls" contra nós no primeiro tempo, dezessete contra eles. No segundo tempo... — Está aí; isso eu não sou capaz de garantir. Tudo mais sobre o jogo eu lhe digo. Aliás, sobre esse jogo, ou qualquer outro que você quiser, de 1929 para cá. Mas essa história de número de "fouls". . Como é que você sabe disso com tanta certeza? — Sei — tornou o outro, triunfante — porque fui o juiz da partida. Com essa ele não contava. O juiz da partida. — Como é mesmo o seu nome?

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Ficou a rolar na língua o nome do outro. — Você tinha algum apelido? O outro deu uma gargalhada: — Juiz, com apelido? Naquele tempo eu já me fazia respeitar. — Sei, sei — e ele sacudiu a cabeça, pensativo. — Engraçado, me lembro perfeitamente do juiz, não se parecia com você. Chamava-se... Espera aí: se não me falha a memória... — Ela costuma falhar, meu velho. Ao redor a expectativa dos circunstantes crescia, ante o duelo dos dois entendidos. —...o juiz era grande, pesadão, anulou um gol nosso, houve um começo de sururu... — Emagreci muito desde então. E anulei o gol porque já tinha apitado quando ele chutou. Houve realmente um ligeiro incidente, mas fiz valer minha autoridade e o jogo prosseguiu. — Você já tinha apitado... — Já tinha apitado.

Os dois se olharam em silêncio. — Quer dizer que quem apitou aquele jogo foi você - recomeçou ele, intrigado. — Fui eu. E lhe digo mais: quando Fausto fez aquele gol de fora da área... — Já na prorrogação. — Na prorrogação: quiseram protestar dizendo que ele estava impedido... — Não estava impedido. — Eu sei que não estava. Tanto assim que não anulei. Mesmo porque, a

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regra naquele tempo era diferente. — Nem naquele tempo nem hoje nem nunca aquilo seria impedimento. Se o juiz me anula aquele gol... —...teria que anular também o primeiro gol dos argentinos... —...que foi feito exatamente nas mesmas condições.

Calaram-se um instante, medindo forças. Mas o outro teve a infelicidade de acrescentar: — Mesmo que o bandeirinha tivesse assinalado... Ele saltou de súbito, brandindo o dedo no ar: — Já sei! isso mesmo! Você não foi juiz coisa nenhuma! Você era o bandeirinha! Me lembro muito bem de você: era mais gordo mesmo, todo agitadinho, corria se requebrando... Tinha o apelido de Zuzú.

O outro não teve forças para negar e se rendeu à memória do adversário. Mesmo porque, encafifado, fazia uma cara de Zuzú. ANEXO Q – crônica-conto “A Perseguida Feliz”, de Clarice Lispector. Pois não é que ela fora uma das colegas escolhidas! A classe do ginásio misturava mocinhas e rapazes. Quando depois lembrava-se deles era como num instantâneo fotográfico batido e depois imediatamente imobilizado. E esse instantâneo apesar de nele todos estarem rígidos e bem comportados, parecia-lhe a súbita imobilidade de uma briga física, onde se enovelavam pernas de menino com braço de mocinha, formando um vívido mostro masculino e feminino que ela digeria em devaneios durando as aulas da guerra do Paraguai. Guerra da qual possivelmente nunca se refizera, pois quando pensava no ginásio vinha-lhe de imediato trombetas do Paraguai.

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Pois não é que ela fora uma das colegas escolhidas pelo escritor anônimo? E onde é que este escolhera escrever? Nas pranchetas da sala de desenho. Nessa escola, onde a desorganização imperava, havia no entretanto o privilégio de sala especial para desenho e sala especial para química. Na de desenho geométrico cada um dos alunos tinha diante da cadeira uma larga prancheta móvel. Houve evidentemente a primeira vez. Ao sentar-se em frente à prancheta, descobriu-a, logo ao primeiro olhar, coberta dos mais miúdos hieróglifos: desenhos e palavras, tudo em tipo apertado e nítido, todo com ar organizado. Antes mesmo de entender, soubera com um choque: eram insultos de amor. Antes mesmo de entender os desenhos e as minúcias simbólicas, já empalidecera. Empalidecera de curiosidade, de surpresa? Quanto aos escritos, ela quase não compreendia, tanto a terminologia era técnica e especializada, quase técnica de outro país, copilação laboriosa de um espírito analítico. Depois, sem intervalo de espanto, só com intervalo de dois dias, houve a segunda vez. A terceira. A quarta. A mais velha das meninas foi quem abriu o jogo e revelou a todas que tinha uma prancheta especial. Então a segunda atingida brandiu a sua prancheta. A terceira menina não se lembra mais do que disse e como disse. Só se sabia que alguém, ou uma máfia de alguns, as visava. Duas visadas eram morenas; a terceira era loura, com o desalento de ser loura, o que lhe parecia significar, como material de capacidades, ser nula nessas capacidades. Loura, pensava, era uma coisa infelizmente para o divino, tanto que as fadas e os anjos eram louros. Que lhe reservava o destino senão suas indecisões? Sua alma bem lhe parecia morena, mas quem o descobria sob aquela aparência o dourado violento? No entanto uma menina ou uma máfia de meninos... Tenho vergonha de, já no terceiro ano de ginásio, não entender a tecnocracia de uma vida que – ei-la de súbito mecanizada na prancheta. Adivinhar ela adivinharia, mas era só, e isso bastava. Se ao menos fosse angelical. Mas só o que

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lhe faltava mesmo era essa coisa lenta e progressiva, a cultura especializada em sexo. Mentiu pra as outras dizendo que entendera tudo. Inútil dizer a verdade. Ninguém acreditaria que ela, já tão construída e alta, não entendesse. Não entendia, embora suprisse a ignorância com sólidos sonhos confusos que eram o seu esteio secreto. A indignação das três meninas foi ardente. “Como é que tinham tido coragem!”, era só isso que repetiam, sem nenhum outro argumento. A loura, quem sabe se por ser mais sonsa, não sugeriu medida prática nenhuma, enquanto as outras duas, embora sem plano formado, se preparavam para agir. As três pareciam três escoteiras ou bandeirantes que tivessem sido interrompidas no Caminho do Bem, e agora se tivessem transformado em três detetives tontos; qual dos meninos, ou rapazes teria sido ousado? Perscrutavam cada um deles, mas esses olhares insistentes não eram provocantes porque elas estavam imbuídas do direito de...de que mesmo? Pois não é que não se lembravam mais de que direito estavam imbuídas? Mas a cara dos colegas era inescrutável. E pelo contrário: assim examinados, nunca se viu tanta cara inocente chupando bala ou fumando escondido. A aula de desenho geométrico era duas vezes por semana. Como tardava o dia de entrar na sala e poder olhar a prancheta onde os caracteres anteriores sempre tinham sido apagados para dar lugar aos novos, que não passavam de variantes dos primeiros. Tratava-se de um verdadeiro jornal impresso, editorial que dava às três mocinhas as mais terríveis e emocionantes notícias sobre o que as três eram. Eram? Liam avidamente sem escândalo – o escândalo só vinha depois de garantida a leitura toda. Pena mesmo é que de fato nem tudo entendiam, isso humilhava: mas o sentido geral, sim. O sentido geral lhes dava de choque o mundo nas mãos trêmulas. Mas o bom não dura. As duas morenas, levadas pela necessidade de dignificação ou por uma tentativa de publicidade maior, tomaram a medida prática, à qual a terceira se juntou muda: foram as três à Secretaria dar queixa. As três graças

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orgulhosamente desmoralizadas, representantes de um mundo feminil tão amado e vilipendiado. Das três, só duas falaram. A mais velha, mais que namorado, já prometia noivar tão cedo – “bem que merecia a prancheta” – meditava a loura – nem que já merecia os horrores que circundam o amor, quase noiva já era. Pois bem. Bem feito, quem mandou. Não se sabe o que a Secretaria fez. Mas as pranchetas – nunca mais. No entanto, embora a coisa tivesse sido abafada pela Secretaria, vieram a saber quem era o escritor das pranchetas. Ele!? A quem seus pais haviam dado um nome grego. Decerto espartano: pois para ele a mocinha que espartanamente sobrevivesse à severidade e crueza de tal amor, esta seria a única a merecer vivelo, ao amor. Nenhuma das três atenienses sobrevivera à prova. As pranchetas limpas. Mas nunca, nunca mais? Pois é. O de nome grego tinha uma cara que, por Deus, era bonita. Primeiro, tratava-se de um repetente, bem mais velho do que os outros, e sabia das coisas: ser repetente dava-lhe um ar de indiferença e insolência no andar. Via-se que desprezava todos nós: parecia um homem entre tolos e tolas. Esse não chupava bala. Tinha rosto escanhoado, de olhos finos à flor da pele, olhar curto, cabelos cortados à militar. Como não adorá-lo com horror? A menina loura não o olhava sequer. Para que? Se já o sabia de cor e com náusea. O espartano, depois de proibido pela Secretaria, tomou um desdenhoso ar de exilado: fizera o que pudera, mas se nós não passávamos do que éramos, pior para nós, ele lavava as mãos. Grande futuro o esperava, ao general. E foi assim que daí em diante nas pranchetas só esquadros e compassos, só desenho geométrico, nunca mais desenho de finesse. Também, quem mandou reclamar.

ANEXO R - crônica-conto “Uma História de Tanto Amor”, de Clarice Lispector.

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Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes conhecia a alma e os anseios íntimos. A galinha é ansiosa, enquanto o galo tem angústia quase humana: falta-lhe um amor verdadeiro naquele seu harém, e ainda mais tem que vigiar a noite toda para não perder a primeira das mais longínquas claridades e cantar o mais sonoro possível. É o seu dever e a sua arte. Voltando às galinhas, a menina possuía duas só dela. Uma se chamava Pedrina e a outra Petronilha. Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela cheirava embaixo das asas dela, com uma simplicidade de enfermeira, o que considerava ser o sintoma máximo de doenças, pois o cheiro de galinha viva não é de se brincar. Então pedia um remédio a uma tia. E a tia: “Você não tem coisa nenhuma no fígado”. Então, com a intimidade que tinha com essa tia eleita, explicou-lhe para quem era o remédio. A menina achou de bom alvitre dá-lo tanto a Pedrina quanto a Petronilha para evitar contágios misteriosos. Era quase inútil dar o remédio porque Pedrina e Petronilha continuavam a passar o dia ciscado o chão e comendo porcarias que faziam mal ao fígado. E o cheiro debaixo das asas era aquela morrinha mesmo. Não lhe ocorreu dar um desodorante porque nas Minas Gerais onde o grupo vivia não eram usados assim como não se usavam roupas íntimas de “nylon” e sim de cambraia. A tia continuava a lhe dar o remédio, um líquido escuro que a menina desconfiava ser água com uns pingos de café – e vinha o inferno de tentar abrir o bico das galinhas para administrarlhes o que as curaria de serem galinhas. A menina ainda não tinha entendido que os homens não podem ser curados de serem homens e as galinhas de serem galinhas: tanto o homem como a galinha tem misérias e grandezas (a da galinha é a de pôr um ovo branco de forma perfeita) inerentes à própria espécie. A menina morava no campo e não havia farmácia perto para ela consultar. Outro inferno de dificuldade era quando a menina achava Pedrina e Petronilha magras debaixo das pernas arrepiadas, apesar de comerem o dia inteiro. A menina não entendera que engordá-las seria apressar-lhes um destino na mesa. E recomeçava o trabalho mais difícil: o de abrir-lhes o bico. A menina tornou-se grande conhecedora intuitiva de galinhas naquele imenso quintal das Minas Gerais. E quando cresceu ficou surpresa ao saber que na gíria o termo “galinha” tinha outra acepção. Sem notar a seriedade cômica que a coisa toda tomava: –,Mas é o falo, que é um nervoso, quem quer! Elas não fazem nada demais! E é tão rápido que mal se vê! O galo é quem fica procurando amar uma e não consegue!

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Um dia a família resolveu levar a menina para passar o dia em casa de um parente, bem longe de casa. E quando voltou, já não existia aquele que em vida fora Petronilha. Sua tia informou-lhe: – Nós comemos Petronilha. A menina era criatura de grande capacidade de amar: uma galinha não corresponde ao amor que se lhe dá e no entanto a menina continuava a amá-las sem esperar reciprocidade. Quando soube o que acontecera com Petronilha passou a odiar todo o mundo da casa, menos sua mãe que não gostava de comer carne de vaca ou de boi. O seu pai, então, ela mal conseguia olhar: era ela quem mais gostava de comer galinha. Sua mãe percebeu tudo e explicou-lhe – Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente, estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não temos Petronilha dentro de nós. É uma pena. Pedrina, secretamente a preferida da menina, morreu de morte morrida mesmo, pois sempre fora um ente frágil. A menina, ao ver Pedrina tremendo num quintal ardente de sol, embrulhou-a num pano escuro e depois de embrulhadinha botou-a em cima daqueles grandes fogões de tijolos das fazendas das minas-gerais. Todos lhe avisaram que estava apressando a morte de Pedrina, mas a menina era obstinada e pôs mesmo Pedrina toda enrolada em cima de tijolos quentes. Quando na manhã seguinte, Pedrina amanheceu dura de tão morta, a menina só então, entre lágrimas intermináveis, se convenceu de que apressara a morte do ser querido. Um pouco maiorzinha, a menina teve uma galinha chamada Eponina. O amor por Eponina: dessa vez era um amor mais realista e não romântico: era o amor de quem já sofreu por amor. E quando chegou a vez de Esponina ser comida, a menina não apenas soube como achou que era o destino fatal de quem nascia galinha. As galinhas pareciam ter uma pré-ciência de próprio destino e não aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha é sozinha no mundo. Mas a menina não esquecera o que sua mãe dissera a respeito de comer bichos amados: comeu Esponina mais do que todo o resto da família, comeu sem fome, mas com um prazer quase físico porque sabia agora que assim Esponina se incorporaria nela e se tornaria sua do que em vida. Tinham feito Eponina ao molho pardo. De modo que a menina, num ritual pagão que lhe foi transmitido de corpo a corpo através dos séculos, comeu-lhe a carne e bebeu o sangue. Nessa refeição tinha

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ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens.

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