Os recintos de fossos da Salvada e Monte das Cabeceiras 2. (Beja, Portugal

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16. Os recintos de fossos da Salvada e Monte das Cabeceiras 2. (Beja, Portugal) António Carlos Valera e Tiago do Pereiro

Resumo No contexto da recente proliferação de recintos de fossos neolíticos e calcolíticos no Sul de Portugal, os sítios da Salvada e do Monte de Cabeceiras 2 destacam-se, tanto pelas suas dimensões, como pelas características, proximidade de implantação e complexidade estrutural que evidenciam. No presente texto são apresentados os dados já disponíveis relativamente a estes dois contextos e discutidos alguns dos problemas que levantam no que respeita à sua estruturação arquitectónica e localização espacial, no contexto das problemáticas dos recintos de fossos e povoamento calcolítico do Baixo Alentejo. Abstract The sites of Salvada and Monte das Cabeceiras 2, recently discovered, assume particular importance in the context of the proliferation of Neolithic and Chalcolithic ditched enclosures in South Portugal, due to their dimensions, characteristics, proximity of location and architectonic complexity. The present paper presents the available data for these two sites and discusses some problems raised by their architectonic layout and spatial location, in the context of the ditched enclosures and settlement networks of South Alentejo.

1. INTRODUÇÃO Os recintos de fossos da Salvada e Monte das Cabeceiras 2 foram ambos identificados, enquanto sítios arqueológicos, nos estudos de impacto ambiental realizados no âmbito da minimização da rede de rega de Alqueva. Ambos se localizam em áreas que seriam atravessadas por valas de tubagens da rede de distribuição de água. Todavia, os referidos estudos não os identificaram nas suas reais dimensões e características, nomeadamente como grandes recintos de fossos. De facto, foi já numa fase avançada do processo que, no âmbito de trabalhos contratualizados à empresa Omniknos, e que tiveram a assessoria do NIA-ERA Arqueologia S.A., que estes sítios viriam a ser reconhecidos pelos autores deste texto, através da análise de imagens de satélite do Google Earth e fotografias aéreas do Centro Nacional de Informação Geográfica, como recintos de grandes dimensões e de significativa complexidade arquitectónica. No caso da Salvada, a identificação do seu real tamanho e complexidade foi feita em tempo útil para permitir ao promotor da empreitada alterar o projecto, desviando a conduta para fora do recinto, evitando atravessá-lo quase a meio, com os inerentes custos financeiros e patrimoniais. Já no caso do Monte das Cabeceiras 2, o processo ia já mais avançado, não tendo sido possível ao promotor desviar os traçados previstos, pelo que o sítio foi atravessado sensivelmente a dois terços por uma conduta, o que causou significativo impacto sobre várias das suas estruturas mitigado por uma intervenção arqueológica de salvamento. No presente texto são apresentados os dados obtidos pelos trabalhos desenvolvidos pela Omniknos/NIA-ERA em ambos os sítios. No caso da Salvada referem-se à informação decorrente da análise da variada documentação aérea e das prospecções de superfície realizadas no sítio; no caso do Monte das Cabeceiras 2, para além dos dados proporcionados pelas imagens aéreas e recolhas de superfície feitas no terreno, incluiu-se ainda a informação decorrente do trabalho de diagnóstico realizado ao longo de parte da vala de conduta. Embora a informação disponível seja ainda relativamente escassa para ambos os sítios, ela é já suficiente para uma primeira caracterização dos mesmos e, sobretudo, para discutir um conjunto de problemas relacionados com características da sua arquitectura, assim como com as dimensões que podem assumir, implantações topográficas e localização espacial.

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2. O RECINTO DA SALVADA O recinto de fossos da Salvada localiza-se apenas 350m a sul da povoação com o mesmo nome, união de freguesias de Salvada e Quintos, concelho de Beja (Fig. 1). Implanta-se numa área aplanada (com uma cota média de 175m), cortada pelo bem encaixado Barranco do Sardão que, com uma orientação norte-sul, passa pelo meio da povoação e corta o recinto pré-histórico a cerca de 2/3. Do ponto de vista geológico, a zona é caracterizada por um substrato variado, onde se regista a presença de margas, rochas metamórficas, rochas ígneas e rochas carbonatadas. O recinto, porém, encontra-se numa mancha de rochas carbonatadas (vulgo “caliços”) e de rochas metamórficas bastante meteorizadas. A combinação de imagens proporcionadas pelo Google Earth (imagens de 2003 e 2006) com a fotografia aérea do Centro Nacional de Informação Geográfica (imagem de 1998) permite perceber uma significativa parte da planta de vários fossos deste contexto (Fig. 2: A). Dois fossos exteriores, genericamente paralelos, definem um recinto de grandes dimensões (com cerca de 17ha), de planta tendencialmente circular, mas apresentando alguma irregularidade, sobretudo do lado oeste. O fosso mais exterior apresenta um traçado li-

Fig. 1 – Localização da Salvada (1), Monte das Cabeceiras 2 (2), Figueira (3) e Estácio (4) na Carta Militar de Portugal, fl 531, escala 1:25000.

Fig. 2 – A. Composição de imagens aéreas do Google Earth e CNIG do recinto da Salvada e respectiva anotação; B. Imagem aérea do Google Earth do recinto do Monte das Cabeceiras 2 e respectiva anotação. VII ENCUENTRO DE ARQUEOLOGÍA DEL SUROESTE PENINSULAR - OS RECINTOS DE FOSSOS DA SALVADA E MONTE DAS CABECEIRAS 2. (BEJA, PORTUGAL) - ANTÓNIO CARLOS VALERA Y TIAGO DO PEREIRO

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near, enquanto o que lhe corre paralelamente pelo interior apresenta um traçado sinuoso, muito bem padronizado, constituído por sequências de lóbulos semicirculares. Este tipo de sinuosidade muito padronizada tem vindo a ser registada como uma particularidade dos recintos de fossos da bacia do Guadiana, onde é conhecida em recintos como Santa Vitória, Outeiro Alto 2 ou Xancra (Valera 2012), embora até ao momento nunca tivesse sido reconhecida em grandes recintos e em fossos de grandes perímetros, como é o caso da Salvada. Este grande recinto, como se referiu acima, é cortado no sentido norte-sul pelo traçado sinuoso Barranco do Sardão (afluente do Barranco da Salvada que corre no sentido Oeste – Este um pouco a sul do recinto), que assim o divide em cerca de 1/3 para este e cerca de 2/3 para oeste. Deste lado oeste, sensivelmente ao centro e numa área ligeiramente mais elevada, são igualmente discerníveis pelo menos mais dois fossos, desenhando plantas circulares concêntricas, zona onde se verificou uma maior densidade de materiais à superfície. Estes recintos mais interiores apresentam diâmetros aproximados de 120m e 50m respectivamente. Em nenhum dos troços de fossos visíveis são reconhecíveis entradas. Naturalmente, estes não serão os únicos fossos presentes no sítio, o qual, à imagem de outros de dimensões semelhantes (como os Perdigões), terá muito provavelmente um número superior de fossos e de recintos por estes definidos. Esta situação tem vindo a ser demonstrada em várias outras situações, onde, em sítios com imagens aéreas de recintos relativamente nítidas, se regista sempre um número de fossos superior quando se realizam prospecções geofísicas, casos dos Perdigões (Márquez Romero et al. 2011; Valera et al. no prelo), Xancra (Valera e Becker 2011), Moreiros 2 (Valera, Becker e Boaventura 2012), Monte do Olival (Becker, Valera e Castanheira 2012) ou Monte da Contenda e Magoito (ainda inéditos).

Fig. 3 – Recipientes cerâmicos recolhidos à superfície no recinto das Salvada. 318

2.1 MATERIAIS DE SUPERFÍCIE No âmbito de prospecções de superfície realizadas no recinto da Salvada, foi recolhido um conjunto significativo de materiais que permitem uma primeira aproximação à cronologia relativa do sítio e a algumas das práticas e actividades que nele terão ocorrido. A quase totalidade dos materiais, porém, provém do lado oeste do barranco, sobretudo da zona dos dois recintos mais centrais (no lado este os materiais à superfície são extraordinariamente escassos). A cerâmica é muito abundante. Tendo-se recolhido apenas bordos (ou bojos com ele-

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mentos diferenciadores), registou-se um total de 197 fragmentos de recipientes individualizáveis. A grande maioria correspondem a pratos (70.6%) com uma enorme variedade de formas de espessamento do bordo (Fig. 3). Seguem-se os esféricos/globulares (28 – 14.2%), as taças carenadas (17 – 8.6%), as taças simples (10 – 5.1%) e as tigelas (3 – 1.5%). A decoração é rara, tendo-se registado dois fragmentos de taças carenadas com caneluras no colo e um fragmento de bojo com uma canelura e banda de impressões (Fig. 3). Ainda em cerâmica, recolheram-se elementos de tear crescentes (7 – 41.2%) e placas (10 – 58.8%), assim como alguns fragmentos de barro de revestimento, com as tradicionais marcas de pequenos troncos. A pedra polida é particularmente abundante à superfície, tendo-se contabilizado 32 elementos, correspondentes a seis machados, três enxós, quatro martelos, uma goiva, um machado de duplo gume, dez esferoides e sets elementos inclassificáveis (Fig. 5). A pedra talhada, por seu turno, está representada por uma ponta de seta, quatro segmentos de lâmina, duas lamelas (uma das quais ultrapassada), duas lascas, dois raspadores sobre lasca, dois núcleos, duas peças inclassificáveis, dois percutores e uma bigorna. A indústria sobre seixo está também presente, com um seixo talhado, duas lascas retocadas, um raspador sobre lasca e dois núcleos. No que respeita aos elementos de moagem, registaram-se dois moventes e quatro dormentes. Finalmente, destaque para um pequeno ídolo betilo tipo tolva, em mármore, de secção circular e com um pequeno sulco na parte superior (cabeça), recolhido no interior dos recintos centrais. Os ossos são igualmente frequentes à superfície, tendo-se registado a presença de restos de Cervus sp, Bos sp, Ovis/Capra e Equuo sp. Entre os ossos recolhidos registou-se igualmente uma falange de pé humano. O conjunto de materiais recolhido, tomado na globalidade, indica uma inequívoca cronologia Calcolítica, sem que se tenham registado elementos particularmente tardios dentro do 3º milénio a.n.e.. Porém, à imagem do que ocorre noutros grandes recintos (de que na região os Perdigões e Porto Torrão são exemplo – Valera 2013a; Valera et al. 2014), é possível que este contexto tenha tido a sua origem ainda no Neolítico Final (segunda metade do 4º milénio), situação que alguns materiais presentes poderão representar. No cômputo geral, a variedade de materiais presentes é comum nos grandes recintos de fossos conhecidos regionalmente, sendo talvez de destacar a ausência de materiais metálicos e de evidências de metalurgia, o que poderá ficar a dever-se a um problema

Fig. 4 – Ídolo tolva, elementos de tear e utensílios de pedra lascada recolhidos à superfície no recinto da Salvada.

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de amostragem à superfície. Por outro lado, a recolha de um resto osteológico humano poderá indiciar a presença de contextos funerários, hipótese que o ídolo betilo poderá igualmente reforçar. Trata-se, uma vez mais, de uma situação comum aos grandes recintos de fossos conhecidos no sul da Península Ibérica (Perdigões, Porto Torrão, San Blás, Pijotilla, Valencina, Marroquiés Bajos), onde contextos funerários formais e contextos de manipulação de ossos humanos começam a ser melhor conhecidos. Em suma, a Salvada parece corresponder a um complexo de recintos de fossos de médias dimensões, sensivelmente do mesmo tamanho dos Perdigões, apresentando uma arquitectura e organização do espaço que se adivinha complexa, mas que da qual apenas temos ainda um primeiro vislumbre.

Fig. 5 – Utensílios de pedra polida, fragmentos de cerâmica de construção e esferoides recolhidos à superfície no recinto das Salvada.

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3. O RECINTO DE MONTE DAS CABECEIRAS 2 O Monte das Cabeceiras 2 localiza-se acerca de 2,5km para NO da povoação de Cabeça Gorda, freguesia a que pertence (concelho de Beja). Implanta-se numa área aplanada, de substrato heterogéneo, de rochas metamórficas e rochas carbonatadas, com cobertura de argilas. A área, com uma cota média de 195m, é atravessada no sentido norte-sul pelo Barranco dos Almadas, que corta o recinto a cerca de 1/4. A conjugação de imagens do Google Earth de 2003 e do Centro Nacional de Informação Geográfica de 1998 (Fig. 2B) permitem observar pelo menos seis linhas de fosso, sabendo-se, através dos trabalhos de minimização em curso, que existe pelo menos mais uma pelo exterior (informação da empresa Ozecarus, que agradecemos). Naquilo que é visível nas imagens aéreas podemos identificar dois fossos genericamente paralelos e de tendência circular, com o interior a revelar, na zona em que é mais nítido, uma certa sinuosidade, repetindo a situação observada na Salvada (ainda que aparentemente sem a mesma padronização). Estes dois fossos definem um recinto com cerca de 8ha, mas o fosso mais exterior, se pertencer ao mesmo recinto, aumenta significativamente a área do sítio, aproximando-o da área registada na Salvada e nos Perdigões. Pelo interior são visíveis dois fossos intermédios, igualmente paralelos e próximo um do outro, parecendo uma vez mais que o exterior é linear e o interior sinuoso. Note-se, contudo, que como ficou bem demonstrado pela geofísica de Xancra (Valera e Becker 2011), fossos que nas imagens aéreas parecem lineares podem depois revelar-se bastante sinuosos. Finalmente, ao centro são discerníveis mais dois pequenos recintos circulares e concêntricos, o mais central com cerca de 23 metros de diâmetro e o que o envolve com cerca

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de 72 metros. Como já foi referido, este recinto acabaria por ser atravessado por uma vala de conduta, sensivelmente no sentido norte-sul, a qual cortou por duas vezes (a norte e a sul) quatro dos fossos identificados nas imagens, abrangendo igualmente várias dezenas de fossas, confirmando em grande medida as observações realizadas a partir da documentação fotográfica (Fig. 6). 3.1 OS MATERIAIS Os materiais arqueológicos recolhidos durante os trabalhos de prospecção e diagnóstico são compostos dominantemente por abundante cerâmica. Dominam os pratos, de bordo espessado e simples, estando igualmente presentes taças, tigelas, taças de carena baixa. As tradicionais taças carenadas e os globulares mamilados são raros, assim como os elementos de tear. Na indústria lítica destacam-se os segmentos de lâmina (quase todos em chert) e percutores esferoides. A pedra polida, presente, é pouco numerosa. Os elementos de moagem são vários, predominando os dormentes. Destaque para a base de um possível ídolo de cornos em cerâmica e para um almofariz de calcário inteiro recolhido à superfície (Fig. 6). Também não se assinalaram metais ou evidências de metalurgia nas intervenções realizadas. Os restos de fauna mamalógica e malacológica foram também registados, estando identifica a presença de Sus sp, Cervus sp e Boss sp, assim como Pecten maxinus e Cerastoderma edule. Não se registaram restos osteológicos humanos, mas a presença do recipiente de calcário, tal como de fragmentos de lajes de xisto na área imediatamente a sul da linha de fosso mais exterior visível em fotografia aérea, podem indiciar a presença de contextos funerários. 4. SALVADA E MONTE DAS CABECEIRAS 2: QUESTÕES QUE DESDE JÁ SE COLOCAM. Salvada e Monte das Cabeceiras 2 correspondem a mais dois dos inúmeros recintos de fossos recentemente identificados no sul de Portugal. Os últimos anos têm assistido à proliferação deste tipo de contextos no interior alentejano (Valera 2013b), os quais já ultrapassam a meia centena, evidenciando uma significativa concentração numa faixa de orientação oeste-este, com 30km por 75km, no eixo Ferreira do Alentejo – Beja – Serpa (Fig. 7), onde se conhecem já 31 ocorrências.

Fig. 6 – Recipientes cerâmicos, vaso de calcário e segmentos de lâmina recolhidos à superfície no recinto do Monte das Cabeceiras 2; vista de alguns troços de fossos e fossas identificados nos trabalhos de diagnóstico realizado pela empresa Omniknos.

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Fig. 7 – A. Distribuição dos recintos de fossos em Portugal, com aproximação à concentração evidenciada no eixo Ferreira – Beja – Serpa; B. Localização relativa em imagem Google Earth tridimensional dos recintos da Salvada e Monte das Cabeceiras 2.

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Os dois recintos aqui tratados enquadram-se, assim, na zona de maior concentração e de maior densidade deste tipo de sítios no território português. Naturalmente, trata-se de uma concentração de contextos diversificados, tanto no que respeita à sua cronologia, como seguramente no que concerne à sua biografia, duração, dimensões, características arquitectónicas e possivelmente desempenhos sociais. Sabemos que alguns emergem no Neolítico enquanto outros surgem apenas no Calcolítico; que alguns dos que surgem no Neolítico são abandonados ainda nesse período, enquanto outros se prolongam por todo o 3º milénio; sabemos que alguns são de reduzidas dimensões e com um reduzido número de estruturas, enquanto outros crescem até se tornarem grandes complexos, com vários recintos e centenas de estruturas associadas; sobretudo temos ainda uma informação muito díspar relativamente a cada um destes recintos (de alguns conhecemos as plantas por geofísica, outros apenas sabemos que existem devido a pequenas sondagens, outros foram já largamente intervencionados, outros ainda são conhecidos apenas por materiais de superfície e por estruturas visíveis em imagens aéreas, de uns temos plantas integrais, da maioria não). Nestas circunstâncias, avaliação do papel que estes dois novos sítios podem desempenhar nesta rede está particularmente dificultada, não só pelo desconhecimento que sobre eles temos, mas também pelo que ainda ignoramos relativamente ao seu contexto regional. De facto, se a abrupta quantidade de novos dados empíricos (dinâmica que continua) tem revolucionado a percepção que se tinha da Pré-História Recente alentejana, por outro lado cria problemas à interpretação e à síntese, pois a realidade em análise está permanentemente a mudar. Estamos, pois, mais numa fase de reformular velhas questões e colocar algumas novas que (re)orientem a investigação em curso, do que num momento de fornecer respostas de longo alcance bem fundamentadas. Algumas dessas questões emergem precisamente com esta crescente densidade de recintos numa área relativamente reduzida, com a proximidade espacial entre alguns que serão genericamente contemporâneos, com as dimensões e complexidade arquitectónica que podem exibir e com a forma como tradicionalmente se utilizam estes indicadores na construção de modelos de povoamento e das dinâmicas de ocupação do território. Relativamente à questão das dimensões, a informação está muito condicionada pelo facto de o número de recintos para os quais possuímos plantas integrais ou quase integrais ser ainda reduzido (Valera 2013b). Mas, com base na informação já disponível foi já realizado um ensaio comparativo, que de certa forma permite uma primeira tipificação no que respeita a esta variável (idem).

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Assim, e ao que no interior alentejano respeita, apenas conhecemos (de momento) um sítio que, tendo origem no Neolítico, terá atingido no Calcolítico uma significativa dimensão, paralelizável com os grandes complexos de recintos de fossos conhecidos no sul da Penísula Ibérica: Pijotilla, San Blás, Valencina, Marroquiés Bajos (eventualmente Papa Huvas e Alcalar). Trata-se do Porto Torrão, cuja informação hoje disponível, não permitindo ter o conhecimento concreto das reais dimensões que o sítio atingiu, é suficiente para que se tenha a percepção da sua escala de grandeza. No outro extremo temos um conjunto alargado de pequenos ou muito pequenos recintos, que o referido exercício de distribuição revela não ultrapassarem os 3,5 ha, ficando a grande maioria mesmo abaixo do 1,6 há, onde muito nem a 1 ha chegam. De permeio temos aquilo que poderemos designar por recintos de tamanho médio, que atingem dimensões entre os 8 e os 20 ha. O primeiro contexto conhecido a enquadrar-se dentro desta classe intermédia foi o complexo dos Perdigões, ao qual podemos agora associar o Monte das Cabeceiras 2 e a Salvada, mas também um outro sítio recentemente identificado por imagens aéreas e prospecções de superfície, situado no concelho de Serpa: Herdade da Corte (Valera e Pereiro 2013). Que quererão significar diferenças tão acentuadas na variável dimensão (a qual tende a estar associada a variáveis como complexidade arquitectónica e duração)? As respostas têm sistematicamente passado por modelos que concebem sistemas de hierarquização das redes de povoamento, com as suas relações de dependência, sejam elas apresentadas com uma estrutura mais fluída e socialmente negociada ou com uma formalização mais institucionalizada e submetida a um controlo político e económico mais ou menos apertado. Baseiam-se no postulado que concede ao sítio de maiores dimensões (e de maior complexidade) o papel de centro (catalisador, agregador, redistribuidor, dominador, controlador, a adjetivação varia em função do modelo pensado) e ao de menor dimensão o papel de satélite, subsidiário e eventualmente especializado. As relações espaciais normalmente traduzem-se por um relativo afastamento dos sítios de maiores dimensões entre si e da sua proximidade sucessiva relativamente aos seus satélites dependentes, organizando dessa forma territórios políticos e de interdependência económica. Todavia, muitas destes modelos baseiam-se em dados empíricos insuficientes ou de qualidade duvidosa, fazendo com que essa construção teórica mantenha relações débeis com as evidências empíricas (a esse título veja-se a recente crítica às bases empíricas do modelo de lugar central de características proto estatais aplicado a Valencina de la Concepción – García Sanjuán e Murrillo-Barroso 2013). Sítios mal conhecidos, insuficientemente VII ENCUENTRO DE ARQUEOLOGÍA DEL SUROESTE PENINSULAR - OS RECINTOS DE FOSSOS DA SALVADA E MONTE DAS CABECEIRAS 2. (BEJA, PORTUGAL) - ANTÓNIO CARLOS VALERA Y TIAGO DO PEREIRO

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caracterizados, cuja real natureza é ignorada ou simplesmente suspeitada, são utilizados para consubstanciarem modelos apriorísticos, por vezes retirados de outros contextos históricos. Só assim se pode compreender que, e a mero título de exemplo, o sítio do Cabeço do Zebro (Campo Maior), que numa escavação de 80m2 forneceu “escasso espólio arqueológico” e “só uma estrutura relevante”, seja considerado como pertencente a um “modelo hierarquizado de organização político territorial em cujo topo se situa um centro de poder” (o qual se admite desconhecer), sendo o sítio “um estabelecimento periférico de importância marginal” (López Aldana e Pajuelo Pando 2011). Neste contexto, e perante os parâmetros tradicionalmente utilizados para construir os modelos de hierarquização de povoamento, o tamanho que Monte das Cabeceiras 2 e Salvada evidenciam (ambos recintos de média grandeza com dimensões aproximadas), o tipo de implantação topográfica (quase uma cópia em espelho), a contemporaneidade genérica que as suas cronologias relativas indicam (inequívocas ocupações durante o Calcolítico Pleno) e a sua proximidade geográfica (apenas 3,5 quilómetros de distância entre ambos) criam um novo problema: como explicar a proximidade geográfica destes dois sítios. Naturalmente os contornos deste problema estão ainda mal definidos, resultado do conhecimento ainda muito insuficiente que temos sobre os dois complexos de recintos. De momento apenas podemos apreciar a proximidade das dimensões, das implantações topográficas, da cronologia e do local em que foram edificados. Não conhecemos ainda o bastante sobre as suas biografias ou sobre as práticas sociais, actividades e estruturas que albergam, sobre a forma como se relacionavam entre si e com o exterior. Mas a sua simples existência, com as coincidências sublinhadas, gera um problema que deve conduzir a um reequacionar de algumas ideias feitas. Por outro lado, para além das relações entre si, teremos que questionar de uma nova forma as relações que estes dois contextos poderiam manter com outros recintos mais pequenos que já se conhecem nas proximidades e com outros contextos coevos, assim como a forma como marcam e participam na construção da paisagem e territórios locais. Neste sentido é interessante sublinhar a proximidade do recinto de fossos de Figueira (com uma cronologia relativa igualmente atribuível ao Calcolítico Pleno), o qual, sendo aparentemente de dimensões reduzidas, se localiza a 3,5km do Monte das Cabeceiras 2. De facto, Figueira, Monte das Cabeceiras 2 e Salvada formam entre si um alinhamento (de sentido NO-SE), apresentando uma curiosa equidistância (3,5 km) e localizando-se ligeiramente abaixo de uma linha de festo, ou seja, na área ainda aplanada que marca 324

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o início da sua vertente sul, estando cada um associado ao curso superior de uma linha de água que, a partir dos sítios, integram redes de drenagem para sul progressivamente mais encaixadas (Fig. 1). É ainda curioso registar que essa linha de festo, uma topografia tradicionalmente utilizada na circulação, é percorrida em grande parte pela actual estrada municipal de Salvada para Beja, a qual é praticamente paralela ao alinhamento estabelecido pelos três recintos. Estes afastam-se do ponto mais alto do festo, a elevação de Estácio (Fig. 1: 4), de onde se tem um extenso domínio visual de 360º sobre todo o território envolvente. Nesta elevação foi recentemente documentada uma ocupação polinuclear prolongada no tempo, desde o Neolítico Final à Idade do Ferro, na qual se registou uma área de necrópole calcolítica com enterramentos em fossa e um tholos (a que se seguem áreas de necrópole de hipogeus da Idade do Bronze e, mais tarde, é um tholos de uma necrópole da Idade do Ferro, numa construção de um espaço sacralizado de longa duração, à imagem do que começa a ser conhecido noutros contextos alentejanos (como o Outeiro Alto 2, Serpa). Estes três recintos, porém, afastam-se das áreas de maior destaque e de maior controlo visual da paisagem e localizam-se ao longo do que se poderá afigurar como uma zona de trânsito. Será cedo ainda para construir teoricamente sobre estas observações, mas elas sugerem outras linhas de abordagem, nomeadamente as que relacionam o papel social desempenhado por alguns recintos em rotas de circulação (veja-se a título de exemplo as propostas avançadas para os alinhamentos de henges de Thornborough, no Yorkshire central- Harding 2012). De facto, se os estudos de proveniências de matérias-primas e objectos já revelavam uma intensa interacção no Neolítico e Calcolítico, os estudos mais recentes que têm incidido sobre a circulação de pessoas (com base nas análises de isótopos) têm vindo documentar padrões de acentuada mobilidade para estas sociedades, mesmo para aquelas comunidades que tradicionalmente são denominadas de camponesas ou agrícolas. Veja-se, a título de exemplo, o estudo preliminar já realizado para os Perdigões (Hillier et al. 2010), ainda com uma amostra pouco representativa, onde se verifica que num total de oito indivíduos apenas dois serão locais (e mesmo estes surgem no limite dos parâmetros definidos para o local). Todavia, se a sua articulação com uma eventual rota de circulação poderia ajudar a compreender a localização e equidistância destes três recintos e até a sua proximidade espacial na origem, não esclarece muito sobre as dinâmicas sociais que possibilitaram (ou até incentivaram) o crescimento do Monte das Cabeceira 2 e da Salvada por forma a atingiram dimensões tão significativas e expressões arquitectónicas tão aparentadas, nem explicam porque razão Figueira não sofreu o mesmo processo de crescimento. Para termos VII ENCUENTRO DE ARQUEOLOGÍA DEL SUROESTE PENINSULAR - OS RECINTOS DE FOSSOS DA SALVADA E MONTE DAS CABECEIRAS 2. (BEJA, PORTUGAL) - ANTÓNIO CARLOS VALERA Y TIAGO DO PEREIRO

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fundamento de resposta a esta e a tantas outras questões teremos, pois, que esperar pelo desenvolvimento da investigação nestes contextos, a qual terá que ser orientada por uma maior abertura de possibilidades interpretativas, evitando ficar refém de alguns dos preconceitos que enfermam muitos dos modelos de hierarquização de povoamento (o que o Monte das Cabeceiras 2 e Salvada desde já vivamente aconselham). Para já, e enquanto se espera pela publicação da intervenção de minimização realizada no Monte das Cabeceiras 2, faria todo o sentido avançar com uma investigação sistemática nestes sítios, orientada à obtenção de um máximo de informação com um mínimo de custos. Sendo hoje claro, através dos inúmeros e variados trabalhos que se têm desenvolvido nos grandes complexos de recintos, que o conhecimento pormenorizado da espacialidade das estruturas é central para a sua interpretação e que a geofísica se assume como uma ferramenta capaz de proporcionar avanços significativos nesse domínio (como se tem vindo a demonstrar cabalmente pela investigação desenvolvida pelo NIA em vários recintos portugueses, Valera 2013b), torna-se prioritário a realização de prospecções geofísicas, tanto na Salvada como no Monte das Cabeceiras 2 e Figueira, com vista à obtenção de uma conhecimento mais aprofundado e detalhado destas estruturas, tanto em benefício da investigação como da sua gestão e protecção enquanto bens patrimoniais. Procuraremos dar esses passos, cientes que são fundamentais para se poder ir mais além do que o simples enunciar de algumas ideias e problemas genéricos como os que aqui se colocaram. BIBLIOGRAFIA Becker, H; Valera, A.C. e Castanheira, P. (2012): “Monte do Olival 1 (Ferreira do Alentejo, Beja): magnetometria de césio num recinto de fossos do 3º milénio AC”, Apontamentos de Arqueologia e Património, 8, Lisboa, Nia-Era: p11-17. García Sanjuán, L. y Murillo-Barroso, L. (2013): “Social Complexity in Copper Age Southern Iberia (c. 3200-2200 cal BC): reviewing the ‘state’ hypothesis at Valencina de la Concepción (Seville, Spain).” in Cruz Berrocal, M.; García Sanjuán, L. & Gilman, A. (Eds.), The Prehistory of Iberia: Debating Early Social Stratification and the State, New York, Routledge: 119-140. Harding, J. (2012): “Conformity, routeways and religious experience – the henges of Central Yorkshire”, in A. Gibsin (ed.), Enclosing the Neolithic. Recent studies in Britain and Europe, Bar International Series, 2440: 67-80. Hillier, M.; Boaventura, R. e Grimes, V. (2010): “Moving around? Testing mobility with strontium isotopes (86Sr/87Sr) in the Late Neolithic of South-Central Portugal”, Poster apresen326

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