Os royaties do petróleo e a verdade incômoda acerca do federalismo brasileiro (Magazine)

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Os royalties do petróleo e a verdade incômoda acerca do federalismo brasileiro Márcio Fernandes

Artigo publicado na revista mensal “Contexto das Gerais”, vol. 3, 7 de abril de 2013

N

a madrugada entre os dias 6 e 7 de março, o Congresso Nacional concluiu mais uma etapa de uma longa disputa que ainda não tem data para acabar. Tratava-se da votação do Veto Presidencial nº 38/2012 –

que rejeitava importantes dispositivos da nova lei dos royalties do petróleo, aprovada na Câmara dos Deputados em 6 de novembro de 2012. A contenda isolou os parlamentares do Rio de Janeiro (RJ) e do Espírito Santo (ES) de seus demais pares no Congresso e demonstrou mais uma vez a dificuldade do Poder Executivo em orientar os partidos do bloco governista. De imediato, a disputa versava sobre a qualidade da partilha dos recursos de royalties decorrentes da exploração de petróleo. Porém, em olhar mais cuidadoso, os debates acalorados ocorridos naquela sessão do Congresso revelaram um problema federativo profundo que a Constituição de 1988 não conseguiu resolver: a concentração excessiva de recursos em poder da União, para o prejuízo dos estados e, principalmente, dos municípios brasileiros. *** Aclarando a conversa Inicialmente, devemos aclarar os termos. Royalty é uma expressão usada para designar uma importância paga ao detentor de um bem pela exploração feita por terceiros. No caso do petróleo – de acordo com a legislação brasileira –, os royalties são valores pagos à União pelas empresas que desejam extrair o óleo em território nacional. Esta obrigação de pagamento deve-se ao fato da Constituição estabelecer que os recursos minerais em subsolo são propriedade da União e, para poder explorá-los, as empresas precisam pagar a devida compensação financeira

ao Estado Brasileiro (que terá parte de sua propriedade diminuída com a retirada daqueles recursos minerais). Percebamos que, ao contrário do que se tem dito em diversos meios de comunicação, os royalties não significam necessariamente o pagamento às regiões sob risco de prejuízo ambiental. Representam, antes, a compensação devida ao proprietário de um bem diante da exploração econômica que está sendo feita por outros. Obviamente, os impactos ambientais podem ser considerados para a definição do valor final a ser pago ao Estado. Mas eles não são, historicamente, o cerne da existência do instituto do pagamento em royalties. Atualmente, os royalties do petróleo são cobrados das concessionárias que o exploram por meio de contrato celebrado com a Agência Nacional do Petróleo (ANP), que repassa à União os valores pagos pela iniciativa privada. A legislação brasileira também prevê que as empresas paguem recursos adicionais – as chamadas Participações Especiais – para a exploração de poços que tenham perspectivas de grandes rendimentos. Finalmente – após o recebimento destes valores –, a União define em lei qual o critério de partilha destes recursos entre os demais entes da federação (estados e municípios). E é aqui que a nossa novela começa. *** A partilha dos royalties e suas disputas no Congresso Nacional Até meados de 2012, a regra consolidada pelas Leis nº 9.478/1997 e 12.351/2010 determinava que cerca de 30% das receitas derivadas de recursos de royalties caberiam à União; cerca de 26,25% dos royalties corresponderiam aos estados e municípios produtores/confrontantes, em dois fundos de igual proporção (a expressão “confrontante” diz respeito àqueles municípios que, apesar de não produzirem petróleo em seu território seco, têm suas costas marítimas diante dos poços encontrados em alto mar; os municípios “confrontantes” estão concentrados nos estados do RJ e do ES). Aos demais estados e municípios da federação restaria a partilha de cerca 8,75% daqueles recursos. Por fim, municípios afetados pelo embarque e desembarque do petróleo receberiam parcela especial da ordem de 8,75% dos royalties (relativa a compensações diante dos riscos de impacto ambiental).

Com a confirmação, em meados de 2008, da existência de óleo leve na camada pré-sal, o Governo Federal retomou as discussões relativas à definição de um novo marco legal para a exploração de petróleo no Brasil. O Planalto, naquela época, apresentou sugestões e lançou-as ao Congresso, mas não levou em conta que a avidez de estados e municípios por recursos adicionais produziria uma disputa sobre a qual perderia controle. Rapidamente formou-se uma polarização entre grupos políticos no parlamento brasileiro, isolando os parlamentares do RJ e do ES – favoráveis à manutenção das regras então vigentes – dos representantes dos demais estados – que, pressionados por suas bases, desejavam maior participação nos recursos de royalties. Das propostas em discussão no Congresso, avançou mais rapidamente aquela prevista pelo Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 448/2011, do Senador Wellington Dias (PT/PI), que garantia partilha mais equilibrada dos royalties para estados e municípios de todo o país. Sem contar com o apoio oficial do Governo (que desejava uma proposta mais conciliadora, capaz de proteger os ganhos do RJ e do ES), a matéria foi levada à Câmara em novembro do ano passado, contando com o apoio da maioria avassaladora dos deputados, sendo aprovada e enviada à sanção presidencial. O debate acalorou-se, tomando a forma de questão federativa sensível, mobilizando parlamentares, governadores e o conjunto das lideranças municipais do país. O PLS nº 448/2011 foi parcialmente vetado pela Presidenta Dilma (que estava sob forte pressão de seus aliados no RJ). A parte aceita pela Presidência da República – e que não tratava das regras da partilha – foi publicada como Lei nº 12.734/2012 –, enquanto que a parte rejeitada foi transformada em Veto nº 38/2012, sendo remetida ao Congresso (os vetos presidenciais aos projetos aprovados por deputados e senadores sempre são reenviados ao Congresso, que tem a palavra final na aceitação ou não da rejeição do Executivo). Daí em diante, o Veto experimentou sucessivos ensaios de votação pelo Congresso Nacional. Judicializado, o tema passou a incluir um novo ator – o Supremo Tribunal Federal (STF) –, que foi provocado sucessivas vezes entre novembro e janeiro pelos representantes do RJ e do ES na tentativa de paralisar o avanço do texto aprovado no Congresso Nacional. Por fim, o Veto nº 38/2012 foi votado no início de março e – como o esperado – acabou rejeitado (dando nova redação à Lei nº 12.734/2012, que passou a valer na forma do texto original do PLS

nº 448/2011). Mais uma vez, parlamentares cariocas acionaram o STF e, atendendo à Ação de Insconstitucionalidade proposta pelo RJ, a Ministra Cármen Lúcia suspendeu os efeitos da nova lei dos royalties até decisão final daquela Corte, inicialmente anunciada para meados deste mês de abril. Esta é a atual situação em que nos encontramos. *** Mudanças da partilha e expectativas no Planalto Central Se a nova lei dos royalties se mantiver nos moldes do texto aprovado no Congresso Nacional, garantirá recursos substanciais a estados e municípios de todo o país. Pelo seu texto, os entes não confrontantes receberão recursos de royalties por meio de dois fundos especiais – um destinado aos estados e, outro, aos municípios, cada um deles concentrando cerca de 21% dos royalties do petróleo explorado na plataforma continental brasileira, chegando a 27% em 2019. O critério de rateio destes recursos obedeceria àqueles já previstos para os Fundos de Participação de Estados e Municípios. Municípios produtores/confrontantes teriam seu percentual de participação reduzido progressivamente, chegando a 4% em 2019. Estados produtores/confrontantes, por sua vez, passariam dos atuais 26,25% para 20%. A cota da União seria reduzida a 20% do total recebido. Segundo cálculos da Confederação Nacional de Municípios (CNM), a mudança provocaria um impacto gigantesco nas contas das administrações do Noroeste de Minas (veja a tabela em destaque). Tal situação não seria distinta para as diferentes regiões do interior do país. Em Brasília, o clima é de prudência ao se movimentar as peças do tabuleiro. Os recursos são altos e as perdas de estados e municípios confrontantes não são pequenas. O Palácio do Planalto – desgastado com as sucessivas derrotas sofridas no Congresso com respeito ao tema dos royalties – decidiu tornar mais discreto o seu apoio ao RJ e ao ES – que ainda lutam pela manutenção da partilha segundo as regras anteriores. Os interlocutores do Governo tem se movimentado para, ao menos, garantir a destinação dos recursos da partilha dos royalties para setores específicos, como a educação (e, para tanto, têm defendido a aprovação da Medida Provisória nº 592/2012, que destina grande parte daqueles recursos para o desenvolvimento

do

setor).

Representantes

dos

governos

municipais



notadamente, a CNM – têm defendido a autonomia dos governos locais em aplicar os royalties onde considerarem necessário. São Paulo ficou dividido. O governo do estado alinhou-se ao RJ e ao ES (receoso das perdas futuras no caso da exploração bem sucedida da Bacia de Santos, que também confronta cidades paulistas), enquanto que municípios do interior têm sido mais favoráveis ao texto aprovado no Congresso. Os governadores dos estados não confrontantes, seduzidos pelo canto dos Presidentes da Câmara e do Senado – que ganharam força graças à ausência do Planalto na liderança das negociações –, têm mantido conversações com o Congresso para o estabelecimento de um novo “pacto federativo” capaz de resolver as mazelas da concentração de recursos nas mãos da União (o que também inclui os royalties do petróleo). Os agentes políticos se movimentam e, divididos, têm dificuldade em costurar um acordo antes de qualquer conflito. Todos aguardam a decisão final do STF (que não tem pressa em proferi-la), tacitamente conscientes de que a manifestação daquela Corte – qualquer que seja a sua natureza – não será capaz de apaziguar os ânimos nesta disputa. A solução terá de ser política e fatalmente passará pelo Congresso, único espaço capaz de manejar e conduzir um acordo diante de um Executivo ausente e com dificuldades de liderar sua maioria. *** Uma verdade que incomoda A verdade incômoda desta disputa é que a Constituição de 1988 não ofereceu ao Brasil um sistema federativo equilibrado. Continuamos a ter um Estado centralizador em que a União insiste em concentrar grande parte dos recursos arrecadáveis do país. Mantendo a maior parcela dos dividendos fiscais em seu poder, a União muitas vezes decide unilateralmente sobre os critérios que permitem o repasse destes recursos a estados e, principalmente, a municípios. Esses últimos, por sua vez, mantêm-se como entes atípicos. São responsáveis por grande volume de obrigações, mas não detêm autonomamente os recursos necessários para cumpri-las. Como resultado, dispõem-se – se devidamente provocados – a lutar avidamente por qualquer oportunidade de ganhos adicionais em seus orçamentos. A redefinição das regras de distribuição dos recursos de

royalties do petróleo foi um exemplo disto. Lançada no Congresso Nacional, não houve força capaz de neutralizar a enorme pressão vinda das bases políticas dos parlamentares. O debate em torno dos royalties foi levado aos “trancos e barrancos” e à revelia dos interesses do Planalto (que, a princípio – e ingenuamente –, imaginou que poderia pautá-lo). As lideranças partidárias enfraqueceram-se e, no Plenário, o bloco do Governo deixou de existir. O “baixo clero” reinou. Mais uma vez, a crise na relação entre os entes federados colocou à tona a necessidade de uma redefinição das competências e da partilha das fontes fiscais do Estado. A novela continua e quem acompanha de perto o processo sabe que o capítulo final ainda tardar em chegar. Acompanhemos os próximos episódios.

Tabela em Destaque: Arrecadação dos Municípios do Noroeste de Minas com Royalties e Participação Especial de petróleo explorado em mar

Município Arinos Bonfinópolis Brasilândia de Minas Buritis Cabeceira Grande Chapada Gaúcha Dom Bosco Formoso Guarda-Mor João Pinheiro Lagamar Lagoa Grande Natalândia Paracatu Patos de Minas Riachinho Unaí Uruana de Minas Urucuia Vazante

Distribuído em 2011 pela regra antiga (em R$) 152.429 76.214 127.024 152.429 76.214 101.619 76.214 76.214 76.214 254.048 76.214 76.214 76.214 355.667 457.286 76.214 330.262 76.214 127.024 152.429

Fonte: Confederação Nacional de Municípios

Receberia em 2013 com a derrubada do Veto (em R$)

Aumento (em R$)

938.783 469.391 782.319 938.783 469.391 625.855 469.391 469.391 469.391 1.564.638 469.391 469.391 469.391 2.190.493 2.816.348 469.391 2.034.029 469.391 782.319 938.783

786.354 393.177 655.295 786.354 393.177 524.236 393.177 393.177 393.177 1.310.590 393.177 393.177 393.177 1.834.826 2.359.062 393.177 1.703.767 393.177 655.295 786.354

Márcio Fernandes é cientista político formado pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em História Econômica pela Universidade de Coimbra. Exerceu funções como pesquisador-visitante na Universidade de Salamanca, na Espanha, e hoje trabalha acompanhando o Congresso Nacional em Brasília, de onde envia suas percepções sobre os bastidores da política e do poder na capital da República.

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