O(s) salmo(s) Laudate Pueri Dominum de Miguel Anjo do Amaral

May 23, 2017 | Autor: Rita Faleiro Jahn | Categoria: Musica Sacra, Séc. XVIII, Sé De ÉVora, Música vocal
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O(s) salmo(s) Laudate Pueri Dominum de Miguel Anjo do Amaral (P-EVc Salmos nº 2, P-EVc nº 3 e P-EVc nº 6)1 Rita Faleiro Doutoranda no Programa Música e Musicologia Universidade de Évora

Miguel Anjo do Amaral é um compositor relativamente desconhecido da história da música portuguesa. No entanto, apesar de não haver muitos dados sobre este compositor nos principais dicionários biográficos, através dos dados que nos foram deixados pelo Cónego José Augusto Alegria podemos retirar algumas informações. Se olharmos para o Catálogo dos Fundos Musicais da Biblioteca Pública de Évora, encontramos referência a um Miguel Angelo, que compôs uma Missa a 4, instrumental, com acompanhamento de órgão: “Missa a 4 de instrumental / do / Sr. Miguel Angelo / Com Acomp.to d’órgão” (Alegria 1977: 52). No entanto, no Catálogo do Arquivo das Músicas da Sé, compilado também por Alegria, Anjo do Amaral aparece largamente representado enquanto compositor de música sacra. Assim, dele podemos encontrar Missas de Capela, Missas Pro Defunctis, Te Deum, Sequências de Defuntos, Música Mariana, Salmos e Hinos e ainda um Credo. Se compararmos os dois catálogos, poderemos levantar a hipótese de este Miguel Angelo ser efectivamente Miguel Anjo do Amaral, apesar de o apelido estar omitido. De facto, Miguel Anjo escreveu missas a 4 com acompanhamento de órgão, o que corresponde à entrada do Catálogo da Biblioteca Pública. Seriam necessários mais estudos comparativos entre os manuscritos para se poder afirmar esta tese sem dúvidas; no entanto, é uma hipótese viável. Sobre Anjo do Amaral, Alegria dá-nos ainda mais dados através da sua História da Escola de Música da Sé de Évora e através da sua obra Colégio dos Moços do Coro da Sé de Évora.

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Excerto da comunicação proferida a 16 de Fevereiro de 2017 na Igreja de São Vicente, Évora, no âmbito do Seminário “Música Sacra em Évora no séc. XVIII”. 2 Livro de despesas e receitas 1815-16: f30r 3 Arquivo Distrital de Évora, Colecção de testamentos 1554/1835, ref.

Sabemos então que nos finais do séc. XVIII (1779) Miguel Anjo do Amaral é um dos músicos integrado no rol de músicos da Sé, sendo segundo contralto e “compositor de variadas peças que se conservam no arquivo” (Alegria 1973a: 103). No ano de 1815, sabemos que é Anjo do Amaral responsável não apenas por tocar a rabeca mas também por ensinar o modo de a tocar aos meninos do Coro2. Através do seu testamento, realizado em 21 de Abril de 1807, ficamos ainda a saber que foi Sacristão da Igreja de Santa Marta e que pretendia nela ser enterrada à altura da sua morte. Este documento identifica ainda os herdeiros universais designados por Anjo do Amaral: Maria Ignácia e, no caso de ela ser falecida antes dele, deveria ser seu herdeiro Manuel da Cruz Quintanheiro, da Quinta do Alcaide: “Eu Miguel Anjo do Amaral Sachristão da Igreja de Sta Matha desta cid. de Evora (...) Quero q meu corpo seja sepultado em S.ta Martha. (...). Item nomeio (...) por minha univerçal herdeira a Mariana Ignacia e que pelo amor de D.s seja minha Testamenteira, e sendo esta falecida ao tempo de minha morte nomeio do mesmo modo a Mel da Cruz Quintanheiro da Qta do Alcaide por meu universal herdeiro e Testamenteiro (...)”3 e

Na colecção de salmos que nos são apresentados no Catálogo do Arquivo das Músicas da Sé de Évora, podemos perceber que Amaral apresenta um conjunto de salmos que pertencem ao ofício de Vésperas Marianas, acrescentando ainda um Laudate Dominum4. Deste conjunto de seis salmos de Vésperas (Laetatus Sum, Laudate Pueri, Nisi Dominus e Laudate Dominum), o Laudate Pueri (que, de acordo com o estabelecido no Livro dos Salmos da Bíblia Sagrada pertence à categoria de “salmos de louvor ou hinos”) aparece três vezes. À partida seria possível pensar-se que se tratam de três salmos diferentes, sobretudo se verificarmos que por variadas vezes Alegria refere quando existem mais arranjos instrumentais da mesma peça5.

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Livro de despesas e receitas 1815-16: f30r Arquivo Distrital de Évora, Colecção de testamentos 1554/1835, ref. PT/ADEVR/COLTEST/06805 4 Ficou fora do âmbito do estudo o salmo com a cota P-EVc Salmos nº 4 uma vez que pertence ao ofício de Nona e foi utilizado para a Festa da Assunção. 5 Como é o caso do salmo Lauda Jerusalem, de Pedro António Avondano, que aparece no RISM com a cota P-EVc Salmos nº 10, e que Alegria especifica existir em mais quatro colecções com diferentes arranjos instrumentais (Alegria 1973: 29). 3

Porém, após transcrição do manuscrito, é possível chegarmos à conclusão de que na realidade estamos perante o mesmo salmo mas com três arranjos orquestrais diferentes, facto que passou desapercebido a Alegria. De facto, todos os Laudate Pueri nos apresentam a mesma estrutura assumidamente tripartida. No que concerne ao tipo de compasso, encontramos uma sequência 4/4 (nos primeiros cinco versos – 3/4 (aplicado ao Gloria) - 4/4 (no Sicut). Da mesma forma, encontramos em relação à tonalidade uma opção estilística de alternar entre a tonalidade Maior e a sua relativa menor (Dó M – Lá m – Dó M). Relativamente à distribuição das vozes, em todos os Laudate Pueri podemos encontrar uma alternância entre a voz solista (baixo) e o tutti (v. 1-5), um solo de baixo sobre as palavras “in caelo” (v. 6) e, nos 7º e 9º versos, um dueto formado entre soprano e contralto no primeiro hemistíquio (sendo o segundo constituído pelo tutti vocal). Em todos os Laudate Pueri, a doxologia fica a cargo do tutti. Porém, relativamente aos andamentos utilizados, os três salmos apresentam uma diferença subtil visível na seguinte tabela:

Cota

V. 1-4

V. 5-6

V. 7-9

Gloria

P-EVc Salmos nº 2

Allegreto

Largo Allegreto Andante Allegreto

P-EVc Salmos nº 3

Andante

Largo Andante Andante Allegreto

P-EVc Salmos nº 6

Allegreto

Largo Allegreto

Largo

Sicut

Allegreto

Vemos que a diferença mais expressiva se encontra no Gloria do último salmo, que foi composto num Largo em vez de um Andante. No entanto, a principal ideia que importa transmitir no que diz respeito a estes salmos, e que faz intuir que se trate da mesma obra mas com adaptações diferentes, prende-se à sua instrumentação, uma vez que a parte vocal é igual nos três Laudate Pueri. Em P-EVc Salmos nº 6, a instrumentação ao longo da peça é constituída meramente por violoncelo e baixo, duplicando estes instrumentos a linha melódica:

Laudate Pueri P-EVc Salmos nº 6 Verso Violoncelo 1 ✔ 2 ✔ ✔ 3 4 ✔ 5 ✔ 6 ✔ ✔ 7 8 ✔ 9 ✔ ✔ Gloria Sicut ✔

Órgão ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔

Contrastando com esta simplicidade instrumental, Amaral apresenta-nos outras duas versões com uma maior complexidade instrumental, sendo utilizados violinos, clarins, oboés e trompas.

Verso Intr. Inst. 1 2 3 4 5 6 7

P-EVc Salmos nº 2 Vl. Cl. Ob. ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔

8



9 Gloria Sicut

✔ ✔ ✔



✔ ✔

✔ ✔ ✔

✔ ✔

✔ ✔ ✔



✔ [só um compasso em ambos] ✔ ✔ ✔



Acp. ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔

Laudate Pueri P-EVc Salmos nº 3 Verso Vl. Tr. Bass. Vlc. 1 ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ 2 3 ✔ ✔ ✔ ✔ 4 ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ 5 6 ✔ ✔ ✔ 7 ✔ ✔ ✔ ✔ 8 ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ ✔ 9 Gloria ✔ ✔ ✔ Sicut ✔ ✔ ✔ ✔

Há ainda um detalhe de importância extrema a ser referido; em P-EVc Salmos nº 2, Amaral tem o cuidado de escrever uma introdução instrumental com a duração de 13 compassos, na qual incorpora um solo de oboé. Em P-EVc Salmos nº 3, apesar de estar presente uma maior riqueza orquestral que no salmo 6, a entrada de voz e instrumento é imediata.

O facto de existir uma introdução instrumental no único salmo que apresenta data de composição (1802) pode levantar questões pertinentes no que diz respeito às razões para Amaral efectuar estas variações sobre a mesma peça. Pode-se intuir que este compositor escreve para a ocasião, alterando as partes vocais consoante o que seja necessário, requerido ou possível (vinda de instrumentistas de fora, uma festa mariana mais solene, ou mesmo, como no caso deste Laudate Pueri, um evento religioso de particular importância como a instituição de Frei Manuel do Cenáculo como arcebispo de Évora precisamente no ano de 1802, data em que o salmo P-EVc 2 foi composto). Terá sido o salmo P-EVc 6 o primeiro a ser composto, mantendo-se como uma base de trabalho para diferentes ocasiões? A questão da proveniência de músicos extra-claustra já foi referida por Alegria, que afirma “Poderá sugerir-se, como hipótese, que as coisas tenham tomado este caminho em razão da facilidade de contratar, para cada caso, os músicos que viviam na cidade entregues a outras actividades” (Alegria 1973a: 112). No entanto, e tendo em conta a diferença na dificuldade de execução da música escrita, poderá ser mais provável a contratação de músicos extra-eborenses, motivados pela crescente mobilização profissional que se começa a assistir em Portugal, decorrente do decair do sistema de patrocínios (Brito 2014: 76). Laudate Pueri Dominum de Miguel Anjo do Amaral reveste-se então de um carácter importante. Estamos na presença de música funcional, escrita para determinadas e específicas ocasiões, e isto permite-nos enquadrar o seu compositor no que era prática corrente da época. Outros compositores contemporâneos, como sejam Marcos Portugal, são adeptos da mesma prática. Deste último compositor, podemos referir por exemplo o seu Confitebor, com oboés, trompas e baixo, que encontra mais duas versões/colecções com diferentes arranjos instrumentais.

Bibliografia ALEGRIA, José Augusto (1973a). História da Escola de Música da Sé de Évora. Fundação Calouste Gulbenkian. ALEGRIA, José Augusto (1973b). Arquivo das Músicas da Sé de Évora Catálogo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. ALEGRIA, José Augusto (1977). Biblioteca Pública de Évora – Catálogo dos fundos musicais. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. AQUILINA, Frederick - Benigno Zerafa (1726-1804) and the Neapolitan Galant Style. [Em linha], 1ª ed. Woodbrigde: Boydell Press, 2016. [Consult. 08 Fev. 2017] . Disponível na internet:URL:https://books.google.pt/books?id=lfKjCwAAQBAJ&pg=PA121&dq= stile%20concertato&hl=ptPT&sa=X&ved=0ahUKEwi7z4i_3_HRAhWK3oMKHVcHAYMQ6AEIKDAC#v=onep age&q=stile%20concertato&f=false>. ISBN 978 1 78327 086 6 BRITO, Dulce (1991). Os estrangeiros e a música no quotidiano lisboeta em finais do século XVIII. Revista Portuguesa de Musicologia. 1, (1991) p. 75-80. CASTAGNA, Paulo - Estilo Antigo e Estilo Moderno na música antiga latino-americana. [Em linha]. [Consult. 27 Out. 2017]. Disponível em WWW:. CHRISTOVAM, Ozório Bimbato - A relação musical entre Lisboa e Nápoles durante o séc. XVIII. [Em linha] [Consult. 30 Set. 2017]. Disponível em WWW:. COSTA, J. (2016). Catálogo dos manuscritos presentes no Arquivo da Sé de Évora de compositores desta instituição. Trabalho apresentado à Universidade de Évora HUGHES, Andrew - Medieval manuscripts for mass and office: a guide to their organization and terminology. [Em linha]. 1ª ed. University of Toronto Press, 1995. [Consult. 08 Set. 2017]. Disponível na internet:. ISBN 08020-7669-6 Igreja Católica. Bíblia Sagrada, Difusora Bíblica, Texto da 3ª Edição revista sob a direcção de Herculano Alves, Janeiro de 2002

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