Os sambaquis e o império: uma controvérsia na história da ciência

May 30, 2017 | Autor: M. Oliveira Calazans | Categoria: Archaeology, History of Science, Sambaqui Archaeology, Shell Mounds
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Os sambaquis e o império: uma controvérsia na história da ciência

Marília Oliveira Calazans*

Introdução Historiar uma ciência, isto é, colocá-la sob a perspectiva temporal, é também analisar suas controvérsias. Situar estas disputas intelectuais historicamente é tarefa que demanda do historiador, a quem o recuo temporal é favorável, a reflexão sobre a enraização destas questões nas práticas sociais que lhes cercam, ou a análise dos problemas científicos isolados deste contexto, ou ambas. Pensar pela ciência, por aquilo a que se chama de racionalidade é o grande divisor que separa a sociedade moderna das outras sociedades, ditas pré-modernas. De forma análoga, a invenção da modernidade inaugurou também um sentido de purificação dos assuntos, de forma tal que, no discurso moderno, ou se narra sobre natureza ou se discorre sobre o social. Também o discurso sobre a ciência foi purificado, e por ele não perpassam – em uma concepção moderna – política e ideologia. A reflexão sobre os grandes divisores inaugurados pela modernidade é assunto comum à antropologia da segunda metade do século XX, que se impôs o dever de pensar as sociedades não ocidentais fora destes padrões (LÉVI-STRAUSS, 1976; 1986; DESCOLA In: KUPER, 1992; LATOUR, 1994; ELIADE, 1998, 1999; INGOLD, 2000; STENGERS, 2002; VIVEIROS DE CASTRO, 2002). Radicalizando este sentido, a antropologia simétrica de Bruno Latour, uma de nossas referências neste trabalho, pergunta-se: e se jamais tivermos sido modernos? – Deixar-nos guiar por esta questão significa questionar os próprios alicerces do que consideramos modernidade: da assimetria marcada entre o tempo moderno e o prémoderno; entre os vencedores e vencidos; (LATOUR, 1994, p. 15) e entre o pensamento científico e o mitológico (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 61). * Universidade de São Paulo. Mestranda em História Social.

2 No século XIX, a modernidade, quaisquer sejam seus sentidos, foi perseguida pela sociedade ocidental, sobretudo pelos Estados nacionais. No Brasil, nação independente em 1822, modernizar-se significou abrir caminhos para a industrialização, a urbanização, o liberalismo e, é claro, a ciência. Este último foi fator crucial, no Brasil e na Europa, para a defesa de um ideal de progresso. É inegável a influência daquilo que se considerou científico no estabelecimento de ideias na política e sociedade. Mas, quanto ao caminho inverso? Quanto o diálogo político e social interfere nos debates científicos? Como os historiadores da ciência encaram esta questão? Estas são perguntas que pretendemos desenvolver aqui. Neste trabalho, propusemo-nos analisar a maneira que historiadores da ciência de um mesmo período debruçaram-se sobre uma controvérsia específica: a arqueologia em sambaquis no Brasil do século XIX. Para isso, elencamos quatro trabalhos publicados nos últimos treze anos: Sambaquis: Arqueologia do litoral brasileiro, de MaDu Gaspar (2000); Os sambaquis e o império: Escavações, teorias e polêmicas, 1840-1889, de Johnni Langer (2001); Os sambaquis vistos através de um sambaqui, de Paulo de Blasis (2005); e Richard Francis Burton, os sambaquis e a Arqueologia no Brasil Imperial, de Lúcio Ferreira e Francisco Noelli (2007). Subsidiados pelo trabalho de Isabelle Stengers, A invenção das ciências modernas (2002), classificaremos os quatro trabalhos mencionados como história “interna” ou “externa” às ciências. Como hipótese norteadora, tomamos a ideia de que cada historiador da ciência produz sua reflexão a partir de um lugar particular, de onde se concebe uma ideia igualmente específica sobre o significado de ciência e cientificidade, e também sobre a relação que a ciência estabelece com outras esferas da vida social e política de um grupo. À história interna ou internalista, pertencerão os trabalhos que tomarem como prisma a ideia de que o conhecimento científico se desenvolve segundo seus próprios critérios, minorizando a relevância de fatores externos ao debate científico. Do outro lado, os trabalhos que conformam uma história externa, que consideram o debate estritamente científico como um dos fatores a serem analisados para a compreensão de um paradigma, conjugados com questões políticas, sociais e institucionais. A esta perspectiva, articularemos outros conceitos oferecidos por Stengers, como o de purificação e irredutibilidade dos interesses científicos, a autonomia das comunidades

3 científicas e as consequências da demarcação dos limites entre o científico e o não científico. Ao final, pretendemos esboçar uma reflexão sobre o resultado destas duas vertentes de história da ciência, balizando também a possibilidade de purificação destas duas vertentes.

Arqueologia e sambaquis Embora Margarita Diaz-Andreu ofereça um panorama interessante das relações entre arqueologia e nacionalismo, precisamos reavaliar sua conclusão sobre as pesquisas em préhistória no Brasil. Esta autora afirma que os passados da elite governante e das populações nativas eram inconciliáveis, e que por isso a ideia de pré-história foi abandonada, em favor de uma narrativa histórica que privilegiasse o período colonial. Concordar com esta proposição seria ignorar dois temas recorrentes entre os estudos arqueológicos do século XIX: a antiguidade do homem americano e a busca pela civilização antiga, da qual os indígenas seriam descendentes degenerados. Para alguns pesquisadores, os sambaquis testemunhariam ambas teorias. Sambaquis, em sua acepção hodierna, são montes artificialmente construídos, compostos de restos faunísticos, como conchas, mariscos, berbigões, ossos de peixes e pequenos mamíferos. Ocorrem em todo o litoral brasileiro e em alguns lugares do mundo, em estruturas análogas. Pelos vestígios que guardam, parecem ter servido de acampamento e/ou cemitério a populações que habitaram o litoral há milhares de anos. Os maiores sítios sambaquieiros chegaram a medir trinta metros de altura, o que evidencia uma longa permanência destas populações. Estes enigmáticos sítios, que marcam a colonização do litoral brasileiro, possuem datações que variam entre 5000 e 1500 anos AP (estudos inconclusos estimam que a data mais antiga possa variar até 8000 AP). Este dado indica que, de alguma forma, a ocupação dos sambaquieiros fora interrompida mil anos antes da colonização portuguesa. Os pesquisadores da área tentam compreender as causas deste desaparecimento. Entre as possíveis razões, estão a expulsão por povos ceramistas que migraram do sul em direção ao litoral, extermínio, ou assimilação da cultura tupi. A referência mais antiga aos sambaquis está em seu próprio nome: sambaqui é uma

4 palavra Tupi. Sua tradução mais aceita é de Teodoro Sampaio (1855-1937) que o definiu como “monte de conchas” (COSTA, 1980, p. 67). Estes montes de conchas, embora nunca tenham ocupado um papel central no debate arqueológico, sempre despertaram curiosidade. Nos relatos mais antigos, ainda do século XVIII, Frei Gaspar da Madre de Deus descreve os sítios como depósito do resto de alimentação dos índios. Nas “ostreiras” também era possível, seguindo seu relato, encontrar machados, panelas quebradas e ossos de defunto, “pois se algum índio morria nos tempos da pescaria, servia de cemitério a ostreira, na qual depositavam o cadáver e depois o cobriam de conchas” (MADRE DE DEUS, Gaspar. Memórias para a capitania de São Vicente, 1797. Apud COSTA, 1980, p. 60). Apesar de evidente contribuição deste trabalho, é apenas no século XIX, acompanhando o fenômeno de “mundialização da ciência” (FERREIRA, 2010, p. 19), que se considera iniciadas as pesquisas em sambaquis. Neste período, foi grande o trânsito de trabalhos sobre estes sítios, facilitado por instituições como o IHGB e o Museu Nacional. Toda a cientificidade empregada nestes estudos não ajudou, contudo, a estabelecer seu valor pré-histórico. Nas décadas subsequentes à fundação do IHGB, a discussão sobre os sambaquis percorriam a problemática de sua origem artificial ou natural.1 Naturalistas como João Batista de Lacerda, diretor do Museu Nacional, e Herman von Ihering, fundador do Museu Paulista, tendiam a explicar sambaquis como resultados do recuo do nível do mar. A presença de esqueletos era explicada por naufrágios. Os artificialistas, como Albert Löefgren, Hartt e Ricardo Krone, por sua vez, rebatiam com o argumento de que a variedade de restos faunísticos e a regularidade das ocorrências eram evidência de que os sambaquis eram resultado de trabalho humano.2 Da definição neste debate dependia, portanto, a classificação dos sítios sambaquieiros como vestígios da perseguida pré-história indígena. Porém, neste sentido, o debate não avançou muito, permanecendo em pauta até os anos de 1940 (GASPAR, 2004; BLASIS, 2005). Isso não significa que a discussão sobre sambaquis neste período deva ser desprezada, pois, ao contrário, ela baliza o teor do debate científico do século XIX em torno da ocupação do continente americano. Sobre esta questão, a historiografia segue duas tendências: a 1 Esta indefinição foi a principal causa para a destruição destes sítios pelas indústrias de cal até metade do século XX, segundo Paulo Duarte (1968, p. 5-6). 2 Este debate é brevemente contemplado nos trabalhos de Angyone Costa (1980) e MaDu Gaspar (2004).

5 primeira, pretende dar conta de uma história das pesquisas em sambaquis. A segunda, recorta a segunda metade do século XIX e tenta dialogar as questões científicas com as questões políticas, associando os dois interesses. Antes de tecer comentários sobre as duas vertentes, cabe esboçar suas ideias. Elencaremos autores que produziram no século XXI, com o objetivo de perceber como autores de uma mesma época historiaram a prática arqueológica de outros tempos. Obras relevantes foram elaboradas sobre o tema durante o século XX, todavia. Destacamos aqui, o trabalho de Angyone Costa, Introdução à arqueologia brasileira, de 1934, considerado o primeiro manual de Arqueologia brasileira, com uma breve referência aos sambaquis, em um capítulo de oito páginas especialmente dedicado a esta questão. No livro-manifesto de Paulo Duarte (1968) O sambaqui: visto através de alguns sambaquis, o autor pretende divulgar as recentes discussões sobre este sítio, considerando os entraves políticos no estabelecimento de um programa de pesquisa. Há ainda o capítulo que André Prous dedica aos sambaquis em Arqueologia brasileira (1992), grande manual sobre a prática da arqueologia no Brasil.

A história interna da Arqueologia em sambaquis Retomando a proposta de Stengers, delinearemos aqui, uma história considerada “internalista”. Isto não significa que esta corrente ignore os fatores externos à ciência, mas consideram que estes desempenham um papel subalterno em relação aos critérios próprios ao conhecimento científico (STENGERS, 2002, p. 16). Por ordem cronológica de publicação, listamos as obras Sambaquis: arqueologia do litoral brasileiro (2004 [1ª ed. 2000]), de MaDu Gaspar e Os sambaquis vistos através de um sambaqui (2005), de Paulo de Blasis. Em sua contracapa, o livro de Gaspar anuncia “este livro faz um histórico das pesquisas em sambaquis, incorporando as recentes descobertas da autora em suas escavações…”. Nossa pergunta é: neste histórico, qual o lugar reservado às pesquisas do século XIX? MaDu Gaspar recorta seu histórico pelo marco de 1870, para ela, início da arqueologia brasileira caracterizado por grande efervescência (GASPAR, 2004, p. 11). Segundo a autora,

6 no período compreendido entre 1870 e 1930, a questão que orientava o estudo dos sambaquis era o estabelecimento de sua origem natural ou artificial. A autora resume em um parágrafo esta discussão, e em outro, a participação do Museu Nacional na realização de expedições. Assim, em dois parágrafos, está sintetizada a história das pesquisas no século XIX. O trabalho de Paulo de Blasis, por sua vez, rodeia a questão da história das pesquisas dos sítios sambaquieiros, de forma a elencar algumas “questões para a arqueologia dos sambaquis”. Ao período do século XIX, dedica duas páginas, nas quais discorre sobre os problemas nas pesquisas do século XX enraizados em um modelo analítico do século XIX. Para este autor, a perspectiva evolucionista linear difundida no Brasil a partir da década de 1870, representou um empecilho para a compreensão destes sítios (BLASIS, 2005, p. 6 e 7). O modelo clássico de evolução linear dos grupos humanos, característico do século XIX, mas com ampla ressonância na centúria posterior, pressupõe que haja progresso nos modos de vida, assentamento e técnicas líticas, que classifica e ordena os grupos humanos de móveis a estáveis, de caçadores/pescadores-coletores a agricultores; de forma que grupos mais primitivos sejam nômades e caçadores-coletores, e os mais elaborados ou complexos sejam sedentários e agricultores. Nesta direção, também se opera o aprimoramento das técnicas, de uma indústria lítica tosca, até o manejo de metais; além na mudança na organização social, de bandos (mais simples) até o Estado (mais complexo). Para Blasis, este modelo, que serviu de referência para a elaboração dos modelos de pré-história, é inconciliável com as evidências de ocupação guardadas nos sambaquis, de um povo sedentário e, ao mesmo tempo, pescador-coletor. Estes sítios instigaram pesquisadores a repensar, nas últimas décadas, este modelo social evolucionista, em favor de uma teoria própria que considere as peculiaridades dos sambaquis. Os trabalhos de MaDu Gaspar e Paulo de Blasis são grandes referências para as atuais pesquisas em sambaquis. Desta amostra que destacamos, percebemos abordagens distintas às pesquisas do século XIX, mas com um fundo comum: do ponto de vista da compreensão atual deste tipo de sítio, os resultados das pesquisas do século XIX aparecem como pouco relevantes e não mereceram muita atenção destes autores. Curiosamente, tomada por outro prisma, a arqueologia em sambaquis no século XIX, gera um profícuo debate, como veremos.

7 Um ponto de vista externo à Arqueologia Eric Hobsbawm, preocupado em pensar o lugar da ciência no campo da história social, afirma que as ciências, embora possuam um ritmo próprio, de certa forma refletiam a “dupla revolução” [inglesa e industrial]. Isto pois, a dupla revolução impôs às ciências novas demandas, abriu novas possibilidades e encarou a ciência com novos problemas. Além disso, “sua própria existência sugere novos paradigmas” (HOBSBAWM, 1977, p. 336).3 Marc Bloch afirma em Apologia da história que a ciência tomada isoladamente não significa senão um fragmento em direção “ao conhecimento” (BLOCH, 2001, p. 50). Shozo Motoyama também concebe ciência [e tecnologia] como apenas uma variável concernente ao desenvolvimento como fenômeno histórico (MOTOYAMA, 2004, p. 41). Estes autores têm olhares semelhantes sobre a ciência em seu contexto social. Para eles, a ciência ocupa um lugar específico na sociedade, é uma variável a ser considerada, mas não passa de um fragmento de um contexto maior. Na prática do fazer histórico, como balizar uma suposta autonomia da ciência com as influências externas aos laboratórios, no caso, aos campos e gabinetes de arqueologia? Para traçar o paralelo com os historiadores internalistas aos quais fizemos menção, escolheremos obras igualmente elaboradas no século XXI, mas que consideram a Arqueologia como uma parte no diálogo social, político e científico do século XIX. De Johnni Langer, Os sambaquis e o império: Escavações, teorias e polêmicas, 1840-1889 (2001). E de Lúcio Ferreira e Francisco Noelli, Richard Francis Burton, os sambaquis e a Arqueologia no Brasil Imperial (2007). Como os títulos sugerem, não só a abordagem sobre o tema diverge dos trabalhos de Gaspar e Blasis. O recorte também é distinto. Nos textos de Langer e de Ferreira e Noelli, a proposta não é discorrer sobre uma história das pesquisas em sambaquis, mas debruçar-se sobre as pesquisas em sambaquis em determinado período, o século XIX. Com recorte mais enxuto, as análises tendem a dialogar os paradigmas estabelecidos com o contexto do Segundo Reinado, em Langer, e com a institucionalização da Arqueologia no Brasil, em 3 Tradução livre.

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Ferreira e Noelli. Vejamos como este diálogo se delineia. Johnni Langer optou por estabelecer e analisar o diálogo travado entre os pesquisadores dos sambaquis brasileiros no período entre 1840 e 1889 – da primeira referência feita a estes sítios por Varhagen, vinculado ao IHGB, até o fim do Império. Este recorte, por si, já sugere o caminho interpretativo proposto por Langer: vincular as pesquisas aos pressupostos políticos da elite imperial. O estabelecimento deste vínculo, porém, não se dá de maneira óbvia, de forma que os debates arqueológicos fossem produtos encomendados. Ao contrário, ideologia e ciência têm uma estreita e complexa relação, mesmo que não estejam associadas a priori. Langer verifica esta relação ao comparar resultados de pesquisas associadas ao IHGB e ao Museu Imperial com as independentes, e ao analisar a ressonância destes resultados em âmbito nacional e internacional. O autor conclui que, além dos limites das técnicas de escavação destes pesquisadores, os resultados coadunavam com pressupostos ideológicos da elite política e eram permeados por rivalidades pessoais declaradas, o sentimento de nacionalismo e o imaginário social-evolucionista que destacava o europeu como “representante máximo da escala evolutiva” (LANGER, 2001, p. 51). Dessa forma, os vestígios arqueológicos serviriam como medidores de esquemas sociais estabelecidos e os pesquisadores eram aqueles que adaptavam suas observações a suas próprias hipóteses. O trabalho de Langer não se resume, todavia, ao tecimento desta relação entre ciência e ideologia. O autor dedica-se também a examinar as pesquisas de cada arqueólogo, aferindo sua repercussão e situando-o no debate. O resultado é um cenário de discussão que vai muito além do naturalismo versus artificialismo proposto por Gaspar e Blasis. De acordo com o artigo, os arqueólogos imprimiam ao debate questões fundamentais no estabelecimento da pré-história brasileira, como a ancianidade ou modernidade dos sítios, a função de cada monte, o estágio evolutivo de seus construtores, a difusão da humanidade pelo globo terrestre, o contato entre povos europeus e americanos antes da colonização, entre outras. Além da predominância da corrente artificialista, isto é, que concebia os sambaquis como produto intencional ou acidental da ação humana, outros pontos relevantes se 4 Lúcio Menezes Ferreira possui uma variedade de publicações que analisam a questão da institucionalização da Arqueologia no Brasil. Ver FERREIRA 1999; 2001a; 2001b; 2001c; 2002; 2003; 2010.

9 estabeleceram na compreensão destes sítios, como sua função de assentamento e/ou cemitério e a analogia com estruturas semelhantes na Dinamarca, Antilhas e Canárias. Este último, por mérito do Conde de La Hure, cujas pesquisas foram aproveitadas de modo seletivo pelo Instituto nos anos de 1860 (LANGER, 2001, p. 41.). Ferreira e Noelli, por sua vez, iniciam refletindo sobre o marco de cientificidade da arqueologia, afirmando que “o colecionismo, os catálogos e as viagens são fundamentais para a compreensão dos processos de institucionalização de uma ciência” (FERREIRA; NOELLI, 2007, p. 149). Esta observação conduz a análise por um prisma distinto daqueles historiadores da arqueologia que classificam como “pré-científico”, “descritivo” ou “classificatório” o período compreendido entre 1840 e 1870, isto é, das primeiras expedições arqueológicas vinculadas e/ou patrocinadas pelo IHGB ou Museu Nacional até a entrada de ideias “científicas” na arqueologia brasileira (PROUS, 1992; BARRETO, 1999; 1999-2000; ROBRAHN-GONZÁLEZ, 1999-2000 [apresenta uma cronologia ainda mais específica]; GASPAR, 2004; BLASIS, 2005). Outrossim, estes autores propõem que sejam exploradas fontes como a imprensa, que divulgava estes conhecimentos, e os romances naturalistas, que difundiam “informações, discussões e figurações metafóricas” sobre as questões debatidas pelos intelectuais sobre a arqueologia e a pré-história brasileira (FERREIRA; NOELLI, 2007, p. 150). Apenas esta ampla gama de documentos, segundo o artigo, poderá assentar o estabelecimento da Arqueologia no Brasil dentro dos processos de mundialização da ciência. A mundialização da ciência é outra perspectiva que permeia o trabalho. Desta forma, os autores pretendem situar as pesquisas de um arqueólogo em específico, o explorador britânico Richard Francis Burton (1821-1890), no contexto da institucionalização da arqueologia brasileira. Este explorador viera ao Brasil em 1865, onde permaneceu por três anos. Seus estudos, segundo Ferreira e Noelli, não resultaram em um estudo sistemático dos sambaquis brasileiros, como as pesquisas contemporâneas de La Hure (LANGER, 2001). Ainda assim, ligam-se ao processo da institucionalização da disciplina no Brasil, e, apesar do pouco eco entre os debates travados nas instituições brasileiras, Burton esteve sempre atualizado com estes. Tendo chegado ao Brasil ciente da presença de sambaquis e cioso por colaborar com

10 os debates sobre a antiguidade do homem, o propósito de Burton voltou-se para o colecionismo e divulgação, tarefas que podem não ser consideradas muito relevantes do ponto de vista científico. Ferreira e Noelli argumentam no sentido oposto, elencando as colaborações de Burton às pesquisas em sambaquis: 1) constatou a ocorrência de 20 sambaquis na costa de Santos; 2) constatou a ocorrência de sambaquis em Ubatuba; 3) constatou a ocorrência de sambaquis na área de Cananéia; 4) constatou que ocorriam sambaquis na costa do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul; 5) aventou a hipótese, a partir da amostragem amealhada entre o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul, de que existiriam sambaquis do Oiapoque ao Rio da Prata; 6) deduziu que os sambaquis eram pré-históricos; 7) realizou descrições da estratigrafia e do contexto arqueológico dos sambaquis; 8) coletou amostras, escavando-as e recebendo doações; 9) verificou que havia um padrão de inserção dos sambaquis na paisagem, especialmente associados com os cursos de água potável e os mangues, onde havia fontes alimentícias; 10) sugeriu hipóteses sobre a construção e a ocupação social dos sambaquis. (FERREIRA; NOELLI, 2007, p. 155).

Este estudo chega a uma conclusão semelhante ao de Langer: as questões desenvolvidas por arqueólogos dos sambaquis no Brasil do século XIX, vinculadas aos diferentes institutos, partidárias de diferentes pressupostos científicos e ideológicos, defensoras de hipóteses distintas colaboram na compreensão do cenário político e intelectual brasileiro dos oitocentos, pois carregam em si as principais questões da época. Se concordarmos com este raciocínio, mesmo que como hipótese norteadora, será necessário refletirmos sobre o significado da desvalorização que as pesquisas deste período assumem sob o ponto de vista da historiografia que aqui chamamos de internalista.

Balanço historiográfico – ironia e humor Uma amostra de quatro trabalhos de história da ciência, produzidos em uma mesma época. Dois deles, arqueólogos vinculados a museus: MaDu Gaspar é professora do Museu Nacional, Paulo de Blasis, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP). Outros dois, historiadores, produzindo a partir de programas de

11 pós-graduação em história: Johnni Langer, pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Francisco Noelli e Lúcio Ferreira, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Gaspar e Blasis, os arqueólogos, compõem o segmento da história internalista. Langer, Ferreira e Noelli, o da história externa. Não se trata de uma coincidência, portanto, as distintas abordagens realizadas pelos quatro trabalhos. Para um historiador, cotejar suas fontes com outras relacionadas, analisar influências, considerar diálogos é tarefa básica na escrita da história. Mas, para arqueólogos, membros de uma mesma comunidade científica, como escrever a história de sua disciplina, considerando-se (ironicamente) produto dela? Isabelle Stengers também nos oferece um caminho para compreender a questão. Gaspar e Blasis historiam sua disciplina a partir da mesma perspectiva que criticam: linear e progressista. Para estes autores, que dominam os debates mais recentes sobre os sítios sambaquieiros, projetar-se até o passado significou listar avanços e retrocessos de cada “fase”, tendo como referência seu próprio paradigma. Estariam eles apropriando-se do discurso do “vencedor” para contar a história da controvérsia em torno dos sambaquis? (STENGERS, 2002, p. 17). O problema que verificamos nesta análise assimétrica é justamente considerar que o marco de cientificidade – para Gaspar, os anos 1870, para Blasis, as décadas de 1950-605 – delimita o campo da arqueologia, desqualificando o que vinha “antes da ciência”. Para estes autores, o modelo analítico evolucionista do século XIX e os debates em torno dele geraram mais empecilhos que colaborações para as pesquisas posteriores. Não fosse por tal senso de progresso, como obteríamos análises tão dissonantes entre estes trabalhos e os demais? Seria forçoso desconfiar desta coincidência? O princípio de simetria proposto por Isabelle Stengers sugere o contrário: que “se torne explícita a situação de profunda indecisão, ou seja, também o conjunto dos fatores eventualmente 'não-científicos' que participaram da relação de força final que herdamos” (STENGERS, 2002. p. 17). 5 Nestas décadas, estabeleceram-se no Brasil grandes programas de arqueologia, como o PRONAPA – Programa Nacional de Pesquisas arqueológicas, coordenado por Betty Meggers e Clifford Evans, apoiado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Arqueológico (IPHAN), pelo Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) e pelo Smithisonian Institution. (BARRETO, 1999-2000, p. 44; GASPAR, 2004, p. 20; FUNARI; BASTOS In: SILVERMAN; ISBELL, 2008, p. 1129).

12 Os sambaquis, por sua vez, não foram “descobertos” ao final do século XIX, mas foi aí que estes montes conchíferos se tornaram objeto da ciência. Este processo de objetivação dos sambaquis, a transformação destes em “sítios arqueológicos” não foi processo inócuo, resultante de uma revelação interna às ciências. Este debate foi inaugurado por um acontecimento, ou uma série de acontecimentos que o legitimaram como tal. Estabelecer este diálogo entre poder e ciência fere o princípio (ideológico) da existência de uma ciência “autônoma”, e por isso “verdadeira” e “pura”. Mas, é necessário reduzir este debate a uma esfera ou outra? E antes de ser necessário, talvez devêssemos perguntar por que isso é desejável, e a serviço de que reproduzimos os sentidos – cento e cinquenta anos mais tarde – das palavras ciência, objetividade, razão, modernidade. Autolegitimação? O humor está posto: para trabalhos futuros da história da ciência, situar-se em meio a esta controvérsia contemporânea, em outras palavras, compreender a historicidade da produção científica de seu próprio tempo, pode ser um caminho produtivo para aqueles que desejarem se esquivar das armadilhas conceituais impostas pela modernidade.

13 Referências BARRETO, Cristiana. A construção de um passado pré-colonial: uma breve história da arqueologia no Brasil. Revista USP, São Paulo, n. 44, p. 32-51, dez – fev 1999/2000. ______. Arqueologia Brasileira: uma perspectiva histórica e comparada. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, Suplemento 3, p. 201-211, 1999. BLASIS, Paulo de. Os sambaquis vistos através de um sambaqui. 2005. 138 f. Monografia (Livre Docência em Arqueologia) - Museu de Arqueologia e Etnologia. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. ______; et al. Sambaqui (Shell Mound) Societies of Coastal Brazil. In: SILVERMAN, Helaine; ISBELL, William. Handbook of South American Archaeology. New York: Springer, 2008. BLOCH, Marc. Apologia da História, ou, O ofício de Historiador. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. COSTA, Angyone. Introdução à Arqueologia brasileira (etnografia e história). 4ª edição, ilustrada. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1980. DESCOLA, Philippe. Societies of nature e nature of society. In: KUPER, Adam (Ed.). Conceptualizing society. London; New York: Routledge, 1992. DÍAZ-ANDREU, Margarita. Nacionalismo y arqueologia: El contexto politico de nuestra disciplina. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11, p. 3-20, 2001. ELIADE, Mircea. Lo sagrado y lo profano. Tradu. Luis Gil Fernández y Ramón Alfonso Díez Aragón. Barcelona: Paidos Ibérica, 1998. _____. Mito y realidad. Barcelona: Editorial Kairós, 1999. FERREIRA, Lúcio M. “Um bando de idéias novas” na arqueologia (1870-1877). Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11, p. 21-33, 2001a. ______. Arqueologia e geoestratégia: as fronteiras imperiais e o uso das fontes arqueológicas (1838 – 1877). Varia História, Belo Horizonte, nº24, jan 2001b. ______. História petrificada: a Arqueologia Nobiliárquica e o Império Brasileiro.Cadernos do CEOM. Chapecó, Ano 17, nº 18, dez 2003. ______. Território primitivo: A institucionalização da Arqueologia no Brasil (1870-1917).

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