Os saques a supermercados em 1983 e a crise da Ditadura Militar

June 2, 2017 | Autor: Gabriela Twardowski | Categoria: Historia, História do Brasil, Ditadura Militar, Política Brasileira
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Os saques a supermercados em 1983 e a crise da Ditadura Militar1 Gabriela Monteiro Twardowski2 Graduanda de História - UFPR Maio/2016

No ano de 1983 uma onda de saques a supermercados surpreendeu o Rio de Janeiro. Durante uma semana, moradores de favelas arrombavam os estabelecimentos da Zona Norte da cidade para roubar arroz, feijão, óleo de soja, macarrão. Esse movimento rendeu uma capa na revista Veja de 14 de setembro de 1983 com a foto do então governador do estado, Leonel Brizola, juntamente com a chamada: “A semana dos saques. O Rio com medo”. A matéria de quatro páginas demonstra o tom crítico que tomará ao apontar em letras garrafais no início de página que “Saques, greves e confrontos de rua atemorizam a população carioca e mostram o lado sombrio do socialismo ‘moreno’ de Brizola”. Este será o documento que irá nortear a discussão que pretendemos realizar sobre a caracterização da revista Veja do movimento popular de roubo de alimentos, nos pautando no contexto de profunda crise econômica brasileira da primeira metade da década de 1980 e das discussões sobre a transição democrática. A economia brasileira em decadência: o governo Figueiredo nos anos 1980 Em 1979, a economia mundial sofria um choque devido à Segunda Crise do Petróleo, ocasionada por questões políticas internas do Irã, país que era o maior produtor na época. O Brasil não passou longe deste problema, tendo sua economia afetada e adentrando na pior crise inflacionária desde então. O Estado nacionaldesenvolvimentista nascido na década de 1930 e continuado pelo governo militar estava ruindo, de modo que a estratégia para reerguer a economia adotada – pela segunda vez pelo ministro Delfim Neto de investir na indexação de títulos da dívida pública se mostrou desastrosa e acabou gerando uma hiperinflação em 1982. Além disso, os credores da dívida externa brasileira se negavam a realizar novos empréstimos ao país ou renegociar as dívidas já existentes. 1

Este trabalho é resultado de discussões ocorridas durante o 1º semestre de 2016 na disciplina de História do Brasil IV. 2 Cursando o 7º período do curso de História – Licenciatura e Bacharelado. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3423000152534048 Acesso em 21 de junho de 2016.

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Diante desta situação, pedir auxílio ao FMI surge como uma alternativa para desafogar a economia do país. Apesar de isso ser visto com pouco entusiasmo e até mesmo com rejeição pelos políticos e economistas brasileiros por demonstrar o colapso da autonomia nas decisões econômicas (SKIDMORE, 1988 p.452) o governo se abre a negociar ajuda com o Fundo Monetário e se dispõe, em janeiro de 1983, a atender as metas estipuladas por ele que consistiam em diminuir a produção de moeda, dificultar o crédito, eliminar subsídios e aumentos salariais. Como consequência destas, aliadas a estagflação de 211%, o ano de 1983 foi um caos econômico para a população de renda mais baixa que também enfrentava o desemprego gerado pela desindustrialização do país. Thomas Skidmore nos mostra os números desta crise para a indústria de bens de capital. Este balanço nos esclarece a profundidade do problema, sem contar ainda com os números de outros setores industriais presentes no Brasil desta época que também empregavam um grande número de trabalhadores: “A indústria de bens de capital foi a principal vítima da

desaceleração da economia. Sua produção caiu 23 por cento em 1983, o quarto ano consecutivo de queda. Os seus melhores clientes, as empresas estatais, foram obrigados a reduzir seus orçamentos como parte do programa de estabilização imposto pelo FMI. As dívidas destas empresas ficavam atrasadas durante meses e até anos e quando pagas não eram reajustadas pela correção monetária. Por causa disso muitas firmas credoras das estatais faliram no final de 1983, ocasião em que a capacidade ociosa era estimada em 50 por cento.” (SKIDMORE, 1988 p.46162).

Além do desastre financeiro, o governo de Figueiredo passava pelo momento de pressão política e popular pela democratização e fim do Regime e pela convocação de eleições gerais e diretas. Com o fim do bipartidarismo em 1979 as eleições realizadas 1982 são marcadas pela presença contínua dos partidos de oposição, que acabam ganhando a disputa eleitoral em dois grandes estados na eleição para governador - em São Paulo, com Franco Montoro do PMDB, e no Rio de Janeiro, com Leonel Brizola do PDT. O desemprego, a fome e o saque: a interpretação da revista Veja. De 3 a 9 de setembro de 1983, foram realizados saques em 38 supermercados e padarias do Rio de Janeiro. Nestes atos populares encabeçados por populações de 2

localidades como Bangu, Irajá e Cidade de Deus, predominantemente pobres e também desempregadas, eram roubados itens básicos de alimentação, bem como bebidas. O ataque aos estabelecimentos era realizado por um número grande de pessoas, que arrombavam as portas e colocavam em sacolas que traziam de casa a comida roubada. Apesar de ser acionada a Polícia Militar, esta não conseguia impedir a população que estava em grande número e enfrentava o efetivo policial. O governo de Leonel Brizola é o pano de fundo da matéria publicada pela Veja em setembro de 1983. Ao longo do texto é possível perceber a tentativa de demonstrar a ineficiência do governador, discorrendo-se sobre o seu silêncio perante os ocorridos e sobre sua posterior tentativa de encontrar algum elemento em que colocar a culpa dos atos dos cariocas denominados pela revista de “favelados”. Além disso, um fator que se destaca nesta matéria é a ênfase na ação policial, que não foi incentivada pelo governador para não perder o voto destes mesmos “favelados”: “Voto dos favelados – ‘Passado o perigo do saque, nossa missão já não inclui o afastamento da multidão, desde que ela esteja a uma distância em que a segurança da casa comercial permaneça a salvo’, explica o capitão Costa, que comandou a PM em Vila Kennedy. ‘A instrução que temos é de permanecer no local, esperando que o tempo, a chuva ou mesmo o cansaço dissolva a aglomeração’. O capitão também comenta que, na época em que o coronel Nilton Cerqueira comandava a Polícia Militar, durante o governo Chagas Freitas, tudo era diferente. ‘Ele mandaria dispersar para valer’, diz o capitão.” “Raciocínio semelhante é feito por um general do Estado-Maior do Exército. ‘Se o comando das ações estivesse com um coronel do Exército, certamente haveria maior controle da situação’, diz o general. ‘Mas isso poderia gerar problemas com o governador, que não quis reprimir com firmeza os assaltos para não perder o voto dos favelados no Rio, porque ele acredita em eleições diretas para a Presidência’”. (VEJA, 1983, p. 42). O que chama a atenção neste trecho é o tom adotado nos depoimentos e a escolha dos mesmos para integrar uma notícia sobre um movimento popular, decorrente de problemas econômicos do Estado, em um momento de discussão sobre a retirada dos militares do governo brasileiro e de crescente desmoralização pela qual estavam passando devido às consequências do regime para a sociedade brasileira.

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Para compreendermos isso é preciso destacar o tratamento dispensado aos movimentos sociais durante a Ditadura Militar, com o fechamento de partidos, o controle dos sindicatos, com a censura associada principalmente ao governo Costa e Silva (1967-1969) e também com a repressão representada pelas torturas e prisões arbitrárias, então o sufocamento de ações divergentes ao governo era algo presente na agenda política militar. Além disso, a situação de pobreza, de falta de alimentos básicos e de escassez de empregos não ocorreria no período militar devido ao chamado “milagre econômico”. Dessa forma, a análise realizada pela Veja soa como um comparativo do ano de 1983 – já no arrefecimento do regime – com o período de maior controle do governo militar sobre a política, sobre a sociedade e sobre a economia. Assim, a revista desqualifica o movimento de forma comedida, citando a manifestante Zelinha Sobrinho de 19 anos, inclusive com fotos dela sobre a legenda “[...] xingou, jogou pedras na polícia, provocou...[...]”3 e citando também depoimentos de pessoas afirmando que os manifestantes estavam embriagados. Toda esta narrativa aparece como forma de depreciação do governo de Leonel Brizola, político de vertente socialista e eleito diretamente. Ele aparece como incompetente e como culpado das ações populares - o que fica muito claro no destaque dado à fala da própria Zelinha Sobrinho “Estou desempregada, ninguém resolve a minha situação e, quando votei no Brizola, esperava que as coisas mudassem.” (VEJA, 1983, p.40) – e não a inflação ou o desemprego advindos de fatores que já elencamos anteriormente. Por isso, percebemos no discurso do texto como um todo, mas em especial o trecho das opiniões dos policiais que destacamos acima, não a defesa da necessidade de maior segurança pública, mas sim uma preferência velada por uma ação política repressiva e uma dificuldade de entendimento do momento político representado ali na figura de Brizola - de decadência dos antigos mecanismos de contenção social, especialmente expressa na evocação do nome do coronel Nilton Cerqueira, comandante da Operação Pajussara de combate à guerrilha do Araguaia em 1973 e relacionado com o atentado do Riocentro em 1981. Entendemos a ação popular de saques a supermercados segundo a explicação de Pedro Jacobi de que “[...] o avanço no social é elemento central para a ruptura com o ethos autoritário.” (JACOBI, 1987, p.19), dessa maneira a opinião emitida pela revista

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VEJA, 1983, loc. cit.

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Veja expressa o choque gerado por essa ruptura, o choque de uma elite intelectual e econômica habituada à ideia de que movimentos sociais não existiam ou não deveriam existir no Brasil, o que se comprova nas cartas enviadas por civis aos órgãos de censura do regime denunciando a crise moral incitada pelo movimento comunista, criando assim uma “[...] narrativa legitimadora dos atos repressivos.” (FICO, 2002 p.260) . Ainda dentro da discussão de Jacobi, Estado e movimentos sociais não se integram na análise destes, retirando assim a responsabilidade daquele em ser o indutor das demandas populares (JACOBI, 1987, p. 12). Isso se desenvolve de forma clara dentro do artigo da revista que apenas em sua última página relaciona os saques à crise em um comentário feito por Miro Teixeira, que havia concorrido com Brizola nas eleições de 1982. A matéria publicada na Veja no ano de 1983 se mostra como uma documentação muito fértil para elucidar o momento de crise econômica, de esfacelamento do Estado nacional-desenvolvimentista e de esgotamento de um modelo político e social não somente no Brasil, mas também em outros países da América Latina que haviam passado por regimes autoritários. O movimento de saques em si mesmo é um fator importante, entretanto os rumos tomados pelo texto da revista demonstram que para os analíticos do ocorrido a questão ultrapassa o fato da fome de populações desempregadas e de baixa renda e se encontra com demandas que envolvem o governo e a sociedade brasileiras em um contexto de crise generalizada que culminará na opção por uma política neoliberal como tentativa de saída da crise no governo de Fernando Collor nos anos 1990 - opção que atravessa a política brasileira e se faz presente ao longo da primeira década dos anos 2000. Consequentemente, o desenrolar da crise pós-regime ecoa ainda na política e na sociedade deste país, assim o entendimento desses conturbados anos 1980 se revela um fator determinante para compreendermos os conturbados anos 2010 que vivemos hoje.

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Referências bibliográficas: Documentação: VEJA. Setembro quente no Rio: saques, greves e confrontos de rua atemorizam a população carioca e mostram o lado sombrio do socialismo ‘moreno’ de Brizola. São Paulo, nº 784, pp. 38-44, 14 de setembro de 1984. Disponível em: https://acervo.veja.abril.com.br/index.html#/edition/784?page=1&searching=true§i on=1&word=1983 Acesso em: 24 de abril de 2016. Bibliografia: ALMEIDA JR. Antônio Mendes de. Do declínio do Estado Novo ao suicídio de Getúlio Vargas. In: FAUSTO, B. (org.) História Geral da Civilização Brasileira. Vol. 10. São Paulo, Difel, 1986. pp. 225-256 . CARVALHO, Aloysio. Geisel, Figueiredo e a liberalização do regime autoritário (1974-1985). Dados, Rio de Janeiro , v. 48, n. 1, pp. 115-147, Mar. 2005 . Available from. access on 26 Apr. 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S001152582005000100005. CRUZ, Sebastião C. Velasco & MARTINS, Carlos Estevam. De Castello a Figueiredo: uma incursão na pré-história da "abertura" In: ALMEIDA, Maria Herminia Tavares de & SORJ, Bernardo. (orgs.) Sociedade e Politica no Brasil pós-64. Rio de Janeiro, Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008. pp. 8-90. FICO, Carlos. "Prezada Censura": cartas ao regime militar. Topoi (Rio J.), Dez 2002, vol.3, no.5, pp.251-286. FRY, Peter. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro, Zahar, 1982. pp. 87-115. JACOBI, Pedro. Movimentos sociais urbanos numa época de transição: limites e potencialidades. In: SADER, Emir (org.). Movimentos sociais na transição democrática. São Paulo, Cortez, 1987. pp. 11-23. MARANHÃO, Ricardo. Estado e política “populista” no Brasil (1954-64). In: FAUSTO, op. cit. pp. 257-296. NAPOLITANO, Marcos. O protesto de rua nos anos oitenta e a crise do regime militar. Revista de Sociologia e Política, UFPR, n. 04-05 (1995). pp. 161-174. ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1988. pp. 113148. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castello a Tancredo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988. 6

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