Os Sentidos da Antropologia: ensino e contexto (1998)

June 20, 2017 | Autor: Robert Rowland | Categoria: Social and Cultural Anthropology, Portugal
Share Embed


Descrição do Produto

IV Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 1 - 5 de Setembro de 1996. Em: Gláucia Villas Bôas (coord.), Territórios da língua portuguesa, UFRJ, Rio de Janeiro, 1998, 108-14. OS SENTIDOS DA ANTROPOLOGIA: ENSINO E CONTEXTO Robert Rowland Esta intervenção tem como propósito, no contexto mais amplo de uma discussão sobre a institucionalização das ciências sociais e suas implicações, levantar algumas questões relativas ao ensino da antropologia. Tem como ponto de partida um caso concreto - o da criação de um novo Departamento de Antropologia em Portugal - que por sua vez teve sua origem em uma experiência e em uma trajetória individuais. Neste sentido constitui, obviamente, a expressão de um ponto de vista pessoal. Mas apesar da subjetividade que isso implica, e do fato de as circunstâncias conjunturais que rodearam a criação do Departamento não serem generalizáveis, o episódio poderá fornecer elementos úteis para a discussão nesta oficina. Comecemos com o percurso individual. Brasileiro de origem, obtive uma formação interdisciplinar na Inglaterra, em história antiga, em economia e sociologia, e em antropologia social. Fiz trabalho de campo no Nordeste brasileiro e no Sul da Itália. No contexto dessa última pesquisa trabalhei sobre as origens e condições de afirmação do fascismo numa comunidade meridional, combinando o trabalho de campo com a investigação de arquivo. Posteriormente, a partir de 1970, procurei - como responsável pelos estudos interdisciplinares no Departamento de História Européia de uma universidade inglesa - aprofundar as relações entre a história e as restantes ciências sociais, e em primeiro lugar com a antropologia. Logo após o 25 de Abril de 1974, fui convidado pela Faculdade de Economia da Universidade do Porto a coordenar a área de história econômica e começar a organizar um departamento de ciências sociais. O projeto, que se traduzia numa proposta de currículo de licenciatura1 com a possibilidade de especialização relativa2 em microeconomia, em macroeconomia e planejamento, ou em ciências sociais, encontrou resistências e acabou por ser inviabilizado3. Em 1979 fui 1

Recorde-se que em Portugal o curso de graduação se intitula licenciatura e tem a duração de quatro/cinco anos. Ao contrário da licenciatura brasileira, não tem normalmente qualquer componente pedagógica. À licenciatura segue-se o mestrado (dois anos) e o doutoramento. 2

3

Segundo um esquema semelhante ao major/minor norte-americano.

As resistências provinham de sectores ligados à anterior direção da Faculdade e aos industriais do Porto, que preferiam um currículo circunscrito à economia de empresas, com um peso considerável de disciplinas de Direito e Contabilidade. Pressões exercidas nesse sentido encontraram receptividade ao nível do então Ministro da Educação, que temia que a associação entre economia e ciências sociais pudesse ser um pretexto para o ensino do marxismo, e a Faculdade acabou por ser encerrada em finais de 1976, para reabrir algumas semanas mais tarde sob a direção de uma Comissão de Reestruturação

2

convidado pelo ISCTE4, de Lisboa, a coordenar a área de metodologia das ciências sociais no âmbito da licenciatura em sociologia. Não sendo essa propriamente a minha vocação, foi informalmente acordado com a Direção do Instituto que, depois de formada uma equipe docente para a disciplina de Metodologia, poderia dedicar-me ao desenvolvimento de uma área de ensino e pesquisa mais próxima dos meus interesses. Existindo já no Instituto uma área de história com características próprias, foi acordado que esse projeto poderia ter como ponto de partida o reforço da antropologia no quadro do curso de sociologia, onde já existiam duas cadeiras: uma Introdução à Antropologia, de caráter geral, e uma disciplina optativa, de caráter mais especializado, voltada para o estudo da sociedade portuguesa e com uma componente significativa de pesquisa e iniciação ao trabalho de campo. Passei a assegurar, para além da coordenação da cadeira de Metodologia, uma segunda disciplina optativa de Antropologia das Sociedades Complexas. Pouco depois, foi formalmente criada uma nova área de Antropologia. Até esse momento (1980) a antropologia no ISCTE era uma disciplina de formação complementar no âmbito de uma licenciatura em sociologia. Éramos três docentes5: um era africanista, de formação francesa; outro situava-se na tradição da etnografia portuguesa, e também fizera a sua pós-graduação em França; e eu próprio tinha uma formação britânica e me interessava pela antropologia histórica e pelas sociedades rurais da Europa meridional. O passo seguinte (1980-81) consistiu no reforço da área através da contratação de mais docentes qualificados. Essa contratação foi conjunturalmente facilitada pela situação institucional da Escola, que nesse momento era bastante vulnerável. O ISCTE fora criado, como já se referiu, à margem das Universidades, mas uma Faculdade isolada e autônoma cabe mal nos esquemas e organigramas ministeriais. Havia pressões, por parte do Ministério de Educação, para integrar o Instituto em uma das três Universidades estatais lisboetas. Mas em cada um dos três casos havia dificuldades. A Universidade Técnica de Lisboa incluía o Instituto Superior de Economia e o antigo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Ultramarinas: uma escola nova com licenciaturas em sociologia e administração de empresas viria apenas duplicar estruturas e acentuar as rivalidades já existentes. O caso da Universidade Nova de Lisboa era análogo, pois essa instituição, criada nos anos 70, se dotara logo de uma Faculdade de Economia, que ministrava um curso de administração de empresas, e de uma Faculdade nomeada pelo Ministro. O ensino da sociologia no Porto só logrou de fato institucionalizar-se bastante mais tarde, em 1985, no âmbito da Faculdade de Letras. 4

Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. Este Instituto universitário fora criado em 1972 como uma espécie de grande école corporativa. Depois de Abril de 1974 converteu-se (mantendo o nome original) numa faculdade de ciências sociais, com licenciaturas em sociologia e administração de empresas, mas independente das três universidades estatais existentes em Lisboa. Posteriormente foram introduzidas mais licenciaturas e pós-graduações, sendo que neste momento, com estatuto de Universidade, é a principal e maior escola de ciências sociais em Portugal. 5

Numa discussão sobre a institucionalização de uma disciplina o que interessa não é a identidade, mas sobretudo o perfil acadêmico e a formação do respectivo corpo docente. Limito-me, por isso, a esses elementos.

3

de Ciências Sociais e Humanas, com um Departamento próprio de Sociologia. Na Universidade de Lisboa6, por fim, não havia nem Faculdade de Economia nem Faculdade de Ciências Sociais, mas existia uma Faculdade de Direito que tradicionalmente se ocupara de temas econômicos, políticos e sociais e receava ver o seu espaço disciplinar ocupado por novas instituições e por cursos mais especializados. Apesar disso, foi esse o caminho apontado pelo Ministério para a regularização da situação institucional do ISCTE, mas as negociações eram complicadas. Por razões diferentes, nem a administração de empresas nem a sociologia podiam contar, no início dos anos 80, com um número significativo de docentes doutorados, e a falta de docentes qualificados foi um dos argumentos invocados para procurar impor ao ISCTE, no caso de integração, uma posição subalterna. Nessa conjuntura, com as negociações a arrastarem-se de maneira inconclusiva, a contratação de antropólogos doutorados viria aumentar a credibilidade da licenciatura em sociologia e reforçar a posição negocial da Escola, pelo que a proposta de reforçar a área de antropologia mediante novas contratações foi fortemente apoiada pelos colegas de sociologia. Foram contratados, nessa altura, mais três docentes: um acabara de doutorar-se na Inglaterra com uma tese de antropologia econômica sobre camponeses galegos produtores de leite e suas relações com o mercado (e com a Nestlé...), outro fizera uma tese, também em Inglaterra, sobre camponeses do Minho e as suas representações das relações familiares e de gênero, e o terceiro, depois de doutorar-se na Bélgica com uma tese de inspiração estruturalista sobre poesia oral russa, tinha começado a trabalhar, sempre numa perspectiva de antropologia do simbólico, sobre as representações da pureza e impureza na Índia. Encontrávamos-nos assim, em 1981-82, numa situação curiosa: com o fito de reforçar a licenciatura de sociologia e o próprio ISCTE numa conjuntura institucional delicada, e dando continuidade a um projeto de reforço da antropologia dentro da escola, constituíra-se uma equipe docente qualificada e diversificada, quer quanto aos seus campos de interesses, quer quanto à sua formação universitária e às suas posições teóricas. Entretanto, as negociações para a integração da Escola na Universidade de Lisboa continuavam a arrastar-se. Recusando a sua integração numa situação subalterna e qualquer forma de tutela científica, o ISCTE resolveu passar à ofensiva, subir a parada, e afirmar a sua vontade e capacidade para desenvolver um projeto autônomo de ensino e de pesquisa no âmbito das ciências sociais. Foi decidido propor ao Ministério da Educação a criação de novas licenciaturas. Foram examinadas várias hipóteses, mas houve duas que à partida pareciam ter maiores possibilidades de êxito: uma, que passava pela integração no ISCTE e reconversão do Instituto Superior de Serviço Social7, traduzir-se-ia na criação de uma licenciatura em Administração Social; a outra, menos complicada, seria a criação de uma licenciatura em Antropologia que funcionaria em paralelo com a de Sociologia.

6

Também chamada, por oposição à Universidade Técnica, de "Universidade Clássica".

7

Tratava-se de uma instituição privada onde se formavam assistentes sociais.

4

Por várias razões o primeiro projeto, mais complexo, porque passava pela integração no sistema universitário estatal de uma instituição particular em crise, nunca chegou a concretizar-se. O segundo é o ponto de partida para estas reflexões. Até o momento em que foi dada, pelo Conselho Científico do ISCTE, luz verde para a elaboração de uma proposta de nova licenciatura, não tinha havido qualquer discussão explícita das linhas a que deveria obedecer a expansão da antropologia no ISCTE. A diversidade das orientações presentes entre os docentes da área resultara, obviamente, de uma predisposição tácita, por parte dos responsáveis pelas novas contratações, a não tentar impor qualquer linha de orientação teórica e a não tentar privilegiar qualquer escola. Nisto, e no fato de termos ido procurar candidatos no estrangeiro, fora do limitado campo intelectual da antropologia portuguesa, residia uma das originalidades do nosso projeto. Mas essa predisposição fazia parte de um projeto de consolidação da antropologia no âmbito da licenciatura em sociologia. Quando se colocou a questão da criação de uma licenciatura autônoma, a questão já era outra. Com efeito, o fato de se ter criado, encapsulado na licenciatura em sociologia do ISCTE, um núcleo de antropólogos com essas características não representava mais que o resultado combinado da preocupação do ISCTE em recrutar docentes formalmente qualificados e da nossa predisposição para respeitar a pluralidade de orientações existentes no interior da disciplina. Não representava qualquer projeto explícito de consolidação ou desenvolvimento da antropologia em Portugal, e se bem que a questão tenha obviamente sido colocada por cada um diretamente para si, e em conversas informais, não houve qualquer discussão explícita sobre o sentido que poderia ter um tal projeto. A hipótese da criação de uma licenciatura autônoma veio mudar completamente os termos da questão. Não vou aqui tentar resumir a história da antropologia em Portugal. Direi apenas que, no começo da década de 80, havia dois cursos de antropologia em Portugal: um, que existia desde há bastante tempo no antigo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Ultramarinas da Universidade Técnica de Lisboa, possuía ainda uma certa vocação africanista; o outro, criado mais recentemente na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, era de cunho generalista, sem caráter muito vincado. Pareceu-nos que, para justificar a criação de um terceiro curso, seria preciso que tivesse logo à partida uma vocação específica. Essa vocação acabou por ser definida em parte pela sua colocação institucional, em parte (e em contraposição implícita aos outros dois cursos) pela sua relação com as restantes ciências sociais e com o contexto português. Funcionando em paralelo com uma licenciatura em sociologia, era natural que se procurasse maximizar as complementaridades - não só no que toca à existência de disciplinas eventualmente comuns, como também no que diz respeito ao desenvolvimento de perspectivas complementares de análise dos mesmos objetos. Mas, colocada desta maneira ao lado da sociologia, uma antropologia com essas características representava ainda uma opção deliberada em relação à tradição antropológica no seu conjunto. Implicava uma opção para privilegiar o estudo da sociedade portuguesa no contexto europeu, dando assim maior ênfase à tradição anglosaxônica da "antropologia das sociedades complexas" que à tradição antropológica

5

francesa, mais voltada para o estudo de sociedades exóticas8, e uma disponibilidade para desenvolver, no ensino como na pesquisa, perspectivas interdisciplinares em relação com a sociologia, a história, e - por que não? - com a própria economia e administração de empresas. Era evidente, contudo, que uma abordagem antropológica do que então chamávamos de sociedades complexas implicava uma sólida formação na antropologia clássica, pelo que esse aspecto não foi desprezado. Uma tal opção implicava, sobretudo, a possibilidade de explorar ao máximo as complementaridades com a sociologia. Nos primeiros dois anos do plano de curso, havia um certo número de disciplinas que o Ministério definira como obrigatórias nos cursos de ciências sociais. Isso permitia que fossem lecionadas em comum para as duas licenciaturas, pelos nossos colegas de sociologia, e libertava-nos para desenvolver o ensino das disciplinas propriamente antropológicas. Era uma possibilidade a não desprezar, dada a exiguidade inicial do nosso corpo docente. Para além das disciplinas comuns, organizou-se o ensino das disciplinas antropológicas em torno de uma estrutura simples. Havia, em primeiro lugar, um tronco central constituído por três disciplinas dispostas ao longo dos três primeiros anos do curso: Introdução à antropologia, no primeiro ano, onde era feita uma apresentação do "olhar antropológico"; Antropologia social I, no segundo ano, que correspondia essencialmente à antropologia clássica e às grandes monografias; Antropologia social II, no terceiro ano, que contemplava a antropologia do pós-guerra e aprofundava o estudo do parentesco, inclusive nas sociedades ocidentais. Havia ainda a disciplina de Antropologia das sociedades complexas, cujo objeto imediato era, no seguimento dos trabalhos de Eric Wolf e de alguns antropólogos ingleses e americanos, o estudo das sociedades camponesas, mas numa perspectiva de problematização dos pressupostos da antropologia clássica e de interrogação acerca da sua adequação ao estudo das sociedades históricas e contemporâneas. Por fim, o tronco central desdobrava-se em três ramos, definidos - talvez inevitavelmente - como sendo Antropologia econômica, Antropologia política, e Antropologia do simbólico. Esta estrutura de base completavase, depois, com a existência de algumas disciplinas complementares e de opção, onde se contemplava a possibilidade de desenvolver a etnografia dos espaços não-europeus. Tratava-se, pelas razões já expostas, de um plano de curso que visava conciliar a exigência de proporcionar uma sólida formação em antropologia clássica com o propósito de desenvolver um projeto original de antropologia voltado para o espaço português; que procurava aproveitar as sinergias resultantes da coexistência dos cursos de sociologia e de antropologia, quer no que toca às disciplinas comuns impostas pelo Ministério9, quer no que toca à possibilidade do desenvolvimento de abordagens 8

É notório, de fato, que boa parte do que nos países anglo-saxônicos corresponde à antropologia das sociedades complexas ou das sociedades camponesas pertence, em França, ao campo disciplinar da sociologia rural. 9

A Portaria Nº 663/79 estabelecia um conjunto de disciplinas comuns que deveriam constar nos primeiros dois anos de qualquer curso na área das ciências sociais: - Sociologia Geral; - Introdução Geral aos Problemas e ao Método das Ciências Sociais, ou Teoria e Método em Ciências Sociais, ou Introdução à Metodologia das Ciências Sociais;

6

complementares sobre o mesmo objeto10; e que permitiria o recrutamento e a formação de uma equipe docente mais ampla à medida que os anos sucessivos do plano de curso entrassem em funcionamento. Em relação a esta última questão, o fato de a maior parte das disciplinas dos primeiros dois anos serem, por lei, disciplinas comuns aos cursos de sociologia e de antropologia, e poderem assim ser lecionadas por colegas de outros Departamentos implicava que só no terceiro ano de funcionamento do curso iria ser necessária uma equipe docente consideravelmente maior do que a já existente. E isso, por sua vez, permitiu que durante os primeiros anos de funcionamento do curso fossem recrutados outros docentes qualificados11, bem como alguns assistentes que puderam completar a sua formação inseridos nas equipes docentes das cadeiras dos primeiros anos. A experiência foi bem sucedida. Passados poucos anos, o Departamento tinha uma invejável projeção internacional, conseguia atrair alunos de ótimo nível, e recrutava novos assistentes de entre os seus primeiros licenciados e os melhores alunos de outras escolas. Em 1996, com 23 docentes (16 professores e 7 assistentes), e com um ciclo completo de cursos e de graus em antropologia (licenciatura, mestrado e doutoramento), figurava entre os maiores Departamentos europeus12. No contexto da Escola, autonomizara-se em relação ao Departamento de Sociologia e perseguia uma política de desenvolvimento autocentrado. Mas havia também o reverso da medalha. O plano de curso ainda era o mesmo que tinha sido proposto ao Ministério - pelas razões já apontadas - em 1982. As cadeiras obrigatórias estavam a ser ministradas desde há anos pelos mesmos professores - o que talvez contribua para explicar o facto de a estrutura do plano de curso não ter sido alterada durante todos esses anos - e os antigos assistentes, à medida que se iam doutorando e adquirindo maioridade científica, tinham procurado diversificar o conteúdo do curso introduzindo novas disciplinas de opção. Ao lado da clássica sequência Introdução - Antropologia social I - Antropologia social II, e da mais que clássica tripartição entre Antropologia econômica, política e do simbólico, encontravam- Matemática e Estatística para as Ciências Sociais; - Economia ou Introdução à Economia ou Economia e Antropologia Económica; - Antropologia ou Introdução à Antropologia ou Antropologia Geral; - História Económica e Social ou História Contemporânea. 10

Como, por exemplo, em relação às disciplinas de sociologia rural, sociologia urbana, sociologia da comunicação, etc. 11

Um especialista na antropologia da cultura material, doutorado na Alemanha com uma tese sobre a Ilha da Madeira; um especialista em comunidades camponesas, doutorado na Inglaterra com uma tese sobre Trás-os-Montes; um especialista em antropologia museológica, doutorado em França; e um especialista em questões do parentesco, doutorado na Inglaterra. 12

Depois de ter acompanhado todo o processo de formação do Departamento, até a formatura dos primeiros licenciados e o recrutamento dos primeiros assistentes formados na própria Escola, estive ausente de Portugal, em situação de licença, durante oito anos. As reflexões que se seguem baseiam-se nas impressões suscitadas na altura do meu regresso, em 1995/96.

7

se, assim, disciplinas como Gênero, Corpo e Sexualidade ou Antropologia Industrial13, cuja proliferação refletia a falta de dinamismo do curso enquanto tal. Só que, entretanto, a situação se alterara. O nível médio dos alunos que ingressavam no ensino superior baixara - não apenas nos cursos de antropologia, mas em quase todos os ramos - e um curso exigente, de caráter essencialmente acadêmico, começava a tornar-se um anacronismo, sem correspondência com as motivações dos estudantes. O mercado de trabalho tornara-se ainda mais apertado; e se os bons alunos dos anos 80 podiam até certo ponto dar-se ao luxo de se preocuparem pouco com as saídas profissionais do curso, tal não ocorria com as novas levas de estudantes, para muitos dos quais o curso de antropologia constitui uma segunda ou terceira escolha. Face a esta situação, o Departamento que encontrei no meu regresso encontravase dividido: por um lado havia a opinião de que era fundamental manter um elevado nível de exigência, assegurando ao nível da licenciatura uma sólida formação de base e completando-a com pós-graduações de caráter essencialmente acadêmico - em primeiro lugar, com um programa de doutoramentos. Essa opinião prevalecia, essencialmente, entre os docentes que privilegiavam abordagens clássicas e objetos tradicionais, como o mito ou o parentesco, e que em alguns casos viam com desconfiança qualquer alteração do status quo curricular. Por outro, havia os que defendiam a necessidade de uma adequação à nova situação vivida pelo Departamento, com uma flexibilização do curso por forma a permitir uma melhor articulação entre o seu conteúdo e as novas condições do mercado de trabalho. Esta segunda corrente englobava, fundamentalmente, os que privilegiariam o desenvolvimento de perspectivas interdisciplinares e de uma ligação mais estreita com os sociólogos, a exploração de novos objetos de análise antropológica, e a criação de pós-graduações - programas de mestrado, no essencial - de "médio alcance"14, suscetíveis de assegurar uma melhor articulação com o mercado de trabalho. Está em curso uma nova tentativa, após tantas outras, que fracassaram, de encontrar uma base consensual para a reestruturação do curso. É ainda prematuro, obviamente, adiantar previsões, que seriam ainda mais pessoais e subjetivas que as considerações tecidas até agora. Mas creio que qualquer tentativa de reestruturação, para ter alguma possibilidade de êxito, deverá enfrentar um conjunto de questões, que só foi possível escamotear na altura da criação do curso devido à conjuntura particular vivida pela Escola no início dos anos 80. Que sentido, de fato, poderá ter, numa sociedade como a portuguesa e num contexto como o atual (ou o de há 15 anos), a criação de um curso universitário de antropologia modelado segundo os esquemas dominantes em 13

Eis a lista completa das disciplinas de opção, para além das duas já referidas, que foram ministradas em 1995/6 e 1996/7: Antropologia do Turismo; Etnologia da Índia; Fontes do Discurso Antropológico; Antropologia da Educação; Antropologia Histórica; Museologia Etnográfica; América Latina; Antropologia das Emoções; Antropologia Urbana; Questões de Etnografia Pós-Moderna; Análise de Objetos. 14

Encontram-se em vias de lançamento dois programas de mestrado: o primeiro, subordinado ao tema "Patrimónios e identidades", tem uma implícita (mas não exclusiva) vocação profissionalizante; o segundo, "Poder e diferenciação: processos contemporâneos", apresenta-se pelo contrário como de caráter mais acadêmico, mas com uma temática interdisciplinar e de ruptura com as perspectivas mais tradicionais.

8

Paris ou em Cambridge? Fora desses esquemas, o que poderia constituir uma "sólida formação antropológica", ponto de partida para eventuais especializações mais voltadas para o contexto da sociedade na qual os futuros antropólogos se deverão inserir? Qual a relação, nesse contexto, entre a antropologia e as restantes ciências sociais? Não tenho respostas para essas questões, e para as outras muitas que poderiam ser levantadas a partir da história, que diria exemplar, do Departamento de Antropologia do ISCTE. Mas creio ser difícil encontrar um contexto mais apropriado para as discutir do que esta oficina sobre a institucionalização das ciências sociais nos países de língua portuguesa.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.