Os sentidos do desenvolvimento em Celso Furtado

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Os sentidos do desenvolvimento em Celso Furtado

Apresentação
O texto aqui apresentado é parte das atividades previstas na disciplina "Estruturalismo e desenvolvimento tecnológico na América Latina", cursada no segundo semestre de 2014, e tem como objetivo delimitar e desenvolver um tema com base na bibliografia trabalhada ao longo do curso. Tendo como referência as leituras e discussões realizadas no curso entorno da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), optei por realizar neste trabalho uma breve abordagem do conceito de desenvolvimento em Celso Furtado, o qual atuou como técnico deste organismo e foi, sem dúvida, um dos seus maiores expoentes intelectuais. Para tanto tomei como referência inicial o texto Desenvolvimento e subdesenvolvimento, publicado em 1961, no qual o autor descreve o modelo clássico do desenvolvimento industrial, bem como as estruturas subdesenvolvidas. Na sequência cotejei este texto com Criatividade e dependência na civilização industrial, trabalho posterior, publicado em 1978, no qual Furtado se aproxima de uma discussão sobre o sentido do desenvolvimento e da carga filosófica embutida nesta expressão.
Um intervalo de aproximadamente dezessete anos separa estes dois trabalhos e, obviamente, é possível sentir a influência das mudanças na conjuntura histórica e da dinâmica do capitalismo na reflexão de Celso Furtado – pensador que se valeu essencialmente de um enfoque histórico-estrutural e não lógico-dedutivo, o que o fazia partir sempre da observação da realidade e não de pressupostos gerais. Assim sendo, me propus como parte do exercício realizado no trabalho ora apresentado identificar e comentar tais mudanças de conjuntura e de cenário, correlacionando-as com a evolução do pensamento de Furtado no período localizado entre a publicação dos dois textos que utilizei como referência.

Do dualismo estrutural ao desenvolvimento passando antes pelos Annales
Antes de avançar na discussão sobre o desenvolvimento convém localizar quando esta expressão ou ideia se constitui no pensamento das ciências humanas e, mais especificamente, na literatura da econômica, como substituto do conceito de crescimento econômico. Como aponta Joseph Love, em seu trabalho sobre as teorias do subdesenvolvimento na Romênia e no Brasil, a existência de sistemas econômicos nacionais duais – contendo simultaneamente um setor industrial moderno, urbano articulado ao comércio e às finanças internacionais e um setor agrário, passivo e não-dinâmico – era algo percebido como um problema central por cientistas sociais desde, pelo menos, a década de 1930. Um problema central posto ao crescimento econômico e ao processo de modernização dos países possuidores desta estrutura dual. Desenvolvimento e subdesenvolvimento não eram expressões presentes no léxico das disciplinas das ciências humanas e sociais. Tal fato pode ser observado mesmo em Celso Furtado, na sua tese sobre a economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII, defendida em 1948, na qual é feito um esforço de explicação não do subdesenvolvimento nominadamente, e sim das causas da persistência da monocultura no Brasil e do grande atraso técnico que marcava até mesmo os setores dinâmicos da economia do país.
Sintomaticamente, o trabalho de um economista da Polônia (assim como a Romênia, um país da periferia europeia do mundo capitalista) sobre a industrialização do Leste e do Sudeste da Europa (oriental e meridional) é considerado por alguns como o texto fundador da moderna teoria do desenvolvimento. Trata-se de "Problems of Industrialization of Eastern and South-Eastern Europe", publicado em 1943, por Paul Rosenstein-Rodan quando este coordenava um grupo de trabalho no Royal Institute of International Affairs de Londres sobre os problemas econômicos dos países da periferia da Europa Ocidental. Este grupo era composto por refugiados da Hungria, Polônia, Estônia, Áustria, Romênia e outros países do sudeste da Europa (península balcânica) e trabalhava na elaboração de planos para a reconstrução dos países ocupados pela Alemanha de Hitler.
Assumindo o trabalho de Rosenstein-Rodan como um marco temporal do surgimento da teoria do desenvolvimento, como explicar o avanço extremamente rápido desta abordagem na primeira metade da década de 1950? Segundo Ignacy Sachs:

"Os acordos de Ialta tornaram caducos os planos para reconstrução daquela parte da Europa que passaria a integrar o mundo soviético, porém as reflexões amealhadas, os avanços analíticos e teóricos logrados foram aproveitados no debate sobre a superação do subdesenvolvimento na Ásia, América Latina e África, iniciado pelas Nações Unidas logo após a guerra. Tanto mais, que vários protagonistas do grupo de trabalho de Rosenstein-Rodan passaram a trabalhar na Secretaria da ONU e demais organizações internacionais como funcionários ou consultores." (SACHS, 2004:2)

Seja qual for a extensão e profundidade da influência deste grupo de cientistas refugiados e acolhidos pelas Nações Unidas, outro elemento concernente à produção de conhecimento deu uma grande contribuição para a ampliação de enfoques como os do economic growth e economic development, centrados no crescimento material, o que os levava muitas vezes a tentativas exaustivas de identificar os fatores que explicassem as variações de ritmo e de intensidade do crescimento. Trata-se da busca, entre as duas grandes guerras, de uma concepção da História menos alinhada com o Historicismo alemão, o qual concedia uma posição privilegiada ao que é único ou singular. Uma busca interessada em desenvolver uma concepção mais sociológica da História que contribuísse para o estudo comparativo das sociedades. Uma nova orientação à História que se fazia presente nas novas tendências da escola histórica francesa representada por Marc Bloch e Lucien Febvre a partir de 1930 – a escola dos Annales. Esta canaliza boa parte dos seus interesses à análise estrutural, como pode ser percebido nos trabalhos de Bloch sobre a sociedade feudal e na geo-história iniciada por Febvre e desenvolvida por seu principal discípulo, Fernand Braudel. Os Annales é essencialmente resultante de um contexto histórico conforme indica François Dosse:

"As quebras dramáticas da economia capitalista em escala mundial, alcançando de um só golpe a América e a Europa, questionam a ideia de progresso contínuo da humanidade em direção ao acúmulo de bens materiais. Essa crise está relacionada às questões novas que valorizam os aspectos econômicos e sociais, por sua vez mergulhados na deflação, na recessão e no desemprego. Nesse contexto, em que é forte a demanda para compreender e agir, é que a revista dos Annales, que leva o título de Annales d´historie économique et sociale, responde inteiramente às questões de uma época que desloca o olhar dos aspectos políticos para os econômicos." (DOSSE, 1992:22)

A tese de doutorado sobre a organização e função econômica do porto de Gênova elaborada por Maurice Byé, futuro orientador de Furtado na Universidade de Paris, ganha uma extensa e elogiosa resenha redigida pelo próprio Lucien Febvre e publicada no primeiro número dos Annales d´historie économique et sociale, em 1929. Esta influência em Furtado da escola que institui uma abordagem de história econômica pode ser verificada já em sua tese sobre a economia colonial do Brasil (doutoramento em 1948), quando ele se apoia em Henri Pirenne para explicar o deslocamento do centro da economia do país no território como parte da dinâmica do sistema monocultural:

"Da inflexibilidade do sistema monocultural resultarão as dificuldades de passagem de um ciclo para outro. A substituição de uma cultura agrícola por outra exigirá profundas modificações na vida social. Muitas vezes o centro da economia do país se deslocará de uma região para outra. Elementos audaciosos tomarão a iniciativa do novo trabalho. A classe senhorial ligada à atividade econômica decadente ficará vegetando e vivendo de glórias passadas. Ocorre aqui fenômeno semelhante ao que observou Henri Pirenne na história social do capitalismo na Europa (...)" (FURTADO, 2001:146)

Esta influência de Pirenne em Furtado foi também apontada por Mauro Boianovsky em trabalho que traça a gênese do método histórico-estruturalista na economia política da América Latina:
"Furtado did not mention Braudel in his contributions to economic history written between the late 1940s and the 1960s, but he did refer to and acknowledged the influence of Belgian historian Henri Pirenne, whose approach to social time and comparative history strongly influenced the Annales school." (BOIANOVSKY, 2015:4)

Pirenne, a partir de sua história da Bélgica, propunha já em 1914, uma periodização da história social do capitalismo, vindo a ser no futuro também o articulador-mor da nova revista, a quem Henri Febvre recorre para a direção da empreitada dos Annales:

"Desde o fim da primeira guerra, no momento em que Lucien Febvre tem o desejo de lançar uma grande revista de história econômica internacional, tem também a intenção de dar a direção da mesma a Henri Pirenne, cuja autoridade mostrava-se incomparável. Muito tempo antes Pirenne já criticava a escola historicizante e suas insuficiências. (...) Após mais de dois anos de prisão na Alemanha, durante os quais escreve a Histoire de la Belgique, conhece grande notoriedade. Encontra então Marc Bloch e Henri Lefvre no dia 1° de Maio de 1920: A recusa da especialização, a originalidade de suas visões em história econômica e social, a insistência em defender a necessidade de uma história comparada impressionaram seus jovens colegas". (DOSSE, 1992:51)

Por todo o exposto aqui, ainda que de forma muito concisa tendo em vista os limites deste exercício, creio que a historiografia francesa representada pela L'École des Annales deu uma grande contribuição à estruturação da abordagem que Celso Furtado que busca, antes de tudo os significados históricos do desenvolvimento econômico.

Cultura e Desenvolvimento em Celso Furtado
Inicialmente Furtado tem como projeto apreender a lógica da realidade social de países, como o Brasil, que se originaram de operações comerciais da Europa, e assim delinear uma teoria do desenvolvimento. Sua abordagem compreende o desenvolvimento como um processo no qual se articulam fatores culturais, sociais, econômicos e políticos imersos em contextos ambientais (geoecológicos) e históricos. No entanto, a própria noção do que é desenvolvimento, não é colocada em discussão pelo autor em seus trabalhos iniciais como Desenvolvimento e subdesenvolvimento, de 1961. Furtado nos apresenta muito mais um poderoso quadro explicativo do processo de acumulação dos países centrais e suas transformações rumo a uma civilização industrial, do que um debate sobre os aspectos político-filosóficos e éticos subjacentes a sua noção de desenvolvimento.
É fato que a reflexão sobre a cultura e a racionalidade substantiva ocupa um lugar destacado em sua obra, em contraste os economistas tradicionais exclusivamente preocupados com a racionalidade instrumental. Como nos aponta Arturo Guillén, um estudioso da obra de Furtado:
"Furtado expuso el asunto de la cultura en el desarollo en dos direcciones principales. Por un lado estudió como la difusión internacional de la sociedade industrial em los países latinoamericanos de la periferia capitalista imponía el las elites agroexportadoras dominantes, insertadas en la modernización capitalista, formas de consumos suntuario importadas de los centros, que no se correspondían con el bajo nível de desarollo de las fuerzas productivas en nuestros países. (...). Por otro lado, Furtado tenía muy claro la importancia de la cultura en el proceso de diseño y puesta en vigor de un proyecto nacional de desarollo auténtico. Para él no podría alcanzarse el desarollo y superarse la condición de subdesarollo de nuestras naciones sin una incorporación creativa de las grandes masas de la población en ese proyecto, no sólo respaldándolo, sino contribuyendo a su diseño y a su concreción histórica." (GUILLÉN, 2012)

No entanto, é a partir de Criatividade de dependência na civilização industrial, publicado no final da década de 1970 (1978), que encontramos em Furtado um balanço do significado da expansão da civilização industrial pelo mundo, a caracterização das três grandes vias de acesso à esta civilização e uma reflexão acerca do significado do desenvolvimento que cada uma destas três vias comporta em si. Neste trabalho Furtado apresenta uma compreensão da cultura, esta entendida como uma visão de mundo que organiza a experiência histórica dos sujeitos, muito profunda e que denota sua consciência do conteúdo utópico do projeto da Modernidade, bem como de suas limitações:

"A primitiva ideologia liberal formou o seu discurso com elementos da filosofia naturalista que se impôs de forma avassaladora no século subsequente à publicação dos Principia de Newton. Os indivíduos, orientados pela lei do menor esforço (expressão da razão inerente à natureza humana) e impulsionados pelo desejo de melhorar o próprio bem-estar, produziriam coletivamente um sistema de forças sociais cuja adequada canalização institucional assegurava o progresso. Essa ideologia, ao pretender que os processos sociais são essencialmente racionais (...), abriu a porta para uma vaga de utopismo sem par na história." (FURTADO, 2008:83)

Mais do que uma revolução na descrição ou explicação do mundo, essa ideologia do programa da Modernidade contribuiria para a criação do quadro institucional que permitiria a ação livre da classe que fundava na acumulação seu prestígio e poder. Tratava-se então de uma disputa pelo poder de representar o mundo, como nos aponta Mário Novello, físico e cosmólogo brasileiro de reconhecimento internacional:

"Para levar adiante esse programa, iniciado no século XVI por vários cientistas – entre os quais, simbolicamente, podemos citar Galileu –, Newton e seus aliados precisaram apresentar-se como instrumentos de uma luta vitoriosa contra séculos de obcecante dominação da interpretação aristotélicas dos fatos. Não somente como inovadores, produtores de uma nova leitura e uma nova interpretação objetiva da totalidade dos fenômenos da natureza, mas também como articuladores de um pensamento emergente, capaz de transbordar para outras áreas além da ciência física, de produzir uma compreensão racional dos processos físicos de caráter tão geral, tão universal, que poderiam ser aplicados às ciências humanas e até mesmo gerar uma nova leitura dos mecanismos de funcionamento da sociedade." (NOVELLO, 2006:13)

Com isso Furtado introduz uma consideração sobre o sentido do desenvolvimento, reconhecendo-o como um objetivo inscrito em um determinado horizonte filosófico no qual mudanças e transformações sociais sejam desejadas, demandando assim uma cultura conscientemente aberta a essa possibilidade como um valor social:

"A ideia de desenvolvimento, referindo-se a uma sociedade, comporta, sabidamente, toda uma gama de ambiguidades. De um ponto de vista descritivo, ela se refere ao conjunto de transformações nas estruturas sociais e nas formas de comportamento que acompanham a acumulação no sistema de produção." (FURTADO, 2008:83)

Se até então a produção de Celso Furtado se caracterizava por uma dissecação da dimensão histórica do subdesenvolvimento, demonstrando que este não constituí necessariamente uma etapa do processo de formação das economias capitalistas modernas, em Criatividade e dependência na civilização industrial, publicado em 1978, o autor expõe uma reflexão crítica sobre a própria noção de desenvolvimento – a reflexão esta que não se fazia tão presente em seus trabalhos anteriores:

"A ideia de desenvolvimento comporta ambiguidades ainda maiores quando consideramos o quadro da difusão da civilização industrial. Em muitas regiões modernização também significou ocidentalização, ou seja, o desaparecimento de sistemas de cultura cujos valores nem sempre encontravam adequados substitutivos." (FURTADO, 2008:86)

Trata-se de uma crítica de cunho cultural que delineia o desenvolvimento não como uma resultante do processo de acumulação material, mas como um processo de invenção de valores, padrões de comportamento, estilos de vida e criatividade.
A análise dos limites das experiências Russo-Soviética e Japonesa de acesso à civilização industrial – processo este caracterizado por Furtado como a "via da assimilação" na qual um novo aparelho produtivo é enxertado nestes países que não possuíam "as estruturas sociais produzidas na Europa pelo prolongado processo da revolução burguesa" –, ao que tudo indica, contribuiu significativamente para o questionamento sobre os conteúdos e sentidos da noção de desenvolvimento pelo autor. No caso japonês são identificadas as contradições de um processo de modernização por assimilação (ou por enxerto) que, apesar de possibilitar a permanência do país como uma nação soberana no cenário mundial, instaura um quadro institucional em que a não é nítida a fronteira entre as entidades de direito público e as de direito privado e a dinâmica societária é marcada por uma grande disciplina.

"(...) no Japão, desenvolvimento significou a assimilação dos valores materiais da civilização industrial em função de um projeto de afirmação nacional. As estruturas sociais evoluíram sem ruptura do quadro tradicional de dominação, o que explica como a empresa típica japonesa é fundamentalmente distinta da empresa capitalista ocidental." (FURTADO, 2008:87)

Já a análise da experiência Russo-Soviético aponta que uma das suas resultantes mais marcantes do processo foi um Estado que desempenharia um papel bem mais minucioso do que no Japão, substituindo grande parte das tradicionais instituições de controle social. Furtado sinaliza que, a despeito das singularidades da Rússia frente ao Japão, estamos diante de outra "experiência histórica de transplante da civilização industrial em ruptura com os valores e o contexto institucional que produziram esta mesma civilização.".
É interessante observar que Furtado aponta como a leitura que Lênin faz do marxismo – leitura que percebe o quadro institucional simplesmente como uma derivação ou mero reflexo da estrutura econômica da sociedade (a base) – teve enormes consequências para o pensamento socioeconômico em geral e particularmente para o futuro da Rússia, sendo uma das maiores delas confundir a capacidade de recuperar atrasos do passado com a construção da sociedade do futuro. E é justamente da experiência Russo-Soviética que emergem as críticas de cunho cultural, ou filosóficas, mais contundentes de Furtado aos projetos de mudança social que se colocaram como meta essencial a inclusão na civilização industrial. É nesta altura de Criatividade e Dependência que torna-se possível compreender como a substituição do trabalho complexo pelo trabalho simples (desqualificação do trabalho) articulada à concentração do capital resultou em uma enorme simplificação da estrutura social e do sistema econômico. Tal simplificação criou um ambiente histórico que levava os contemporâneos de Lênin a crerem ser possível implementar um tipo de planejamento que pudesse abranger todas as dimensões da realidade e da vida:
"O órgão planificador central deveria funcionar como uma inteligência artificial capacitada para prever as consequências, em todos os estágios do processo produtivo, de qualquer decisão relacionada com a destinação final do produto em determinado período de tempo. Ter-se-ia assim alcançado o objetivo de uma sociedade perfeitamente racional no que respeita à utilização dos meios de produção. (...) Ocorre, entretanto, que os critérios de racionalidade, que estão na base da planificação centralizada, aplicam-se tão somente a certos aspectos da vida social: introduzem uma disciplina na atividade setorial e permitem compatibilizar o comportamento de grandes agregados sociais. Mas não seria possível estendê-los ao comportamento individual, a menos que se parta da hipótese de que o homem se adaptaria – e seria feliz – numa sociedade invariável." (FURTADO, 2008:89)

Não há dúvidas de que a administração e o planejamento centralizados foram elementos fundamentais para a enorme aceleração da acumulação primitiva de capital industrial, auxiliando a concentrar os recursos até então dispersos e colocando-os a serviço de projetos e objetivos bem definidos. Isto viabilizou grandes investimentos em infraestrutura e a acelerada multiplicação da produção em massa de insumos e bens padronizados. Mas, como nos aponta Furtado:
"Contudo, esses mesmos êxitos alcançados no nível da reconstrução estrutural contribuíram para embaçar ou minimizar os problemas de fundo, engendrados pelo imobilismo social que ia medrando à sombra do alastramento do autoritarismo. A reação contra esse imobilismo, tardia e relutante, levaria a um uso discriminativo dos incentivos materiais, privilegiando setores considerados "estratégicos", o que teria como contrapartida o fortalecimento dos meios coercitivos em outros e finalmente a proliferação de atividades econômicas paralelas". (...) A acumulação foi sendo progressivamente orientada para outros objetivos, cuja coerência era derivada do sistema de incentivos materiais, o que levava a transferir no tempo o objetivo estratégico inicial de construção de uma sociedade crescentemente igualitária. Com efeito, uma vez que se concebe o desenvolvimento como acumulação subordinada à lógica de um sistema de incentivos materiais – portanto no quadro de desigualdades de níveis de consumo que se reproduzem –, o caminho mais curto para alcança-lo é transplantar a civilização material já existente nos países capitalistas." (FURTADO, 2008:91)

Convém observar que antes de formular esta crítica às experiências Russo-soviética e Japonesa de assimilação da civilização industrial (a via do implante), Furtado já havia apontado também os limites da via de acesso utilizada pelas economias dependentes da América Latina – especialmente o Brasil – a via indireta ou da subordinação. Tal via já apresentava em meados da década de 1960, segundo Furtado, um quadro de estagnação econômica vinculado à perda de dinamismo do processo de industrialização apoiado na substituição de importações.
Embora esta interpretação de Furtado tenha sido questionada por alguns autores do seu próprio campo, outros cepalinos como Maria da Conceição Tavares e José Serra, os quais evidenciaram aspectos que caracterizava o estilo específico do desenvolvimento econômico brasileiro, o fato é que o final da década de 1960 já era marcado por um clima de pessimismo quanto à possibilidade de um tipo de desenvolvimento capitalista das nações "atrasadas" capaz de difundir seus benefícios amplamente:

"Nos países capitalistas hoje desenvolvidos, a modernização da agricultura, a maximização do contingente ocupado da força de trabalho e dos consumidores constituíram, em épocas passadas, requisitos importantes para a expansão, que confere dinamismo ao sistema. Neste sentido, pode-se dizer que enquanto o capitalismo brasileiro desenvolve-se de maneira satisfatória, a nação, a maioria da população, permanece em condições de grande privação econômica, e isso, em grande medida, devido ao dinamismo do sistema ou, ainda, ao tipo de dinamismo que o anima." (TAVARES e SERRA, 2000:593)

Este foi o período que integrantes da própria CEPAL fizeram uma espécie de autocrítica ao questionar a eficácia da estratégia de substituição das importações e propondo uma nova agenda de reformas estruturais. Neste ambiente de estagnação, no final da década de 1960, surgia a Teoria da Dependência influenciada tanto pelo Marxismo, quanto pelas reflexões sobre o Imperialismo feitas por Lênin e Rosa Luxemburgo. "Dependência e Desenvolvimento na América Latina", foi publicado por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto em 1969.
Ainda assim, a década seguinte, de 1970, foi marcada por uma conjuntura internacional de certo poder de pressão dos países do dito Terceiro Mundo (vaga terceiro-mundista) e por um ambiente de contestação, tanto no plano das relações entre os países centrais, quanto no plano interno aos países centrais (reflexos dos movimentos estudantis, surgimento do movimento ambientalista e movimentos de resistência a outras formas de dominação presentes para além capital-trabalho).
Furtado no final da década de 1970, em Criatividade e dependência, estava ciente dos limites daquilo que se entendia genericamente por desenvolvimento e disposto, mais uma vez, a explorar as possibilidades abertas por esta conjuntura:
"Mas a luta pela redução das desigualdades sociais, que inflamaria a imaginação dos grandes utopistas, conduziria apenas a formas mais diversificadas de consumo: ampliam-se os mercados, sem que as estruturas sociais em que se funda o sistema de poder sejam afetadas. (...) A percepção dessa problemática, a partir de uma consciência crítica fundada na prática do desenvolvimento, está por trás de grande parte dos movimentos políticos contemporâneos nos países em que mais avançou o processo de acumulação: as lutas contra poluição, contra o desperdício de recursos não renováveis, a defesa do patrimônio cultural, a rejeição do consumismo. Esses movimentos têm em comum o fato de que pretendem explicitar um conjunto de fins, a partir de uma visão global da sociedade." (FURTADO, 2008:85)

E é aqui que o campo analítico-normativo da reflexão de Celso Furtado extrapola de vez a cultura do liberalismo social do pós-guerra, se abrindo para interrogar sobre os sentidos do desenvolvimento consciente de que a:

"A palavra desenvolvimento, por si só, já é prenhe de juízos de valor, antes mesmo de alguém qualificar o que entende pelo termo. Afinal, as sociedades tribais, ditas também "frias" ou (muito impropriamente) "sem história", não se colocam a questão de um "desenvolvimento", como tarefa consciente um desafio. Desenvolvimento pressupõe mudança, transformação - e uma transformação positiva, desejada ou desejável. Clamar por desenvolvimento (seja a partir de que ângulo for) só é concebível, portanto, no seio de uma cultura que busque a mudança ou que esteja conscientemente aberta a essa possibilidade como um valor social. Culturalmente enraizada, a ideia de desenvolvimento contém inarredável carga axiológica antes mesmo de sofrer apropriação ou qualificação por parte de alguma escola de pensamento ou ideologia específica. Passível de abordagem científica (formulação de teorias e estratégias, estudos empíricos), o "desenvolvimento", todavia, é um objeto inscrito, desde o começo, em uma moldura filosófica. Tratá-lo cientificamente não isenta - antes exige - pensá-lo também em termos éticos e político filosóficos, pois só assim a prática científica pode adquirir mais profundamente consciência sobre seu próprio objeto." (SOUZA, 1996;1)



Bibliografia consultada

BOIANOVSKY, Mauro (2015): "Between Lévi-Strauss and Braudel: Furtado and the Historical-Structural Method in Latin American Political Economy", A ser publicado em Journal of Economic Methodology vol. 22, 2015.
(Acessado em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2392867)


DOSSE, François (1992): A história em migalhas: dos "Annales" à Nova História. São Paulo: Editora Ensaio.

FURTADO, Celso (2001 [1948]): Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII: elementos de história econômica aplicados à análise de problemas econômicos e sociais. São Paulo: HUCITEC.


--------------------- (2000 [1961]): Desenvolvimento e subdesenvolvimento. In: BIELSCHOWSKY, Ricardo (org.): Cinquenta anos de pensamento na CEPAL. Rio de Janeiro: Record.


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GRACIARENA, Jorge (2000 [1976]): Poder e estilos de desenvolvimento: uma perspectiva heterodoxa. In: BIELSCHOWSKY, Ricardo (org.): Cinquenta anos de pensamento na CEPAL. Rio de Janeiro: Record.


GUILLÉN, Arturo (2012): "Cultura y Desarrollo: una mirada entre Brasil y Mexico". Entrevista à Rede de Economia Política das Tecnologias da Informação e da Comunicação (EPTIC). Acessado em: http://www.centrocelsofurtado.org.br/interna.php?ID_M=689


LOVE, Joseph (1998): A construção do Terceiro Mundo: Teorias do subdesenvolvimento na Romênia e no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra.


NOVELLO, Mário (2006): O que é cosmologia: a revolução do pensamento cosmológico. Rio de Janeiro: Zahar.


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BAUER, Peter; MEIER, Gerald (1984): Pioneers in Development. World Bank publication/Oxford University Press.


"During the Second World War, I proposed in London the formation of a group to study the problems of economically underdeveloped countries instead of the more usual work on current economic problems related to the war. If we were to emerge alive, we should want not to return to the previous status quo but to form a better world. A study group was organized at the Royal Institute for International Affairs and worked from 1942 till 1945 on problems of underdeveloped countries. This term appeared then for the first time. My 1943 article in the Economic Journal served as a basic document for the group and is now in many anthologies of economic studies of the Third World. Eastern and Southeastern Europe were selected as a model not because of any special interest in those countries, but because their governments in exile were in London and because Eastern and Southeastern Europe (like Latin America) constitute a group of similar but not identical models. If one compares India, Spain, and Ecuador everything is different. What is cause and what is effect is anybody's guess. When one takes a group of similar countries, they differ from each other in one or two but not in all respects; it is then easier to examine what is cause and what is effect." (ROSENSTEIN-RODAN, 1984:207)

SACHS, Ignacy (2004): Desenvolvimento e cultura. Desenvolvimento da cultura. Cultura do desenvolvimento. Estudo preparado para o escritório do PNUD no Brasil.
"Between Lévi-Strauss and Braudel: Furtado and the Historical-Structural Method in Latin American Political Economy", A ser publicado no Journal of Economic Methodology vol. 22, 2015 (consultado em: http://www.centrocelsofurtado.org.br/arquivos/image/201408251805180.SSRN-id2392867.pdf)
Henri Pirenne. "Les périodes de l´histoire social du capitalisme". In Bulletin de la classe des Lettres de l´Académie Royale de Belgique, 1914, nº5.
Philosophiae naturalis principia mathematica, também conhecida como Principia Mathematica ou simplesmente, Principia. Publicada em 1687.

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