Os sineiros em finais do século XIX, em Leiria

June 3, 2017 | Autor: R. Charters-d'Aze... | Categoria: History, Historia, Leiria, Centro Histórico de Leiria
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EstóriasdanossaHistória Ricardo Gharters dAzevedo

Ainda os sineiros em finais do século XIX | Apresentamos na semana passada os sinos de Leiria, contamos agora algumas histórias de sineiros dos finais do século XIX. Os repiques do Espírito Santo eram acionados pelas mãos nervosas e ossudas do João Carn’assada. Esta alcunha proviera de ser encarregado de, durante a noite, guardar carne e pão que eram distribuídos no dia seguinte pelos pobres. E daí começar a propalar-se pela cidade que ele furtava a carne para com ela se banquetear durante vários dias, fazendo-a assar, pois que assim mais facilmente a conservava. Vivendo quase miseravelmente, o seu único consolo, e sua única alegria, era estar agarrado ao badalo dos sinos, julgando-se o primeiro sineiro de Portugal e fantasiando no seu espírito tacanho que executava primorosos trechos musicais e que num só sino tocava com exatidão irrepreensível a melodia popular conhecida pelo S. João. Sucedeu-lhe no posto um homúnculo ainda mais miserável do que e le - o José Cuvano, um desgraçado exposto da Santa Casa da Misericórdia, que fora criado por uma velhota residente numa lojeca de uma das travessas para os lados do Terreiro. Era novo e já parecia um velho: o rosto enrugado, os olhos ramelosos, o andar desconcertado, o fato em andrajos. A sua promoção a sineiro do Espírito Santo não lhe devia ter modicado muito as condições de vida. Mas o verdadeiro sineiro era o da torre da Sé, de seu nome António, cujo apelido ou apelidos não reza da história, pois que todos o designavam pelo António Sineiro. Era um homem vivo e habilidoso sabendo executar nos oito sinos, sem sustenidos nem bemóis, várias peças de música; além disso, o velho relógio da torre, que mais

Jornal de Leiria 5 d e Maio de 2016

tarde foi substituído a expensas da Câmara Municipal, destrambelhava-se a cada passo, e ele com uma paciência beneditina lá conseguia fazer girar as engrenagens daquele amontoado de ferros velhos. Suponho que depois do António Sineiro nunca mais o sino grande foi dobrado até ao alto. Depois da morte do António Sineiro, houve dois concorrentes ao lugar: o António Penadinho, alfaiate, e o Carlos Leandro que era cego. O primeiro era um apaixonado por tudo o que dizia respeito a sinos; quem, seguindo pela Rua da Misericórdias subisse a íngreme viela, que vai dar à Rua de Afonso Henriques, veria às janelas da casa do Penadinho, que ficava logo ao princípio da viela num recanto, várias gaiolas,

Suponho que depois do António Sineiro nunca mais o sino grande foi dobrado até ao alto

encimadas por minúsculos carrilhões, símbolo evidente da paixão que o dominava. Atendendo, porém, ao estado de cegueira e pobreza do Leandro, foi este escolhido para sineiro da Sé. Até que um facto algo escandaloso determinou a demissão do Leandro e a sua substituição pelo Penadinho. Aquele foi subornado, por alguém de mau gosto e piores intenções, para quando após a celebração de um casamento de pompa, e o cortejo nupcial saía da Sé, tocasse uma modilha popular - o «Passarinho trigueiro»! Os noivos e respetivo séquito não ficaram trigueiros, ficaram escarlates de indignação. Pôde então o Penadinho realizar o sonho dileto de toda a sua vida: ascender à torre e ser um rival do “ Quasímodo” de Nôtre-Dame! Em 1909 exercia o cargo de sineiro, a contento geral, o Penadinho, que executava no carrilhão da torre da Sé verdadeiras maravilhas. Como 0 relógio da torre passou a ser propriedade da Câmara, esta contratou o relojoeiro J. A. Silva, mais conhecido pelo Zú, com a obrigatoriedade de dar-lhe corda e vigiar pelo seu bom funcionamento. Por motivos que se ignoram, o Zú, para arreliar o Penadinho, só a altas horas da noite se resolvia a ir à torre, obrigando este a levantar-se sob a ameaça de a cidade protestar por o relógio ter parado. Não sabemos se chegaram alguma vez a vias de facto, mas o bom do cónego Maia entra um dia na Câmara, quando os vereadores se encontravam em sessão, e apresenta o ultimato: “Ou o Zú deixava de ser encarregado do relógio da torre ou a Câmara retirava da mesma 0 relógio” . Texto escrito de acordo com a nova ortografia

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