Os sofismas e o direito

July 6, 2017 | Autor: Erik Gramstrup | Categoria: Direito, Introdução ao estudo de Direito
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SOFISMAS NO CAMPO DO DIREITO



ERIK FREDERICO GRAMSTRUP



1. ORIGEM DO TERMO "SOFISTA"


Historicamente, sofistas foram os mestres gregos de retórica, que, entre os séculos V e IV a.C., tiveram grande influência intelectual. Segundo NICOLA ABBAGNANO, no seu Dicionário de Filosofia, não formavam uma escola, mas seguiam uma direção que assim pode ser resumida, em virtude das exigências de sua profissão:

- concentração do interesse filosófico no tema do Homem;

- redução do conhecimento à opinião e do bem à utilidade;

- erística: habilidade de sustentar e refutar, ao mesmo tempo, teses contraditórias;

- oposição entre natureza e lei e o reconhecimento de que aquela não conhece senão o direito do mais forte.

O termo sofista ganhou conotação pejorativa com Platão, que o descreve, no diálogo de mesmo nome, como o que pratica uma arte. Esta é uma arte de caça aos homens, na qual se distinguem a violenta - por guerra ou pirataria - e a por persuasão. Na caça por persuasão, compreende-se a que se faz sobre o público e sobre os particulares, e, nesta última, a que se persegue por presentes (o amor) e a que persegue um salário. O sofista é um homem que, fixado numa cidade, vende os conhecimentos que adquiriu ou comprou; pratica a erística com o fim de ganhar dinheiro. É capaz de discutir todas as coisas, mas, como não se podem conhecê-las todas, forçosamente pratica uma arte de simulacros. Esta, a terrível definição constante de texto que discute a opinião de Parmênides sobre o não ser a a possibilidade do falso no discurso.

O autor do Tratado "Da Caça", por vezes atribuído a Xenofonte, não lhes têm melhor estima, pois os acusa de conduzir os jovens ao oposto do que afirmam (a virtude), de só falarem em seu próprio proveito. Seu epíteto é desonroso aos olhos das pessoas sensatas. Andam à caça de jovens abastados; enquanto que o verdadeiro filósofo é amigo de todas as pessoas, cuja fortuna não honram nem desprezam.



2. DENOMINAÇÃO E CONCEITO



Os sofismas são, portanto, desvios no uso da reta razão. Em sentido amplo, poder-se-ia asssim chamar qualquer desatenção às regras da lógica formal, isto é, as normas de cunho prático que orientam os processos de raciocínio, para que atinjam bom resultado. Todavia, pelas razões históricas já debatidas, o termo foi apropriado a um significado mais estreito, pelos cultores da disciplina: sofisma é o raciocínio formalmente falso, mas que se acoberta sob a sedutora aparência de verdade. É o discurso que não conquistaria a adesão de um interlocutor lúcido, mas, como se dirige à persuasão, e não ao esclarecimento da verdade, busca comover a vontade daquele, em lugar de iluminar seu intelecto.

É justamente à acepção estrita que ARISTÓTELES faz referência, na abertura do tratado sobre esta matéria: "Vamos agora tratar dos elencos sofísticos, quer dizer, dos argumentos que parecem sê-lo, mas que deveras são paralogismos e não argumentos." O perigo que lhes é inerente está ligado mais a sua capacidade de enredar e confundir, do que na sua falsidade. Mais adiante, o Estagirita completa a definição por uma comparação: "O silogismo é um razoamento em que, dadas certas premissas, se extrai uma conclusão consequente e necessária, através das premissas dadas; o elenco é um silogismo acompanhado de contradição da conclusão."

Além da expressão clássica "sofisma", pode-se chamar o raciocínio sutilmente falso de "falácia", "paralogismo", "elenco sofístico" e "pseudo-silogismo".




3. JUSTIFICAÇÃO TEÓRICA



Como é possível conferir aparência de perfeição silogística a um argumento falso? Já ARISTÓTELES questionava-se no mencionado tratado sobre os elencos sofísticos:

"Esta confusão produz-se nos argumentos, tal como se produz em outras coisas, em virtude de uma certa semelhança entre o verdadeiro e o falso, sendo assim que, entre as gentes, há umas que tem saúde, enquanto outras só a parecem ter, porque se enfeitam e ornam ao modo das vítimas imoladas pelas tribos nos sacrifícios; uns são belos por virtude de beleza natural, enquanto outros parecem belos a poder de se enfeitarem. O mesmo corre nas coisas inanimadas, em que umas são de ouro e prata verdadeiros, enquanto outras não são tal, ainda que o pareçam aos sentidos, por exemplo, os objetos de litarginrina e de cassiterina parecem ser de prata, e os objetos de metal amarelo parecem ser de ouro."

O genial filósofo grego parece não se ter dado por satisfeito com esse início de explicação, porque torna ao assunto com mais detalhe, esclarecendo que o problema

"...decorre do uso dos nomes, pois, como não é possível trazer à colação as coisas em ato, e em vez delas termos de nos servir dos seus nomes como símbolos, supomos que o que se passa com os nomes se passa também com as coisas, o que aliás se ilustra com o exemplo das pedras, próprias da arte de cálculo. Ora, entre nomes e objetos, nào há semelhança total, os nomes são em número limitado, bem como a pluralidade das definições, mas as coisas são em número infinito. "

Estas palavras já antecipavam o que o os semioticistas modernos chamam de funções da linguagem. Os processos de simblização verbal (e escrita) não visam, apenas, à transmissão de um conteúdio de pensamento (função referencial), mas podem também provocar no destinatário da comunicação alterações de ordem emocional (função emotiva) ou ainda induzi-lo a fazer ou não fazer alguma coisa (função conativa: são os imperativos, pedidos, ameaças, que se apresentam ora mais, ora menos sutis). Na técnica de argumentação sofística, estas possibilidades linguísticas são misturadas intencionalmente, de modo que, ainda que não se possa conquistar uma inteligência reta com um argumento falacioso, provoque-se sentimentos ou iniba-se o interlocutor, de modo a operar sua adesão volitiva.

A par disso, os sofismas também podem ser construídos com base nas ambiguidades e imprecisões de que toda linguagem não formalizada padece.

Temos, em síntese, dois fatores que explicam a possiblidade prática das falácias: a ambiguidade da linguagem natural e a interpenetração maliciosa de suas funções.

Dito de outro modo, a técnica de argumentação sofística - que pode ganhar requinte suficiente para ser assim batizada - desvia o debate do plano lógico para o psicológico e afetivo.




4. CLASSIFICAÇÃO



Por razões didáticas, todos os autores de lógica procuram agrupar os sofismas em categorias mais ou menos arbitrárias. O próprio ARISTÓTELES trata de dois modos: os inerentes à dicção e os que estão dela fora. I. M. COPI distingue as falácias formais das não-formais, subdivindindo as últimas em paralogismos de ambiguidade e de relevância. R JOLIVET separa os "sophismes de mots" dos "sophismes d'idées ou de choses". PASCAL IDE, na sua "Arte de Pensar", singelamente resume os pseudo-raciocínios em "por acidente" e "dialéticos". Nosso caríssimo mestre, Prof. GOFFREDO TELLES JR., explica que os argumentos falsos são-no por vício "da matéria", "da forma" e mistos. Finalizo com a menção a CLEVERSON BASTOS e VICENTE KELLER (a quem acompanho), que opõem os sofistas do "grupo linguístico" aos do "grupo lógico".

Não prosseguirei com estas indicações, porque não é meu objetivo enfastiar ninguém, senão demonstar que na questão reinam as idiossincrasias e as opções metodológicas que mais dependem do gosto que de razões objetivas. E as discussões terminológicas, a meu pensar, são de somenos importância.

Buscarei a meta modesta de guardar coerência com as noções já expostas, sem a esperança de unanimidade. De fato, das observações do tópico anterior extrai-se que dois conjuntos podem ser visualizados:

I. os sofismas do tipo psicológico: visam a sensibilidade, as afeições e as paixões, para que a vontade dê seu consentimento antes que o processo de intelecção esteja completo;

II. os sofismas da espécie linguística: exploram a imprecisão das palavras e das construções sintáticas.


Antes de ingressar na análise das espécies, duas observações são de bom alivitre: a) uma falácia em concreto pode pertencer a mais de uma categoria (a tipificação não é fechada, nem excludente); b) As enumerações de que cuidam os lógicos por vezes chegam a minúcias soporíferas . Ora, isso contraria, precisamente, seu objetivo, que é o de construir um roteiro simples para que a mente, a contrario sensu, não se deixe enganar. Enumerações exaustivas - SCHOPENHAUER, v.g., fala de trinta e oito estratagemas para vencer um debate sem precisar ter razão! - são de difícil fixação: portanto, limitar-me-ei aos casos mais famosos e de incidência mais frequente na prática jurídica.





5. SOFISMAS DO TIPO PSICOLÓGICO



5.1 FALSA CAUSA, NON CAUSA PRO CAUSA ou POST HOC ERGO PROPTER HOC: Consiste na sugestão de falsa relação de causa e efeito.

A forma mais comum está em confundir a mera conexão temporal com a causalidade. Por exemplo, observo que os passáros sempre se abrigam ante à intempérie e concluo que sua ausência ocasiona a chuva!

No campo do Direito, o perigo desse raciocínio deficiente está em dar origem a presunções e ficções injustificáveis, posto que estas figuras derivam das regras de experiência.

Outro ponto de contato está na publicidade enganosa ou abusiva, proibida pelo art. 37 da Lei n. 8.078, de 11.09.90. É possível a exploração da mera sucessão temporal de fenômenos - seja, por ex., o caso de medicamento que cure a gripe, no máximo, em algumas semanas (!) se consumido diariamente - para apregoar virtudes e qualidades milagrosas em produtos anunciados em propaganda. Ora, na vedação legal está compreendida, dentre outras, a propaganda capaz de induzir em erro o consumidor sobre as características, qualidade e propriedade do produto ou serviço. Considera-se, outrossim, abusiva a propaganda que explore o medo e a superstição. A infração implica na responsabilidade civil, administrativa (imposição de contrapropaganda), além de constituir crime punível com detenção (art. 67).

Outro modo de este sofisma apresentar-se está em conectar, do ponto de vista causal, dois fenômenos que, em verdade, são causados por um terceiro. V.g, quando se atribui à má-qualidade dos programas de televisão (exclusivamente) a decadência dos valores morais, quando uma e outra, deveras, estão entrelaçadas com fatores históricos, interesses políticos, econômicos e costumes de análise muito complexa.



5.2 ACIDENTE: Ocorre quando se toma o acidental pelo essencial, a parte pelo todo ou a regra geral, desconsiderando-se a exceção aplicável.

Adaptando e atualizando um exemplo de PLATÃO: se recebi, a título precário e sem prazo convencionado, uma arma de meu amigo, devo devolvê-la assim que interpelado (arts. 960 e 1.250, do Código Civil). Mas não se meu amigo encontra-se psicologicamente perturbado, ameaçando ferir a si ou a terceiros (o estado de necessidade exclui o ilícito: art. 160, II).

O caso mais frequente é o da generalização apressada: do exame insuficiente de casos individuais, assumo preconceito em relação à coletividade. Facilmente se percebe que essa indução defetuosa está no nascedouro de todas as discriminações proibidas pelo art. 3o., inc. IV, da Constituição da República (origem, raça, sexo, cor, idade), como também, no art. 5o., inc. I (sexo) e XLII (racismo).



5.3 PETIÇÃO DE PRINCÍPIO (PETITIO PRINCIPII): dá-se quando se toma por demonstrada a tese que se pretende demonstrar. Isto é, a conclusão é posta como premissa.

Certa vez, deparei-me com uma sentença que mandava "incorporar", no vencimento de servidor público, certa verba, sob o único argumento de que esta "integrava" dito vencimento. Ora, como a decisão não explicava porque supunha esta "integração", incorreu na falácia da petição de princípio. E ainda deixou por explicar a razão de mandar incorporar o que já pressupunha fazer corpo (se assim fosse, haveria falta de interesse de agir...).



5.4 PERGUNTA COMPLEXA: consiste em integrar duas interrogativas numa só, de modo a extrair da respota ilações indevidas. Por ex., se indago, de sopetão, se alguém está arrependido do roubo de cometeu. Se o surpreendido interlocutor responder "não", posso inferir, maliciosamente, que confessou o ilícito e nem ao menos se arrependeu.

Só se pode evitar isolando e desdobrando os componentes da pergunta, que podem, conforme o caso, dar azo a respostas independentes.


5.5 IGNORATIO ELENCHI ou CONCLUSÃO IRRELEVANTE: é a falácia de quem se detém em considerações sobre premissas que, formalmente, não garantem a conclusão almejada (porque se dirigem a outra conclusão, que nada tem a ver com o assunto).

É frequentíssima nos debates sobre a criação e modificação do Direito.

Expressivo exemplo de I. M. COPI:

"... quando uma determinada proposta de legislação relacionada com a política habitacional está em discussão, um legislador poderá pedir a palavra para falar sobre o projeto e dizer apenas que se deseja proporcionar moradia decente a todas as pessoas".

Como explica aquele autor, todas as pessoas assumirão a excelência o direito à moradia, mas o que estava em discussão não era isso, senão a potencialidade prática da medida legislativa para chegar ao louvado propósito.

Outro caso, de memória recente, poder-se-ia detectar nos debates sobre a legalidade dos procedimentos de privatização de certas empresas estatais, quando um dos pólos afirmou que a Justiça estaria do lado do "atraso", da "ineficiência econômica" e do "corporativismo estatal". Ora, não era o mérito das privatizações que se discutia em Juízo, mas sim a conformidade com a lei de certos detalhes ligados ao edital e à licitação.

Em minha experência como magistrado, cheguei a formular uma máxima sobre o uso forense da ignoratio elenchi: sempre que a parte não tem razão, detém-se em longos e exasperantes arrazoados sobre princípios venerandos do Direito (cuja importância e significação ninguém haveria de negar), mas não identifica claramente a correlação com sua posição jurídica (justamente, a questão com que se teria de enfrentar).

Um divertido exemplo encontrei certa feita, quando renomado tributarista requereu provimento cautelar contra a incidência do IPI, sobre importação feita por pessoa física. A primeira consideração irrelevante foi a de que seu cliente não era industrial, nem comerciante (ora, o imposto é sobre produtos industrializados, não sobre industriais, conforme a regra-matriz constitucional; e a incidência na entrada do bem dá-se porque prevista no Código Tributário Nacional). A segunda versou sobre o malferimento do princípio da não-cumulatividade. Como se percebe, não há relação evidente entre uma coisa e outra, mas o profissional tratou de disfarçar o assunto, alongando-se em citações eruditas - e não falta doutrina a respeito - acerca do princípio, abstratamente considerado.

A ignoratio elenchi é, também, a cruz dos professores de Direito, ao menos dos que lecionam disciplinas dogmáticas: quanto mais neófito o interlocutor, tanto mais frequente que desvie a discussão dos temas especificamente normativos para o plano sociológico, econômico, político, etc...



5.6 Argumentum ad verecundiam: é o apelo à autoridade, ao prestígio ou à fama.

É necessário advertir que essa é uma forma válida de argumentar, quando se recorre à autoridade de um especialista na matéria discutida, que possa ser reconhecida por todos os debatedores.

O argumento torna-se falacioso na situação oposta: quando se apela à autoridade de sábios, fora da sua área de especialização; à fama de artistas, jornalistas, esportistas, cantores ou quaisquer ídolos públicos, em discussões sobre ciência, legislação, economia e quejandos.

Em síntese, é a associação da imagem positiva pública de uma pessoa a um argumento, o que nada demonstra sobre sua verdade ou falsidade.

Nem seria preciso lembrar o quanto é explorado nas campanhas publicitárias, eleiçoeeiras e de reforma legislativa.



5.7 Argumentum ad baculum: trata-se do apelo sutil à força.

Exemplos dele ocorrem quando o empregador "argumenta" que a luta dos empregados,
por melhores condições de trabalho, pode "ocasionar" a perda dos próprios empregos; quando o professor lembra ao aluno contestador a data dos exames; quando um Estado notifica outro que determinado procedimento poderá ter "consequências imprevisíveis para a Paz"; ou quando o Governo noticia aos servidores públicos que a greve é ilegal e, além do mais, muitas pessoas gostariam de trabalhar em troca dos vencimentos presentes....

Alguns profissionais do Direito gostariam de institucionalizar o uso deste argumento. São os que propõem a responsabilidade pessoal dos magistrados pela concessão (no mais das vezes, pela não concessão) de certos provimentos antecipatórios ou cautelares (notadamente, face ao Poder Público). No fundo, isso significa negar-lhe autonomia para formar convicção jurídica e fática sobre a causa; pondo-o à disposição do interesse do politicamente mais forte ou atuante. Este tipo de pressão intimidatória, na realidade, eliminaria a razão de ser do próprio Judiciário. Dizendo de modo mais ousado, o argumento seria: "conceda o que lhe peço, porque tenho amigos no Conselho de Justiça, na Corregedoria, etc.".




5.8 Argumentum ad hominem: é a ofensa dirigida a alguém, ou a insinuação maliciosa de interesse envolvido, a fim de desacreditar suas opiniões.

Com isso quer-se não só desestabilizar emoncionalmente o debatedor, como transferir a desaprovação ou antipatia que se possa sentir por sua pessoa para as teses que defenda. Em rigor, não se prova a falsidade de um argumento porque seu defensor seja reprovável na sua conduta pessoal, ou por causa da sua posição peculiar.

Este tipo de argumento tem sido utilizado pelo Executivo, ao calar os que contestam as reformas constitucionais: todos os opositores não teriam qualquer razão, somente pelo fato de terem interesses pessoais ou de classe.

É claro que essas circunstâncias devem provocar o distanciamento crítico com relação ao argumento de pessoa duvidosa ou interessada, mas é só: referido distanciamento não significa deixar de ouvi-la e sopesar a validade do que argui; ora, é precisamente isto o que deseja quem maneja o argumento ad hominem: eliminar o interlocutor (como tem logrado, magistralmente, o cesar de momento, perante os veículos da "mass media").

SCHOPENHAUER dá uma descrição assustadora da variedade mais radicar deste sofisma, que chama de argumentum ad personam:

"(...) o objeto (da discussão) é deixado completamente de lado e concentramos o ataque na pessoa do adversário, e a objeção se torna insolente, maldosa, ultrajante, grosseira. É um apelo desde as forças do espírito às do corpo, à animalidade."

E dá o remédio:

"Ter muito sangue frio pode ser de enorme utilidade nessas ocasiões, se, quando o adversário passa aos ataques pessoais, respondemos com calma que isso não tem nada a ver com o tema discutido e retornamos rapidamente a este e continuamos a demonstrar que objetivamente o adversário não tem razão, sem prestar atenção às suas ofensas: portanto, mais ou menos como diz Temístocles dirigindo-se a Euribíades: bate, mas escuta."



5.9 Argumentum ad misericordiam: tem por objetivo insuflar a dó, piedade ou compaixão, pelo uso da função expressiva da linguagem.

Como bem se sabe, é o favorito das técnicas erísticas do Júri. Todos conhecem o estratagema da defesa, de posicionar, de forma visível ao jurados, a prole numerosa do acusado, a fim de lembrar-lhes as consequências de uma eventual condenação.

Conhecidíssimo da vida forense: o contribuinte lembrará ao Juiz que é vítima da "voracidade fiscal"; o beneficiário da previdência, sua situação de pauperidade; o requerente de indenização por dano moral ou estético, sua situação humilhante e dolorosa.

Uma observação importante: neste último exemplo, o argumento é válido para fins de aferição do montante indenizatório. Torna-se sofístico quando quer inspirar compaixão, para evitar a prova do fato e da conexão causal (e da culpa do agente, se for o caso).

Isto me lembra o conselho de um eminente magistrado federal, já inativo, que preceituava aos colegas "julgar com misericórdia". Seria o caso de perguntar: misericórdia de quem? Embora venere a pessoa, não posso concordar com o conselho: a maior virtude (e ratio essendi) do Juiz é a equidistância, a justiça, o tratamento paritário; e não se deixar levar pela simpatia, que lhe comprometa a imparcialidade.



5.10 Argumentum ad populum: em sentido amplo, é uma combinação dos argumentos ad hominem, ad baculum, ad misericordiam e ad verecundiam, só que dirigidos à multidão (o vulgo, aliás, impressiona-se mais fortemente com estas técnicas).

Em sentido estrito - e apenas este justifica sua inclusão aqui - consiste na exploração de sentimentos coletivos de bairrismo, nacionalismo, preferências culturais (esportivas, musicais, etc.) e símbolos de status social, procurando fazer ligações artificiais com a conclusão que se sustena.

Há uma outra denotação para este argumento: pode significar o apelo ao número, às convicções majoritárias. Determinada tese seria correta porque "todos", ou a maioria, nela acreditariam. É a idéia fixada na máxima: vox populi, vox Dei. Ou na concepção vulgarizada da legitimidade das volições majoritárias.

Ora, a simples adesão numérica não tem força lógica probante. A facilidade com que o populacho admite certos boatos e os acréscimos infundados com que se propagam servem como mostra do cuidado que inspiram certas convicções generalizadas. Quanto ao segundo aspecto, permito-me lembrar que já não se pode confundir legitimidade com maioria, dado que esta pode reunir-se para afligir minorias, como ocorreu nos regimes fascista e nazista, e ocorre hoje, nos conflitos de ordem tribal, de algumas nações africanas. O jogo democrático, portanto, supõe valores, ligados à pessoa humana, que transcendem (embora incluam) o critério numérico.

6. SOFISMAS DE AMBIGUIDADE OU IMPRECISÃO:




6.1 EQUÍVOCO: explora a ambiguidade de um termo oral (palavra), a qual pode corresponder a mais de um termo mental, idéia ou conceito.

Por exemplo: "o direito penal regula a sanção"; "a sanção é o assentimento do Executivo à lei"; "portanto, o direito penal regula um ato do processo legislativo". Esta falácia aproveita-se do duplo sentido da palavra, ora "pena", ora ato regulado pelo direito constitucional.

No âmbito do Direito, a frequência de termos imprecisos escraviza boa parte dos esforços da Doutrina e da Jurisprudência. Aliás, todo termo jurídico, embora possa ter um núcleo preciso e bem convencionado, admite uma zona periférica de imprecisão. Isto fundamenta a inadmissibilidade do uso indiscriminado (mas apenas auxiliar) da lógica simbólica. É que esta trabalha com signos puramente formais, isto é, desprovidos de significado e, portanto, com uma linguagem tão precisa quanto a da matemática. Ora, este não é o material que desafia o legista.




6.2 ANFIBOLOGIA: é a ambiguidade de um enunciado (frase ou proposição), por defeito de sua construção gramatical. Como se dessume, não é causada pelos usos equívocos dos termos, mas pela deficiência sintática de um conjunto deles.

Por exemplo, encontra-se no enunciado: "a impossibilidade da prestação, na obrigação de dar coisa certa, resolve a obrigação". Se não se acrescentasse "para ambas as partes", como faz o Código Civil (art. 865), poder-se-ia ter a falsa impressão que uma delas poderia receber a prestação sem contrapartida.

A anfibologia obriga à atividade de correção do texto de lei (que está correlacionada com a interpretação e a integração de lacunas), que o Juiz deve proceder ex auctoritate, por ser inerente à sua função de aplicador da norma.



6.3 COMPOSIÇÃO E DIVISÃO: Por meio da falácia da composição, atribui-se simultaneamente propriedades que só poderiam sê-lo sucessivamente. Na divisão, dá-se o inverso: atribui-se, sucessivamente, predicados a uma classe, que só caberiam simultaneamente.

Na composição, produz-se inferência inválida das partes para o todo ou do indivíduo para a coleção. Exemplo está no raciocínio de ZENÃO DE ELÉIA: um grão de trigo não faz barulho ao cair; portanto, nem dois, nem dez, nem um saco de grãos de trigo fará ruído.

Na divisão, parte-se, indevidamente, do todo para as partes ou da coleção para o indivíduo. "O Congresso é uma instituição importante"; "Fulano é funcionário do Congresso"; "logo, Fulano é uma pessoa importante".





7. AS FALÁCIAS, O DIREITO E A JUSTIÇA



Ora, assim como a lógica é importante em todos os momentos de relevo da vida jurídica (criação legislativa; interpretação; integração de lacunas; aplicação; estudo e ensino), as falácias ou sofismas implicam, a contrario sensu, em anormalidade e ineficiência; desviam o sistema jurídico de sua finalidade.

Do ponto de vista legislativo, embargam a visão do produtor das normas positivas estatais, que tem como únicos critérios a Constituição e a Equidade: tratar igualmente os semelhantes e desigualmente os dessemelhantes. Neste último aspecto está, parece-me, o maior perigo: a lei sempre opera com discriminações. Só serão compatíveis com a Equidade, na medida em que ditadas por um critério razoável. Ora, os sofismas empanam, precisamente, a apreensão dos demarcadores justificáveis.

Na aplicação do Direito, pela Administração e pela Justiça, os argumentos falaciosos deturpam os processos silogísticos que fazem parte (embora não esgotem) a interpretação, aplicação e criação por analogia. Podem também falsear os julgamentos por equidade, na falta de norma.

Daí que, todo operador do Direito que não veja em sua atividade mero sustento econômico deva acautalar-se contra os paralogismos, pelas seguintese regras práticas: a) precisar e esmiuçar os conceitos e construções; b) analisar (jamais diria eliminar, o que retiraria alguém da espécie humana) as próprias emoções e sentimentos, acautelando-se contra sua influência, não emitindo pareceres e decisões com base nelas ou sob influência de forte paixão. Neste último caso, o melhor é adiar e pedir conselho a quem não possa ser influenciado, nas mesmas circusntâncias; c) é claro, conhecer, teoricamente, as formas e figuras de sofismas; d) desconfiar dos processos meramente dedutivos, comparando seus resultados com aqueles decorrentes da intuição e da indução.






BIBLIOGRAFIA


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