Os telejornais e a memória dos acontecimentos sociais: pelo livre acesso aos arquivos da produção audiovisual brasileira

Share Embed


Descrição do Produto

Este livro reúne contribuições de pesquisadores de cinco instituições de ensino superior, localizadas no Estado de Minas Gerais, que se dedicam, dentre outros temas, à reflexão em torno de objetos que contribuem para a elucidação de questões importantes sobre as temáticas que envolvem o discurso, a identidade e a memória.

Simone de Paula dos Santos - William Augusto Menezes organizadores

Discurso, identidade, memória

Temáticas relacionadas à constituição identitária e às representações da memória têm ocupado um espaço privilegiado nos estudos contemporâneos das Ciências Humanas e Sociais. A identidade social, vista durante muito tempo como atributo essencial do indivíduo e do grupo, passa a constituir-se como uma questão de natureza contingencial, para a qual contribuem as diversas formas de interação nos ambientes societários. Em especial, passa a ter destaque a construção identitária como fruto das atividades discursivas, nas mais diversas situações e finalidades em que os indivíduos atuam pela linguagem. [...] Questões que dizem respeito à memória adquirem um destaque similar. No final do século 20, os estudos da memória, principalmente da memória coletiva, se constituíram como preocupação sociológica e historiográfica no campo das humanidades. Entretanto, em decorrência das observações sobre o papel fundamental que desempenha a linguagem na sua constituição, essa passa a ser percebida não mais como produto estável e de contorno definido, mas como parte das representações dos indivíduos no cotidiano das suas interações. [...] Assim, [...] a memória passa a constituir-se em um objeto importante aos estudos discursivos, evidenciando vínculos entre os usos da linguagem e as práticas sociais no tempo e no espaço.

Simone de Paula dos Santos William Augusto Menezes organizadores

Discurso, Identidade, Memória

© Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução de quaisquer partes deste livro em quaisquer formas de mídias (impressa ou digital) sem expressa autorização dos autores ou organizadores. Revisão de texto: Nárllen Dayane Advíncula-Miguel Capa e diagramação: Marcos Eduardo de Sousa

Ficha Catalográfica Bibliotecária Perpétua Socorro Tavares Guimarães - CRB 3 801-98

Discurso, identidade, memória / Simone de Paula dos Santos e William Augusto Menezes [organizadores]. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2015. 200p.: il. ISBN: 978-85-420-0664-3 1. Estudos de linguagem 2. Identidade e memória 3. Análise do discurso 4. Linguística I. Santos, Simone de Paula dos II. Menezes, William Augusto III. Título CDD: 150

livro william.indb 4

Os telejornais e a memória dos acontecimentos sociais: pelo livre acesso aos arquivos da produção audiovisual brasileira Antônio Augusto Braighi Um domingo como outro qualquer... I can’t believe the news today. I can’t close my eyes and make it go away… (U2 – Sunday bloody Sunday)

Pouco mais de 11 anos depois, ainda não sei por que ainda me lembro, de forma tão viva, da manhã de domingo, do dia 25 de novembro de 2001. Acordei com parentes exclamando o que acabara de ser noticiado na televisão: mais de 300 pessoas teriam sido vítimas de um incêndio na casa de shows Canecão Mineiro, em Belo Horizonte, na noite anterior. Além do choque inicial, fui arrebatado ainda mais por este acontecimento na segunda-feira, ao assistir os principais telejornais de Minas Gerais. “As imagens eram fortes”, ou, era mais ou menos assim que eu as adjetivava à época. Talvez hoje perceba que o texto verbal e as imagens, e até a trilha sonora utilizada por alguns telejornais, tenham sido amalgamados visando determinados efeitos, muitos deles efetivamente produzidos em mim. A edição do material televisivo, somado às dezenas de páginas de revistas e jornais que li, potencializavam ainda mais os horizontes do acontecimento. Mas não só em mim foram gerados efeitos. Por dezenas de motivos, o incêndio no Canecão Mineiro gerou comoção em toda a capital (indago), tornando-se motivo de discussão durante semanas. Não havia ninguém com quem eu conversasse, naquela época, que não 161

livro william.indb 161

21/04/15 19:58

tivesse visto e sentido algo frente ao episódio. Como já se pode perceber, a proposta neste capítulo é a de apresentar um relato pessoal, abrindo mão de uma fundamentação teórica aprofundada, buscando a perspectiva do prosaico para tentar estabelecer uma discussão acerca não apenas da lógica do acontecimento (midiático) – como já se anuncia, mas do seu valor enquanto mantenedor das memórias, ao passo que também quer se problematizar a função dos veículos de comunicação, enquanto guardiões mnemônicos sociais. Entretanto, o contexto serve de pano de fundo para uma outra demanda latente, que merece debate e que de certa forma tangencia toda a prosa: o livre acesso aos arquivos da produção audiovisual brasileira, principalmente dos noticiários televisivos, como já acontece em outros países. Este é um convite a conhecer a minha história (tangenciada por um desabafo) e a de tantos outros colegas pesquisadores que se veem limitados diante da falta de material para as suas análises, ou reféns de conteúdo com qualidade duvidosa. É também um pouco da vida daqueles que só querem saber, ver, experimentar (ainda que de forma mediada, e mesmo que esta perspectiva tenha lá as suas contradições) a sua própria história. É, essencialmente, a carência de um povo, que talvez nem tenha notado esta ausência, caído em logro pela efemeridade das emissões televisivas, advindas de veículos que cumprem em parte o seu papel; alimentam, armazenam, mas não cultivam, como poderá ser visto a seguir.

E quem não viu... they call it stormy monday; but tuesday’s just as bad… (Eric Clapton – Call it Stormy Monday)

Acostumamos-nos a assistir nossa história sendo contada pelos veículos de comunicação de massa, talvez desde a invenção de Gutenberg. Tornou-se também habitual ver os noticiários televisivos seguindo a cartilha da noticiabilidade, de segunda à sexta, indo do caos ao cosmos – com certo privilégio à desgraça factual, transformando fatos em relatos, transmitindo ao telespectador o que de “mais importante acontece” em um determinado espaço/tempo. Mas o que é o tal valor-notícia? As formas de mensurá-lo são as mais diversas possíveis, e até hoje se encontram investidas que tentam enquadrá-lo em critérios cartesianos, ainda que o dito faro jornalístico, o feeling, a subjetividade do repórter, pautados pela linha/política 162

livro william.indb 162

21/04/15 19:58

editorial do veículo, determinem o que deve ser apurado e apregoado (SILVA, 2005). Entretanto, qualquer fundamentação para a noticiabilidade não é capaz de quantificar se o fato relatado irá (ou não), e em que medida, tornar-se acontecimento. Impactados por este, seja como ou qual motivo for, somos impelidos a falar. E foi o que fiz, tanto nos 11 anos que se passaram, quanto naquele happy hour de setembro de 2012, com os colegas João e José (vamos nomeá-los aqui desta forma), ao lembrar do caso Canecão Mineiro. O esforço sempre era o de tentar apresentar o que tinha ocorrido mas, mais do que isso, transmitir a pujança do incêndio e, de certa forma, até o modo como eu havia sido afetado. Tentativa frustrada. MG TV e o Jornal da Alterosa, representativos noticiários televisivos de Minas Gerais, tinham trunfos que eu não abrangia nas conversas com os meus amigos: imagens, depoimentos, o relato do fato em seu espaço e tempo de realização. Com toda a sua engenharia, a mídia consegue (re)construir, ou representar, a realidade social, o mundo e suas mudanças, de modo mais completo (ainda que fragmentado, e a partir de “um” olhar) e atrativo do que a minha didática poderia suportar em comparação. Pois lá no bar, um dos meus confrades, João, conhecia o episódio (pelas mesmas fontes) e, com base na caracterização que fiz, rememorou o acontecido, apresentando ainda mais detalhes – muitos por mim esquecidos. Para a minha surpresa, ele ficou muito interessado e quis direcionar uma pesquisa de fim de semestre no mestrado para o caso, tentando estabelecer uma análise do discurso midiático dos telejornais para o enquadramento do incêndio no Canecão Mineiro. O outro, o José, mal conhecia o evento. E, embora eu e João tenhamos nos esforçado para reconstituir o acontecimento, José nem ao menos deu atenção para a minha história, soltando um sonoro: “Que triste isso, hein?”, para, em seguida, voltar a falar do que era notícia (e surpresa) no tempo de nosso diálogo – entre política (Marta Suplicy no Ministério da Cultura), música (o hit de Psy, um coreano no topo da Billboard) e futebol (a campanha do Atlético-MG no campeonato brasileiro). Não muito tempo depois, em novembro, encontrei os dois novamente, juntos. João, com toda a base teórica do artigo construída, ainda se desdobrava para achar as imagens e as reportagens televisivas do incêndio no Canecão Mineiro. Youtube, Vimeo, Google Vídeos, Videotecas, até ligado para a Globo Minas e para a TV Alterosa ela já tinha, e nada. E o José? Bem, o José disse que tinha procurado saber mais sobre o caso na internet. Mas, creio eu que nem se lembrava da 163

livro william.indb 163

21/04/15 19:58

história direito, mas insistia em duas coisas: Que o trabalho do João tinha potencial, sim, seria “muito bacana” – nas palavras dele, e que o Atlético-MG ainda poderia alcançar o Fluminense, o time carioca, no campeonato brasileiro de futebol daquele ano. A primeira hipótese tinha mais chance de se concretizar aquela altura, acreditava eu, o que também não se consolidou em tempo. Mas, eis que, na noite de 16 de janeiro de 2013, vejo duas ligações não atendidas no celular: uma de João e a outra de José. Retornei ao primeiro, que parecia muito feliz. O MG TV, da Globo Minas, que estava comemorando 30 anos, havia lançado uma campanha para relembrar coberturas marcantes do telejornal. Coincidentemente, naquele mesmo dia, o destaque era a cobertura do incêndio no Canecão Mineiro. Não ia demorar até que aquele vídeo1 fosse para o portal YouTube, ele aguardava, e que, com aquele conteúdo, pudesse empreender a pesquisa que, em razão da falta de material, tinha abandonado. Com certa resistência, resolvi ligar também para o José. Ele já me atende sem dizer o fático “Alô”, afirmando: “Aqui, você não me disse que o incêndio tinha sido do jeito que o MG TV mostrou!”; seguiram-se interjeições. Afinal, após assistir o incêndio rememorado pelo MG TV, José foi finalmente impactado, com o endosso de familiares que viram a matéria, novamente, ratificando a ele a força daquele episódio.

A escritura do acontecimento... could’ve turned out different if I’d lied (hadn’t lied). Something deep within us all. Sees the writting on the wall. Wednesday evening we didn’t talk at all. (America – Wednesday Morning)

A Globo Minas, em uma estratégia autorreferencial, atesta a sua conjecturável função de mantenedora da memória social da unidade federativa em que está inserida, por meio de seus produtos. Isso, pois, além da presença marcante junto aos fatos de maior representatividade, ainda tem, intacta, a reportagem do fatídico 24 de novembro de 2001, registro histórico de uma das mais infelizes tragédias de Belo Horizonte. Isto é, o telejornal armazena a nota, guarda a melancolia pontual, mas não consegue assentar a afetação individual. O vídeo está disponível no site YouTube, pelo link: Acesso em: 12 abr. 2013.

1

164

livro william.indb 164

21/04/15 19:58

Antes de entrar nesta seara de modo preciso, faço um parêntesis para ponderar sobre a lógica do acontecimento, e de outros imbricamentos. Para mim e para José, o mesmo acontecimento tem afetação diferenciada. Segundo Louis Quéré (2005, p. 68), “[...] a individualidade do acontecimento não é determinada, apenas, pelas características da sua ocorrência como fato, mas também pelas reações e pelas respostas que suscita, via uma compreensão e uma apropriação, seja qual for o suporte”; nessa mesma linha, pelas condições espaciais, temporais, psicológicas e sociais às quais cada indivíduo está submetido em uma determinada época. Ainda que tardia e mediada (e que, novamente, esta discussão seja intrincada), a experiência de José com o acontecimento (ou apropriação) o fez querer compreender os porquês do episódio e os desdobramentos do incêndio. José, porém, só conseguiria responder à alguns porquês – os do fato, e não os que advém com o relato, pois esses últimos (ainda que não se desamarrem), no plano da linguagem, estarão sempre sem resposta (DELEUZE, 2007). Morador de Belo Horizonte, não fazia ideia desse flagelo e de sua representividade para a cidade (por exemplo, no que concerne às mudanças na legislação, no comportamento da prefeitura e do Corpo de Bombeiros após o caso, entre outras). Pois é mesmo o acontecimento que sacode a poeira e fazem os campos problemáticos subirem para o plano da discussão hodierna. Antes adormecidos, são reaquecidos pelos afetos e pelas ausências de respostas aos porquês que reverberam. Entretanto, paulatinamente esfriam; em uma sazão, assentam-se em detrimento às emergências. E, em uma sezão, podem insurgir novamente, tão logo outro evento análogo amanheça. Coincidência ou não, eu estava na estrada e voltava de uma viagem em um Domingo – dia 27 de janeiro de 2013. Cheguei em casa e nem quis saber do que Zeca Camargo falava na televisão. O telefone toca; era José que, afobado, me dizia: “Outra Boate pegou fogo! E desta vez mais de 200 pessoas morreram”. Seguiu-se o comentário dele, suprimindo qualquer comparação ao caso mineiro. Resolvi acender a pequena tela. Vejo Record e Globo em lume, na peleja para apresentar, com a maior riqueza de detalhes possível, espetacularizando ao máximo, o que havia acontecido: um incêndio em uma casa de shows em Santa Maria – RS. Não hesitei em telefonar para João que, a esta altura, já pensava em trocar o Canecão Mineiro pela Boate Kiss em suas análises. Não muito tempo depois, tivemos a oportunidade de nos encontrar; os três novamente em uma mesa de bar. A rede de significação, 165

livro william.indb 165

21/04/15 19:58

por mais óbvia que parecesse, também era diferente para cada um de nós. Para os fins de João, de certa forma, o fogo no Rio Grande do Sul sobrepunha Minas Gerais, mesmo que as trilhas deixadas pelo episódio primeiro (e tantos outros mundo a fora, rememorados pelos telejornais2) denunciasse/esclarecesse parte das causas (políticas, sociais, entre outras), mas que só a partir de um outro acontecimento, de maior impacto em razão de uma série de variáveis, poderia gerar mudança (ainda que pontual, ou anódina – até que o episódio voltasse a se assentar). Em uma década, pouco se falou sobre as saídas de emergência das boates, de iluminação em casos de incêndio, de forração adequada para o teto das casas de shows, dos laudos do Corpo de Bombeiros, dos alvarás das prefeituras, da necessidade de fiscalizações do poder público. Os campos problemáticos voltavam à arena de discussão, depois de longo período de hibernação. Já não deveriam ter sido resolvidos em 2001? Para José, o mesmo, a afetação em tempo e espaço quantitativa (haja vista o impacto e a proeminência, pautados principalmente pelo perfil do público que veio a óbito e o número de pessoas vitimadas no sul do país – o que poderia denotar uma fundamentação dos critérios de noticiabilidade, quais sejam (SILVA, 2005)), com cobertura marcante do Fantástico (em matéria com mais de 10 minutos e diversas entradas ao vivo), era outra. Enfim, para mim, enquanto sujeito, cada acontecimento tem o seu lugar no meu arcabouço de afetos, e o que aconteceu na Boate Kiss tem força, ímpeto, e me contrafez de forma apenas diferente da memória que tinha do Canecão Mineiro, agora revigorada e a ser contada de outro modo, a partir da mudança na cronologia histórica do país – presentificada, (re)contextualizada (HALBWACHS, 2006). Diante ao acontecimento, a operação dos veículos de comunicação consiste em torná-lo explicável por meio de narrativas. Trata-se, de certo modo, de uma tentativa de neutralização; normalização nas palavras de Quéré (1995). Contudo, é aí que se amplia o lado paradoxal deste, uma vez que o sentido pode tomar proporções ainda maiores. No caso em destaque, foram utilizados exemplos de boates que pegaram fogo em diversos países, incluindo a vizinha Argentina e os Estados Unidos da América, demonstrando a tipicidade do episódio com outros de mesma linha, ordenando-o causalmente.

2

166

livro william.indb 166

21/04/15 19:58

E quem mais quer ver? Et, pourquoi?

Ainda me lembro bem, daquela quinta-feira. [...] Ouvi o grito de dor de um homem que falava a verdade, mas ninguém se importava. Botando pra fora tudo o que sentiu na pele. Mas ninguém lhe dava ouvidos não. (Charlie Brown Jr. – Quinta-Feira)

Enfim, enquanto João empreendia agora um esforço para analisar um novo acontecimento, José estava diante de dois acontecimentos advindos do mesmo agente. Para José, enquanto o primeiro caso, o da cidade dele, dado, porém, em 2001, fazia-se importante para ele em função da representatividade para Belo Horizonte. O segundo, o do sul do país, o afetava mais e o deixava mais triste, era mais patêmico (CHARAUDEAU, 2007), em razão de todos os contornos – desconsiderando a compreensão dele acerca do papel dos meios de comunicação de massa, o que, para ele, não representa muito, por não ser da área e/ ou não os ponderar. Resume-se que, ao passo que o incêndio em Santa Maria – RS, afetou mais a José, que “emudeceu” frente às imagens; e, em João, cresceu o interesse em analisar uma cobertura ainda mais marcada por elementos da encenação midiática nos telejornais, em detrimento de outra. Foi através dos telejornais que José, assim como uma série de outros telespectadores, souberam e foram afetados pelo que havia acontecido (em Belo Horizonte e em Santa Maria). José soube, e João lembrou, através do meu relato, o que tinha ocorrido no Canecão Mineiro, mas as pesquisas empreendidas pelos dois em busca de imagens surtiram tão pouco efeito que eles simplesmente desistiram da “causa”. Ora, foi graças à rememoração do MG TV que, em um despertou o desejo de conhecer mais a fundo os impactos do acontecimento para a cidade em que vive; e, no outro, reacendeu o intento pela pesquisa. Do impacto à retentiva, os noticiários televisivos nos enchem os olhos e os ouvidos com os acontecimentos – empacotados entre os efeitos de real, ficção e patemização (CHARAUDEAU, 2007), somos alvejados e, em alguns casos, o projétil fica alojado. A força do episódio, acentuada pela assinatura midiática, engaveta os casos em nossa memória – acedendo-os nas retrospectivas de fim de ano. Afinal, “[...] a cultu167

livro william.indb 167

21/04/15 19:58

ra da mídia é inerentemente amnésica, mas é também profundamente mnemônica” (RIBEIRO, 2008, p. 196). Ainda, segundo Ana Paula Goulart Ribeiro (2008, p. 203), [...] a formalização e o registro da memória social, mesmo não sendo a função primeira do jornalismo, acabam sendo sua função secundária, uma espécie de efeito colateral extremamente importante, inclusive no próprio processo de legitimação de sua função principal.

Seriam então os telejornais mantenedores da memória social? De certo modo, sim. Guardiões! Registram, apresentam uma só vez (ou no prazo de validade da noticiabilidade) e a guardam, mostrando-a, fragmentada, quando acham que convém, apenas e tão somente no curto prazo de exibição de um determinado programa. Qual seria então o sentido de manter? Enquanto sinônimos, alguns deles um tanto distantes, poder-se-ia incluir: alimentar, conservar e cultivar – entre tantos outros. Em um rápido olhar para os bancos das emissoras, vemos que a conservação é razoável, mas existe. Mas do que adianta conservar se os fins só servem àqueles que produziram? Aliás, quem produziu as histórias, os telejornais ou a sociedade em um dado momento? A quem pertencem estas histórias, de fato? Aos telejornais que as contaram e as mostraram? Não estou ainda afirmando nada. Nem são questões retóricas, são apenas para reflexão. Para serem, aliás, respondidas, por todos os que se interessarem pela empreitada. Se você acredita que um povo sem acesso à própria memória e à própria história é um povo sem direito à cidadania, e se concorda que o material exibido pelo telejornalismo é uma referência histórica fundamental e a principal fonte de informações para a maioria dos brasileiros, então também deve concordar que estamos com sérios problemas. (BRASIL, 2007, p. 217)

Os telejornais nos alimentam (ainda que brevemente), com seu olhar para os acontecimentos. Em seguida, conservam. Guardam o que nos alimentou, como não poderia deixar de ser, em salas refrigeradas. E requentam o mantimento quando acham que precisamos de mais uma porção do mesmo. Mas por que não cultivam? Qual seria o receio? 168

livro william.indb 168

21/04/15 19:58

Por que não permitir que acessemos, na hora que acharmos que estamos necessitados daquele alimento, na hora em que bem entendermos? Nesse caso, não seriam mais altruístas, ainda que tenham motivações um pouco menos briosas, os compartilhadores on-line de vídeos, tais como o YouTube?

Dias melhores, em caminhos possíveis... i don’t care if Monday’s blue. Tuesday’s grey and Wednesday too. Thursday I don’t care about you. It’s Friday, I’m in love […] Saturday wait, and Sunday always comes too late. But Friday, never hesitate (The Cure - Friday I’m in love)

Mas as coisas podem mudar. Do prosaico ao que interessa, afinal, tudo que nos interessa é válido, deveria ser exposto, disponibilizado, na mesma medida em que é exibido – a partir, vale ratificar, das concessões públicas para existência das emissoras de televisão. Globo, Record, SBT, entre outras, são concessionários do serviço público de telecomunicações e de radiodifusão sonora, de sons e imagens, e utilizam um bem público: o espectro de radiofrequências3. Mais do que isso – ou para isso, recebem encargo do governo federal para atender às finalidades e interesses públicos4. Mas, qual é, ou que são, a finalidade e o interesse público, enfim? Como me falta o conhecimento jurídico, em outras palavras, as de Arnaldo Antunes, perguntaria: vocês têm de fome de quê? Se o interesse, em sentido amplo, deve ser aquele comum a todos os cidadãos, e é latente o apetite pela nossa memória, o que se espera para que as portas da dispensa sejam destrancadas? E, se o conhecimento e a informação não podem ter barreiras, e tudo o que nos é caro nos interessa, toda a produção audiovisual é de público interesse. A gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte. Eu tive, em minha dissertação, por exemplo, carência com noticiários regionais: MG TV, Jornal Minas e Jornal da Alterosa5. Tive que recorrer a bancos privados (leia-se ilegais), e pagar caro para conseElevado à categoria de bem público pelo artigo 157 da Lei 9.472 de 1997. Conforme as diretrizes da Constituição Federal, sobretudo ao que trata o artigo 21. 5 Ainda assim, a pesquisa foi finalizada, defendida e transformada em livro. O trabalho pode ser visto em Braighi (2013). 3 4

169

livro william.indb 169

21/04/15 19:58

guir as imagens que precisava; em DVD, com ótima qualidade de imagem e som, só três dias úteis de espera, entregue em minha casa, diretamente das agências de clipping. Mas certo não era o que estava fazendo. Se não, não despenderia tanto dinheiro e não praticaria tudo à socapa – ainda que qualquer um, sobretudo grandes empresas e publicitários, possam fazer isso livremente, assim como é empreendido diariamente. O que a postura das emissoras consegue gerar, contraditoriamente, é um mercado negro; aí sim, gente que só tem o ofício de apertar o rec, ganhando dinheiro com o trabalho do(s) outro(s). O desafio de João e as surpresas de José são recorrentes. Todos os dias deparamo-nos com a ausência de fontes confiáveis e de qualidade para acesso à produção audiovisual, sobretudo da televisiva brasileira. Isso, ao contrário de outros países, como os Estados Unidos (com o Vanderbilt Television News Archive), a Inglaterra (com o repositório The National Archives) e a França (com o INA), em que há uma política específica para a memória do audiovisual. Tem-se então que recorrer ao clássico videocassete e às gravações pessoais dos interessados. Mas como saber quando algo vai nos incidir? Temos que gravar tudo? Todos os canais? Afinal, é através do choque que nasce o sentido. João não pode, e talvez nem queira, gravar apenas a Globo. E como ele iria imaginar que o MG TV seria tão gentil em reexibir a matéria sobre o Canecão Mineiro, a mesma que ele havia pedido, mas não obtido, outrora. Como ele faria para gravar Record e Globo ao mesmo tempo, no domingo que marcou a espetacularização do incêndio na Boate Kiss? Que logística é esta que devemos empreender, burlando inclusive uma legislação de direitos autorais verticalizada, complexa e contraditória, apesar de relativamente jovem?6 Diante do contexto, é preciso que emerjam discussões visando o enveredamento de esforços, para a constituição imediata de uma verdade política pública, para o patrimônio audiovisual brasileiro. Esta, determinando evidentemente não apenas condições para a preservação dos mesmos, mas deliberando sobre o acesso irrestrito a ele. Há quem advirta, dizendo que todas as grandes emissoras do país têm sites, e que nos mesmos é postada grande parte do que é emitido em rede. É verdade. Mas qual delas oferece a opção de download das reportagens? Qual delas faz uso dessa prática com a intenção do registro e disponibilização da memória social, em detrimento de uma prática autorreferencial ou de uma oportunidade comercial para a inserção de A lei nº 9.610 é de 1998 e tem passado por consultas de 2007, mas nenhuma mudança efetiva aconteceu.

6

170

livro william.indb 170

21/04/15 19:58

uma série de outros anúncios na internet? Quais e quantas delas mantêm os vídeos nos sites por pelo menos mais de três meses? Algumas ações já vêm sendo desenvolvidas no país. Muitas delas de modo isolado, sem muita repercussão por falta de horizontes, apoio e/ou investimentos. Desde 1995, a Pró-TV – Associação dos Pioneiros, Profissionais e Incentivadores da Televisão Brasileira –, tem dedicado esforços em razão da memória da pequena tela. O principal projeto encabeçado por esta OSCIP, o Museu da TV7, tem, porém, muitos materiais, equipamentos, fotos e figurinos e poucos registros antigos. Isso é, são mencionadas no site da instituição 300 fitas de vídeo, sem aludir ao conteúdo das mesmas. Alguns Centros de Documentação (CEDOCs) das emissoras até liberam materiais. Isso é não para qualquer João ou José. É preciso que seja protocolado ofício, demonstrando os motivos da solicitação e a apresentação formal do solicitante8. Para um trabalho acadêmico de pós-graduação, ligado a uma determinada instituição, pode ser que haja liberação. Se houver, o pesquisador fica refém da boa vontade dos funcionários deste setor (talvez também pouco valorizados), analisando os casos no tempo em que acharem conveniente, indiferentes à urgência e aos prazos dos que precisam da informação. E o brasileiro, afamado pelo jeitinho, vai encontrando brechas. Amigos não nos faltam, as soluções aparecem, e as pesquisas caminham. Para não parecer um desabafo isolado meu por aqui, basta procurar pelo engajamento da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós) em razão desta causa9, em documento assinado por diversos pesquisadores após o I Seminário Internacional de Análise de Telejornais, realizado em 2011, na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Para compreender pontualmente as demandas e problemas já enfrentados por pesquisadores do telejornalismo no país, procure pelo artigo de Antônio Brasil e Samira Frazão (2012). Para saber se é verdade, pergunte aos seus colegas pesquisadores que já precisaram de alguma telerreportagem e quais foram as dificuldades pelas quais já passaram. É importante ressalvar ainda as importantes ações da Disponível em http: . Acesso em: 29 abr. 2013. Ressalvo: uma das poucas emissoras que apresentam as regras para solicitação e concessão de vídeos é a Rede Globo, por intermédio da Globo Universidade. Ainda assim, o processo é atravancado por disfunções da burocracia. 9 Disponível em: . Acesso em: 29 abr. 2013. 7 8

171

livro william.indb 171

21/04/15 19:58

Cinemateca Brasileira, criada na década de 1940, responsável pela preservação de parte da produção audiovisual brasileira e, ao que mais nos interessa aqui, principalmente do resgate do acervo da extinta TV Tupi, entre uma dezena de outros projetos10. Mas ainda é pouco perto do contingente de material já produzido e que não para de crescer a cada dia na televisão brasileira. Em 2012, a Cinemateca, através do aporte da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura do Brasil (SAv/MinC) desenvolveu um projeto interessante: a Sonhar TV11. Uma plataforma (e um seminário) que visa discutir o que seria a televisão dos sonhos, hipotética, para a sociedade brasileira (segundo definição, mais do que isso, o projeto representaria um movimento para discussão coletiva). O que é contraditório é que diversos especialistas e convidados ligados ao tema foram ouvidos, menos a sociedade. Há vídeos de profissionais do calibre de Arlindo Machado no site, e foram proferidas palestras de profissionais como Beth Carmona no evento. Do ponto de vista técnico-científico, a proposta é prodigiosa. Mas não cumpre o objetivo presumido. E, ao que nos cabe, não é feita menção pontual ao depósito legal da produção televisiva e/ou ao acesso irrestrito a ela pós-exibição. Ao que concerne o trabalho das instituições públicas de ensino, registra-se o esforço do CEFET-MG, com o Centro de Apoio a Pesquisas sobre Televisão12 (CAPTE), que já deu os primeiros passos na constituição de um avançado banco de dados da produção televisiva. Entretanto, o projeto se vê limitado e com futuro inebriado, frente aos bloqueios das emissoras quanto à disponibilização (dos direitos) do material para indexação. O projeto carece evidentemente ainda do envolvimento de pesquisadores que auxiliem em sua constituição e mais do que isso, de profissionais que compreendam e assumam a causa. Que levantem a bandeira não apenas da constituição do banco de dados, ou de sistemas para disponibilização dos vídeos – o que é fundamental, mas representa talvez apenas uma parte técnico-científica, o que há muita expertise para tanto, não só na instituição, mas por meio das redes de parceria. Indica-se a leitura do balanço de 2012 da Cinemateca, disponível no site oficial e/ou através do link: . Acesso em: 28 abr. 2013. 11 Disponível em: . Acesso em: 28 de abr. 2013. 12 Mais informações sobre o CAPTE estão disponíveis no site do Laboratório de Pesquisas Interdisciplinares em Informação Multimídia (Piim-Lab) do CEFET-MG. Link: . Acesso em: 29 abr. 2013. 10

172

livro william.indb 172

21/04/15 19:58

Mas é necessária a participação de profissionais que defendam o imperativo da mudança imediata na legislação (ou na constituição dela), por meio da afinação de um discurso e do engajamento político. Por um domingo diferente... E por qualquer dia igual ao domingo that’s why I’m easy. I’m easy like Sunday morning… (Lionel Richie - Easy)

O amanhecer de um novo dia, com uma verdadeira política pública de manutenção da produção audiovisual, representará a possibilidade – ao menos teremos material para isso – de compreender quem é, ou o que é a nossa mídia. Ao menos o que ela foi e no que vem se transformando ao longo do tempo. Só assim saberemos como a nossa história vem sendo contada, sobretudo na TV, e que tipo de estórias vêm sendo arranjadas em seu escopo, por meio de uma análise discursiva pontual e comparativa para cada caso. Só assim, cada João e cada José, cada um de nós, que se interessar pelo passado, terá ainda mais condições, ainda que não tenhamos sem a TV, de acessá-lo e mais alicerces para compreendê-lo. Só assim saberemos, de modo mais completo quem somos, pois o que está em questão é mais amplo: “[...] está em questão a memória do país, o respeito à sua diversidade cultural, o conhecimento acerca de si e daqueles que fazem a sua história. Está em questão, portanto, a constituição de uma base sólida para a construção do futuro.”13 À Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura do Brasil, se espaço me fosse dado para tanto, diria que a televisão dos meus sonhos é exatamente igual à que temos. Afinal, ela é espelho e janela da sociedade em que vivemos, e a mudança que se espera da TV virá de processos mais emaranhados, não dela. O meu sonho, e acredito ser de José, João, Maria, e tantos outros, é a de que a televisão seja tão acessível quanto se diz que ela é, e tão democrática quanto a vendem. Não apenas nos processos de produção, emissão e recepção, mas principalmente nos processos de recuperação. Trecho do documento que registra o engajamento da Compós e de seus pesquisadores, em prol do acesso livre ao acervo audiovisual e televisivo brasileiro, para pesquisa e ensino, registrado em 2011. 13

173

livro william.indb 173

21/04/15 19:58

Referências BRAIGHI, A. A. Análise de Telejornais: um modelo de exame da apresentação e estrutura de noticiários televisivos. Rio de Janeiro: E-papers, 2013. BRASIL, A. Antimanual de Jornalismo e Comunicação: ensaios críticos sobre jornalismo, televisão e novas tecnologias. São Paulo: Senac, 2007. BRASIL, A.; FRAZÃO, S. M. Reflexões sobre o acesso aos arquivos de telejornais brasileiros. In: Sessões do Imaginário, Porto Alegre – RS, ano 17, n. 28, 2/2012. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988. BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Diário Oficial da União. 20 fev. 1998. Brasília: [Senado Federal], 1998. CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2007. DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007. HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro Editora, 2006. QUÉRÉ, L. L’espace public comme forme et comme événement. In: I. JOSEPH (Org.). Prendre Place: espace public et culture dramatique. Cerisy: Éditions Recherches, 1995. ______. Entre facto e sentido: a dualidade do acontecimento. Trajectos, n. 5, 2005. p. 59-75. RIBEIRO, A. P. G. Os meios de comunicação e as políticas de memória e esquecimento. In: COUTINHO, Eduardo; FILHO, João Freire; PAIVA, Raquel. Mídia e Poder. Rio de Janeiro: Ed. Mauad X, 2008. SILVA, G. Para pensar critérios de noticiabilidade. In: Estudos em Jornalismo e Mídia (UFSC), Florianópolis – SC, v. 2, n. 1, p. 95-107, 2005. 174

livro william.indb 174

21/04/15 19:58

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.