Os usos do etnocentrismo: o diálogo entre Rorty e Geertz

August 14, 2017 | Autor: Vitor Lima | Categoria: Richard Rorty, Clifford Geertz, Etnocentrism
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Os usos do etnocentrismo: o diálogo entre Rorty e Geertz Vitor Ferreira Lima Evelyn Domingos Costa1 RESUMO Clifford Geertz em seu artigo The Uses of Diversity contrapõe-se ao etnocentrismo de Richard Rorty. Geertz defende a tese de que “devemos aprender a apreender o que não podemos abraçar”, e o etnocentrismo dificulta essa necessária apreensão da diversidade cultural. Rorty responde à provocação de Geertz em On Ethnocentrism, cujo argumento principal é o de que o “ideal liberal de justiça processual” já é suficiente para esse desiderato. Para Rorty, a vantagem de sua tese é não recorrer a doutrinas filosóficas como “natureza humana” e somente “apontar as vantagens práticas das instituições liberais”. Este artigo explora com mais detalhes essa disputa para, ao final, alinhar-se mais à tese rortyana, dando ênfase à noção de “justiça processual” em contraposição a de “diversidade cultural”. Palavras-chave: etnocentrismo, justiça processual, diversidade cultural, Clifford Geertz, Richard Rorty. Em 1985, o antropólogo Clifford Geertz fez uma comunicação na University of Michigan, em um evento chamado The Tanner Lectures on Human Values. O título da palestra foi The Uses of Diversity; seu objetivo: discutir o futuro do etnocentrismo provocando dois pensadores, o antropólogo Claude Lévi-Strauss e o filósofo Richard Rorty. No verão seguinte, em 1986, Rorty respondeu à provocação, publicando na revista da mesma Universidade em que Geertz efetuou sua conferência o artigo On Ethnocentrism: A Reply to Clifford Geertz2. Este artigo se propõe a explorar com mais detalhes essa disputa em que, de um lado, está um defensor do etnocentrismo (ou nos termos do próprio Rorty: do “anti-anti-etnocentrismo”) e, de outro, está um adversário cuja tese central, nos termos de Geertz, é a de que se deve “aprender a 1 Discentes do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). 2 Serão utilizadas as seguintes traduções para a Língua Portuguesa das obras dos dois pensadores: Os usos da diversidade In: GERRTZ, Clifford. Nova Luz sobre a antropologia. Tradução de Vera Ribeiro. Revisão técnica de Maria Cláudia Pereira Coelho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001 e Sobre etnocentrismo: uma resposta a Clifford Geertz. Tradução de Antônio Magalhães. Educação, Sociedade & Culturas, nº 13, 2000, 213-223. A tradução de Rorty é portuguesa, e foram mantidos todas as grafias e acentuações peculiares à cultura lusa. A partir de agora, quando se fizer referência a Geertz ou a Rorty, será a partir dos referidos textos, indicando neles somente o número da página correspondente à citação.

apreender o que não se pode abraçar”. Para tanto em suas primeira e segunda parte, empreenderá uma resenha dos textos de Geertz e Rorty, respectivamente, e, na terceira parte, realizará uma apreciação crítica do diálogo entre os dois pensadores, contrapondo principalmente as noções de “justiça processual” e “diversidade cultural”. 1. Os usos da diversidade Geertz inicia seu artigo constatando a presença de um processo cada vez mais presente do que ele chama de “suavização do contraste cultural” que levantaria uma questão maior, a saber, a do “Futuro do Etnocentrismo”. Para clarear esses dois termos, Geertz insere, em sua argumentação, questões levantadas por Claude Lévi-Strauss, em uma conferência pública endereçada a UNESCO, em 1971, em ocasião do Ano Internacional de Combate ao Racismo e à Discriminação Racial. Nessa circunstância, Lévi-Strauss defendeu a tese de que “Não é apenas uma ilusão que a humanidade possa se livrar inteiramente do etnocentrismo, [...] como não seria bom se o fizesse.” (p. 70) Mesmo concedendo que o zelo aos próprios valores possa levar à insensibilidade aos valores alheios, Lévi-Strauss justifica que este é um preço necessário a ser pago para a preservação e para a renovação do que ele chama de “sistemas de valores de cada família espiritual” (p. 70). Em outras palavras, justifica o antropólogo que ainda que não desconheçam umas às outras, as culturas “devem permanecer um tanto impermeáveis” (p. 70). Do contrário, “Tal 'liberdade' conduziria a um mundo 'cujas culturas, todas apaixonadas umas pelas outras, aspirariam apenas a celebrar-se mutuamente, numa tal confusão que cada uma perderia qualquer atrativo que pudesse ter para as demais e perderia sua própria razão de ser'” (p. 70). A tese de Lévi-Strauss vai no sentido de apontar o perigo da extinção da diversidade, sendo o etnocentrismo – ao contrário do que comumente se pensa – uma solução para mantê-la. A “suavização do contraste cultural”, então, seria um estado de coisas que teria por corolário a dissolução da diversidade. O combate ao etnocentrismo, então, levaria a uma universalização que, em vez de valorizar os diferentes modos de viver, fá-los-ia- cada vez mais iguais. Geertz se afina ao ataque do que ele denomina de “a desesperada tolerância do cosmopolitismo da UNESCO” (p. 71), i.e., a suavização do contraste cultural que leva a contraste cultural nenhum. Não concorda, porém, que a solução apontada por Lévi-Strauss seja a mais aconselhada. É, então, que passa a analisar uma outra forma de etnocentrismo, a do filósofo Richard Rorty. Ao apontar as razões do autocentramento cultural dos anos que o precedem, Geertz menciona a da descrença de que possa haver um consenso universal, acima de todas as nações e de todas as culturas, sobre assuntos normativos, questões morais inclusive. A consequência principal

de tal consciência seria a de que, se já que não há como se desvincular das próprias e particulares instituições e história, não há como emitir discurso algum que não seja ele mesmo auto-centrado culturalmente. A tese sustentada por Rorty (apud GEERTZ, p. 72) é a de que “não há ‘base’ para [nossas] lealdades e convicções, exceto pelo fato de que as crenças, desejos e emoções que as sustentam superpõem-se às de inúmeros outros membros do grupo com que nos identificamos para fins de deliberação moral e política.” A “base” referida por Rorty se refere a noções não contextuais (e.g., a kantiana “dignidade humana intrínseca”) que fornecem fundamentos seguros – ou filosóficos – a situações contextuais (e.g., impasses morais). Ao invés dessa “base” a-histórica, Rorty sustenta que, em se tratando de optar entre a quem ser leal e que convicções sustentar, tudo o que se dispõe é um histórico e contextual comparativo com “comunidades piores”. Mantida essa tese, não há como não concluir que “a justificação moral das instituições e práticas do grupo a que se pertence – por exemplo, a burguesia contemporânea – é sobretudo uma questão de narrativas históricas (que incluem hipóteses sobre o que tende a acontecer em algumas contingências futuras), e não de metanarrativas filosóficas.” (RORTY apud GEERTZ, ibidem) (p. 72)

Narrativas históricas cujo critério de avaliação são não mais metanarrativas filosóficas (e.g., “dignidade humana intrínseca”), mas hipóteses sobre o que possa acontecer em contingências futuras são o instrumento de trabalho principal da guinada pragmatista rortyana que faz funcionar seu etnocentrismo. Geertz, igual fizera em relação a Lévi-Strauss, não o endossa, defendendo que tomar para si uma posição semelhante nada mais é que uma “rendição fácil ao comodismo de sermos apenas nós mesmos” (p. 72). Pensar etnocentricamente, como o faz Rorty, equivale, para Geertz, a ignorar “lacunas e assimetrias” que possibilitam “situar onde estamos agora no mundo, como é estar nesse lugar e para onde gostaríamos de não ir” (p. 76). Em outras palavras, o etnocentrismo rortyano levaria tanto à ignorância do outro quanto a ignorância própria. A solução de Geertz é levar a sério o que ele chama de “lacunas e assimetrias” entre diferentes modos de ser, porque “obscurecer essas lacunas e assimetrias, relegando-as ao campo da diferença passível de ser reprimida ou ignorada [...] equivale a nos isolar desse conhecimento e dessa possibilidade: da possibilidade, em termos literais e rigorosos, de mudarmos de idéia.” (p. 76) O perigo de não mudar de ideia decorrente do etnocentrismo, segundo Geertz, advém principalmente do fato de que “a diversidade já não é como antigamente” (p. 77). Com isso, o antropólogo quer dizer que os impasses criados pela diversidade cultural já não surgem mais entre sociedades, mas intra sociedade. Então, em um contexto em que as fronteiras sociais e culturais coincidem cada vez mais, o etnocentrismo só levaria a mais impasses, uma vez que tenderia a ignorar essas coincidências – não raro, conflituosas –, resolvendo-as ou através do uso da força ou

através de uma tolerância vazia. Não haveria, uma vez sendo etnocêntrico, como não partir do “escuro” em questões morais desse gênero. O escuro seria o resultado tanto da “surdez ao apelo de outros valores” de LéviStrauss quanto da “comparação com comunidades piores” de Rorty que, se não levam à força ou ao vazio já apontados, escoariam para um fim ambíguo. Como contraposição, fazendo jus ao título de sua comunicação, Geertz oferece o que ele chama de os “usos da diversidade”: “Os usos da diversidade cultural, de seu estudo, sua descrição, sua análise e sua compreensão, têm menos o sentido de nos separarmos dos outros e separarmos os outros de nós, a fim de defender a integridade grupal e manter a lealdade do grupo, do que o sentido de definir o campo que a razão precisa atravessar, para que suas modestas recompensas sejam alcançadas e se concretizem.” (p. 81) (grifo nosso)

O objetivo maior em levar a diversidade a sério – leia-se: de forma não etnocêntrica – é o de fortalecer a capacidade imaginativa de apreensão do diferente. A solução dada por Geertz é a de “aprender a apreender o que não podemos abraçar” (p. 84). Ele dá ênfase à noção de compreensão inerente ao ato de apreender, que quer dizer antes percepção e discernimento que união de sentimentos ou comunhão de compromissos. Segundo ele, caso sua alternativa seja aceita, impasses morais decorrentes do choque entre a diversidade cultural seriam melhor enfrentados, uma vez que uma importante característica da faculdade de julgar estaria fortalecida: a capacidade de “enxergar com largueza” (p. 85) Geertz fornece um exemplo em que ocorre a falta do “enxergar com largueza”. Trata-se do caso verídico do índio bêbado e a máquina de hemodiálise. A escassez de máquinas de hemodiálise levou à criação de um processo de formação de fila para que os pacientes necessitados do tratamento lhe tivessem acesso, num programa médico governamental. Para a eficácia do tratamento, seria necessária uma disciplina rigorosa quanto à dieta por parte dos pacientes. A organização da fila foi feita em termos da gravidade dos casos e da ordem de chegada dos pedidos. Um índio, após conseguir acesso ao equipamento, recusou-se a parar de ingerir bebida alcoólica. Os médicos consideraram que o índio estava impedindo o acesso ao aparelho por parte de outras pessoas não menos necessitadas que, em suas visões, aproveitariam mais seus benefícios. Como o índio já estava utilizando a máquina quando o problema se evidenciou, eles não conseguiram se decidir em tirá-lo de lá. O índio continuou a usar o aparelho e eles continuaram incomodados. Até a morte do teimoso paciente. A fábula real mostra que impasses morais desse tipo surgem e podem surgir não em tribos distantes mais em qualquer sociedade contemporânea. Para Geertz, o caso acabou mal, devido ao fato de ambas as partes serem incapazes de “apreender o que significava estar na outra” (p. 79). Por isso, para o antropólogo, “tudo aconteceu no escuro”. (p. 80) Rorty, por sua vez, interpreta a situação de forma oposta.

2. Sobre anti-anti-etnocentrismo Para Rorty, o caso apresentado é animador. A razão para a sua crença é que o evento só mostra o bom funcionamento das instituições liberais, uma vez que, ao menos do ponto de vista legal, não se tratou de um caso difícil, posto que a justiça processual foi feita. Além disso, para ele, o mesmo poderia ser dito do ponto de vista moral, porque “É moralmente gratificante pensar que as decisões de vida ou morte são tomadas com base na 'severidade da necessidade e da ordem da aplicação', e não, por exemplo, com base na posição política ou financeira, pertença a uma família, ou com base na simpatia das pessoas envolvidas.” (p. 216)

Rorty assume o orgulho moral do fato de a sociedade liberal burguesa democrática tomar decisões semelhantes tendo por base nada além da justiça processual. Por justiça processual, ele entende a maneira de avaliar o que é justo tendo por base critérios formais (e.g., normas e procedimentos meramente administrativos) e não substantivos (e.g., questões de valor). Dessa forma, assume-se que, de fato, não é desejável que os médicos, no caso anterior, fizessem distinções de valor das vidas que tem por dever salvar da mesma forma que não é desejável que “os advogados de defesa se preocupem excessivamente com a inocência dos seus clientes, ou que os professores se preocupem acerca de quais estudantes dão o melhor uso à educação que lhes é oferecida.” (p. 216) Sua posição favorável à justiça processual leva a dois comentários sobre a diferença entre os médicos do caso citado e Geertz, i.e., entre quem leva e quem não leva os “usos da diversidade” a serio. O primeiro é no sentido de negar a tese geertziana de que “o caso se deu no escuro”. Assim como advogados e professores, os médicos, mesmo sendo incapazes de se identificar com seus pacientes, não enfrentaram o caso no escuro, por uma razão: “O único sentido em que alguma coisa acontece no escuro é no sentido em que todas as relações humanas que não envolvam amor acontecem no escuro.” (p. 217) Rorty esclarece esse comentário em um exemplo: o da punição de um criminoso de guerra. Caso se tivesse acompanhado o criminoso crescer, de modo a adquirir uma afeição por ele, seria mais difícil conciliar as demandas do amor e da justiça. Mas tal caso é absurdo, porque, do ponto de vista social, a melhor opção concerne em que essa ignorância da história de vida do criminoso justamente evite tal dilema. O segundo é na direção de valorizar os geertzianos “usos da diversidade”, mostrando que eles já são levados a serio quando funcionam bem as instituições liberais. Rorty lembra que a história só se desenvolveu nas condições dadas porque aconteceu em uma sociedade liberal, que “atribui tanto poder a pessoas como Geertz e aos seus colegas antropólogos como a pessoas como

os médicos.” (p. 217) Rorty assim pensa porque os antropólogos, enquanto especialistas da diversidade, são em grande medida responsáveis por “ampliar o nível de imaginação da sociedade” para que ela passe a incluir em sua justiça processual quem antes ela não incluía. Rorty lembra que, no séc. XIX, os índios bêbados eram tão ou mais comuns que à época do caso relatado, mas que, antes, sequer eram vistos como dignos de serem tratados como os demais. Sua inclusão em o que Rorty chama de “auto-imagem da sociedade” se deu, grosso modo, graças ao trabalho de antropólogos como Geertz, que fizeram com que todos passassem a enxergar neles “possíveis parceiros de conversação” e, assim, dignos de serem levados em conta em políticas públicas. Para tornar mais claro seu segundo comentário, Rorty empreende uma distinção entre aqueles cujo trabalho é lidar com tarefas morais em uma democracia liberal: “...as tarefas morais de uma democracia liberal estão divididas entre os agentes de amor e os agente de justiça. Por outras palavras, uma democracia desse tipo emprega e coloca em posição relevante que os connoiseurs da diversidade quer os guardiões da universalidade.” (p. 218)

Os connoiseurs da diversidade tem por função incluir pessoas ainda não incluídas, mostrando que os não incluídos não devem ser tratados por termos como estúpidos, loucos, idiotas ou pecadores; ao contrário, seus comportamentos, ainda que não familiares, podem ser coerentes entre si e, portanto, podem ser levados em consideração. Os guardiões da universalidade tem por função assegurar que, uma vez incluídas na classe de cidadãos, essas pessoas sejam tratadas como todos os outros seriam tratados. Para Rorty, a solução para melhorar o enfrentamento dos impasses de questões morais que surgem a partir da diversidade cultural consiste em conservar um grande número de connoiseurs ou “agentes de amor”. Essa posição, portanto, só reforça o que a sociedade liberal já faz: “ouvir atentamente os especialistas em particularidades, permitindo-lhes cumprir a sua função enquanto agentes de amor e esperando que eles continuem a expandir a nossa imaginação moral.” (p. 219) Essa solução de Rorty está relacionada com seu “protesto contra a retórica iluminista” que, por sua vez, se entrelaça ao que ele chama de “anti-anti-etnocentrismo”, assim caracterizado: “Este colapso da autoconfiança moral, aquilo que Geertz chama 'a desesperada tolerância do cosmopolitismo da UNESCO', provoca uma reação no sentido do anti-antietnocentrismo – direção essa exemplificada por passagens que Geertz foi buscar a LéviStrauss e aos meus trabalhos. [...] Geertz receia que a reacção anti-anti-etnocentrista vá demasiado longe e que nós nos contentemos em pensar as comunidades humanas como 'mônadas semânticas, praticamente desprovidas de janelas'.” (p. 214)

Rorty utiliza a dupla negação (anti-anti-) que, na prática, equivale a uma afirmação, primeiro, para ressaltar seu caráter engajado e, segundo, para diferenciar sua tese de qualquer outro etnocentrismo.

O etnocentrismo advogado por Rorty é quanto à cultura liberal burguesa e não outra, não por qualquer razão: a “consciência do seu próprio valor moral funda-se na sua tolerância e diversidade”, além de ser uma “cultura que se orgulha de estar constantemente a acrescentar novas janelas, de constantemente alargar as suas simpatias” (p. 214-5). Sua defesa, portanto, é no sentido de dizer que seu anti-anti-etnocentrismo, ao contrário do que pensa Geertz não consiste em cultuar uma mônada incomunicável; antes, consiste em preservar uma mônada com inúmeras aberturas, porém com uma diferença: tal mônada não está mais consoante à “natureza da humanidade ou às exigências de racionalidade do que as mônadas sem janelas que nos rodeiam” (p. 215). Nessa negação de consonância a uma metanarrativa filosófica, está o caráter engajado de Rorty que distingue seu etnocentrismo dos demais – tornando-o um anti-anti-etnocentrismo que deve ser encarado como “um protesto contra a persistência da retórica iluminista numa era em que o nosso conhecimento da diversidade faz com que essa retórica surja como auto-enganadora e estéril” (p. 221). O que Rorty chama de “retórica iluminista” é aquela segundo a qual há algo denominado natureza humana – algo suprassensível em que estão inseridos aquilo que chamamos de direitos dos homens –, que possui precedência moral sobre outras estruturas que seriam simplesmente culturais e, portanto, transitórias. Um dos motivos de essa retórica ser estéril é que ela, segundo Rorty, não consegue fugir do seguinte impasse: o de que a crença na natureza humana pode ser ela mesma apenas mais um enviesamento cultural. Rorty propõe sair do impasse assumindo o caráter culturalmente enviesado dos juízos racionais iluministas. Assumindo o caráter contingente de tais crenças, a distinção entre crenças necessárias e contingentes se esfumaça e crenças passam a ser somente crenças – seu valor sendo medido não mais ao quão próxima à racionalidade suprassensível estão, mas em relação às consequências que fazem vir na prática. Apresentada a autodefesa de Rorty à provocação de Geertz, cabe analisar se ela é consistente frente às investidas do antropólogo. A acusação principal de Geertz é a de que o etnocentrismo de Rorty não passa de uma “rendição fácil ao comodismo de sermos apenas nós mesmos” que ignora “lacunas e assimetrias” que possibilitam “situar onde estamos agora no mundo, como é estar nesse lugar e para onde gostaríamos de não ir”. Em outras palavras, o etnocentrismo rortyano levaria tanto à ignorância do outro quanto a ignorância própria, porque funcionaria como uma mônada fechada incomunicável. A repreensão de Geertz a Rorty é baseada na afirmação deste último de que a “justificação moral das instituições e práticas do grupo a que se pertence é sobretudo uma questão de narrativas históricas e não de metanarrativas filosóficas”. Uma vez que Rorty só reafirma tal tese em seu artigo resposta, é de sua análise que se partirá a seguir.

3. Sobre o bazar kwaitiano e o clube de cavalheiros inglês Geertz finaliza sua comunicação afirmando que “parece flagrantemente claro que o mundo, em cada um de seus pontos locais, está começando a se parecer mais com um bazar do Kwait do que com um clube de cavalheiros inglês” (p. 83). O antropólogo lança mão desse contraste para exemplificar a sociedade que estaria cada vez mais diversificada e cada vez menos convergente. Em um mundo assim, não caberia justificar moralmente as próprias práticas e instituições de forma etnocêntrica. Rorty concorda com a metáfora, mas não aceita que dela se siga que é preciso haver uma mudança no modo como ele, um liberal burguês, encara a diversidade cultural. O motivo: o ideal liberal ocidental de justiça processual é concebido para lidar com casos como esse. De fato, se se aceita – como parece aceitar Geertz – que “os valores de ninguém” podem ser desvinculados “em relação a suas instituições e sua história”, então parece não haver outra alternativa senão abraçar alguma espécie de etnocentrismo, ou nas palavras de Geertz, “seguir o exemplo de Emerson e andar com nossas próprias pernas, falando em nossa própria voz.” (p. 72) A distinção a ser feita, no entanto, é que tipo de etnocentrismo se advoga. Parece que o etnocentrismo rortyano é uma boa opção por dois principais motivos. Primeiro, porque não necessita fundamentar metafilosoficamente suas ideias, uma vez que não faz uso de doutrinas suprassensíveis, como “Razão” ou “natureza humana”. Segundo, porque não se trata de defender qualquer cultura, mas uma cultura, como já lembrou Rorty, “que se orgulha de estar constantemente a acrescentar novas janelas, de constantemente alargar as suas simpatias”. Em um contexto de descrença em metanarrativas – i.e., o mundo pós-moderno descrito por Lyotard –, para resolver questões morais levantadas pelo choque cultural intra sociedade, a opção mais acertada parece ser fortalecer, de um lado, o que Rorty chamou de “agentes de amor” e, de outro, a justiça processual para que a tensão constante em qualquer democracia liberal entre universalismo e particularismo seja, de preferência, procedimentalmente balanceada. Insistir, para além do ofício do “connoiseur da diversidade” e do entendimento do cidadão bem escolarizado, em que a prática de “aprender a apreender o que não se pode abraçar” seja necessária, parece ser excessivo em uma sociedade que se pretende valorizadora da diferença. Afinal, como Rorty propõe, ao final de seu texto, “podemos propor a construção de uma ordem mundial a partir de um modelo deste género: um bazar rodeado de inúmeros clubes privados exclusivos.” (p. 222) Os usos do etnocentrismo, então, estariam em antes insistir na mantença de instituições que já acolhem a diversidade – as instituições liberais democráticas–, sem que para isso se tenha que apelar seja para fundamentos metafísicos, seja para a integração cultural a moda da UNESCO.

BIBLIOGRAFIA GERRTZ, Clifford. Os usos da diversidade In: GERRTZ, Clifford. Nova Luz sobre a antropologia. Tradução de Vera Ribeiro. Revisão técnica de Maria Cláudia Pereira Coelho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. RORTY, Richard. Sobre etnocentrismo: uma resposta a Clifford Geertz. Tradução de Antônio Magalhães. Educação, Sociedade & Culturas, nº 13, 2000, 213-223.

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