Ossinhos de Criança, Fernando Chiavassa

May 24, 2017 | Autor: Fernando Chiavassa | Categoria: Literatura, Contos brasileiros
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Fernando Chiavassa Ossinhos de Criança I De olhos fechados sinto uma brisa e deslizo pela cama. Empurro a cabeça contra o travesseiro, ainda com sono. Pego as cobertas com as pontas dos pés. A noite tão abafada refresca, muda a estação. As loucas cortinas que tremulam parecem minhas dores: a natureza fustiga o mundo. Incomodada, não vi minha irmã. Quis dormir mais um pouco, espreguiçando, quando as cortinas se abriram numa carreira. Vi árvores frenéticas. Parecia não haver nenhum vivente, a não ser uma bêbada sonada na direção nascente. Um céu de estrelas despontava Sirius, em divertidos arranjos luminosos. Mas era muito estranho ver sequências de raios mudos contra desconhecidas constelações. A leste, Vênus cintilava avermelhada: assustador, pois ela não cintila e brilha argenta. Mas logo tudo acalmou e me virei. Não me lembro bem se em vigília (com certeza bêbada de sono), percebi tudo a tremer. Fiquei encolhida no sofá olhando piso, paredes e teto. Até meu corpo dolorido trepidava em tensão, a turbulência incontida era provação, eu sozinha. Será que todos assustados demais não sairiam de seus cantos espiões? Havia breves intervalos em que o silêncio quebrado ganhava sonora e contínua expressão. Tântricos sons massageavam além do meu cérebro toda a minha existência e nesse momento um conjunto de luzes atravessou minha sala adolescente. Invadidos os limites físicos do apartamento de solteira, – atônitos pais e irmãos – devassava a minha juventude o que se parecia com uma nave espacial. Outra manta de luz quase rente ao piso – agora colorida – escaneava todo o ambiente. Não mais distinguia meu espaço do invasor. Ainda deitada observei transparências luminosas, tais quais cenários marítimos abissais. O tempo parado era a sensação mais gratificante da minha vida. Já noite, levantei-me daquele velho sofá da juventude. Saindo da nave, pisei clara num presente translúcido. A cada passo, o piso iluminava. Nova brisa me levou às aberturas que não se pareciam com nada: não eram janelas, não havia venezianas, vidros ou ferragens. Respondiam a um leve toque de mão: verde para abrir, azul para fechar. Então, a nave tornou-se invisível. Olhando na sua direção, a um toque do indicador, um laranja a trouxe de volta iluminada. Marcando posição me afastei. Enquanto a nave desaparecia, senti um perfume infantil. Acima – no zênite – vi a lua, igualzinha a da Terra. Não via formas animais marinhas, terrestres ou aladas, mas ouvia vozes distantes vindas de uma densa formação vegetal. Copas forradas com trepadeiras, parasitas e cipós, dominavam arbustos, gramas e flores. Das serras os rios chegavam às várzeas, formando lagos e mares sem fins, tudo em névoas. Com o clarão de um anel de luz, amanhecia gigante e o sol já produzia um clima mais úmido. Retomava a consciência aos poucos, assustada, ouvindo vozes. Assim, desvendava quem era sem devaneios. Às tontas, por vezes, via a estranha imagem dos restos de uma criança, à beira de um lago em posição fetal, sem a ponta da coluna. Diante das águas, meu cérebro iluminado me apresentava como controversa e prolixa; sempre a ouvir vozes. Este mundo idílico em formação, vazio de vida animal, não coadunava comigo – único ser -, indigna vivente a tudo desejar. Ademais, já sentia saudades de casa e com fome, fiquei preocupada. Lembro de minha mãe, quem afastei de meus afetos e fantasias. Caçadora, não divisei frutos e essa lamúria (há muito conhecida), me deixou triste: prova de minha condição humana querendo tudo mudar. Agora queria a minha vida anterior. A fome! Feroz, o sol ganhava altura rapidamente e ofegante, senti sede. Vozes. Brilhos líquidos estavam ali ao meu alcance, mas dei conta que não podia conter em minhas mãos nenhuma parte daquela substância aquosa. Nada podia captar: querer não implicava em comer e beber. Veloz, num reflexo, imaginei um rio de água potável que logo se formou fantasioso. O certo é que esta busca vã viu minha estabilidade emocional ameaçada. Pasmem que vozes, gritos e os ossinhos daquela mesma criança surgiam aqui, ali. Imaginei salvação nas árvores e – aleluia – tudo foi preenchido com frutos de cores, formas e aspectos mirabolantes. Mas, daí que ao pegar um deles com a vara de um bambu

sonhado – um coco verde – vi que não podia atingi-lo. Ofegante, cansava. Verdade que –tensa – fiquei boba quando vi que não conseguia urinar. Equilibrava-me como podia e com falta de ar, suava frio. Mantinha a mente livre de inúteis conjecturas, mas tinha sempre os ossinhos e as vozes. Impossível viver o sonho, então evitei lembranças e me proibi de projetar o futuro. Só me restava a mais fina ilusão, pois que fosse então a ficção, a madrinha da minha salvação. Ave cantei a velha melodia para voltar para casa. Ouvindo as vozes contei quantos rios e frutos tinha idealizado e vi que não estava preparada para outros mundos. Diabólicas, aquelas vozes. Os ossinhos da criança me davam muito medo. Quis que tudo desaparecesse voltando ao que era antes, mas piorei. A sede e a fome matavam. Tonta a engasgar na vontade de urinar, já febril, tateava o espaço circundante. Queria a nave, mas só via ossinhos e ouvia vozes. Nunca imaginei ser possível sentir sede, fome, enjoo e ainda, ao mesmo tempo, uma forte dor de cabeça. Engasgando a seco, precisava aliviar a bexiga, mas tudo piorava, cruzes, implodindo a vida sem saída. Um ser humano na eternidade ficaria louco a desejar. As vozes. Nasci para correr no tempo e quero meu mundo do meu próprio jeito, ou então – que seja – do jeito dos outros, mas não esse aqui! Quero falar com minha gente, quero abraçar meus irmãos e filhos, contar mil histórias para todos os amigos, isto é o que eu quero. O que tenho a ver com ossinhos de criança? Vozes, quero que falem comigo! ─ Quero que falem comigo, que falem comigo, falem comigo! ─ Cuidado! ─ O quê, o que foi? ─ Você treme inteira, cuidado. Cuidado! ─ Onde você estava? Você não tem parada… Que tanto você sai? ─ Devagar! ─ Preciso fazer xixi. Vem cá, acho que consigo me apoiar nos seus ombros, fica bem pertinho. Nossa, mês-mo, que tremedeira. ─ Devagar! ─ Um simples levantar, uma tarefa hercúlea. ─ Não faz mal; tudo a seu tempo, tenha calma! ─ Mas não sou capaz de tirar o peso de meu corpo da cama. ─ Tenha calma.Vai, deita e levanta o quadril. Eu ajudo. ─ Espera… Pronto. Não poder caminhar e ir ao banheiro é um fracasso. ─ Levanta! II

Ouço bater a porta. Tiro uma lágrima do canto do olho enquanto passos se distanciam. A dor diminuiu um pouco, tenho sono, mas não quero dormir. Atrás de mim, bem ao canto, vejo minha irmã que parece me observar. Depois que levou o xixi ao banheiro ficou emburrada. Estamos à meia luz e não quero que ela se sinta sozinha. Sem conseguir vê-la, continuo a lhe dizer que procuro me livrar do que não gosto, escolhendo o caminho mais simples, como a natureza. “Não é minha irmã? Mas não sabemos de nossas reações frente ao acaso, não é?” Antes do acidente percebi alguns sinais, mas, repito tropeçando de sono que não levei em consideração. Eu sempre digo que é impossível só descrever a ação: é preciso vivê-la. “Ouviu? Você não vai largar o livro?” Não adianta: agora tenho certeza que ela dorme. Impossível descrever a imobilidade. Mal percebi as mudanças e só reagi quando o inesperado me assaltou. Nunca imaginei chegar aqui do jeito que foi. Através das listras transparentes daqueles vidros traseiros pude fazer a leitura do trajeto, mesmo deitada. O desfile de prédios conhecidos, os vazios do céu, do verde e das praças permitiam reconhecer espaços familiares do meu bairro. Calor insuportável. Molhada, sem comer e sem beber, sentia que podia desmaiar a qualquer momento. Não sei se falei alto demais, mas percebi que ela respondeu ao meu lado: ─ Eu corri para chegar antes da ambulância, já esqueceu? ─ Fui salva pelas frutas picadas que você me deu ao chegar ao hospital. ─ Você já foi medicada. Sono? ─ Tenho sono, mas não quero dormir. ─ Tenta. Dorme, fica bem… Senti suas mãos frias, me acariciando cabelos e faces. A dor diminuiu, a luz apagou. Afundei no travesseiro com suas mãos nos meus cabelos… Ossinhos de criança. Milhares de corpos amontoados ao léu entre galhos, folhas e flores numa tessitura casual de almas a espera do improvável. Contingência atemporal angustiante num além desconexo para seres errantes em território límbico. Almas sucumbidas sem discurso diante de terra e céu envoltos em manto de fino nevoeiro. Apinhados, corpos sem pele, sem ossos e sem expressão, cegos numa estação a mudar de destino. Sem horizontes, só a estrela da sorte ao zênite frente ao desconhecido: realidade agonizante. Certezas compadecidas choram como ampulhetas do tempo a se esvair. Escorrega, em vozes distantes, a loucura. Vozes diabólicas: milhares de órfãos que não param de falar. Sacros desejos e privilégios de uma profana realidade à deriva, nas penas dos enganos, em desacertos dantescos. Incertezas. Incontáveis existências perdidas e corrompidas pelo poder, iludidas pelo conhecimento do mundo. Os ossinhos de criança e a máquina do mundo. Mundo desigual onde ninguém fala comigo em que procuro meus filhos, mas só vejo almas fechadas mal ditas em tolas digressões sobre a existência. A esperança na forma de crianças e velhos. Impossível visão de si em mundo sem reflexo, como a velha fora do tempo – talvez criança – que encontra a si mesma, sabendo que nada a salva da falta de sentido. Não há certezas em que segurar, a não ser através da loucura de milhares de almas em terra (onde a vida é uma torre), apoiadas em troncos sem raízes, assistindo minha queda ao longo das metamorfoses da vida, perdida nos ossinhos de criança. Vozes maldizendo que o divino é um nada enredado nos estalos do azar: as mortes por acaso, o raio que mata e a torre que engana! A morte e os distratos de uma vida incerta doem, mas o pior não é ser ouvida! De um lado, vejo almas canhestras em vãs

procuras, abaixo e acima madames e senhores a grandes distâncias espirituais que terminam como criança, que não quer ver seus pulmões, tanta fumaça feita na vida, nem rever seu sexo – muito menos –, diante dos seus desatinos sensoriais, fisico-mentais. Esta velha criança não vê sua alma que lhe atribui culpas por desejos latentes. Só um outro bem veria a sua cabeça de pedra; já seu coração, o próprio medo. Incrível que a vejo sempre supondo certo dormindo acordada a nenhum lugar chegando, comendo os olhos com fome incomodada. Ela deita em pesadelos, calada e muda, trabalhando agoniada, presumindo mal a se enganar, amando errado, aos filhos se entregando. Cega com os burros n’água, casa três vezes, dando filhos ao vento. Sofre em tragos se afogando em missão por engano, sem trabalho, com dor no coração a pagar pensão. Magoada do mundo pisa em ovos, mais de uma vez lagarta e pena sempre da torre a cair. Criança assustada contra as vozes do mando, nem masculinas nem femininas (mas diabólicas) vê todas ferradas a dormir desalinhadas fisicamente sexuadas. Mas, assexuadas. Velhaca vê os seres de um novo mundo às lhufas, envergando vidas judiadas e perdidas como criança, sem os ossinhos da mulher recolhida em si, a se esquecer dos homens em comando, do sonho impossível. De novo os passos, as vozes e uma luz que acendeu. Sinto meu corpo frio e enrijecido. Com alguma dificuldade meus braços se seguram nos canos da cama inclinada e me viro de lado. Com minha mão cheia de fios, pego a pontinha da coberta e me escondo num cantinho no travesseiro. Silêncio! Vozes passam por entre paredes, cortinas e meias luzes, vibrando nos tubos da cama. Vozes que eletrizam os fios da vida. O teto, os aparelhos e bips, o exterior e a noite. O acidente. Os sonhos. A vida que ouve a voz do diabo, a porta que acaba de fechar. Os passos ao longe e os tubos da cama, os fios. O teto, o exterior, a noite, os aparelhos, os bips e as luzinhas vermelhas, as meias luzes. O fato é que ninguém fala comigo! III As luzes se acendem e três moças de branco confabulam, conferem resultados, examinam aparelhos e anotam dados. Assisto e não consigo perguntar nada. Vejo minha irmã de pé, à parte, calada. Aplicam as medicações. Perguntam das dores que, no meu caso, dizem que tem remédio. Só não tem a minha alma que vaga confusa sem saber como saio daqui. Milagrosamente curada? Minha irmã não para no quarto. Quando ela volta sinto que o sono é maior. Mas ela entra e sai e as vozes se distanciam; chegam e sempre se distanciam. Sozinha, volto-me a mim temendo pelos ausentes. Tenho sempre saudades dos meus queridos e é um tormento quando penso que podiam ter morrido (porventura meus filhos terão existências como a minha?). Mas que entendo eu de existências, se diante do nada sofro sem saber o que fazer diante da ilusão do viver? O que faço a viver em pesadelos? Ela me pega falando sozinha. Paciente minha irmã. Eu conto para você, tudo de novo, minha irmã. ─ Você não desliga, não? ─ Vou repetir tudo mais de uma vez, posso? ─ Mas porque me conta tantas vezes de novo? ─ Quero sempre saber como criança. Só não sei se conto a dormir de tão sonada, ou se durmo contando.

─ Sonhos ou pesadelos? ─ Os sonhos são fáceis, os pesadelos não. ─ Para mim, são todos pesadelos, deus me livre! ─ Credo em cruz, tenho medo de estar lá: é sempre uma vida sem sentido. Será que eu tinha culpa como as criaturas? Você não acha nada? ─ É que acho tudo muito estranho, é isso, entende? ─ E as pequenas vozes… Diga, me diga alguma coisa, minha irmã. ─ Mas o que você quer que eu diga? O que? ─ O que acha das vozes do mando! ─ Como assim, você tem que ser mais clara! ─ Elas me diziam que não há certezas em que segurar, o que acha disso? ─ Não sei o que te pesa mais, se essa vida ou os sonhos… ─ Os pesadelos, minha irmã. Estávamos à espera da salvação – era isso que sentia – diante daquelas almas milagrosamente vivas. ─ Não aguento esses sonhos! O que as mantinham vivas? ─ A esperança! Arriscava a cabeça, esperando escapar. ─ Mas escapar do que, tá no mundo da lua? ─ Da morte! Aqui, evitando o fim! Procurando novas realidades, correndo riscos; sonhando tudo mudar. Você não faria o mesmo? ─ Você insiste em não viver nesse mundo. O que garante tuas procuras? ─ Nada. Nada, não existem certezas! Só um milagre, uma inesperada conexão, a inversão desse estado perpétuo! ─ Nossa… ─ Não é possível a falta de sentido! Eu tenho que contar… Você me escuta? ─… IV

─ Ouça: alerta, corri a língua pela gengiva e percebi meus dentes muito moles a cair a qualquer momento. Tirei o peso da cabeça dos maxilares apoiados no travesseiro. Diante da perda dos meus dentes, não pensava nada, mais que alarmada. Fiquei imóvel naquela vida incerta. Não me atrevia mais a tocar nos dentes nem mesmo com a língua. Fechei os maxilares em diminuta progressão e fiquei escandalizada com a falta de pressão. As arcadas se transpunham uma sobre a outra, ocupando o mesmo lugar. Sentia que naquele momento de transição, me transformava em outra coisa, mas custava nisso a acreditar. Enquanto lutavam mente e boca, me via em distrato. Isso tudo não podia ser real, talvez surreal, qual nova metáfora que aflora. Diante da centelha da esperança, que não era de hoje, mas, sim, de criança, era preciso reagir sem tréguas. Enfrentava a realidade sem fiança, o coração disparando, sem segurança. Demorava a catarse. Precisava romper o disfarce, desnuda. Pendurada na torre retomava o equilíbrio para ser dona de mim mesma, mas o medo tomava conta. Aos poucos, não mais articulava sílabas quanto mais palavras, não dando conta de minha desesperada mente. Uma luz indiscreta invadiu meu corpo na madrugada. Engolia pesadelos sem ver a cara do mundo, inconformada. Não podia descer ao meu interior, pois ainda havia o inferno da minha intocável boca sem poder me recolher com meus dentes à solta. Sentia descompassadas batidas dos galhos de uma árvore de memórias com fortes raízes, folhas entristecidas e frutos latentes. Não sentia frio nem calor, muito menos os meus dentes. Sentia medo da morte que é obra do tempo. Havia a secura de uma noite mal dormida, com gosto de chuva e cheiro de terra molhada. Não tinha fome nem sede, não queria acordar, nem dormir de novo, muito menos vontade de ir ao banheiro. Vivia a angústia de quem estava pouco à vontade dentro de mim. Pior era a vontade de chorar por inteira, não mais apenas a meio choro. O sal das lágrimas nos lábios, não era forte para abrir uma boca encharcada de saliva, de dentes, mágoas e de velhas crenças. Não queria o vício de ter o mesmo sonho até morrer, envenenada pelos desejos dos outros enfiados na minha cabeça. Cega, vagava na perda do mundo, ainda chorando pela metade sem boca e sem dentes, segurando a cabeça mal tocando no travesseiro. Sem querer, minha língua resvalou no céu da boca e depois num dos dentes que se mexeu. Sorte que um leve toque o levou à posição anterior, normal. Mas o que poderia ser exatamente, normal, seria normal desmaiar? A purificação era um pensamento perdido, pois não tinha nada a purgar. Não sinto culpa nem remorso de nada. Por detrás do medo que tenho vejo meu ex-marido a levar meu filho mais velho. Meu egoísmo esconde umas namoradas perdidas em meio a mais pura solidão. Sou uma subversiva sem causa desde criança; bato no peito, tudo é do meu jeito. Por fim, sem dinheiro deixo infeliz um grande amor. Mas chega, que medo é esse? Chega! De joelhos, em posição fixa da cabeça, praticamente giro sobre o meu eixo no travesseiro, comprimindo a cabeça contra a cama. Imagino ter visto o telefone. Penso em pedir ajuda, mas não consigo falar. Sinto velhas lágrimas descendo pelo rosto, mas de um mesmo choro pela metade. A boca faz um prolongado e rouco “ã”. Mesmo indecisa, giro para outro lado da minha vida socando fundo o rosto no travesseiro e desta vez choro profusamente. Com olhos, nariz, boca e gengiva, abro a chorar num “Á” suficiente para quase descolar a alma, expelindo tudo de uma vez… Minutos depois, surpresa, saí do que me parecia ter sido a total catarse de uma evacuação física e mental. Ao perder o medo, percebi que os dentes não tinham raízes, com as bases na infância, totalmente ocas. “Você ouviu, minha irmã?” ─ Primeiro os dentes de leite, os definitivos; desde sempre o sexo e a minha cabeça dura, a coluna, as hérnias e não bastasse tudo, as vistas secas. Ah, dentes de leite! Pode isso tudo? O corpo a gente entende, mas os dentes? ─ É que os dentes… ─ Nossa Senhora, vou tentar me erguer! Vê? Já consigo sentar mais rápido. Passe o andador que vou sozinha, eu mesma vou fazer xixi! Venha para cá, me ajude, fique bem pertinho. ─ Você treme inteira, cuidado. Cuidado!

─ Acho que consigo apoiar nos seus ombros. Noossa meesmo, que tremedeira. ─ Devagar! ─ Um simples levantar, uma tarefa hercúlea. ─ Não faz mal; tem tempo… Quer fazer? ─ Espera… Não sou capaz de tirar o peso de meu corpo da cama. ─ Deita. Vai, levanta o quadril. ─ Espera… Não poder caminhar e ir ao banheiro é um fracasso. ─ Levanta! V Vento. A porta se abre, as cortinas ondulam. No fim da madrugada entra a luz e o médico. Minha irmã se adianta e lhe faz inúmeras perguntas. Como já não bastasse, aflita, pega um papelzinho onde escreve as perguntas que não sabemos fazer. O doutor pede calma e senta. Não posso mais com esse silêncio: ─ Doutor, fale comigo! Ele pede calma. Eu digo que é impossível manter a calma diante de tamanho silêncio, que estou cansada de nada saber. Ele pede muita calma e diz: ─ Não é fácil diagnosticar com precisão. ─ Mas o senhor tem todos os exames! ─ Garanto que o que você tem é velhice. Se pudéssemos examinar exames anteriores ao acidente e comparássemos aos de hoje, não iríamos encontrar diferenças expressivas, entende? ─ Mas velhice, doutor? ─ Além disso, você tem um defeito de nascença: seu corpo tem dificuldade de apoio com a falta de uns ossinhos posteriores, na vértebra elecinco. Ele me explica tudo. Com muita calma, mostra no exame os ossinhos que faltam. Trouxe um desenho científico e mostra como devia ser a vértebra elecinco e os ossinhos posteriores que não tenho, formando um triângulo, na região lombar, perto do sacro. Acredita ainda que, provavelmente, em decorrência do acidente, três discos se romperam. Minha sorte – sorri –, é que os discos já estavam desidratados. Garantiu que cicatrizam em três meses e que devo ter alta em dois dias. Então, ele pediu para que eu me levantasse:

─ Fala sério, doutor? Mal consigo sentar, uso a comadre… ─… Ele não parece brincar comigo. Diante de sua insistência, sento com dor, mas ele quer mais. Arrisco me erguer apoiada nos canos da cama, pés no chão, mas em vão. Quando ele me vê tremer dos pés à cabeça, quase sem tirar a bunda da cama, ele desiste e diz que ainda é cedo, que não precisa forçar. Eu queria ter dito que nos meus sonhos, ando sem parar, procuro pelos meus filhos e vejo os incríveis ossinhos que faltam. Ele diz que me vê no dia seguinte. Minha irmã nada diz. De novo, as enfermeiras, as medicações, o apoio da cama, os fios, as cobertas. A tensão. O relaxamento, a sonolência. As dúvidas. Chega uma amiga que nunca tive, a da minha irmã. As duas se entreolham. Minha irmã continua calada e muito prefere ler, apesar da visita. Mas a amiga quer saber do acidente. Então eu conto. Disse a elas que ouvi que nunca teremos certezas em que apoiar e que depois de muito sofrer, as fábulas não são mais as mesmas. Silenciaram ao lhes dizer que a morte é cada dia mais próxima. Conto, pela última vez, que sábado passado saí de casa, de carro, com meus dois filhos. Fazia calor, vidros abertos. No primeiro farol dois assaltantes entraram no carro, revólver na mão. O mais ameaçador nos mandou para trás: não diz nada, não olha o retrovisor. Gélido. Mudo, apenas dirige. O outro no banco de passageiros ainda falava com a gente. Meu filho mais novo pediu a ele uma bala. Gentilmente, deu a bala e um sorriso. Então recebeu um tabefe do malvado: “Cala a boca!” As crianças gritaram. Eu pedi que ele mantivesse a calma, que falasse comigo, mas não, ele não fala com ninguém. Aí, o carro que acelerava e seguia a uma velocidade vertiginosa assistindo à maldade, brecou bruscamente. O demônio gritou que o primeiro que falasse levava um tiro – que não brincava –, mãos armadas que no câmbio tremiam. O meu mais velho grita com ele e leva uma tapa. Eu grito e levo outro, que ele não está brincando. O carro acelera cantando pneus; segue velozmente, mais ameaçador que antes. Agora, ninguém fala. A voz cruel que decreta nossos destinos, a maldade que tortura, as lágrimas tensas e ácidas, o desatino da prisão, o medo, a velocidade a aflição e a revolta me cercava. Ia enlouquecendo, numa mistura de raiva e contenção. Lembrança da vida inteira submissa, sem reação. O discernimento apoiava em meus meninos de mãos dadas. O mais novo chora. Então, o braço do valentão vem para trás. Levo um susto quando meu filho, maior e mais forte que eu, bate em vão na mão da víbora com o revólver, que engatilha se virando de novo para os meninos. Dos gritos, do braço armado e do fim, o encorajamento: o diabo mudou de corpo! Cubro os meninos, agarro com fúria na mão da arma, afastando de mim, forçando para o alto e depois para baixo contra a direção. Ajudada pelo outro bandido, a arma vai pro chão. O monstro ainda tenta equilibrar o carro em ziguezagues. Daí, minhas duas mãos cobrem a face do mal! Cravei minhas unhas nos olhos – ferindo a fundo –, depois tapei o nariz, sua boca me mordeu e o outro me agarrou. Quase morta da vida, armando bote, bati na cabeça diabólica com minha testa molhada e o chifre caiu. O carro girou, capotando e não vi mais nada. Depois, as sirenes, meus filhos gritando, as pessoas da estrada; ajudas, a vida de volta. O maldito ainda ri assustadoramente. Eu ainda escuto a voz do diabo dizendo que não existem certezas, que não havia nada em que pudéssemos nos segurar! Eu ouvi a voz do mal, juro que ouvi. Quando vi que o desgraçado ia atirar mesmo nos meus pequenos, virei bicho, menina; afundei os dedos nos olhos… ─ E os meninos! ─ E os meninos, minha irmã?

─ Estão bem, você sabe. Contando pra todo mundo da aventura que uma hora vira joguinho com super-heróis. Tiveram somente leves arranhões. ─ O trauma, o susto… Minha irmã sai de novo, com sua amiga; eu fico sempre sozinha. O silêncio. Durmo. Acordo. De novo as enfermeiras, as medicações, o apoio da cama, os fios, as cobertas. A tensão, o relaxamento, a sonolência. As dúvidas. Vi que minha irmã voltou mais rápido dessa vez, e se jogou no sofá. Silêncio. Não sei quanto tempo passa, mas quis agora contar pra minha irmã tudo de novo. Você está acordada? ─ Ela saiu bem impressionada. VI Um dia, mais livre, baterei asas. Ainda não sou borboleta, então inseto, larva talvez. No mínimo, ao deixar o hospital, era um casulo arremedado. No máximo, me transformava inconsciente na madrugada da vida. Nada poderia ajudar. Era contundente o quanto que plácida – verme – teria de me contentar. Como, diante da luz manter a calma, contendo a ansiedade? De que jeito, se há pouco fui aspirada e quase comida por um pássaro? Permanecer quieta? Larva? Comigo não! A estratégia é balançar, falar, talvez cantar – qualquer coisa –, quem sabe um mantra, quase o balbuciar cantiga de criança. Mesmo enfaixada, quase dançava. Era preciso me soltar. Queria ser borboleta e tinha que ser de primeira, catarse irreversível, qual pulo empossando o espaço existente. Sem ar, balanço muito; chacoalho e consigo! Saio, mas sou levada pelo vento. Perco altura e balanço nas águas de um lago. Um peixe se aproxima e afoito engole água. Escapo por milagre. Perto dali, algo cheio de vida me leva a um espaço familiar. Sou abandonada dentro de uma árvore quente e seca. Ouço um estalar de cascas. Alguns piados de fome me deixam alerta. Aquecida, sinto que estou de novo numa fria. Mas por sorte, ao estatelar suas asas, o pai – naquele alvoroço todo –, me atira para fora dali. De novo no lago, boio e desta vez, um peixe me come viva. Sou engolida, mas não mastigada: resto presa. Num espaço translúcido em meio a insetos, frutas e fibras irreconhecíveis, dou conta que estou entre a vida e a morte e justamente agora, meu casulo partiu. Neste mesmo instante – clarividente – a barriga do peixe é cortada. Na plenitude da luz, ganho espaço voando retumbantemente como a alma de uma borboleta laranja amarelada, voando quente no céu. Lá de cima, posso ver as matas coloridas e os rios da minha infância e isto é o máximo; voei de cansar. Em contraponto aos perigos terrestres – enfastiada de voar é verdade –, mas contente e segura, pousei num galho. De olhos fechados, tomo sol. Sigo conselhos de sábios insetos. Baixo as guardas, sou o desapego de minha condição borboleta e paro de pensar pela primeira vez. Asas fletidas em riste, intacta estava – assustada – quando uma língua gosmenta me pega, mas não leva: o acaso salvou. Então, parar de pensar é isso? Ou somente para mim que não sou uma borboleta eminente?

VII Percebo que importa saber o que sou, não somente o que fui ou o que serei. Bem tudo olho, tateio e escuto, sem clara noção do que se passa. Incomoda supor que o fim pode não existir como fragmentos ocasionais se encaixam em realidades inesperadas. Por isso sigo cantando criança a viver mitos em imagens musicais. Continuo vivendo em outras terras em meio a babas sem dentes, me libertando borboleta, com ossinhos de menos. Não ouço mais vozes, canto. Ainda sonho, mas sem a ilusão de mim; escrevo. Surpreendo-me sentindo a mesma coisa muitas vezes e disso também já cansei. A verdade é que não posso voar e não vou me matar. No fundo quero mais, condição besta de repetir: fazer de novo como criança que segura nos pais a brincar. Sozinha, depois de tantas quedas, abandono torres, árvores e pesadelos, pois a próxima história tem que ser melhor, como um raio. É como criar o novo sem o outro. Onde o novo? Em meu companheiro? Mas como me achar no casamento, sem o corpo de antes? Tudo me lembra de outras histórias contadas. Parece que não escrevi, mas está tudo lá. E aqui! A caminho do trabalho, invento um tempo no metrô. Não tenho paz em outro lugar, a não ser nos espaços das madrugadas. Quando a retórica não mais ilude, sigo pintando. Assim, deixo mundos e levo o meu em novas formas pra valer! Mas não demoro a ficar louca. Cada vez mais, preciso de muitos dias livres e de vidas inventadas. Chegamos. Chegamos é a esperança de não ficar sozinha. Cheguei e foi só. Saio do vagão com a ajuda dos braços. Estaciono no espaço ao lado do banco da estação, olhando partidas e chegadas. Assim, formo casulo no espaço de um tempo estacionário. Criando vida, espero sempre o próximo trem, amando ver novas partidas e demais chegadas. O túnel é a janela aberta do amanhã de coloridos brancos contra um fundo anil, na vida azul por trás de claros carneiros, gigantes e borboletas com rosas e verdes filhos amarelos, azuis a brincar! Laranja borboleta pingando vida ali, acolá. Livre de línguas elásticas retóricas vou para o elevador sem fila e subo vários andares. Sigo para o meu trabalho, sentada em minha cadeira. Não é fácil empurrar esta vida!

Fernando fez cursos livres de literatura no Museu Lasar Segall, na Letras da Usp (como ouvinte) e participou do Curso Livre de Preparação do Escritor (Clipe), na Casa das Rosas. Participou de oficinas com os escritores Gilson Rampazzo, Marcelino Freire, Rodrigo Petrônio e Luiz Brás. Atualmente é aluno do Curso de pós graduação do Instituto Vera Cruz de Escrita Criativa. Escreve poemas, crônicas e ensaios, enquanto seus heterônimos Mário Aviscaio e Altair Marino, tratam da ficção. O que não pode escrever, Fernando expressa através da pintura e da ilustração. Altair e Mário escrevem pintando enquanto que Fernando pinta escrevendo. Estes textos entre cartas,

crônicas, artigos, ensaios e contos, podem ser encontrados nas suas páginas do Facebook (nos álbuns de fotos há pinturas e ilustrações, além dos textos). Veja também inúmeros textos nas páginas dos sites Scribd e Academia.edu. Contato: [email protected] – https://unisantos.academia.edu/fernandochiavassa http://pt.scribd.com/fernando_chiavassa

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