OTAN: do centro à periferia do mundo?

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OTAN: do centro à periferia do mundo? Dissertação – Maio de 2015

Associação Portuguesa de Diplomacia Euro-Atlântica Orientador: Prof. Doutor José Manuel Lúcio Discente: Bernardo Marinho da Mata

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Índice:  Dissertação “OTAN: do centro à periferia?” 1. Enquadramento Teórico…………………………p. 4; 2. Rússia e China, as metades imperfeitas da circunferência da Ásia Central…………………p. 10; 3. As relações sino-russas e a tomada de decisão no seio transatlântico: o paradigma da Geórgia……….p. 21;  Bibliografia……………………………………………..p.32;  Anexos…………………………………………………..p.36 ;

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OTAN: do centro à periferia do mundo?

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Enquadramento teórico

Perante uma visível alteração na distribuição de poder a nível do sistema internacional saído do pós-Guerra Fria, tendo-se observado uma gradual ascensão da China como potência determinante no mesmo em virtude do seu súbito desenvolvimento económico das duas últimas décadas, é imprescindível reflectir criticamente sobre a solidez das estruturas organizacionais que sedimentaram o mundo unipolar até à presente data. Ora, pressupondo a unipolaridade como característica do actual sistema no seguimento da anterior afirmação, o conceito primeiramente incontornável nesta ordem de análise será a polaridade. A polaridade, definindo-a transversalmente à luz das várias escolas que constituem o estudo científico das Relações Internacionais, é ipsis verbis a concentração de poder (demarcando-me da concepção positivista de David Singer que formulara um cálculo para aferi-la, posto que acredito que, dado à natureza inteiramente prática do seu objecto, não é mensurável mas sim observável e dedutível) que se verificar num determinado pólo do sistema internacional que pode ou não basear-se num só actor. Um outro conceito nesta esteira emerge: o de poder. Poderia definir tão simplesmente “poder” em sentido estrito com base na sucinta e clara definição de Robert Dahl como sendo a capacidade de levar outrem a fazer

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aquilo que de outra maneira não faria 1, porém revela-se a meu mais complexo do que o exposto na citação. A política propriamente assenta inteiramente no conceito anteriormente referido, assentando esta sugestão na premissa de que uma designada comunidade de indivíduos se organiza porque “o homem apenas pode viver em sociedade” 2. Ora, este “pode” remete-nos para a prevalência da força da vontade que supera racionalmente, mediante uma equação de génese maquiavelana de custos e benefícios, os instintos animais que o instariam a procurar em última instância a sobrevivência, numa primeira leitura. Assim, a política com base no poder assenta em regras convencionadas que visam acomodar as necessidades e conter os impulsos primários dos hominais a fim de, na busca por essa segurança traduzida obviamente na sua sobrevivência, os mesmos não colidirem com os dos seus pares mas sim procurar nestes um ponto de convergência de interesses, o vértice de qualquer sociedade, se me for permitido estabelecê-lo como tal. Esta noção derruba de certo modo a apresentada por Dahl, porque não há nenhum A a coagir B com o propósito de levar B a fazer aquilo que de outra forma não faria. Lê-se, sim, que tanto A como B tomam a iniciativa de fazer partilhadamente aquilo que não conseguiriam fazer em segurança sem que tivessem de abdicar da mesma para impor esse mesmo motu. Os indivíduos juntam-se, portanto, numa comunidade política para poder garantir mais eficazmente aqueles interesses que partilham com o escopo de potenciarem os outros em que divergem. O curioso desta última interpretação é que não vai necessariamente de encontro à visão de Rousseau do “bom selvagem” que procura na comunidade que integra harmonizar a desigualdade natural, em que “cada um de nós coloca em comum a sua vontade, (…) a sua força (…) sob a direcção da vontade geral” 3, mas, sim, afirma que cada um de nós recorre à força da vontade de criar uma vontade geral na base da concórdia para capitalizar a discórdia nesse tabuleiro instável em que a primeira é transformada, como é a ecúmena das gentes 4 ou a comunidade de indivíduos. Isto, sem nunca colocar em xeque a posição do jogador que é, sob a própria perspectiva, inalienável do todo colectivo (como definira Rousseau), ou seja, 1

“My intuitive idea of power then is something like this: A has power over B to the extent that he can get B to do something that B would not otherwise do.”, Dahl, Robert A., The Concept of Power, Behavioural Science, 2:3, (1957, July) p. 203. 2 Barba Homem, p. 323 3 Rousseau, “Contrato Social” Livro I, Capítulo III, p.66 4 Francisco da Vitória ou Suárez.

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essencial ao jogo, ao não reconhecer de igual modo a inalienabilidade do seu par na dimensão do confronto necessário dos interesses divergentes. Transpondo para o sistema internacional: este é politicamente aceite, com base na sua ordenação hierárquica e na distribuição de poder, porque o próprio poder desigualmente distribuído pelos demais actores integrantes do sistema é o que sustenta a validade da disputa dos seus interesses soberanos numa lógica de constante equilíbrio de poder. Para um qualquer sistema existir, exige-se a priori uma vontade geral, como foi na Paz de Vestefália de 1648 a aceitação do princípio da soberania dos estados, mesmo sendo do domínio comum que isso só é possível com a desigualdade na distribuição do poder que é o sustentáculo da supracitada ordenação política hierárquica, o que estranhamente permite que mesmo os estados revisionistas, à similitude dos movimentos políticos anti-sistémicos no plano interno, tenham a segurança necessária para rever o status quo. Neste último ponto, introduz-se inevitavelmente o conceito de utilidade que, como o define António Barbas Homem, é um “cálculo permanente sobre as vantagens e desvantagens de certas condutas políticas” 5, ou seja, o cerne da doutrina da “Razão de Estado”6 do italiano Giovanni Botero que visa sempre em última análise assegurar metodologicamente a independência daquele que é considerado o actor fundamental das relações internacionais pela escola Realista Clássica de Hans Morgenthau, da qual comungo parcialmente como exporei adiante. Para já, gostaria de abordar um outro conceito já enunciado: o estado. O que considero ser a centralidade do estado nas relações internacionais prende-se de já com a sua definição basilar que bebe influência da sua própria conceptualização moderna 7 que é a de fundar a sua individualização, isto seja, a autonomia perante agentes sociais e políticos, no princípio da soberania do estado que, não encontrando necessariamente paralelo na hierarquia em que se materializa na esfera interna, define-se em competição com os seus pares em igualdade de circunstância. Esta competição, todavia, não se traduz imperativamente em conflito, porque o potentado de um estado a que corresponde o exercício de soberania, apesar da natureza que lhe atribui Jean Bodin, é finito, ou melhor, terminável com o desgaste de uma sua constante concretização. Concretização de soberania, essa que, por sua vez, assentaria numa permanente demonstração de força física, de violência para 5

Barbas Homem, p. 326 Barbas Homem, p. 324. 7 Barbas Homem, p. 318 6

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com o próximo, tornando-se a vivência internacional anárquica insustentável para os próprios estados que assentam o seu interesse na absolutez, indivisibilidade e unidade da própria soberania. Ou seja, se os estados tivessem hipoteticamente, num estado puro de anarquia, de exercer a soberania em competição com os outros até alcançar o pleno da hegemonia no mundo dissolver-se-iam, porque um estado permanente de guerra é insuportável a todos os níveis que os compõem. Neste sentido, o exercício limitado da soberania por parte dos estados permite-lhes a tal igualdade soberana que, conquanto não corresponda sempre à capacidade de poder real, é uma maneira viável de garantir que através de uma vontade geral de reconhecê-la continuem a defender e a capitalizar a diferença dos seus interesses.8 Posto isto, derruba-se de facto a possibilidade de encontrarmos nas organizações internacionais a identidade de um actor autónomo, como o estado desempenha tal função por excelência, das relações internacionais. Isto, porque derivam de uma vontade geral dos estados que, seguindo o raciocínio anterior, funcionam como um mero tabuleiro em que os actores estatais, sim, jogam em função dos seus interesses, podendo desfazer-se destas quando não mais conseguirem satisfazê-los, como propõem aliás Mearsheimer 9 sobre a própria natureza da União Europeia que configura-se mais do que uma organização intergovernamental, supranacional (pressupondo-se aqui, portanto, uma parcial transferência da soberania nacional em favor de uma instância superior). No limite, as organizações internacionais aspirarão a comportar-se como os estados, adoptando a sua lógica e não apresentando-lhe uma alternativa. Aqui, aduzo com o exemplo actual do Estado Islâmico do Iraque e do Levante que, sendo uma organização terrorista transnacional dado a sua composição militante variada e diferentes áreas geográficas de intervenção, acção e influência, actua e aspira à lógica de estado, porque vêem nisto uma forma de exercer soberania, instrumento crucial para se inserirem na dinâmica das relações de poder e com isto concretizarem a sua missão. Outro exemplo claro é, por oposição ao anterior, a Organização das Nações Unidas que, mesmo tendo a capacidade soberana de assinar tratados ou de legitimar o uso da força em caso de violação dos direitos consagrados na sua carta por parte de um qualquer país do mundo através do Conselho de Segurança, depende inteiramente do

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Este parágrafo inspira-se na proposta do artigo “A Anarquia Internacional: crítica de um mito realista” do Prof. Doutor António Horta Fernandes. 9 “Why is Europe peaceful today?”, John Mearsheimer

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exercício soberano dos estados que a compõem, não tendo uma verdadeira autonomia face aos que a compõem, mesmo a nível orçamental. Encerrando este subcapítulo, exploro sucintamente a tese precípua da obra académica “Politics among Nations” de Hans Morgenthau que apresenta os nove elementos do poder que determinam a posição e o sucesso da acção dos estados no seio do sistema internacional, servindo-me de linha condutora da análise que procederei nos subcapítulos sucedâneos que concernem à influência recíproca dos contornos da relação sino-russa e da tomada de decisão da burocracia pró ou transatlântica, uma sobre a outra. Para aludir ao primeiro factor enunciado, cita-se: “A suprema arte da política será, afinal, conseguir alcançar os objectivos políticos em ambiente geográfico desfavorável.”10 A geografia revela-se cada vez mais imprescindível para a compreensão estratégica e actuação política no mundo globalizado com base na contraditória e contraproducente globalização híbrida. Assim adjectivo-a, fundandome no sucesso económico da mesma, em que um mercado global se verifica caminhando progressivamente para uma uniformização igualmente global da procura e oferta de bens e serviços, conquanto o poder de compra e acesso aos mesmos difira radicalmente entre as várias regiões do globo, especialmente entre as mais ricas e as mais pobres mas também nas crescentes resistências à globalização política, cultural e até mesmo identitária, se me for permitido o termo. Prova disso é a dificuldade de articulação de políticas securitárias à escala mundial perante ameaças transnacionais concretas e reincidentes como o terrorismo, o crime organizado e as pandemias. Isto coloca-se como um desafio crescentemente para o decisor político que é forçado a inclinar-se para uma das duas vias, sabendo que, por exemplo, a abertura de fronteiras implica uma reestruturação radical do tecido económico que pode não acontecer por incapacidade de adaptação da sociedade, reflectindo-se nos fenómenos do desemprego e marginalidade que muitas vezes explicam a reemergência de forças partidárias extremistas no seio da política interna ou mesmo a adesão cada vez mais frequente de indivíduos de formação ocidental a organizações terroristas de índole fundamentalista religiosa. Liga-se à importância da geografia a igual importância das vias de transporte e comunicação que são fulcrais para a construção e inclusão num mundo globalizado e competitivo, 10

General Loureiro dos Santos in “O coração da Eurásia contra o Resto do Mundo”, Academia das Ciências de Lisboa.2013

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o que instiga a rivalidades e conflitos adormecidos sobre pontos geoestratégicos de referência, como se revelou a questão da anexação da Crimeia à Federação Russa em 2014 no contexto da Guerra Civil Ucraniana ainda corrente. Como segundo factor, os recursos económicos revelam-se essenciais no jogo geopolítico de competição internacional, dado à sua natureza limitada e desigualmente distribuída pelos diversos cantos do mundo, quase aqui encontrandose um não inocente paralelo com a própria distribuição de poder no sistema internacional. Aduza-se neste seguimento questão da segurança energética que gera inclusive a rivalidade interna no seio da Organização para a Cooperação de Xangai, uma concretização institucional peculiar da relação sino-russa e com particular impacto no Ocidente, como explorarei adiante no presente capítulo. Isto, porque, como terceiro factor de poder, surge a capacidade industrial que tem potencial de conversão em hard power na perspectiva de Morgenthau e que consequentemente dita o resultado das equações do equilíbrio entre as potências no sistema internacional com a introdução de um quarto factor que é consequência da verificação do anterior, o potencial bélico que vai desde a preparação, organização e equipamentos à própria condução política das forças armadas. Neste último, leia-se o exemplo gritante do Iraque de Hussein que, sendo nos anos 80 um dos principais produtores de petróleo do Médio Oriente e a principal potência militar da mesma região, vê-se na actualidade em consequência da invasão da coligação quadripartida em 2003 e do desmantelamento de todas a estruturas do regime como um quase estado falhado. O facto demográfico não será menos relevante, posto que os exércitos tendem a reflectirem proporcionalmente a dimensão populacional dos países que defendem, como será natural em função de uma garantia efectiva de segurança da nação, conquanto seja um fenómeno recente o declínio da componente humana das forças armadas em favor da crescente automatização da arte de guerrear. A este soma-se a qualidade do governo pelo reflexo directo que também num outro factor de poder como é a coesão moral, enunciada por Clausewitz, e, mormente, no bemestar da população. Paralelamente à capacidade de fazer a guerra, Morgenthau considera um factor de poder a qualidade da diplomacia, isto é, a mesma capacidade de levar outrem a fazer aquilo que de outra maneira não faria, recuperando a definição de poder de Dahl por via do soft power ou tão meramente da neutralidade que assuma historicamente em função do posicionamento geográfico central. 9

Exemplo disto é a Suíça que conjuga as duas possibilidades supra-mencionadas, quando reúne um poder de influência financeira que alia ao seu posicionamento geográfico no centro do continente europeu em favor da própria sobrevivência. Por último mas não de somenos importância, o elemento de poder que tem vindo a ganhar uma preponderância inesperada é o carácter nacional que corrobora internacionalmente a posição de um país, uma vez que o nível de conflito interno diminui. A título de exemplo clássico, observe-se o caso da maioria dos países africanos subsarianos, de onde se destaca a África do Sul, em que o confronto entre as diferentes etnias provoca divisões insanáveis que têm como consequência a quase inexistência de estado dado à instabilidade daí derivada. Exposta a minha base teórica, seguirei descrevendo no subcapítulo posterior o objecto desta minha análise como resposta à minha pergunta de partida: como influenciam as relações sino-russas a tomada de decisão no seio da burocracia pró ou transatlântica?

2.

Rússia

e

China,

as

metades

imperfeitas

da

circunferência da Ásia Central O primeiro contacto diplomático estabelecido entre o Império Russo, à data em crescente expansão sob a égide de Pedro, o Grande, e da dinastia Romanov a que presidia, e o milenar Império Chinês, sob o mandato do céu de KangXi e da dinastia Qing, responsável pela abertura da China ao modelo ocidental com a aceitação de jesuítas na sua corte, dos quais se destaca Tomás Pereira que fora o responsável pela tradução do tratado para latim que permitiria as negociações e sustentaria a efeméride supra-referida: o tratado de Nerchinsck de 27 de Agosto de 1689. O presente acordo incidia sobre a região do rio Amur 11, ponto de conflito entre os dois projectos expansionistas de Pedro, o Grande e de KangXi, sendo que a Rússia abdicava do norte da bacia do referido curso de água, ao passo que a China se comprometia a não violar a ténue fronteira que se situava numa abrangente zona de contenção que ia desde o rio Argun até à cordilheira Stanovoy. Ora, é precisamente esta natureza vaga dos limites fronteiriços acordados em 1689 que fomentaria doravante genuinamente as disputas territoriais entre as duas potências consideradas, 11

Ver anexo 1.

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cunhando nas relações sino-russas (sino-soviéticas entre 1917 e 1991) um forte pendor competitivo insanável. Mais: uma competição que, como se verificará numa tendência constante ao longo da história lavrada a partir deste marco temporal, se fará sempre através ou mesmo durante períodos de aparente cooperação e/ou diálogo. Exemplo disto mesmo é o Tratado de Kyahkta, cidade da raia russa com a China, datado de 23 de Agosto de 1727 entre o Imperador YongZheng, representado pela diplomata manchu Tulišen, e o inexperiente Czar Pedro II, representado pelo aristocrata sérvio Sava Lukich Raguzinzskii-Vladislavich, que surge na sequência de pressões diplomáticas provenientes de Pequim para que se encontrasse uma solução para a fronteira norte da actual Mongólia e Manchúria. A primeira encontrava-se ocupada pelo Canato de Zunghar, o que colocava em perigo a manutenção da rota de caravanas chinesas. Assim, em 1725, iniciam-se negociações para uma nova delimitação de fronteiras em torno das Montanhas Altai e do rio Shabindobaga, enquanto num esforço conjunto se repelia o Canato invasor para ocidente e se possibilitava ao Império Chinês a anexação da província de Xinjiang. Todavia, são os aspectos primordialmente inovadores que advieram deste tratado: 1) a abertura de relações económicas, com a criação de um fluxo de trocas comerciais, via comércio de caravana, de chá chinês por peles russas que inspiraria muitos acordos futuros; 2) a questão da Mongólia que se revelaria determinante geopoliticamente para a Rússia, enquanto “estado-tampão” criado artificialmente em 1921 face à insegurança para com o colaboracionismo da China republicana com as brigadas internacionais dos “brancos” que se opuseram à revolução bolchevique de Outubro de 1917, como explorarei adiante. Não será, por isso, despropositado nem precipitado afirmar as disputas territoriais como uma das principais causas para uma atipicamente estável turbulência das relações sino-russas. Em meados do século XIX, aliás, constata-se momento que me consubstanciaria a afirmação anterior: o tratado de Aigun de 28 de Maio 1858. Este acontecimento vem na consequência da Segunda Guerra do Ópio (1856-1860) entre o Império Britânico recém-estabelecido na Índia, com francos interesses em expandir o seu poderio económico ao eternamente promissor mercado chinês, dado a sua dimensão e, mormente, o seu produto, coligado com a França de Napoleão III presente na Indochina, e o Império Qing da China. Este último, por seu turno, além de desafiado no plano externo, via-se enfraquecido já desde 1850 no 11

plano interna pela Rebelião Taiping, liderada por Hong Xiuquan, cristão convertido que constituiria o Excelso Reino de Taiping, sob a visão messiânica de que libertaria a China do demónio incarnado pela dinastia reinante e fortemente derrotada na Primeira Guerra do Ópio, cuja extensão partira inicialmente da província de Guanxi até Suzhou12, onde se localizava a sede do seu governo contestatário do poder manchu, Nankin. Se para a Rússia, a convulsão interna chinesa e, particularmente, a emergência de uma frente considerável de oposição a Pequim a sudeste do território do império rival, para as potências ocidentais que ingeriam na política chinesa, desde a referida Primeira Guerra do Ópio, a contestação provinda de Taiping revelava-se nefasta aos seus interesses de manipulação do poder imperial manchu, nomeadamente, a manutenção de uma posição predominante sobre o Porto de Xangai situado no foco geográfico da Rebelião. Situação, esta que mostraria bem a dualidade ocidental face à China, enquanto potência da Ásia Central: nunca dividi-la para reinar, mas também nunca deixar que reine completamente para que o divida em momentos de maior força. Prova disto, foram os factos de Xangai nunca ter estado sob o controlo dos rebeldes e de nas hostes imperiais que se lhes opuseram estarem presentes batalhões voluntários de nativos chineses liderados por oficiais ocidentais (inclusive, americanos), de que foi exemplo mais sonante o Ever Victorious Army. Mais: este período dá-nos uma leitura geopolítica privilegiada de como a Rússia se comporta perante a inclinação forçada ou não da China para o Ocidente. Ora, o comportamento russo não foi menos do que característico, quando observada a sua segurança territorial e, mormente, a de acesso ao mar em causa. No seguimento do contexto exposto acima, Nikolay Muraviev, Governador-Geral do Extremo Oriente ao serviço do Czar Alexandre II, seguiu a estratégia de estacionar vários dispositivos militares ao longo da fronteira com a actual Mongólia e, sobretudo, com a Manchúria, por um particular motivo: a faixa territorial que ia dos Montes Stanovoy ao Rio Amur, cuja soberania se tinha acordado como não definida no Tratado de Nerchinsck de 1689 conquanto historicamente pertencente à China, permitia à Rússia Imperial um privilegiado acesso ao norte do Mar do Japão que, por seu turno, abria caminho para o Pacífico, evitando os acessos gelados do Mar da Sibéria Oriental. Ainda que tudo indicasse para uma favorável anexação russa deste 12

Ver anexo 2.

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território por via da força, encontra-se um arrepiante paralelismo, salvo a expressão, da actuação política de então para com a actual de Moscovo face às regiões separatistas russófilas da Ucrânia em secessão: esperar, forçando o adversário a ceder perante a evidência e ameaça da criação de uma segunda frente de guerra que desfavoreceria ainda mais a situação geoestratégica do primeiro. Ameaçada e esgotada pelo esforço de guerra que mantinha contra a Grã-Bretanha e a França bem como contra os Taiping, a China dos Qing não tinha alternativa que não de entrar em negociações com a Rússia no ano de 1858. Destas negociações, resultou o supramencionado Tratado de Aigun, em que se acorda o estabelecimento de uma área de soberania partilhada a que se chamaria “condominium” no território confinado entre os rios Ussuri, a norte, Amur, a este e o Mar do Japão, a sul, onde seria fundada a cidade portuária de Vladivostok em 1861. Uma solução, aliás, conscientemente provisória para ambos os lados: para a Rússia, o desgaste chinês permitir-lhe-ia um controlo efectivo sob o território considerado e até, posteriormente, uma anexação de facto como se verificou logo no ano de 1860 com o fim da Segunda Guerra do Ópio e da derrota clara da China Imperial que se veria a braços com os encargos pesados das recompensas materiais devidas à coligação anglo-francesa e das próprias transformações culturais e políticas que lhes foram impostas pela Convenção de Pequim desse mesmo ano. Destaque-se em conclusão deste parágrafo que o Tratado de Aigun e demais consequências determinariam a preponderância da Rússia nas relações sino-russas que se manteria praticamente imaculada até 1991, com a dissolução da União Soviética. Avancemos, contudo, até ao ano de 1911, a data da revolução republicana que derrubaria a dinastia Qing, na figura do seu último Imperador Puyi, após o fracasso da Reforma dos Cem Dias em que os sectores mais progressistas da sociedade chinesa, liderados por um tímida burguesia de inspiração ocidental (mais especificamente britânica) clamaram por uma maior liberalização política rumo a uma Monarquia Constitucional que, segundo eles, reflectir-se numa retoma económica e recuperação política do prestígio internacional perdido desde os Tratados bilaterais de Tiensin de 1858 com a França, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos da América que sustentaram o corpo da humilhante Convenção de Pequim de 1860, já anteriormente referida e que se reproduziu no concreto esquartejamento da China Imperial em diferentes áreas de influência. A par disto, a Primeira Guerra 13

Sino-Japonesa de 1894-95 seria o golpe derradeiro no orgulho imperial dos Qing, em que a soberania sobre a Península da Coreia bem como a ilha de Taipé (autoproclamada uma república independente em função da invasão japonesa, o que revela, aqui, a mero título de curiosidade, a já antiga relação conflitual de Taipé com a China Continental) seria transferida para o Japão através do Tratado de Shimonoseki de 17 de Abril de 1895. A estas aquisições territoriais, soma-se a península de Liaodong que seria posteriormente cedida à Rússia por via do ultimato trilateral materializado na Intervenção Tripla, de que também faziam parte a Alemanha e a França, por considerar a primeira que expansionismo japonês colocava um desafio à sua hegemonia regional e interesses económicos, obrigando o Japão a recuar com essa cedência e o pagamento de recompensas materiais aos envolvidos. Esta seria a causa directa para a Guerra Russo-Japonesa de 1904-05. Ora, o facto de a China ter passado de um player regional praticamente incontestável até meados do século XVII para ser mais um mero tabuleiro de xadrez europeu acendeu os ânimos nacionalistas que se manifestaram na fundação do partido Kuomintang em 1905 pela mão de Sun Yat-sen, aquele que viria a ser o primeiro presidente da República da Províncias Unidas da China após a revolução de Xinhai de 10 de Outubro de 1911. Emergem naturalmente duas questões pertinentes: 1) Que mudança de fundo provocou este acontecimento no posicionamento internacional da China?; 2) Qual a percepção da Rússia, enquanto potência vizinha? As respostas desanimarão. À primeira indagação, responde-se que a China continuaria dividida nas mesmas áreas de influência e mergulhada num completo estado de marasmo, em que a convulsão política devida à cedência do cargo de Presidente da República de Sun a Yuan Shikai, figura proeminente do exército imperial que manteve-se até este acontecimento fiel ao Império. Era a única esperança de sobrevivência para a recémproclamada república. Com isto, em Fevereiro de 1912, o Imperador abdica formalmente, ao que Yuan é empossado provisoriamente do cargo que lhe fora cedido no mês seguinte do mesmo ano, sob o compromisso de realizar eleições mal se concluísse a elaboração de uma Constituição. O documento constitucional provisório, contudo, previa a realização de eleições livres no prazo de dez meses a partir desse mesmo mês de Março, tendo decorrido de facto, embora sem aplicação prática. Em 1914, Yuan dissolve o Parlamento, substitui-o por uma espécie de senado com o propósito de redigir uma nova constituição que lhe confiasse o poder 14

absoluto e instaura uma ditadura militar, tendo forçado Sun ao exílio. A China está mergulhada no caos. No ano seguinte, o Japão beneficiando da aliança que estabelecera com o Reino Unido para combater a presença alemã na Ásia Central na sequência do início da Primeira Guerra Mundial impõe as chamadas “Vinte e uma exigências” que contemplavam a reposição de um regime imperial e, mormente, a completa abertura do mercado chinês às necessidades industriais japonesas em exponencial expansão. Yuan proclama-se imperador, com feroz resistência interna, acabando por falecer no mesmo ano de 1916, a que se seguiu uma numerosa quantidade de golpes e contra-golpes que resultariam na Guerra Civil Chinesa de 1927-37 e 1946-49, interrompida pela invasão japonesa de 1937-46 e da instauração de um estado fantasma na Manchúria, só possível pela incapacidade de consenso entre as forças nacionalistas de Chiang Kai-Shek e as forças comunistas de Mao Tse-Tung. Antes de passar à resposta da segunda questão, convém salientar o seguinte pormenor que será de resto determinante para o fundamento do que se segue: a emergência no final do século XIX do Japão como a grande potência na Ásia Central que arrasaria completamente o equilíbrio de poder encontrado pela Rússia e a China, ainda que instável, contendo a oriente, em particular no caso russo, a rivalidade sino-russa e, mormente, o potencial de conflito entre ambas. Isto, porque havia um inimigo em comum, o que as forçava a uma certa cooperação ou, reformulando, a uma não-agressão. Algo que, aliás, se manteve após a substituição do Japão pelos Estados Unidos da América na região, enquanto fiel da balança na relação específica entre a Rússia e a China, ainda hoje presente e que nem a própria Guerra da Coreia de 1950-53 alterou. Ora, a resposta à segunda questão acima enunciada reside precisamente nisto: a emergência do Japão e, sobretudo, o seu rápido, eficaz e inesperado expansionismo conteve a Rússia, senão mesmo, debilitou-a enquanto potência e reduziu-lhe drasticamente qualquer capacidade de intervenção que pudesse ter numa China desfeita. Esta última afirmação poderá traduzir-se facilmente no decurso e subsequentes efeitos da Guerra Russo-Japonesa de 1904-05, de entre os quais se lêem as revoluções de 1917 como natural corolário de forte desgaste do poderio militar russo nas duas décadas de transição do século XIX para o século XX. Todavia, outra interrogação se levanta: qual o verdadeiro interesse russo de intervir na China? A questão de mudança de regime na China para a Rússia Imperial 15

era verdadeiramente indiferente num contexto em que, primeiro, a geografia e a insuficiência de uma boa rede de transportes não permitiam uma rápida circulação de ideias e tendências revolucionárias entre estes dois países (mais depressa sendo influenciados ou pelo regresso de exilados políticos, como foi o caso de Lenin, ou pela presença de potências ocidentais e seus valores na região, como foi o caso de Sun). Em segundo lugar, embora concomitantes e partilharem de iguais objectivos, os grupos políticos oposicionistas e revolucionários chineses e russos não se reviam reciprocamente nem bebiam das mesmas inspirações. Algo, aliás, que só se verificaria na ingerência soviética em contexto de guerra civil chinesa, como adiante explicarei porquê. Em terceiro lugar, a Rússia Imperial não via qualquer tipo de ameaça ao seu território por parte do novo regime político nem a república das Províncias Unidas da China se mostrou hostil aos interesses russos na região, partilhando com o Czarismo um forte sentido conservador que alicerçava a visão e acção política de Yuan. Mais: o antagonismo e intervenção ainda que indirecta partirá da China em reacção à Revolução bolchevique de Outubro de 1917, quando a cidade de Harbin, na Manchúria, serve de centro de operações para as brigadas internacionais “brancas” de combate ao novo regime comunista, por cedência do governo de Pequim. Este gesto levaria a que o recém-fundado Comintern fundasse por intermédio de Cheng Du-Xiu o Partido Comunista Chinês (PCC), na cidade de Xangai, no ano de 1922. No mesmo ano, aliás, em que Sun aceita a ajuda do mesmo organismo supracitado para reconstituir o Kuomintang (KMT), com a contrapartida de que este último integrasse os membros do partido comunista recentemente fundado e recebesse formação militar de Moscovo, através da criação da Academia Militar de Whampoa, no ano seguinte, situada na província do sudeste chinês de Guangzhou. Neste contexto de resposta soviética ao colaboracionismo chinês, dá-se ainda a independência da Mongólia em 1921 face à China, levada a cabo pelo Partido do Povo da Mongólia de génese comunista que serviria não só de estadotampão ao longo de uma enorme faixa fronteiriça historicamente problemático que com este facto o deixa de ser. Há, contudo, que recordar a máxima de que, embora partilhado um inimigo, a rivalidade sino-russa não desaparece de todo, muito pelo contrário, tende a agravar-se num esforço muitas vezes divergente de tentar derrotar o mesmo inimigo em primeiro lugar com o escopo de assegurar uma vantagem no pós-conflito. Isto explica, por exemplo, por que motivo Chiang, ao regressar de Moscovo em 1924 16

para substituir Sun, que morreria no ano seguinte, na liderança do KMT, reage à tentativa soviética de fazer assentar esse mesmo partido nos seus moldes, provocando uma ruptura insanável que seria assumida pelo próprio Mao face ao Comintern, enquanto líder revolucionário da República Popular de JiangXi que acolheria os derrotados membros do PCC e tradicionalmente alinhados com a URSS (esta mesma República Popular sendo uma reacção ao anti-comunismo visceral de Chiang que se repercutirá em numerosos massacres de militantes comunistas dos quais se destaca o de 1927 em Xangai), retomada novamente nos anos 60 com a ruptura definitiva após o apoio soviético à Índia no conflito sino-indiano de 1962 e no confronto de Damanski de 1969. Não é possível um alinhamento duradouro destas duas potências sem que isto implique uma subordinação de uma à agenda da outra na região. A invasão da Manchúria pelo Japão em 1931 veio mudou o panorama de confronto, em que a URSS, vendo-se forçada a recuar para a sua área de segurança, vai apelar a Mao em 1936, saído vitorioso da “Longa Marcha” de 1934-35, a um novo entendimento com Chiang para o retomar da Frente Unida PCC-KMT, como única hipótese possível de combater a agressão japonesa, mesmo sendo conhecido em Moscovo a residual influência da sua comitiva de 28 delegados do Comintern para reorganizar essa mesma resistência. A Frente Unida é retomada em 1938, após progressão japonesa no nordeste do território chinês no ano anterior, terminando logo no ano de 1941, devido à impossibilidade de entendimento entre os dois constituintes. Por seu turno, os soviéticos, reorganizados a norte e livres da pressão alemã na frente ocidental da Segunda Guerra Mundial, vão conseguindo expulsar o exército japonês da Manchúria após rompido o pacto de não-agressão nipo-soviético em Abril de 1945. Nesta última data, os nacionalistas são coagidos a retirar-se pelas forças soviéticas do território da Manchúria, enquanto no flanco sul são empurrados também a norte pelas forças comunistas de Mao, acabando por refugiarem-se na Ilha de Taipé em 1949 e a partir daí passam a receber auxílio dos Estados Unidos da América no contexto da Doutrina Truman de Contenção da expansão da influência soviética no mundo. 1949 marca, portanto, o triunfo das forças comunistas de Mao no longo teatro de operações da Guerra Civil que se via no seu final sem os vários actores internos chineses nem o próprio Japão que capitulara formalmente em 2 de Setembro de 1946 perante os Estados Unidos da América, o novo actor por excelência da região em contraposição clara à presença soviética a norte, herdeira 17

histórica dos interesses do Império Russo. Nesta ordem de ideias, o novo governo da República Popular da China aproxima-se de Moscovo com vista a alcançar uma aliança que permitisse garantir que os soviéticos não fossem uma ameaça a norte perante a frente americana que substituíra a japonesa aliada aos nacionalistas estacionados em Taipé. É certo que Mao estava numa posição confortável, ao dominar o território continental da China, mas também é verdade que se tratava de uma realidade ainda muito frágil para se arrogar a defrontar-se com duas frentes poderosíssimas que, aliás, correspondiam às duas superpotências da nova ordem internacional bipolar. Mesmo assim, este facto per se não explica o alinhamento chinês com a URSS em vez de uma aliança com os Estados Unidos, além das óbvias motivações

ideológicas

e históricas

(lembre-se que os Estados Unidos

representavam o “fantasma” da presença ocidental que conduzira a China milenar ao descalabro durante cerca de quarenta anos até essa parte). Julgo, se me for permitido expressar tal opinião, que a razão básica prende-se com uma noção primária de defesa da integridade territorial. Não que a URSS a garantisse, mas era para a China de Mao, à data, muito mais facilmente combatível uma qualquer ofensiva americana ou nacionalista com apoio americano que proviesse do Mar da China e de Taipé do que uma invasão a norte pelos soviéticos. Isto é, ter a rectaguarda segura permitia a Mao condenar o apoio americano a Taipé com uma maior veemência do que caso contrário se verificasse. O incidente de Damanski de 1969 alteraria radicalmente esta possível interpretação geoestratégica, também em parte porque o próprio contexto mudou bastante. Em 14 de Fevereiro de 1950, é assinado o Tratado Sino-Soviético de Amizade, Aliança e Assistência Mútua que previa uma duração de trinta anos, sendo renovável por mais cinco após passados esses ditos trinta anos no caso de nenhum dos signatários o fizesse cessar entretanto. Não duraria mais do que uma década até à primeira grande tensão, mesmo que assente e muito inspirado nos princípios pelos quais se lavrara o Tratado de Kyahkta de 1727. A título de inócua provocação, poderá mesmo afirmar-se que esta nostalgia foi levada ao seu extremo, visto que a vigência do Tratado de 1950 será posta em causa, tal como a de 1727, com um disputa territorial entre a União Soviética e a República Popular da China: a questão dos confrontos de Damanski de 1969, após instalada a tensão entre ambas na sequência da Revolução Cultural Chinesa e a gradual demarcação de Mao das

18

posições de Moscovo a seguir à morte de Estaline em 1953. Como Kissinger 13 descreveria, a presença de cerca de 660 000 soldados soviéticos e 816 000 soldados chineses ao longo da fronteira considerada, nesse Verão de 1969, indiciava fortemente um conflito inadiável que nunca tinha antes chegado a verificar-se e que, aliás, não se verificou por força das circunstâncias internas da URSS como pelas externas relativas ao sistema internacional e à crescente possibilidade de aproximação da China aos Estados Unidos da América, como aconteceria em 1972. Embora não tenha originado um conflito de proporções maiores, o confronto entre o exército soviético e chinês de 2 de Março de 1969 que provocara a morte de trinta e quatro homens do primeiro abrira um precedente para um conjunto de outros pequenos confrontos fronteiriços e para a ruptura definitiva das relações entre os dois países, que só se retomariam em 1989 com a visita de Gorbachev a Pequim para recuperar a aliança. A partir deste marco temporal até ao ano de 1991, faça-se menção ao desenvolvimento da invasão do Vietname pela China em Fevereiro de 1979, como resposta às diligências diplomáticas de Moscovo junto dos países que fazem fronteira a sudeste do primeiro. Apesar de mal sucedida, a China enviava um sinal claro da sua aproximação aos Estados Unidos da América e ao Japão em resposta ao que acusava de tendências hegemónicas da URSS sobre o espaço da Ásia Central que se materializaria na procura de firmar acordo com os Estados Unidos para uma aliança tácita contra a URSS ao longo dos anos 80. Com a queda do Muro de Berlim em Novembro de 1989 que marcaria o início da dissolução do bloco de leste na Europa e da própria União Soviética, concomitantemente à experiência traumática dos Protestos da Praça Celestial (Tianamen) de Abril a Junho do mesmo ano que abalaria o regime chinês mas que não o derrubaria ao contrário do que ocorrera com a URSS, por via do rápido desenvolvimento económico chinês, a China volta a reencontrar o seu eterno rival, a Rússia, então desprovido do manto soviético, salvo a expressão. Ainda em Maio de 1991, num dos últimos actos político-administrativos de Gorbachev, enquanto último Presidente da União Soviética, é assinado um acordo sino-soviético sobre delimitação das fronteiras relativas ao Rio Ussuri e aos ilhéus Damanski ou ZhenBao (toponímia chinesa) que seria corroborado em 1996 por Boris Ieltsin,

13

H. Kissinger, “On China” Penguin Editors, 1st edition 2011 p. 220

19

primeiro presidente da Federação Russa após a sua independência formal da URSS em Agosto de 1991. Estabelecido com o escopo primeiro de fundar uma plataforma permanente de diálogo multilateral para definição de fronteiras entre antigas repúblicas soviéticas da Eurásia e a China, o grupo dos “Cinco de Xangai” formou-se também com o patrocínio da Rússia de Boris Yeltsin em sintonia à China de Jiang Zemin a que se juntaram o Quirguistão, Cazaquistão e Tajiquistão em 26 de Abril de 1996. Assumidos os benefícios provindos desses esforços de aproximação em torno das questões fronteiriças, os membros dessa plataforma avançaram em 1998 no sentido de expandir essa mesma cooperação às áreas da segurança e defesa que se centrasse no combate coordenado aos “três males da OCX”14 fenómenos do separatismo nacionalista, terrorismo fundamentalista e tráfico de armas e drogas, com particular interesse chinês e russo. É, contudo, no ano de 2001, como indica Salum15, com o convite feito ao Uzbequistão para integrar o grupo dos “Cinco de Xangai” que se procede à assinatura da Declaração de Organização para a Cooperação de Xangai, em que constam os diferentes mecanismos de cooperação política, económica, tecnológica, energética, cultural e ambiental, do qual se destaca o “RATS” 16.

Todavia, o exponencial

desenvolvimento económico e demográfico chinês tem retirado à Rússia o seu inicial papel de pivot desta organização de cooperação intergovernamental, o que tem reacendido a antiga rivalidade entre ambos, nomeadamente no que concerne à influência sobre os países da região, como o Cazaquistão, ricos em recursos energéticos que são determinantes para uma maior independência da China face ao fornecimento energético da Rússia. Este, por sua vez, afirma-se como o derradeiro instrumento à disposição desta última para conter o gigante chinês na região, visto que o fornecimento de armas e demais equipamentos militares destinados à modernização do exército da República Popular da China já não se equipara ao grande volume de importações dos anos 90, relegando a Federação Russa para um plano secundário no panorama regional. Isto, numa altura que a China já tomou a dianteira no plano internacional, desafiando agora os Estados Unidos da América como potência unipolar.

14

“«Three evils facing the SCO» – separatism, extremism and terrorism” Plater-Zyberk apud Salum, 2013, p. 218; 15 Salum, 2013, p 219. 16 “Regional Anti-Terrorist Structure”, futuramente designado de “RCTS – Regional Counter-Terrorism Structure.

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3. As relações sino-russas e a tomada de decisão no seio transatlântico: o paradigma da Geórgia Muito analistas colocam a hipótese de que as relações sino-russas têm vindo a reforçar-se em função do progressivo alargamento da NATO a leste, isto é, a antiga esfera de influência da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, com a integração de três países dos quatro do designado “Grupo de Visegrado” 17 em 199918, gerando o primeiro grande desconforto no pós-Guerra Fria entre a NATO e a Federação Russa, seguindo-se a integração das três repúblicas bálticas a par da Roménia, Bulgária e Eslovénia na Cimeira de Istambul de 2004 e, mais recentemente, em 2009, a entrada da Albânia e Croácia na Cimeira de Estrasburgo-Kehl. Esta última integração feita quase concomitantemente com o episódio do incidente diplomático entre a Rússia e a Geórgia que desembocou na chamada “Guerra Russo-Georgiana” de Agosto de 2008 com incidência nas pretensões separatistas da Ossétia do Sul e da Abecásia, apoiadas pela primeira, face à segunda. É dito e escrito abundantemente que há, no mínimo, uma ténue conexão entre ambos os acontecimentos, suposição de que discordo parcialmente. Embora desde sensivelmente o mês de Novembro de 2003, com a “Vardebis Revolutsia” (“Revolução Rosa”), em que o Movimento Nacional Unido liderado por Mikheil Saakashvili derruba o governo russófilo de Eduard Shevardnadze sob a égide de uma nova orientação da política externa georgiana para o Ocidente 19, o executivo de Tiblisi tenha procurado estreitar os seus laços com a Aliança Atlântica, a ligação entre ambas já antecede este facto e ocorre no seio das “Parcerias pela Paz”, organismo 17

Discrimine-se: Polónia, República Checa, Hungria e Eslováquia (esta última não integra a NATO), tendo esta nomenclatura encontrado a sua origem histórica no acordo da cidade húngara de Visegrado de 1335, entre os reis Casimiro III da Polónia, João I da Boémia e Carlos I da Hungria, cujo escopo foi estabelecer uma rede de cooperação económica e militar sui generis fundada no antagonismo face à preponderância de Viena enquanto principal entreposto comercial das rotas orientais na Europa Central. 18

Johanna Granville,"The Many Paradoxes of NATO Enlargement" Current History (April 1999), vol. 98, no. 627, pp. 165–170. 19

Cujo apoio, aliás, foi imediato e concretizado através de uma visita oficial de James A. Baker III, Secretário de Estado dos Estados Unidos da América, sob a administração Bush, o que contribui para o acelerar do processo de deposição do presidente em exercício, conforme descreve Cory Welt no seu artigo "Georgia's Rose Revolution: From Regime Weakness to Regime Collapse" de 2006, publicado pelo Center for Strategic and International Studies.

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NATO de cooperação com as ex-repúblicas soviéticas, a que tanto a Rússia como a Geórgia aderiram na mesma data de 23 de Março de 1994, em sede da Cimeira de Bruxelas. A vontade georgiana de aderir à NATO surge, sim, no seguimento da contrarevolução de Maio de 2004, com envolvimento russo, para derrubar Saakashvili, a qual não obteve sucesso. Como contra-peso, Saakashvili procurou imprudentemente acelerar o processo de integração na Aliança através de um acordo de Março de 2005 no seio da “Parceria pela Paz” que visava a concessão georgiana de apoio logístico a forças NATO em trânsito na região. A NATO, por seu turno, conquanto tenha diligenciado no sentido de acompanhar este processo de aproximação da Geórgia, só a reconheceu como “membro aspirante” num comunicado do Conselho do Atlântico Norte de 7 de Dezembro de 201120, sob uma crítica comum do universo atlanticista que considera-o como uma violação no disposto do artigo 10º do Tratado do Atlântico Norte 21, uma vez que é discutível a condição europeia do posicionamento geográfico e mesmo sociocultural da Geórgia, excluindo de já o clarividente facto de não ser nem um país atlântico nem um país mediterrânico. Aqui, observamos imediatamente um pormenor que sustenta a minha discordância inicialmente apresentada: o facto de a aproximação georgiana à Aliança Atlântica ter sido feita ao abrigo da “Parceria pela Paz”, ao qual se vincula igualmente a Rússia. Ademais, o reconhecimento político, que só o Conselho do Atlântico Norte pode dar, só ocorreu três anos depois do próprio conflito russo-georgiano, mesmo tendo decorrido a 5 de Janeiro de 2008 um referendo em que se perguntava aos georgianos sobre a possibilidade de uma integração na NATO e que foi aprovado por cerca de 77% dos eleitores que acorreram às urnas. Não existe, por isso, um elo óbvio, todavia, também não se verifica o seu exacto oposto. Está claro que as minorias russas presentes nas regiões separatistas da Ossétia do Sul e Abecásia observaram inteligentemente que o crescente compromisso de Tblisi com a Aliança Atlântica materializar-se-ia num equilíbrio de forças que lhes seria desfavorável. Isto, porque no longo historial de conflitualidade entre ossetas, abecases e georgianos que remonta a Novembro de 1989,

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“Final statement, Meeting of the North Atlantic Council at the level of Foreign Ministers held at NATO Headquarters, Brussels, on 7 December 2011” http://www.nato.int/cps/en/natolive/official_texts_81943.htm?mode=pressrelease

21

Art. 10º do Tratado do Atlântico Norte “As Partes podem, por acordo unânime, convidar a aderir a este Tratado qualquer outro Estado europeu capaz de favorecer o desenvolvimento dos princípios do presente Tratado e de contribuir para a segurança da área do Atlântico Norte. (…)”

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em que a Ossétia do Sul reclama Autonomia face à ainda República Socialista Soviética da Geórgia num sangrento confronto de três meses que se reacenderia durante dois anos, entre 1990 e 1992, que terminaria com a aproximação da Geórgia à Rússia, serenando as pressões separatistas ossetas e abecases, no contexto de uma inédita colaboração russa com o Ocidente de que derivou a “Parceria pela Paz” em 1994. Em todos estes, há uma linha de continuidade que se concretiza na reacção da Ossétia do Sul e da Abecásia à tentativa de europeização da Geórgia, todavia, é algo que antecede a própria dissolução da URSS em 1991 e do ressurgimento geopolítico da Rússia de jure. Conquanto a Geórgia se afigure como ponto fulcral de passagem de qualquer projecto de fornecimento alternativo de energia à Europa que provenha do Oriente, como medida para reduzir a dependência face à Rússia, não deixa de ser um pequeno estado que, na eventualidade de ser um aliado da NATO e sofrer uma agressão russa ao seu território, não compensaria estratégica e politicamente o sacrifício da frente leste europeia da Aliança que se expandiu até à fronteira russa. Por muito musculada, salvo a expressão, que fosse a resposta da aliança em território georgiano, revelar-se-ia um esforço vão, posto que a dimensão geopolítica da Geórgia, mesmo que coligada com os seus pares da região dos Cáucasos e suportada na rectaguarda pela Turquia, não conseguiria em momento nenhum contra-pôr-se à presença russa. Esta última hipótese formulada, a título de parêntesis, fracassaria de imediato na insegurança da Arménia face à potência regional que é a Turquia devido a um percurso histórico de vincado antagonismo, encontrando a primeira na Rússia uma aliada imprescindível para a manutenção da sua integridade territorial, senão mesmo, a sua sobrevivência sociohistórica, ao passo que o Azerbaijão se recusaria a participar igualmente pelo particular interesse que encontraria na sua neutralidade face a ambos os lados desse conflito, uma vez que só 53,9%22 das suas exportações se destina a países membros da Aliança Atlântico tal como 14,5% correspondem a imprescindíveis importações de bens e serviços, além da sua sempre periclitante posição face à potência regional emergente que é o Irão e à qual a Rússia serve de contra-peso claro. Continuando o exercício hipotético que antecede esta pequena reflexão, contudo, era preciso fazer uma escolha estratégica de deslocar efectivos militares da frente europeia ocidental para a região que a frente leste nunca aceitaria por ver-se imediatamente numa posição de fragilidade tanto numérica como tecnológica face à 22

Dados sobre exportações e importações azerís de 2012, “The World Factbook – Azerbaijan” on Central Intelligence Agency https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/aj.html

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frente russa. É de lembrar ainda que o posicionamento geográfico da Geórgia não permitiria conforto ou sequer uma folgada margem de manobra para uma operação norte-americana, precisamente se atendermos à dimensão territorial georgiana e ao topografia acidentada da mesma, na qual a Rússia continuaria a ter vantagem graças à Abecásia que possui litoral e à Ossétia do Sul que constitui uma verdadeira fortaleza na rectaguarda da Geórgia, dado o seu enquadramento montanhoso e o curso dos rios Kura e Aragvi23. Talvez mesmo por essa razão, estes dois territórios são do mais vital interesse estratégico russo no que concerne à manutenção de uma total preponderância na região considerada, uma vez constatado o facto de todas as intervenções militares russas em território georgiano terem partido sempre das duas áreas supra-mencionadas. Esta é, se me for permitida a expressão, a tragédia georgiana e, mormente, o grande calcanhar de Aquiles para a Aliança Atlântica, em especial para os Estados Unidos da América, que pouco poderão fazer para contrariá-lo o que se reflecte nitidamente no processo de tomada de decisão no seio da primeira e que me reporta para a questão de partida desta minha dissertação. No caso de os Estados Unidos da América serem considerados uma potência unipolar, como defende aliás William Wohlforth no seu afamado artigo “The stabiliy of a unipolar World”24, incontestável, não encontrando nenhum paralelo histórico que não o da Roma Imperial em que nenhum actor conseguirá equilibrar o seu poderia militar e tecnológico, sobretudo, nem mesmo que coligado com outros seja capaz de subverter a ordem internacional pela primeira potência citada imposta, como se explica as reticências que pontuam e protelam uma tomada de posição definitiva quanto ao caso da Geórgia ou, mais actual, da Ucrânia por parte da Aliança Atlântica de que é líder inequívoco? E numa altura em que a política externa chinesa apresenta uma crescente auto-confiança no plano internacional, devido à sua ascensão pacífica, e que procura no seio das Organização das Nações Unidas que serve de sustentáculo ao presente status quo construir um sentido de responsabilidade inerente à condição de grande potência 25, qual o verdadeiro significado de, por exemplo, a abstenção da delegação chinesa no

23

Ver anexo 3.

24

William C. Wohlforth. "The Stability of a Unipolar World." International Security 24, no. 1 (Summer 1999): 5-41. 25

“The UN […] serves as the central platform from which China seeks to project itself as a responsible power that fulfils its obligations toward the international community by respecting universal rules of international conduct.” In Odgaard, L., China and Coexistence: Beijing’s National Security Strategy for the Twenty-First Century, Woodrow Wilson Pr. and Johns Hopkins UP, Washington, DC and Baltimore, 2012, p.132.

24

Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre o projecto de resolução S/2009/31026 apresentado por um grupo de membros permanentes e não-permanentes liderados pelos EUA que visava a extensão da missão de Paz das Nações Unidas na Geórgia até 30 de Junho de 2009 e vetado pela Federação Russa? A resposta a ambas as questões assenta numa só expressão do foro terminológico das Relações Internacionais: transição de poder em curso. Embora a China se afigure como uma potência revisionista, isto é, aquela que não se revendo na actual distribuição de poder do sistema internacional vigente (se atendermos ao enquadramento desadequado que é desta feito, em função de um exponencial e contínuo crescimento económico e de um poderio militar em franco desenvolvimento, no esboço estruturante da ordem internacional de prevalência americana) procura transformá-lo, não é de todo até à data uma potência revolucionária, ou seja, que acaudate uma rápida e brusca transformação do mesmo. Muito pelo contrário, o jogo chinês tem sido pensado e executado conforme as regras do actual sistema, ao ponto de ser apontada apenas como uma “potência status quo assertiva” 27. A Rússia já não pode partilhar da mesma condição, uma vez que, por força do path dependency da derrota histórica assumida, enquanto herdeira da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, com o Fim da Guerra Fria, é confrontada com uma ordem internacional que foi reestruturada pós 1991 para ser-lhe adversa e contê-la enquanto player regional num exercício da máxima expressão do seu poder que, ao contrário do que muitos subestimam, não deixou de ser considerável a nível militar e, mais especificamente, ao subnível do armamento nuclear, ainda que obsoleto na sua generalidade, sofrendo desde a chegada de Vladimir Putin ao Kremlin, em 2001, um processo gradual de modernização no seguimento da própria redefinição do conceito estratégico de segurança nacional russo. Os Estados Unidos, por seu turno, não podem deixar de considerar a emergência, quanto mais não seja a médio e longo prazo, do manifestar de rivalidade geopolítica, na melhor das hipóteses, centrada na disputa por influência na região do Pacífico, com a China, o que obriga a uma maior prudência diplomática no seu posicionamento sobre matérias que sejam respeitantes a questões sensíveis como são a Ucrânia e a Geórgia. Não, porque estas sejam do interesse estratégico chinês, nem tão pouco mais ou menos, 26

“S/2009/310 - Austria, Croatia, France, Germany, Turkey, United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland and United States of America: draft resolution” in http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/2009/310 27 Farley, Robert, “China might just be an assertive status quo power”, The Diplomat, August 29 2014 http://thediplomat.com/2014/08/china-might-just-be-an-assertive-status-quo-power/

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mas porque, sim, são do interesse estratégico vital russo e, enquanto a China não resolver a sua ainda grande dependência energética face à Rússia, as posições destes dois últimos actores serão concertadas a nível global, seja através de um explícito alinhamento e concordância seja através de uma política rotativa de abstenção no seio da Conselho de Segurança da ONU e demais organizações internacionais sobre questões delicadas para um dos dois, o que dificulta a posição americana que não pode arriscar um afastamento da China ascendente. O leitor desta dissertação poderá deduzir que sugiro que a Rússia manipula, salvo a expressão, a debutada relevância chinesa no plano internacional para escudar a sua recente iniciativa de rever o status quo com a ingerência no estado georgiano, em 2008, e ucraniano, em 2014. Nada de mais errado: a China, sim, teria mais proveito na manipulação, salvando novamente a expressão, do revisionismo russo como forma de conseguir conciliar através deste uma posição revisionista que decorrerá naturalmente da paulatina reunião dos nove factores de poder, enunciados por Morgenthau e descritos no enquadramento teórico da presente obra, com uma contrastante postura colaborante da ordem vigente, conseguindo assim abrir espaço para emergir como superpotência nessa brecha que a Rússia vai tentando abrir no Ocidente e simultaneamente manter-se próxima de quem ainda detém o poder, os EUA. A isto, não é obviamente alheia a Aliança Atlântica, enquanto frente europeia da unipolaridade americana que se defronta, pela primeira vez, com um verdadeiro desafio de natureza puramente geopolítica e geoestratégica por parte do oriente que a Rússia prefigura na questão da guerra civil da Ucrânia. Desde os sucessivos alargamentos da NATO a leste de 1999 e 2004, a par de uma presença militar norte-americana incómoda em países da Ásia Central da esfera de influência directa russa, como o Quirguistão2829, no âmbito do combate ao terrorismo e da Guerra do Afeganistão e da “Parceria pela Paz”, a relação entre a Federação Russa e a Aliança Atlântica tem-se construído com base numa desconfiança mútua, com 28

Facto que contribui, aliás, com apoio político dos Estados Unidos da América, para a “Revolução das Tulipas” de cariz democrático, em 24 de Março de 2005, tendo derrubado o governo autocrático russófilo de Akayev e substituído por um executivo pró-ocidental liderado por Bakiyev. Isto, quando em 24 de Dezembro de 2004, o Kremlin tinha feito conhecer a sua posição contrária face aos movimentos revolucionários na Geórgia de 2003 e na Ucrânia de 2004, alertando que “não toleraria mais tentativas de ingerência «no seu espaço vital de influência» - as fronteiras da antiga URSS” (citado de Carlos Santos Pereira no seu artigo “ A NATO e a Rússia: Uma Parceira Reservada”, publicado na Revista “Nação e Defesa” nº 126, p. 154). 29 “Quirguistão – Regime Autoritário enfrenta «Revolução da Tulipa»”, Rádio e Televisão de Portugal, 25 de Fevereiro de 2005 http://www.rtp.pt/noticias/index.php? article=106685&tm=7&layout=121&visual=49

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agravamento provocado pela pretensão da Administração Bush de colocar um escudo anti-míssil na República Checa e Polónia em 2007 e pela crise georgiana de 2008 que encontrou o seu pico aquando do reconhecimento da independência da Ossétia do Sul e Abecásia em 26 de Agosto desse ano, levando a uma reacção contrária do Ocidente com várias manifestações políticas de solidariedade para com o executivo georgiano de Saakashvili e através do comunicado do Conselho Extraordinário do Atlântico Norte que considerava não ser possível a manutenção de relações com a Rússia, se esta não retirasse da Geórgia, anúncio da criação de uma comissão bilateral NATO-Geórgia e à contra-reacção russa de congelar a colaboração e intercâmbio militar com a Aliança em Setembro. Com o início do novo ciclo Obama na Casa Branca em Janeiro de 2009, deu-se o “Fresh start” de Hilary Cliton das relações com a Rússia que influenciariam o Novo Conceito Estratégico da NATO de 2010, em parte no seguimento da pressão francoalemã para retomar o diálogo formal com o país referido em funções de interesses económico, sobretudo, de salvaguarda do fornecimento energético regular ao centro da Europa com o projecto Nord Stream, e da oposição deste mesmo eixo ao possível alargamento a leste, inclusa a Geórgia. O retomar desta parceria descreve-se sumariamente no reforço da colaboração a nível do combate ao terrorismo, pirataria e na manutenção do esforço de Guerra no Afeganistão, no qual a Rússia se tinha revelado um parceiro indispensável. Em Abril de 2009, num período de um certo optimismo no seio da Aliança quanto à reaproximação à Rússia, o Ministro dos Negócios Estrangeiros polaco Sikorski sugere que a Rússia seja integrada na NATO, tendo sido acompanhado pelo antigo Ministro da Defesa alemão Rühe, chefiando um grupo de peritos, numa carta aberta publicada em Abril de 2010, sob o argumento de esta a acontecer seria determinante no contra-balanço da potências asiáticas em ascensão, leia-se a China. Deve ler-se, contudo, não mais que um mero sentimento de optimismo, pois, no mesmo ano, o Presidente Medvedev assinava a “Doutrina Militar da Federação Russa até 2020”, em substituição da anterior de Putin de 2000, que identifica o alargamento da estrutura NATO até próximo das fronteiras russas como uma das suas principais ameaças externas. Por seu turno, o novo documento estratégico da Aliança de 2010, embora não descartando a Federação como uma possível ameaça, considerava a hipótese do diálogo e encontrava claras vantagens nas três áreas de colaboração acima explicitadas. A questão ucraniana em 2014, contudo, veio revelar-se um dinamitar calculável mas 27

inesperado de uma ponte frágil ainda em construção, com mais esforço por parte da margem da Aliança Atlântica do que pela margem russa. Em suma, a ilusão que se tinha gerado no pós-Guerra Fria de poder contar com a colaboração da Rússia para a construção de uma nova ordem internacional de predomínio ocidental começa a esboroar-se rapidamente à medida dos acontecimentos recentes, o que confirma uma máxima histórica bem resumida nesta citação do Embaixador russo junto da NATO, Dmitri Rogozin, à data de 2010: “As grandes potências não aderem a coligações, elas criam coligações, e a Rússia continua a considerar-se uma grande potência”30. Ora, à luz da pura razão de estado, a Rússia não poderá vislumbrar qualquer vantagem numa sua integração na NATO, organização esta que foi criada com o propósito primeiro de antagonizá-la enquanto núcleo e matriz da ex-URSS, ainda para mais, num quadro em que um dos objectivos da Organização para a Cooperação de Xangai, como seja o estabelecimento de um pólo regional credível de poder que contra-balançasse e contestasse a unipolaridade norte-americana, começa a materializar-se com a assumpção da China como superpotência. Esta, por sua vez, revela-se, apesar da rivalidade regional que preconizam desde há vários séculos, um aliado preferencial para a Rússia à escala global, porque, se há ilação que podemos retirar da história das relações sino-russas é a tendência natural de ambos para uma estreita colaboração em caso de partilharem um inimigo ou rival comum, como é, foi e sempre será o Ocidente que as cerca em todas as frentes, excepto numa: o coração da Ásia Central, um tabuleiro de xadrez geopolítico e geoeconómico que não querem nem podem partilhar a bem da sua sobrevivência enquanto players de relevo no âmbito das relações internacionais. Por isso e respondendo à pergunta de partida inicialmente formulada, a tomada de decisão no seio da Aliança Atlântica está profundamente condicionada pela evolução das relações sino-russas, não só pela auto-limitação de acção do sistema de segurança colectiva atlântico face aos limites estabelecidos para uma coexistência mínima mas também pelos vários interesses que compõem democraticamente a Aliança e que concorrem em sentidos diferentes muito em função e particularmente da nova realidade que é o poderio económico chinês. Esta auto-limitação, contudo, não se me assemelha como negativa, porque obriga a uma maior ponderação das prioridades estratégicas da Aliança, condição determinante para a sua continuidade, sobretudo, com base na 30

Citado de Carlos Santos Pereira no seu artigo “ A NATO e a Rússia: Uma Parceira Reservada”, publicado na Revista “Nação e Defesa” nº 126, p. 160

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seguinte ideia, fruto da ironia da geografia de um mundo esférico: não é só a Aliança que cerca a Ásia Central, é também a Ásia Central que cerca a primeira31.

31

Ver Anexo 4.

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Bernardo Marinho da Mata

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Bibliografia  ADLE, C. History of Civilizations of Central Asia - towards the contemporary period: from the mid-nineteenth to the end of twentieth century. (pdf) Paris. UNESCO Publishing. 2005, pp. 336-366;

 BARBAS

HOMEM,

A.

História

das

Relações

Internacionais: o Direito e as suas concepções políticas na Idade Moderna. Lisboa. Almedina. 2010

 CHEN, V. Sino Russian Relation the Seventeenth Century. Haia. Martinus Nijhoff. 1996.

 FAIRBANKS, J. K. and GOLDMAN, M. China: a New History. 2ª Edição. Cambridge. Belknap Press of Harvard University Press. 2006;

 FERDINAND. P. (Coord.) The position of Russia and China at the UN Security Council in the light of recent crisis. (pdf) Bruxelas. Directorate-General for External Policies of the Union. 2013;

 HEATH, I. The Taiping Rebellion 1851-66. 1ª Edição, Oxford. Osprey Publishing. 1994

 MARCH. G. P. Eastern Destiny: Russia in Asia and the North Pacific. Westport. Praeger Publishers. 1996;

 PERDUE. P. China marches west: the Qing conquest of Central Eurasia. Cambridge. Belknap Press of Harvard University Press, 2005.

31

Anexos:

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Anexo 1: Mapa da Região do Rio Amur, onde incidiu o tratado de Nerchinsck de 27 de Agosto de 1689. Fonte: Amur River. (2015, March 22). In Wikipedia, The Free Encyclopedia. Consultado às 11:41, Maio, dia 20, 2015, de http://en.wikipedia.org/w/index.php? title=Amur_River&oldid=652996435

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Anexo 2: Territórios controlados pelos revoltosos de Taiping em 1854. Fonte: Taiping Rebellion. (2015, May 13). In Wikipedia, The Free Encyclopedia. Consultado às 11:40, Maio 20, 2015, de

http://en.wikipedia.org/w/index.php?

title=Taiping_Rebellion&oldid=662101353

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Anexo 3: Cartografia da situação geográfica dos territórios separatistas da Ossétia do Sul e da Abecásia no território reconhecido da República da Geórgia com destaques para o curso dos rios Kura e Aragvi, adaptado a partir de um mapa original presente no Departamento Cartográfico das Nações Unidas. Fonte: South Ossetia. (2015, Maio 5). In Wikipedia, The Free Encyclopedia. Consultado às 11:28, Maio, dia 20, 2015, de http://en.wikipedia.org/w/index.php?title=South_Ossetia&oldid=660988754

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Anexo 4: Projecção planisférica de Mercator do mundo, cuja centralidade assenta no continente americano, mostrando empiricamente que o espaço geográfico da OTAN se encontra delimitado igualmente tanto a oeste pelo território russo da Sibéria e China como a este pela frente europeia da Rússia. Fonte: “Training with Map power – Cultural Detective” Consultado às 12:45 em Maio, dia 20, 2015 de “http://www.culturaldetective.com/worldmaps.html”

4.Bibliografia

 BONNEMAISON, J., La dernière île, Paris, Arléa/ORSTOM, 1986, p. 161;

 BRANDÃO, Maria de Fátima e FEIJÓ, Rui Graça, Textos e Comunidades: os estudos de comunidade e as suas fontes históricas, in Análise Social, vol. XX (83), Lisboa, ICS-UL, 1993, p.493;

 CABRAL, José Lencastre (coord.), Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, vol. I (A-L), 1ª Edição, Lisboa, Círculo de Leitores, 1985, p. 637-639;

 CLAVAL, Paul, Geografia Cultural, 2ª Edição, São Paulo, Editora UFSC, p. 206-222;

 Conceito Estratégico de Defesa Nacional, Lisboa, Governo de Portugal, 2013;

 ECO, Umberto, A passo de Caranguejo: guerras quentes e populismo mediático, 1ª Edição, Gravita, Lisboa, 2012, , p. 17-31;

 Regimento Geral do Serviço do Exército, Edição Original, Exército Português, 1914, p. 11.

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